Almanaque Raimundo Floriano
Fundado em 24.09.2016
(Cultural, sem fins comerciais, lucrativos ou financeiros)


Raimundo Floriano de Albuquerque e Silva, Editor deste Almanaque, também conhecido como Velho Fulô, Palhaço Seu Mundinho e Mundico Trazendowski, nascido em Balsas , Maranhão, a 3 de julho de 1936, Católico Apostólico Romano, Contador, Oficial da Reserva do Exército Brasileiro, Funcionário Público aposentado da Câmara dos Deputados, Titular da Cadeira nº 10 da Academia Passa Disco da Música Nordestina, cuja patrona é a cantora Elba Ramalho, Mestre e Fundador da Banda da Capital Federal, Pesquisador da MPB, especializado em Velha Guarda, Música Militar, Carnaval e Forró, Cardeal Fundador da Igreja Sertaneja, Pioneiro de Brasília, Xerife nos Mares do Caribe, Cordelista e Glosador, Amigo do Rio das Balsas, Inventor da Descida de Boia, em julho de 1952, Amigo da Fanfarra do 1° RCG, autor dos livros O Acordo PDS/PTB, coletânea de charges, Sinais de Revisão e Regras de Pontuação, normativo, Do Jumento ao Parlamento, com episódios da vida real, De Balsas para o Mundo, centrado na navegação fluvial Balsas/Oceano Atlântico, Pétalas do Rosa, saga da Família Albuquerque e Silva, Memorial Balsense, dedicado à história de sua terra natal, e Caindo na Gandaia, humorístico apimentado, é casado, tem quatro filhos, uma nora, dois genros e dois netos e reside em Brasília, Distrito Federal, desde dezembro de 1960.

José Domingos Brito - Memorial quarta, 08 de fevereiro de 2023

OS BRASILEIROS: ABDIAS DO NASCIMENTO (ARTIGO DE JOSÉ DOMINGOS BRITO, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

OS BRASILEIROS: Abdias do Nascimento

José Domingos Brito

 

 

 

Abdias do Nascimento nasceu em 14/3/1914 em Franca, SP. atorpoetaescritordramaturgo, pintor, professor e político, considerado um dos expoentes da cultura negra no Brasil.  Foi um destacado ativista dos direitos humanos e líder pioneiro do movimento negro no Brasil e fundador do TEN-Teatro Experimental do Negro, Museu de Arte e Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros.

 

Filho de Georgina Ferreira do Nascimento, doceira e ama de leite e  José Ferreira do Nascimento, sapateiro e violonista,  Teve os primeiros em sua cidade natal e concluiu o curso de contabilidade no Ateneu Francano, em 1929. Em seguida mudou-se para o Rio de Janeiro e manteve contatos com um grupo de intelectuais integrantes da AIB-Ação Integralista Brasileira. Segundo seu colega, o poeta Gerardo Melo Mourão, “Abdias se dedicou exclusivamente ao problema da raça negra, da redenção dos negros brasileiros. Dizia que era a missão dele e era realmente uma coisa importante”. Tempos depois, questionado sobre sua participação na AIB, declarou

“Dentro do integralismo eu me separava do movimento negro, mantendo assim duas atividades paralelas. Logo que percebi, concretamente, o racismo dentro do integralismo, me desliguei definitivamente desse movimento político”.

 

Em 1938 concluiu o curso de Economia pela Universidade do Rio de Janeiro e passou a se interessar pelo teatro, levando-o a fundar o TEN-Teatro Experimental do Negro, em 1944. Sua primeira peça -O imperador Jones-, de Eugene O’Neill, foi encenada em maio de 1945.

No ano seguinte, foi o ator principal da peça Otelo, de Shakespeare.

Na mesma época, participou da fundação do PTB-Partido Trabalhista Brasileiro. Na condição de pioneiro do movimento negro, foi um dos organizadores da Convenção Nacional do Negro, realizado por 2 anos no Rio de Janeiro e em São Paulo, onde propôs à Constituinte de 1946 tipificar a discriminação racial como crime de lesa-pátria. Pouco depois organizou o Congresso do Negro Brasileiro, em 1950, e passou a se interessar pelo estudo das ciências sociais. Ingressou no ISEB-Instituto Superior de Estudos Brasileiros e concluiu o curso de sociologia em 1956.

 

Por essa época participou da UNE-União Nacional dos Estudantes,  mas pouco depois foi alijado do movimento sob a alegação de ter sido um dos integrantes da AIB. Com o golpe militar de 1964 passou a ser perseguido e teve seu nome incluído em vários inquéritos policiais militares. Em 1968, com o recrudescimento do regime, fechou o TEN e exilou-se nos EUA, onde passou a lecionar na School of Drama da Universidade de Yale e Wesleyan Center of the Humanities. No período 1970-1982 lecionou na Universidade de Nova Yorque, chegando a tornar-se professor emérito e diretor do Centro de Pesquisas e Estudos Porto-Riquenhos. Exerceu, também, atividades acadêmicas em outros países e lecionou na Universidade de Ifé, Nigéria, em 1976-1977. 

 

De volta ao Brasil, foi cofundador do Movimento Negro Unificado e fundou o Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brsileiros, na PUC/SP, em 1981 e atuou como membro do Conselho Deliberativo do Memorial Zumbi, em 1980. No exílio conheceu Leonel Brizola, junto ao qual ajudou a fundar o PDT-Partido Democrático Trabalhista, em maio de 1980, designado como vice-presidente. Em 1983 tornou-se deputado federal e assumiu a Comissão de Relações Exteriores da Câmara dos Deputados. Sua atuação política foi centrada na defesa dos direitos humanos e civis dos negros, identificando o racismo e a discriminação racial como questões nacionais e propondo a criação de uma Comissão do Negro na Câmara.  

 

Batalhou pelo resgate histórico de Zumbi dos Palmares, como herói da Pátria e propôs o feriado nacional no dia 20 de novembro, aniversário de sua morte, como “Dia Nacional da Consciência Negra”. Apresentou projeto de lei estabelecendo mecanismos de compensação para os negros, prevendo a criação de uma cota de 20% de vagas na seleção de candidatos ao serviço público. A proposta incluía incentivos às empresas para a eliminação da discriminação racial e a incorporação ao sistema de ensino de uma imagem positiva da família afro-brasileira, bem como a inclusão no curriculum escolar de uma matéria sobre a história das civilizações africanas e do africano no Brasil.

 

Suas iniciativas em defesa dos negros foram importantes nas discussões da Assembleia Nacional Constituinte. Com a nova Constituição, promulgada em 1988, o direito brasileiro passou a ser mais bem considerado ao contemplar a natureza pluricultural e multiétnica do País. O racismo tornou-se crime inafiançável e deu-se a demarcação das terras dos remanescentes de quilombos. Teve atuação destacada na Comissão do Centenário da Abolição, em 1988 e seu desdobramento na criação da Fundação Cultural Palmares. Em 1990 foi empossado como suplente do senador Darcy Ribeiro e no ano seguinte, foi designado Secretário Extraordinário para Defesa e Promoção das Populações Afro-Brasileiras, do Rio de Janeiro, pelo governador Leonel Brizola.

 

Pouco depois, tomou posse no Senado com a saída de Darcy Ribeiro, que foi comandar o Programa Especial de Educação no governo Brizola. Em 1997, com a morte de Darcy, voltou ao Senado e ao final da legislatura 1995-1999, assumiu a Secretaria de Direitos Humanos e da Cidadania, na administração do governador Anthony Garotinho. Seu empenho no movimento negro rendeu-lhe 2 indicações ao Prêmio Nobel da Paz, em 2004 e 2009, além de diversas homenagens no Brasil e no exterior. Como pintor, teve suas obras expostas em galerias e universidades dos EUA e do Brasil. Faleceu em 23/5/2011, aos 97 anos.

 

Deixou alguns livros publicados, com destaque para Sortilégio (1957), traduzido para o inglês em 1978; O negro revoltado (1968), reeditado em 1982; Racial democracy in Brazil: myth or reality? (Nigéria, 1972); O genocídio do negro brasileiro (1978), reeditado em 3ª edição pela Ed. Perspectiva em 2016; O quilombismo (1980), reeditado em 2002; Orixás: os deuses vivos da África (edição bilingue, 1995), O Brasil na mira do Pan-Africanismo (2002). Duas biografias dão conta de seu legado: Abdias  Nascimento, da jornalista Sônia de Souza Almada, publicada pela Selo Negro Edições, em 2009 e Abdias Nascimento, a luta na política, pela Ed. Perspectiva, em 2012, da norte-americana Elisa Larkin Nascimento, sua última esposa, que ressalta “muito do debate e das políticas públicas que assistimos hoje e que foram implementadas no País devemos à sua atuação parlamentar”. Uma vista panorâmica de sua vida e legado podem ser vistos no link: http://www.abdias.com.br

 

Militância e política – Ocupação Abdias Nascimento (2016) - YouTube

 


José Domingos Brito - Memorial quarta, 25 de janeiro de 2023

OS BRASILEIROS: HERMILO BORBA FILHO (ARTIGO DE JOSÉ DOMINGOS BRITO, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

OS BRASILEIROS: Hermilo Borba Filho

Jose Domingos Brito

 

 

 

 

Hermilo Borba Filho nasceu em 8/7/1917, em Palmares, PE. Advogado, crítico literário, escritor, jornalista, tradutor, dramaturgo e diretor teatral. Ingressou no Teatro de Amadores de Pernambuco junto com Ariano Suassuna, com o qual fundou o Teatro do Estudante de Pernambuco e mais tarde criou o Teatro Popular Nordeste e o Teatro de Arena do Recife. Um expoente destacado no Teatro Brasileiro, na Literatura e na pesquisa da cultura nordestina.

 

Criado numa tradicional família de usineiros no Engenho Verde na Zona da Mata, teve os primeiros estudos em Palmares e logo mudou-se para o Recife, para estudar na Faculdade de Direito. Tornou-se advogado, mas nunca exerceu a profissão. Já na faculdade tomou gosto pelo teatro e passou a atuar junto com os amigos Valdemar de Oliveira, Ariano Suassuna e Samuel Campelo. Em 1947 iniciou como crítico de teatro com a coluna “Fora de Cena”, publicada na Folha da Manhã, do Recife. Em seguida, mudou-se para São Paulo, onde viveu 5 anos e manteve a crítica teatral nos jornais Última Hora, Correio Paulistano e na revista Visão, além de integrar a Comissão Estadual de Teatro.

 

Em 1957 foi premiado pela APCT-Associação Paulista de Críticos Teatrais como diretor revelação, com a peça Auto da compadecida, de Ariano Suassuna. De volta ao Recife, em 1958, passou a lecionar na Universidade do Recife (atual UFPE) e fundou o TPN-Teatro Popular do Nordeste, em 1960, junto com Ariano Suassuna e outros amigos. Pouco depois criou o Teatro de Arena do Recife junto com Alfredo de Oliveira, trabalhando ao lado de Gastão de Holanda, Capiba, José Carlos Cavalcanti Borges, Aldomar Conrado e Leda Alves. Neste ano encenou peças de Augusto Boal, Gianfrancesco Guarnieri, Dias Gomes, Osman Lins, Gogol, Ibsen e Max Frish, bem como sua peça O cabo fanfarrão.

 

Sua companhia teatral acumulou um déficit permanente, fazendo-o atrair operários e estudantes e manter convênios com entidades do comércio e indústria. Mas não consegue liquidar as dívidas e fecha o teatro de 90 lugares. Numa entrevista, questionado se algum dia ganhou dinheiro com teatro, ele cita a montagem de Dercy Gonçalves para sua versão de A Dama das Camélias como exemplo único, e acrescenta: "mas, de repente, verifiquei que a prostituição era muito pesada, e parei". No período 1959-1968 foi premiado diversas vezes pela Associação dos Críticos Teatrais de Pernambuco e em 1969 recebeu o título de Chevalier de L’Ordre des Arts et Letres, do governo francês. Por esta época fundou o MCP-Movimento de Cultura Popular junto com Paulo Freire e Ariano Suassuna, entre outros simpatizantes do Partido Comunista, vindo a sofrer perseguição política. Foi autor de 18 peças teatrais e 11 livros entre romances e contos.

 

Seu primeiro romance -Os caminhos da solidão- saiu em 1957, pela Editora José Olympio. Como dedicava-se mais ao Teatro, o segundo -Sol das almas- só veio sair em 1964 pela Ed. Civilização Brasileira. Em 1966 empreendeu a escrita de uma tetralogia -Um cavalheiro da segunda decadência-, publicada pela mesma editora e ficou conhecido em âmbito nacional: (1) Margem das lembranças (1966); (2) A porteira do mundo (1967); (3) O cavalo da noite (1968); (4) Deus no Pasto (1972). O volume 3 discorre sobre um intelectual nordestino em São Paulo, na década de 1950, numa atribulada vida boêmia. Um livro de cunho memorialístico e autobiográfico, que suscitou uma comparação entre o autor e seu dramaturgo predileto Henry Miller.

 

Seu legado na área teatral vai além da direção e autoria de peças. Publicou Teatro, arte do povo e reflexões sobre a mise en scène (1947), resultado de 2 palestras; História do Teatro (1950), o primeiro manual de história do teatro editado no Brasil; Teoria e prática do teatro (1960); Diálogo do encenador (1964); Espetáculos populares do Nordeste e Fisionomia e espírito do mamulengo (1966) e nova edição da História do teatro, com o título História do espetáculo, em 1968. Seu objetivo foi colocar em prática a fusão ente o popular e o erudito, o mesmo objetivo palmilhado por Ariano Suassuna, com o surgimento do “Movimento Armorial”, em 1970.  

 

Num artigo publicado no Diário de Pernambuco, Benjamin Santos, ex-integrante do TPN, relata algumas características do teatro de Hermilo e conclui: “Mais importante, porém, que todos esses aspectos encontrados é a concretização de uma estética do espetáculo. [...] Em resumo, seria um teatro com o canto, a dança, a máscara, o boneco, o bicho... uma recriação do espírito popular nordestino [...]; o homem brasileiro posto no palco com toda a sua luta, o sofrimento, a derrota, a insistência, a vitória; um teatro de intensidade emocional e crítica, um teatro vivo, aberto, sem a ilusão da quarta parede, permitindo ao público a compreensão maior de sua própria história. O teatro como um ato político e religioso a um só tempo. Esta é a busca de Hermilo”.

 

Em meados da década de 1970 teve um abalo na saúde e telefonou para seu amigo José Paulo Cavalcanti Filho, em 26/5/1976. Disse-lhe que iria morrer dentro de uma semana e que precisava falar com ele. José Paulo foi até sua casa e tiveram uma conversa antológica, que deverá ser publicada em livro.  A conversa ocorreu numa 4ª feira e Hermilo faleceu na 4ª feira seguinte, em 2/6/1976. José Paulo concluiu que seu amigo “era um homem de palavra”. A Prefeitura de Palmares deu seu nome à Fundação Casa de Cultura da cidade, em 1983. Em seguida a Prefeitura do Recife criou o Centro de Formação das Artes Cênicas Apolo-Hermilo, formado pelo Teatro Hermilo Borba Filho e o Teatro Apolo, em 1988. Uma coletânea de 12 de suas peças foi reeditada e incluída na Coleção Teatro Selecionado, editada pela FUNARTE. Em 2018, no centenário de seu nascimento, o Governo do Estado mudou o nome do “Prêmio Pernambuco de Literatura” para “Prêmio Hermilo Borba Filho de Literatura”.

 

Sua obra foi analisada no livro Hermilo Borba Filho: fisionomia e espírito de uma literatura, de Sônia Maria Van Dijck Lima, publicado pela Ed. Atual em 1986. Outra oportuna análise sobre o autor e obra encontra-se no livro Hermilo Borba Filho: memória de resistência e resistência da história, publicado por Geralda Medeiros Nóbrega pela Ed. da Universidade Estadual da Paraíba, em 2015.

 

Hermilo Borba Filho, o cronista dos anos 1970:

 

 

 


José Domingos Brito - Memorial domingo, 15 de janeiro de 2023

OS BRASILEIROS: JOAQUIM GOMES DE SOUZA (POSTAGEM DE JOSÉ DOMINGOS BRITO, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

OS BRASILEIROS: Joaquim Gomes de Souza

José Domingos Brito

 

Joaquim Gomes de Souza nasceu em Itapecuru-Mirim, MA, em 15/2/1829. Matemático, astrônomo, filósofo e político, conhecido pelo nome “Souzinha”, é uma das figuras mais interessantes e esquecidas da História do Brasil. Para o cientista José Leite Lopes, trata-se do “primeiro vulto matemático do Brasil – e talvez o maior até hoje”.

 

 

Filho de Antônia Carneiro de Brito e Souza José Gomes de Souza, proprietário do Solar Gomes de Souza, no centro histórico de São Luís, atual Museu Histórico e Artístico do Maranhão. Realizou os primeiros estudos em São Luís e aos 14 anos foi para o Rio de Janeiro, onde ingressou na Escola Militar da Corte. Mas não se sentiu vocacionado nesta área. No ano seguinte ingressou na Faculdade de Medicina, aos 15 anos, e encontrou na Física e na Química a motivação para suas pesquisas na área da Matemática. Interrompeu o curso de Medicina no 3º ano e passou a dedicar-se como autodidata ao estudo de Cálculo Diferencial e Integral, Mecânica e Astronomia.

Após o 3º ano deixou o curso de Medicina e voltou à Escola Militar para estudar Matemática. Pediu permissão para realizar “exames vagos” de todos os cursos que faltavam para completar o curso de Ciências Matemáticas e Físicas. Nesse intento ganhou a proteção do senador José Saturnino da Costa Pereira, lente da Escola Militar e graduado em Matemática pela Universidade de Coimbra. Foi aprovado com boas notas em todas as matérias e colou grau de bacharel em 1848.

Ao final do ano, solicitou a defesa pública de uma tese sobre o Modo de indagar novos astros sem auxílio de observações diretas, baseada na “Mecânica Celeste” de Laplace, colando grau de doutor em Ciências Matemáticas, com apenas 19 anos. Em seguida foi aprovado no concurso para professor da Escola Militar, tornando-se tenente-coronel e capitão honorário da Escola. Nos anos seguintes dedicou-se, como autodidata, ao estudo da integração de equações diferenciais parciais, equações integrais, usando séries divergentes, e Física Matemática. Em 1855 viajou à Paris e assistiu diferentes cursos de Matemática na Universidade de Sorbonne, em contato com estudiosos franceses e ingleses.

Teve aulas com August Louis Cauchy, o maior matemático de seu tempo. Certa vez o professor apresentou uma equação não integralizável. Souzinha pediu licença timidamente, pegou o giz e demonstrou na lousa onde, por duas vezes, o sábio Cauchy se enganara, sendo levado a concluir erroneamente pela não integralização da equação. Impressionado, Cauchy cumprimentou-o e tornaram-se amigos. Apresentou na Academie des Sciences de Paris os trabalhos: 1) Memória sobre a determinação das funções incógnitas sob o sinal de integral definida, cujo resumo foi apresentado na Royal Society of London, pelo físico G.G. Stokes; 2) Memória sobre a propagação do som e 3) Memória sobre um teorema de cálculo integral aplicado a Física Matemática.

Na ocasião aproveitou o tempo para concluir o curso de medicina na Faculdade de Medicina de Paris. Mesmo estando na Europa foi designado deputado geral pelo Maranhão e casou-se com a inglesa Rosa Edith, em 1857. Retornou à São Luís para tomar posse na Assembleia Geral do Império, onde defendeu projetos voltados à educação. Em 1858 foi nomeado professor de Matemática e de Ciências Físicas e Naturais da Escola Central, sucessora da Escola Militar, e foi reeleito deputado em 1861. Como cientista Souzinha ficou mais conhecido na Europa do que em seu País.

Assim, a divulgação de seus livros se deu a partir da França: Resolução das equações numéricas (1850); Recueil des memoires d’analise mathematiques (1857); Mélanges du calcul intégral (1889) e teve o resumo de seus trabalhos editados postumamente pela Editora Brockhaus, em Leipzig. Seu interesse pela literatura foi manifestado numa coletânea de poesias publicada também pela Brockhaus, em 1859: Anthologie universelle choix des meilleurs poésies lyriques de divers nations dans les langues originales. O livro de 950 páginas surgiu a partir de um encontro que manteve, na Alemanha, com o romancista maranhense Antônio Gonçalves Dias em meados da década de 1850. A conversa girou em torno do lançamento de uma coletânea poética de alta qualidade.

Nos anos seguintes ocorreram tragédias domésticas: sua esposa faleceu e, 2 anos depois, o filho também. A tragédia atingiu-o com uma tuberculose, A doença foi agravada e veio a falecer em 1/6/1864, em Londres, ainda jovem aos 35 anos. No Maranhão é lembrado com um busto de bronze na Praça do Pantheon, em São Luís; tem seu nome estampado em escolas e logradouros da cidade e é patrono da cadeira nº 8 da Academia Maranhense de letras. Em 1996, a FUJB-Fundação Universitária José Bonifácio (RJ) instituiu o Prêmio Joaquim Gomes de Souza, destinado a contemplar os melhores trabalhos apresentados nas Jornadas de Iniciação Científica, Artística e Cultural da UFRJ. É também um dos patronos da Academia Nacional de Engenharia.

Como biografia contamos com artigos e estudos acadêmicos esparsos e textos de alguns entusiastas motivados pela manutenção de sua memória. Gastão Rúbio de Sá Weyne publicou o livreto Joaquim Gomes de Souza – Souzinha entre o cálculo integral e os poemas universais, por inciativa própria, editado em 2012 pela Scortecci Editora. Outro entusiasta -Ubiratan D’Ambrosio- apresentou o trabalho Joaquim Gomes de Souza, o Souzinha (1829-1864) no 3º Encontro da AFHIC-Associação de Filosofia e História da Ciência do Cone Sul, realizado em Campinas (SP) em 2004. Ele finaliza seu trabalho dizendo que “Um estudo da vida e obras da figura fascinante de Joaquim Gomes de Souza falta na historiografia da matemática brasileira”. Encontramos o verbete “’Souzinha’, o maior matemático da história do Brasil”, no link conhecimento infinito.


José Domingos Brito - Memorial quarta, 04 de janeiro de 2023

AS BRASILEIRAS: CAROLINA FLORENCE (CRÔNICA DE JOSÉ DOMINGOS BRITO, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

AS BRASILEIRAS: Carolina Florence

José Domngos Brito

 

 

Carolina Krug Florence nasceu em 21/3/1828, em Kassel, Alemanha. Professora e distinguida pedagoga colaborando na fundação do Colégio Culto à Ciência, em Campinas (SP). Em 1863 fundou sua própria escola, o Colégio Florence com ajuda do marido, o cientista Hércules Florence, um dos inventores da fotografia.  

Filha Elizabeth Debus e João Henrique Krug, demonstrava extraordinária capacidade intelectual e interesse pela Literatura e História. Manifestava determinação na escolha profissional e dedicou-se ao magistério. Teve os primeiros estudos na Escola Ruppel e mudou-se para a Suíça, onde ingressou numa escola de moças, o Instituto de Madame Niederer, e foi aluna de um discípulo de Pestalozzi, já famoso na época devido ao seu método inovador. Até os 24 anos, teve diversas oportunidades profissionais.

 

Em Altona (Suiça), lecionou no Instituto Biernatriski por 3 anos e chegaram a lhe oferecer o cargo de diretora da instituição. Não pôde aceitar devido a viagem que a família empreendeu, em 1852, para o Brasil, motivada pela perseguição política sofrida pelo pai por ser “liberal”. Vieram juntar-se ao seu irmão mais velho, Vice-Cônsul da Suiça na Província de São Paulo. Em 1854 casou-se com Hércules Florence e manteve o sonho de criar uma escola no Brasil nos moldes daquela que frequentou na Europa.

 

Em 1863 fundou o Colégio Florence voltado para a educação feminina. Uma escola diferenciada, com aplicação do método Pestalozzi. O Colégio ficou conhecido e famoso em pouco tempo e recebeu a visita de Dom Pedro II em duas ocasiões (1875 e 1886) em grandes festividades envolvendo a cidade. Sua história encontra-se registrada no livro -A educação feminina durante o século XIX: o Colégio Florence de Campinas 1963-1889-, de Arilda Inês Miranda Ribeiro, publicado na Coleção Campiniana, do Centro de Memória da Unicamp, em 2006.    

 

Em 1889, durante a epidemia de febre amarela, que dizimou cerca de dois terços da cidade, transferiu o Colégio para Jundiaí, onde se manteve até 1928. De formação protestante, nunca estimulou o proselitismo no seu Colégio e procurava incentivar o ecumenismo religioso e cultural. Ao contrário dos colégios religiosos em que as alunas tinham, na maioria das vezes, apenas freiras, no Colégio Florence o contato com os professores favorecia uma educação mais voltada para a realidade social. Vale dizer que na época emergia a necessidade da educação feminina, recomendada pelo escritor José Veríssimo. No entanto, em seu livro A educação nacional, (1906) ele deixava claro que  “dado serem as mulheres menos inteligentes do que os homens, elas não devem receber instrução em matemática e outras disciplinas científicas.”

 

O que diferenciava sua escola era o fato de ser um espaço de aprendizagem da vida cultural. Nos internatos religiosos o estímulo à educação se encontrava na assimilação e dogmas, rezas, abnegação, santificação da mulher; enquanto no Colégio Florence, por ser laico, tratava suas alunas como mulheres para viverem no espaço privado e público. Além disso, procurava absorver dos novos métodos que foram surgindo, contribuições para a melhoria do ensino. Permitia assim, que o corpo docente da instituição elaborasse seus programas de ensino livremente. A abertura às ideias que chegavam com novos professores sempre foi bem recebida.

 

Desde o início, procurou manter um corpo de professores qualificados. Entre os docentes que passaram por lá destacam-se Hercule Florence, Julio Ribeiro, Rangel Pestana, João Kopke, Emílio Giorgetti, Armelina Lamaneres, Leonor Gomes, Ana Krug Kupfer, Augusta e Isabel Florence, entre outros. Viajou várias vezes à Europa para recrutar professores franceses e ingleses.  No ano de 1889, com o início da epidemia de febre amarela que deixou a cidade de Campinas em pânico, Carolina foi prudente. Para evitar o pior, fechou temporariamente as portas do Colégio, e mandou as alunas de volta às famílias, evitando que corressem o risco da doença que dizimou cerca de dois terços da população em um ano.

 

A atitude foi elogiada pela imprensa e serviu de exemplo para que outras instituições tomassem as mesmas medidas. Pouco depois o Colégio reabriu em Jundiaí e continuou nos moldes idealizado por sua fundadora até 1928, quando foi transformado em Escola Normal Livre. Após 33 anos dedicados a educação, decidiu afastar-se da direção, deixando o cargo com as professoras Hermínia Michaelis, Cecília Almeida e Augusta Florence, sua filha. Em 1907 retornou a Europa para tratar da saúde. Foi viver em Florença, onde veio a falecer em abril de 1913, aos 85 anos. Na falta de uma biografia mais completa, seu legado pode ser visto no link  Carolina Krug Florence: a alemã que dedicou a vida à educação feminina no séc XIX


José Domingos Brito - Memorial quarta, 28 de dezembro de 2022

OS BRASILEIROS: HÉRCULES FLORENCE (ARTIGO DE JOSÉ DOMINGOS BRITO, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAMUNDO FLORIANO)

 

OS BRASILEIROS: Hércules Florence

José Domngos Brito

 

 

 

Antoine Hercule Romuald Florence, nasceu em Nice, França, em 29/2/1804. Desenhista, pintor, tipógrafo, inventor e polígrafo, i.é, dotado em diversas matérias científicas. Aos 20 anos passou a viver no Brasil e ficou conhecido como um dos pioneiros no invento da fotografia e criador da palavra “photographie”. Acredita-se que não ficou reconhecido no mundo como inventor devido ao excesso de modéstia e viver num país fora do circuito europeu.

 

Desde criança demonstrava talento para o desenho e logo cedo tornou-se aventureiro viajante. Aos 16 anos tomou um navio e foi parar no porto de Antuérpia, onde foi assaltado. Empreendeu uma viajem, praticamente a pé, até Mônaco, após breve passagem pela Holanda. Em seguida renovou o passaporte e, em 1824, embarcou para o Brasil. Sem falar português, trabalhou numa loja de roupas e numa livraria/tipografia. Soube da realização de uma expedição científica em busca de desenhistas que fizessem a documentação ilustrada de uma grande viagem pelo norte do Brasil.

 

Era a expedição Langsdorff, uma empreitada fruto das relações comerciais entre a Rússia e o Brasil visando a exploração geográfica e de novos produtos. Foi admitido como desenhista e percorreu 13 mil quilômetros no período 1826-1829. Seu trabalho resultou numa grande coleção de imagens de valor inestimável, segundo os cientistas brasileiros e estrangeiros, conforme ficou registrado no livro Etnografia e iconografia nos registros de Hércules Florence durante a expedição Langsdorff, na província do Mato Grosso - 1826-1829, de Sonia Maria Couto Pereira (Ed. da UFGO 2016). Tal edição foi possível graças ao seu diário de bordo, publicado em 1875 pelo Instituto Histórico e Geográfico do Rio de Janeiro, publicado posteriormente em várias edições com o título Viagem fluvial do Tietê ao Amazonas – 1825-1829. As ilustrações de Florence, os documentos e as amostras coletadas pela expedição Langsdorff foram esquecidas por mais de um século na Academia Imperial da Rússia, em São Petersburgo e redescobertos somente em 1930. Foi publicada aqui, em 1988, pela Editora Alumbramento com o título Expedição Langsdorff: iconografia da Academia de Ciências da União Soviética.

 

Em seguida, passou a viver em São Paulo, onde casou-se com Maria Angélica Vasconcelos, em 1830, tiveram 9 filhos e fixaram residência nas proximidades de Campinas. Pouco depois observou a descoloração sofrida pelo tecido exposto à luz do sol. Informado pelo botânico Joaquim Correia de Melo das propriedades do nitrato de prata, iniciou investigações sobre fotografia. Suas primeiras experiências com a câmera obscura datam de janeiro de 1833 e encontram-se registradas no manuscrito Livre d'Annotations et de Premier Matériaux. Mais de 150 anos depois, o exame detalhado desse manuscrito por Boris Kossoy levou-o a comprovar o emprego pioneiro da palavra "photographie", 5 anos antes que o vocábulo fosse utilizado pela primeira vez na Europa. (Kossoy, Boris. Hercule Florence, a descoberta isolada da fotografia no Brasil, 3ed., São Paulo: EDUSP, 2006).

 

Seu êxito foi construir de modo rudimentar uma câmera escura usando uma lente e uma paleta de cores como base, obtendo uma imagem fotográfica e cunhado o termo que se eternizou como “fotografia”. Constatando-se que o cientista inglês William Fox-Talbot realizou tal façanha, porém alguns anos depois, constata-se que Hércules Florence o antecedeu na invenção de uma foto impressa. Ele mesmo lamentou o fato de não ter sido reconhecido com seu invento, conforme publicou no seu livro-diário “L’Ami des arts livré à lui même ou Recherches et découvertes sur différents sujets nouveaux” (O amigo das artes entregue a si mesmo ou pesquisas e descobertas em novos tópicos diferentes)

 

Seu lamento é um desabafo diante do fato de viver num país onde o conhecimento não é prestigiado: ”Estou certo de que, se estivesse em Paris, um único de meus descobrimentos poderia, talvez suavizar-me a sorte e ser útil a sociedade. Lá, talvez não me faltassem pessoas que me ouviriam, me adivinhariam e me protegeriam. Estou certo de que o público, o verdadeiro protetor dos talentos, me compensaria de meus sacrifícios. Aqui, porém, ninguém vejo a quem possa comunicar minhas idéias. Os em condições de as entenderem, seriam dominados por suas próprias idéias, por suas especulações, pela política, etc.”

 

Foi pioneiro também na imprensa. Em 1936 fundou em Campinas O Paulista, primeiro jornal do interior do Estado. Em 1843 inventou um novo método de impressão para evitar falsificações e publicou num folheto apresentado na Academia de Ciências e Artes de Turim, que constatou ser ele um merecedor da proteção do Governo da Sardenha. Em 1847 descreveu o emprego dos “typo-silabas”, ideia precursora da taquigrafia. Como se vê, seus inventos giravam em torno da impressão e documentação. Em 1850 ficou viúvo e pouco depois casou-se com Carolina Krug, educadora e fundadora do Colégio Florence, em Campinas. Seus desenhos do litoral, do interior e da capital paulista serviram de base para diversas pinturas de autores como Benedito Calixto, José Wasth Rodrigues e Alfredo Norfini entre outros, O diretor do Museu Paulista, Afonso d’Escragnolle de Taunay, no período 1917-1945, denominou-o como “patriarca da iconografia regional”. Faleceu em 27/3/1879.

 

Foi um prodigioso inventor de registros documentais, bem como um documentalista diligente ao deixar publicado diversas publicações contendo valiosas informações sobre suas descobertas, além das citadas no seu livro-diário: (1) Ensaio sobre a impressão das notas de banco por um processo totalmente inimitável, precedido por algumas observações sobre a gravura das mesmas notas, e o modo de se conhecer as que são falsas. Campinas: Tipografia de Costa Silveira, 1841; (2) Zoophonia. Revista do Instituto Histórico Geográfico e Etnográfico do Brasil. Vol. XXXIX, 1876 e Viagem fluvial do Tietê ao Amazonas de 1825 a 1829. São Paulo: Melhoramentos, duas edições – 1941 e 1948; 3ª ed. em 1977, pela Editora Cultrix e 4ª ed. em 2002, pela Editora do Senado Federal.

 

Segundo seu biógrafo Leão Estevão Bouroul -Hércules Florence. São Paulo: Tipografia Andrade Mello & Cia., 1900- “a vida de Florence é a narração singela e comovente das peripécias, das descobertas, das viagens, que constituem uma das páginas mais interessantes dos anais do século XIX brasileiro”. Consta mais uma biografia escrita por  Dayz Peixoto Fonseca e publicada em Campinas pela Editora Pontes, em 2008: O Viajante Hércules Florence: águas, guanás e guaranás. O Instituto Hercule Florence

                 https://www.ihf19.org.br/pt-br/institucional/contato

conta com grande acervo de informações à disposição do público.


José Domingos Brito - Memorial quarta, 14 de dezembro de 2022

OS BRASILEIROS: LANDELL DE MOURA (POSTAGEM DE JOSÉ DOMINGOS BRITO, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

OS BRASILEIROS: Landell de Moura

José Domingos Brito

 


 

Roberto Landell de Moura nasceu em 21/1/1861, em Porto Algre, RS. Sacerdote, cientista e inventor mais conhecido pelo pioneirismo na área das telecomunicações. Para muita gente e instituições como o IEEE-Institute of Electrics and Electronics Engineers, ele é um dos principais inventores do rádio. Em 1893 suas transmissões sem fio alcançavam 8 quilômetros; enquanto o aparelho de Guglielmo Marconi alcançava apenas alguns metros.

 

Filho de tradicional família gaúcha,  estudou no colégio jesuita de São Leopoldo até 1873. No ano seguinte retornou à Porto Alegre e ingressou noutro colégio, onde estudou línguas, humanidades e gramática. Conta-se que aos 16 anos inventou um tipo de telefone, mas não deixou uma descrição do aparelho. Em 1876 mudou-se para o Rio de Janeiro, afim de estudar na Escola Politécnica. Porém teve uma grande mudança de rumo nos estudos. Seu irmão queria estudar em Roma para ser padre e convenceu-o a seguir o mesmo caminho. Igressou no Colégio Pio Americano, em 1878, e na Universidade Gregoriana, ordenado sacerdote em 1886. Enquanto estudava Direito Canônico, interessou-se também pela ciência e concebeu sua teoria sobre a unidade entre as forças físicas do Universo e sua harmonia. De volta ao Rio de Janeiro em 1887, foi capelão do Paço Imperial e, além de rezar missa, trocava ideias com o imperador Pedro II, conhecido amante das ciências. Pouco depois mudou-se para Porto Alegre, em 1891, onde foi padre e professor de História no Seminário Episcopal. Em seguida foi vigário em Uruguaiana.

 

No ano seguinte foi transferido para São Paulo, atuando nas paróquias de Santos, Campinas e na capital, como pároco da Capela de Santa Cruz, no bairro de Santana, onde permaneceu até 1900. Ficou mais conhecido através de suas pesquisas científicas, uma atividade mal recebida pelos paroquianos, que chegaram destruir seu laboratório; e pela Igreja, que não admitia a possibilidade vida fora da terra. Ele previa a possibilidade de comunicação entre mundos diferentes. Em 1892 teria construído o 1º transmissor de mensagens sem fio, antes de Guglielmo Marconi, na Itália. Nos anos seguintes realizou experiências de transmissão de som por meio de ondas hertzianas e fez testes com um telégrafo e um telefone sem fio. No entanto a falta de documentação sobre  as datas prejudicouu seu reconhecimento internacional. Porém, existem testemunhos de algumas pessoas sobre estes fatos, e em 1899 o Jornal do Commercio puublicou nota sobre seu pioneirismo mundial no campo da transmissão do som sem fio.

 

Em 1900 ocorreu a 1ª demonstração pública de seus inventos e foram “coroadas de  êxito”, conforme noticiou a edição brasileira do jornal La Voz de España, de 10/12/1900. Em 1901 conseguiu a 1ª patente brasileira para seu aparelho sem fio e uma viagem para Itália, França e EUA, onde montou um laboratório em Nova Iorque e ficou  lá  por 4 anos. Queria obter patente, também, nos EUA. Não conseguiu a patente, mas o jornal New York Herald publicou, em 1902, sua foto com a legenda “Padre Landel de Moura, inventor do aparelho de telefone sem fio”, destacando que “por entre os cientistas, o brasileiro Padre Landell de Moura é muito pouco conhecido”.  Alguns , empresários dos EUA ofereceram-lhe uma fortuna para autorizar a produção industrial do aparelho, mas ele recusou alegando: “Os inventos já não mais me pertencem. Por mercê de Deus, sou apenas o depositário deles. Vou levá-los para minha Pátria, o Brasil, a quem compete entregá-los à humanidade”. Em 1904, conseguiu obter 3 patentes nos EUA para um telefone sem fio e um telégrafo sem fio. Ao final do ano criou um sistema de transmissão de imagens à distância tornando-se pioneiro também da televisão e do controle remoto. Mas a documentação sobre isto é pobre, impedindo que se conheça até que ponto ele chegou. De volta ao Brasil, em 1905, assumiu a paróquia de Botucatu, SP, e continou com as pesquisas.

 

Solicitou aos políticos auxílio financeiro para continuar seus trabalhos e concretizar os  inventos, mas não conseguiu sensibilizar os deputados de São Paulo.  Chegou a apelar ao presidente Rodrigues Alves, pedindo 2 navios da Marinha para demonstrar a transmissão sem fio em longas distâncias, novamente sem êxito. O assessor encarregado de analisar o pedido não lhe deu crédito e disse ao presidente que “o tal padre é maluco”. Conta-se que na ocasião ele teve um acesso de raiva e destruiu alguns aparelhos. Em seguida, foi obrigado pela Igreja a abandonar seus experimentos. Em 1906 assumiu a paróquia de Mogi das Cruzes, SP, e no ano seguinte voltou à seus experimentos. Escreveu um memorial descritivo dos efeitos eletro-luminescentes de um indeterminado campo energético envolvendo os seres vivos, registrando-os numa fotografia, fenômeno conhecido hoje como “efeito Kirlian”. Na ocasião descreveu os efeitos da eletricidade sobre o corpo humano. Passou mais um tempo vagando por algumas cidades do interior de São Paulo e em fins de 1908 pediu exoneração e retornou à Porto Alegre.  

 

Assumiu a paróquia do Menino Deus e tratou de aperfeiçoar seu sistema de transmissão de imagens, dando-lhe o nome de “televisão’.  Com a fundação da Faculdade de Medicina Homeopática em 1914, assumiu uma cátedra junto com seu irmão médico e farmacêutico. Na inauguração da escola, profreriu um discurso sobre a lei dos similares, princípio básico da homeopatia. Porém, no mesmo ano uma crise interna provocou a cisão da faculdade em duas: Faculdade de Ciências Médicas e Escola de Médicina-Cirúrgica, e em nunhuma delas a homeopatia foi incluída.  No ano seguinte foi nomeado vigário-geral da Arquidiocese de Porto Alegre e a saúde deu sinais de alerta, levando-o a uma série de pedidos de licença para tratamento médico em estações termais. Por esta época dedicou-se ao estudo da psicologia e espiritismo, para desagrado dos fiéis e da cúpula da Igreja.

 

Em 1916 foi nomeado cônego capitular do Cabido Metropoloitano de Porto Algre e aprofundou os estudos sobre psicologia, chagando publicar em 1919 o livro Apontamentos de psychologia. Em seguida participou da fundação do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul, ampliando sua participação no meio social. A Igreja, mesmo não gostando de suas atividades científicas, tinha na cúpula alguns membros que reconheciam seu valor como religioso. Assim, em 1927 recebeu o título eclesiástico de monsenhor e foi nomeado arcerdíago (ou arquidiácono) no ano seguinte. Mas viveu pouco neste cargo. Na condição de fumante inverterado, era portador de uma tuberculose, que se agravou até 30/6/1928, quando veio a falecer. 

 

Nos EUA ele foi reconhecido por outros inventores e seu nome transita entre membros do renomado IEEE, a maior organização profissional técnica do mundo. Seu pioneirismo na invenção do rádio, na telefonia e telegrafia sem fio desde 1893 conta com vários testemunhos, conforme dois artigos numa grande enciclopédia norte-americana e outras publicações internacionais. Porém no Brasil estas primeiras evidências ainda estão sob controvérsia. Não obstante ser pouco conhecido entre em nós,  recebeu diversas homenagens. É cidadão honorário da cidade de São Paulo, patrono da Ciência, Tecnologia e  Inovação do município de Porto Alegre, patrono dos radioamadores brasileiros, e em 2012 foi inscrito no Livro dos Heróis da Pátria (Lei nº 12614). Em Porto Alegre, o “Memorial Landell de Moura” (http://www.memoriallandelldemoura.com.br/) batalha para promover seu reconhecimento e mantém um grande acervo de informações à disposição do público. Segundo o Dr. Gildo Magalhães, da USP, sua história “é um retrato das vicissitudes que marcam a trajetória da ciência brasileira”.

 

Trata-se de um dos nossos cientistas pouco divulgado no Brasil, mas não é por falta de biografia. Ivan Dorneles Rodrigues, tido como o maior conhecedor de sua vida e obra, publicou o livro Pe. Roberto Landell de Moura: a história documentada, pela Editora Corag em 2015. Hamilton Almeida, outro entusiasta no resgate de sua memória, publicou  Padre Landell de Moura: um herói sem glória, pela Editora Record, em 2006, e Padre Landell: o brasileiro que inventou o wireless, pela Ed. Insular em 2022. Biografias mais antigas: O incrível Pe. Landell de Moura, de Ernani Fornari, (Ed. Globo, 1960), e

Padre Landell de Moura: história de um inventor, de Elida de Freitas e Castro Druck (Ed. Sulina, 1960). A Wikipedia traz um alentado verbete sobre o Padre e o Youtube conta com diversos vídeos sobre sua trajetória.


José Domingos Brito - Memorial quarta, 07 de dezembro de 2022

AS BRASILEIRAS : ROSALINA LISBOA (ARTIGO DE JOSÉ DOMINGOS BRITO, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

AS BRASILEIRAS: Rosalina Lisboa

José Domngos Brito

 

 

Rosalina Coelho Lisboa de Larragoiti nasceu em 15/7/1900, no Rio de Janeiro, RJ. Escritora, poeta, jornalista, diplomata, ativista política e praticante de jiu-jitsu. Na condição de amiga do presidente Getúlio Vargas, teve atuação destacada na década de 1930 e foi uma das pioneiras do movimento feminista.

 

Filha de Luiza Gabizo Lisboa e João Gonçalves Coelho Lisboa, deputado e senador pela Paraíba, teve educação refinada com preceptoras estrangeiras, e foi Mestre em história e culturas políticas pelo Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. Publicou seu primeiro soneto aos 14 anos e aos 15 passou a colaborar na famosa revista Careta. Ainda jovem, casou-se com o comandante Raul Van Rademaker, de quem ficou viúva aos 19 anos. Passou por uns perrengues financeiros e dedicou-se integralmente ao trabalho, escrevendo para revistas e jornais sob diferentes pseudônimos.

 

Em 1920 foi lecionar inglês no Instituto Benjamin Constant e pouco depois publicou seu livro de poemas Rito pagão, premiado pela ABL-Academia Brasileira de Letras, em 1922. Casou-se de novo com James Irwin Miller, gerente da United Press na América do Sul. Na época ficou conhecida como Rainha dos cadetes de Realengo, devido aos seus artigos enaltecendo os jovens oficiais. Na defesa dos oficiais exilados, viajou pela América Latina e viveu alguns anos na Argentina. Foi partidária da Revolução de 1930, ano em que participou do Congresso Feminino Internacional, em Porto Alegre. 

 

Exerceu diversas funções diplomáticas entre 1930 e 1954, estabelecendo uma relação de amizade com o presidente Getúlio Vargas e o ministro Oswaldo Aranha. Foi a 1ª mulher brasileira a ser enviada ao exterior em missão intelectual, em 1932. Por solicitação de Vargas, elaborou programa de propaganda revolucionária pelo rádio e foi a única mulher a integrar o comitê de regulamentação da radiodifusão educativa, em 1933. Com a proximidade do Golpe de 1937 e instauração do Estado Novo, ela foi um dos principais mediadores entre a AIB-Ação Integralista Brasileira e o Governo Vargas. No início da década de 1940, conseguiu anular o 2º casamento e casou-se pela 3ª vez com Antonio Sanchez de Larragoiti, diretor da companhia de seguros Sul América.

 

Com o fim da II Guerra Mundial, passou a defender maior estreitamento das relações do Brasil com os países vizinhos, aconselhando Vargas, especialmente a Argentina, Chile e Peru.

Em 1945 ocupou a diretoria dos Diários Associados como encarregada das sucursais de Lisboa, Madrid e Paris. Participou, como delegada, da VI Assembleia Geral da ONU, em 1951 (Paris), e propôs o projeto de abolição dos castigos corporais aplicados aos negros na África do Sul.  No mesmo ano pronunciou-se na imprensa a favor do divórcio, em apoio a campanha do senador Nelson Carneiro.

 

Foi membro do conselho consultivo do IBRI-Instituto Brasileiro de Relações Internacionais, em 1954, e em seguida foi apresentada como candidata ao senado pelo Partido Social Progressista, mas recusou a indicação. Na cerimônia de inauguração da TV no Brasil, em 18/9/1950 nos Diários Associados em São Paulo, ela discursou e recitou um poema na condição de “Madrinha da Televisão”. Além dos artigos nos jornais O Globo, Jornal do Brasil, Correio da Manhã e A Nação, deixou publicado os livros O desencantado encantamento (ensaios, 1927), Conferências (1927), Passos no caminho (poesia, 1932), Almafuerte (ensaios, 1951) e A Seara de Caim, romance de 1952, publicado pela Ed. José Olympio, reeditado diversas vezes e traduzido para o francês com prefácio de André Maurois.

 

Conforme análise de seu arquivo pessoal, depositado no CPDOC da FGV-Fundação Getúlio Vargas, “é curioso perceber que uma escritora brasileira tão consagrada internacionalmente e tão engajada na política, não tenha angariado uma análise mais detalhada de sua controversa vida pública” Ao mesmo tempo em que demonstrava vanguardismo por ser favorável ao divórcio e defender a igualdade dos sexos, ora posicionava-se conservadoramente pregando a formação moral e cívica como garantidoras da ordem política. “De forma, que podemos defini-la revolucionária no campo social e conservadora no campo político”, não obstante suas contribuições na área política e cultural. Faleceu em 13/12/1975.

 


José Domingos Brito - Memorial terça, 29 de novembro de 2022

OS BRASILEIROS: SOBRAL PINTO (CRÔNICA DE JOSÉ DOMINGOS BRITO, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

OS BRASILEIROS: Sobral Pinto

José Domingos Brito

 


 

Heráclito Fontoura Sobral Pinto nasceu em Barbacena, MG, em 5/11/1893.  Advogado conhecido pela defesa de presos políticos durante a ditadura do Estado Novo em fins da década de 1930 e a ditadura militar instaurada após o golpe de 1964. Teve atuação destacada na luta pela defesa dos direitos humanos em sua longa carreira profissional.

 

Conta-se que aos 10 anos presenciou 3 policiais arrastando um preso e dando-lhe chutes e pancadas. O garoto ficou indignado e chamou-os de covardes. Nascia ali o senso de justiça que impregnou sua vida. realizou os estudos secundários no Colégio Anchieta, dos padres jesuítas, em Nova Friburgo, RJ. Pouco depois, mudou-se para o Rio de Janeiro e ingressou na Faculdade de Direito, onde foi diplomado em 1917. Trabalhou pouco tempo na área criminalista e foi convidado para ocupar o cargo de Procurador Criminal da República, em 1924. O período do governo de Arthur Bernardes foi conturbado com os movimentos militares revolucionários e ele foi implacável na condenação dos líderes.

 

Em 1928 foi promovido a Procurador-Geral do Distrito Federal e no mesmo ano ingressou no Centro Dom Vital, criado por Jackson de Figueiredo e Dom Sebastião Leme, ficando responsável pela crônica política publicada no jornal da entidade, A Ordem. Pouco depois deixou a Procuradoria-Geral, recusando qualquer cargo público, passando a ser apenas advogado. Em 1933 aderiu à Liga Eleitoral Católica, a fim de orientar na escolha dos representantes da Assembleia Nacional Constituinte, até que em 1936 surge uma grande causa: defender os líderes da “Intentona Comunista” Luiz Carlos Prestes e o alemão Harry Berger, diante da recusa de diversos advogados. Prestes passou 8 anos de prisão incomunicável, recebendo apenas a visita semanal que o advogado lhe fazia.

 

No caso do alemão, suas condições no cárcere eram tão desumanas que ele solicitou do governo a aplicação do artigo 14 da Lei de Proteção aos Animais ao prisioneiro. Mais tarde as razões da defesa foram expostas em seu livro Por que defendo os comunistas. Durante a ditadura do “Estado Novo”, batalhou pela redemocratização através de sua coluna no Jornal do Commercio, incluindo uma grande polêmica travada com o escritor Cassiano Ricardo, diretor do jornal governista A Manhã, publicada no livro Do primado do espírito nas polêmicas doutrinárias: as iras do Sr. Cassiano.

 

Em 1945 assinou o manifesto de lançamento da Resistência Democrática, convocando a realização da Constituinte, o sufrágio universal, a criação de partidos e dos sindicatos apolíticos. Mais tarde, em 1955, quando um grupo político aliado aos militares tentaram impedir a participação no pleito de Juscelino Kubitschek e João Goulart, ele criou a “Liga da Defesa da Legalidade” para lutar pela realização das eleições e garantir a posse dos eleitos. Com a vitória de Juscelino, pouco depois foi-lhe oferecida uma vaga no STF-Supremo Tribunal Federal. Não foi aceita, para evitar a impressão que seria uma retribuição pela sua atuação na Liga.

 

Logo após o Golpe Militar de 1964, enviou uma carta ao Marechal Castelo Branco advertindo-o de que sua candidatura, na qualidade de chefe do Estado Maior do Exército, era ilegal, tanto no pleito direto, quanto indireto. Neste período defendeu causas como a Missão Comercial Chinesa, que aqui se encontrava com passaporte diplomático num intercâmbio comercial. Foram presos, torturados e, após a condenação. Foram deportados. Com o AI-5, em 1968, ele foi preso em Goiás por alguns dias. O oficial carcereiro avisou-lhe que o AI-5 visava o estabelecimento de uma democracia à brasileira. Resposta: “Coronel, há peru à brasileira, mas não há democracia à brasileira. A democracia é universal, sem adjetivos”.

 

Um dos aspectos que mais salientou seu caráter foi o completo desprendimento dos bens materiais. Seu colega Dario de Almeida Magalhães dizia: “Para que esse destino privilegiado de homem livre se realizasse cabalmente, alcançou Sobral Pinto a libertação de um dos jugos mais perigosos e daninhos: a libertação do dinheiro”. Outro colega -Victor Nunes Leal- revela um aspecto de sua atuação:  “Sobral Pinto é o crítico vigilante da vida pública, o curador da vivência dos amigos, a consciência de cada um de nós”. Foi conselheiro da OAB-Ordem dos Advogados do Brasil por vários anos; foi presidente do Centro Dom Vital em dois mandatos e catedrático de Direito Penal da PUC-Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.  

 

Na homenagem que recebeu na Câmara Municipal de São Paulo, em 1976, pelo Instituto dos Advogados de São Paulo, discursou sobre o Golpe de 1964: “Golpe militar. Não foi Revolução. Não havia naquele movimento nenhuma ideia superior; não havia naquele movimento nenhum propósito de realmente trabalhar para a cultura e o progresso do País’. Na década de 1980, início do período de abertura política teve participação ativa no movimento “Diretas Já” e causou sensação ao participar do histórico Comício da Candelária, em 1984. Foi uma das últimas participações públicas, contando já com 91 anos. Faleceu em 30/1/1991

 

Foi homenageado com seu nome em alguns logradouros públicos, além do prédio da OAB no Rio de Janeiro, que leva seu nome.  Deixou uma enorme quantidade de cartas e artigos na imprensa e dois livros sobre a liberdade: Lições de liberdade (1977) e Teologia da libertação (1984). Sua coragem e legado ficaram registrados em algumas biografias: Sobral Pinto: a consciência do Brasil (2001), de John Forster Dules, publicada também em inglês; Sobral Pinto, o advogado (2002), de Aristóteles Atheniense; Heráclito Fontoura Sobral Pinto: toda liberdade é íngreme (2014), de Márcio Scalero, e uma cinebiografia com o documentário Sobral – O homem  que não tinha preço, em 2013, dirigido por Paula Fiuza.

 

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José Domingos Brito - Memorial quinta, 17 de novembro de 2022

OS BRASILEIROS: JOÃO KOPKE (ARTIGO DE JOSÉ DOMINGOS BRITO, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

OS BRASILEIROS: João Kopke

José Domingos Brito

 

 

João Kopke nasceu em 27/11/1852, em Petrópolis, RJ. Advogado, educador, escritor e primeiro autor da literatura infantil brasileira, abrindo caminho para a extensa obra de Monteiro Lobato. Lecionou durante anos em São Paulo, envolvido na causa republicana e foi pioneiro na divulgação de modernas técnicas pedagógicas, com especial atenção à criança e ao ensino da leitura.

Filho de Felisbella Candida de Vasconcellos e Henrique Kopke, português de ascendência alemã. O velho Kopke, junto com seu irmão Guilherme, fundou o Collegio de Petrópolis, em 1850, que ficou conhecido como o famoso Colégio Kopke, atualmente “Escola Municipal  João  Kopke. Concluiu o curso primário no colégio do pai e o secundário no Colégio São Pedro de Alcântara, no Rio de Janeiro. Mudou-se para o Recife em 1871, para estudar na Faculdade de Direito, mas transferiu-se para São Paulo, onde concluiu o curso em 1875.

Na época, a cidade fervia com as novas ideias republicanas, quando ele conheceu Francisco Rangel Pestana e Antonio da Silva Jardim e passou a engrossar o coro dos manifestantes. Ainda cursando a faculdade, casou-se com Maria Isabel de Lima e passou dar aulas particulares e em cursos preparatórios. No mesmo ano da formatura, foi nomeado promotor público em Faxinal e logo transferido para Jundiaí e Campinas. O envolvimento com a causa republicana foi intensificado e, tendo em vista que a instrução pública era a mola propulsora do progresso social, além de seu talento como professor, ele passou a dedicar-se exclusivamente ao magistério a partir de 1878.

Lecionou Inglês, Francês, Italiano e Geografia no Colégio Rangel Pestana, e Filosofia, História, Geografia e Retórica no curso preparatório, anexo à Faculdade de Direito. Em 1880, mudou-se para Campinas e passou a lecionar no Colégio Culto à Ciência e no Colégio Florence. Imbuído do espirito republicano e positivista, fundou junto com Antonio da Silva Jardim, a Escola Primária Neutralidade,  em 1884 em São Paulo, indicando a imparcialidade que deveria guiar os passos da ciência e do saber. Era uma escola destinadas a crianças de ambo os sexos, algo novo para a época.

 

Em 1886, mudou-se para o Rio de Janeiro e fundou o Instituto Henrique Kopke, tendo como modelo o ensino ministrado na Escola Primária da Neutralidade. No mesmo ano o Instituto recebeu autorização do governo imperial para ministrar matérias no ensino primário e secundário, conquistando boa parte dos alunos filhos da elite carioca. Ainda em 1886 fundou uma associação de professores e no ano seguinte foi designado membro substituto do Conselho da Instrução Primária e Secundária do Município da Corte e seu Instituto foi consagrado como escola padrão, por decreto do presidente Prudente de Morais.

 

Permaneceu na direção do Instituto até 1897, quando se retirou da sociedade devido a divergências com os sócios. Pouco depois foi nomeado pelo presidente Campos Salles como Oficial do Registro Geral e de Hipotecas do Rio de Janeiro, mas continou dedicando-se às atividades pedagógicas até seu falecimento em 28/7/1926. Foi autor de varias obras didáticas e ficou conhecido pelo modo como tratar o aluno. Em 2014, a profª Norma Sandra de Almeida Ferreira, da Faculdade de Educação da UNICAMP, fez sua tese de livre docência

Um estudo sobreVersos para os pequeninos’ manuscrito de João Kopke e descobriu que o autor é precursor de Monteiro Lobato, a quem foi atribuída a inauguração da literatura infantil brasileira.

 

Em 2015, a profª Maria do Rosário Longo Mortatti fez uma breve biografia e balanço de suas contribuições à educação e ensino e escreveu o capitulo 3 -João Kopke (1852-1926) na história do ensino de leitura e escrita no Brasil- do livro Sujeitos da história do ensino de leitura e escrita no Brasil, publicado pela Editora da UNESP, que pode ser acessado no link https://books.scielo.org/id/3nj6y/pdf/mortatti-9788568334362-05.pdf.


José Domingos Brito - Memorial quarta, 09 de novembro de 2022

AS BRASILEIRAS : NATÉRCIA SILVEIRA (CRÔNICA DE JOSÉ DOMINGO SBRITO, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAMUNDO FLORIANO)

 

AS BRASILEIRAS: Natércia Silveira

José Domingos Brito

 


 

Natércia da Cunha Silveira nasceu em 14/6/1905, em Itaqui, RS. Advogada, ativista política, lider feminista e pioneira na luta pelo direito das mulheres ao voto. Foi a primeira mulher a conquistar o diploma de advogada no Rio Grande do  Sul.

Filha de Maria da Conceição do Valle Cunha e Manoel da Cunha Silveira, juiz de Direito em Uruguaiana e ligado ao Partido Libertador do Rio Grande do Sul, de quem herdou o gosto pela política. Aos 18 anos atuou na Revolução de 1923, conflito armado entre os partidários do presidente do Estado, Borges de Medeiros (Chimangos) e os revolucionários comandados por Joaquim Francisco de Assis Brasil (Maragatos). Natércia discursou, em nome das mulheres gaúchas, na recepção dos generais Zeca Netto e Honnório Lemes na chegada a Porto Alegre.

No ano seguinte, enquanto cursava Direito e participava do Centro Acadêmico, sua mãe faleceu. Em 1926 recebeu o diploma de advogada pela atual UFRGS, tornando-se a primeira mulher advogada do Estado. Pouco depois mudou-se para o Rio de Janeiro, onde passou a atuar nos tribunais e movimentos políticos e feministas. Manteve contatos estreitos com a bióloga Bertha Lutz, a engenheira Carmen Portinho e a advogada Orminda Ribeiro Bastos, integrantes da FBPF-Federação Brasileira pelo Progresso Feminino, e aliou-se à entidade representando o Rio Grande do Sul.

 

Em fins de 1929 integrou a equipe de advogados da escritora Sylvia Serafim Thibau, que assassinou o jornalista Roberto Rodrigues na redação do jornal a Crítica. O crime se deu porque o jornal publicou na primeira página a notícia do pedido desquite do médico João Thibau Jr. acusando-a de estar mantendo um caso com Manuel Dias de Abreu, futuro inventor da ‘abreugrafia”. Sylvia foi à redação do jornal armada afim de matar seu editor Mário Rodrigues. Não encontrando-o, atirou em seu filho Roberto na presença de seu irmão Nelson Rodrigues, de 17 anos, tornado famoso dramaturgo mais tarde.  No julgamento, Sylvia foi absolvida por 5 a 2 votos. 

 

Ainda em 1929, foi uma das fundadoras da União Universitária Feminina, congregando mulheres com  ensino superior em prol de seus direitos. Dois anos depois teve uma dissidência com a FBPF, devido ao seu engajamento político e participação em comícios da Aliança Liberal, e fundou a “Aliança Nacional de Mulheres”, cujo objetivo era manter a fiscalização das condições de trabalho da mulher e prestação de assitência jurídica, além de uma caixa de auxílio à mulher desamparada. Com 3 mil filiadas, a entidade foi dissolvida pelo golpe de 1937, instaurando o “Estado Novo” de Getúlio Vargas. Sua participação foi decisiva na comissão organizadora do  anteprojeto constitucional que consolidou o sufrágio femininio, em 1934.

 

Neste mesmo ano candidatou-se a vereadora pela Frente Única do Distrito Federal elegendo-se suplente. Em seguida participou das eleições de 1945 e 1950 como candidata a deputada pelo Partido Libertador e não obteve  êxito. Como política, sua pauta sempre esteve ligada aos temas referentes aos direitos da mulher, ao trabalho, à educação e à assistência social. Em 1964, foi a primeira mulher a ocupar a direção do Departamento Nacional do Trabalho. Pediu demissão do cargo, após uma discussão com o ministro do  Trabalho sobre um projeto de decreto, que no seu entender aniquilaria o movimento sindical portuário.

 

Voltou a trabalhar na Procuradoria Geral do Trabalho, onde ocupou diversos cargos relevantes e se aposentou em 1971, mas manteve seu Escritório de Advocacia até 1977 e faleceu em 7/12/1993, aos 88 anos.

Homenagem do Jurisperita à Natércia da Cunha Silveira

 

 

 

 


José Domingos Brito - Memorial quarta, 02 de novembro de 2022

OS BRASILEIROS: MANUEL QUERINO (POSTAGEM DE JOSÉ DOMINGOS BRITO, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

OS BRASILEIROS: Manuel Querino

José Domingos Brito

 

 

 

Manuel Raimundo Querino nasceu em Santo Amaro, BA, em 28/7/1851. Escritor, pintor, folclorista, antropólogo, documentalista e pioneiro nos registros e valorização da cultura africana na Bahia. Fundador do Liceu de Artes e Ofícios da Bahia e da Escola de Belas Artes. Foi o primeiro afro-brasileiro a publicar livros sobre a história e cultura  brasileira.

 

Seus pais, ambos negros e livres, faleceram na epidemia de cólera em 1855. Órfão, aos 4 anos, foi apadrinhado pelo prof. Manuel Correia Garcia, da Escola Normal de Salvador. Ainda jovem, viajou pelo Nordeste em busca de oportunidades e foi recrutado pelo Exército no Piauí, em 1868. Graças à boa letra, formação intelectual e ao porte franzino, acabou servindo na “escrita do batalhão” no Rio de Janeiro durante a Guerra do Paraguai (1864-1870), onde chegou a Cabo de Esquadra.

 

Retornou à Salvador em 1872 e dedicou-se ao desenho e à pintura, estudando no Liceu de Artes e Ofícios, sob a tutela do professor e artista espanhol Miguel Navarro y Cañizares. Estudou também na Academia de Belas  Artes, onde trabalhava. Formou-se em Desenho Geométrico e passou a lecionar no Liceu e no Colégio de Órfãos de São Joaquim. Por esta época publicou 2 livros didáticos sobre desenho geométrico. Além da dedicação à arte, atuou na política, destacando-se no movimento abolicionista, na fundação do Partido Operário e da Liga Operária Baiana. Chegou a travar intensos debates com o médico Nina Rodrigues contra as ideias preconceituosas da ciência na época.

 

O negro brasileiro reivindicado por Querino tem o talento e a vocação da civilização, em detrimento do português, corajoso e hábil no exercício da força, mas um péssimo colonizador, inimigo das artes, da imprensa, da indústria etc. Era uma pessoa bem articulada, preocupada com a cultura local e foi Conselheiro Municipal em duas ocasiões, entre 1891-1892 e 1897-1899. Sua capacidade intelectual inspirou Jorge Amado a criar o personagem Pedro Archanjo, de seu romance Tenda dos milagres.

 

Naquela época o “branqueamento” da população era defendido como política oficial de estado e pela ciência, visto que o pensamento dominante pregava que a cultura negra era inferior a branca. Querino defendia a ideia que o "branqueamento" não fazia sentido, pois os africanos já tinham civilizado o Brasil. Assim, não havia necessidade de imigrantes brancos e que os negros eram mais capacitados para enfrentar os desafios da sociedade brasileira. Desse modo, ele antecipou as ideias de Gilberto Freyre no estudo da cultura negra no Brasil.

 

Pouco depois, afastou-se da política para se dedicar aos estudos de pesquisa e realizou um importante trabalho de documentação e resgate dos nomes mais relevantes nas artes da Bahia. Levantou centenas de nomes, sob o critério do talento independente da origem de classe social. Assim incluiu nomes relevantes, porém menos prestigiados no métier intelectual. Tais biografias -Os artistas bahianos: indicações biográficas- foram publicadas na Revista do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, vol 12, nº 31, 1906. Em seguida o levantamento foi ampliado e publicado em seus livros  Artistas bahianos. Imprensa Nacional, 1909  e As artes na Bahia: escorço de uma contribuição histórica, Oficinas do Diário da Bahia, 1913.

 

Algumas críticas foram feitas ao seu trabalho de levantamento. Porém ressalta-se seu caráter pioneiro, sem o qual não teríamos registro de relevantes nomes de sua época, particularmente os nomes de vertente africana. Teve o mérito de salvaguardar para a posteridade inúmeras informações, que de outro modo se perderiam irremediavelmente, já que outros mais bem dotados para estes estudos não cogitaram de fazê-lo. Seu trabalho foi comparado ao realizado pelo pintor Vasari com sua coletânea de biografias no período Renascentista. Como pintor foi premiado com as medalhas de bronze, prata e ouro no Liceu de Artes e Ofícios e na Academia de Belas-Artes, com menção honrosa (1880) e 2 medalhas de prata (1882 e 1883).

 

Na condição de antropólogo, deixou um legado precioso para o estudo da cultura afro-brasileira em livros, tais como Costumes africanos no Brasil, publicado pela Ed. Civilização Brasileira (1938); A Bahia de outrora, pela Ed. Livraria Progresso (1954); A Raça africana e seus costumes na Bahia, pela Ed. Livraria Progresso (1955) e O colono preto como fator da civilização brasileira, republicado pelos Cadernos do Mundo Inteiro, em 2018 e à disposição dos leitores no link O-colono-preto-como-fator-da-civilizacao-brasileira-2a-edicao-Cadernos-do-Mundo-Inteiro.pdf (cadernosdomundointeiro.com.br). Completando seu legado deixou um saboroso livro: A arte culinária na Bahia contendo receitas africanas, afro-brasileiras e tradicionais. O livro já foi reeditado diversas vezes e encontra-se na 3ª edição pela Editora Martins Fontes. Faleceu em 14/2/1923.

 

Manuel Querino: o precursor da Ciência Antropológica no Brasil

 

 

 


José Domingos Brito - Memorial quarta, 26 de outubro de 2022

AS BRASILEIRAS : JOSEFINA ÁLVARES DE AZEVEDO (ARTIGO DE JOSÉ DOMINGOS BRITO, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

AS BRASILEIRAS: Josefina Álvares de Azevedo

José Domingo Brito

 

 

 

 

Josefina Álvares de Azevedo nasceu em Recife, PE, em 5/5/1851. Jornalista, escritora, poeta, dramaturga e precursora do Feminismo no Brasil e na luta pela conquista do voto das mulheres. Era prima do poeta Álvares de Azevedo e teve destacada presença intelectual em São Paulo e Rio de Janeiro em fins do século XIX.

Mudou-se para São Paulo por volta de 1877, aos 26 anos, e passa a escrever, inserindo-se no pequeno núcleo de intelectuais paulistas. Em 1888 fundou o semanário A Família, um jornal de poucas amenidades dirigido à elite local e algumas reivindicações. Tinha como primeiro objetivo tratar da educação para as mulheres, porém, com a transição política vivida na época republicana, o principal objetivo passou a ser a reivindicação dos direitos das mulheres e fazer com que elas tivessem suas vozes representadas nas questões políticas, podendo votar, por exemplo.

 

Via-se claro que o objetivo central era questionar o patriarcalismo predominante, denunciando o papel a que estava relegado a mulher. No editorial do nº 1 dizia que “a consciência universal dorme sobre uma grande iniqüidade secular - a escravidão da mulher. Até hoje tem os homens mantido o falso e funesto principio de nossa inferioridade. Mas nós não somos a eles inferiores porque somos suas semelhantes, embora de sexo diverso." E enfatizava: “Em tudo devemos competir com os homens – no governo da família, como na direção do estado...  As sociedades assentam suas bases sobre dois princípios cardeais: o princípio da força e o princípio da ordem. O princípio da força é o homem, o da ordem é a mulher... O homem é a negação da ordem... E em abono desta opinião eu vos trarei um exemplo muito vulgar – o governo de uma casa... ele não é capaz de governar uma casa, que se compõe de algumas pessoas”.

 

No ano seguinte transferiu-se para o Rio de Janeiro, levando o jornal a tiracolo. Segundo a historiadora Karine da Rocha (UFPE), essa mudança ocorreu com o intuito de alcançar maior aceitação do periódico pela proximidade com a Corte.  Além disso, queria fazer dele um jornal nacional e viajou pelo Norte e Nordeste em busca de parcerias ligadas nesta intenção. Manteve o jornal em circulação por 10 anos até 1898, contando com colaborações  de destacadas mulheres da época em outros estados, como Nacísia Amália, Julia Lopes de Almeida, Inês Sabino, Anália Franco, Presciliana Duarte de Almeida etc. e até do exterior, como Guiomar Torrezão, de Lisboa, e Eugénie Potoinié Pierre, de Paris.

 

Entre os jornais que circulavam na época, A Familia foi um dos mais combativos e duradouros, servindo como “caixa de ressonância do incipiente movimento feminsita brasileiro”. Foi uma das primeiras mulheres a batalhar pelo sufrágio feminino. Com a proclamação da República em 1889, a conquista do direito das mulheres ao voto foi realçada. Em 1890 publicou em seu jornal uma série de artigos com o título geral  “O direito ao voto” e no mesmo ano escreveu a comédia “O voto feminino”, encenada no Teatro Recreio Dramático. A peça pode ser considerada uma das primeiras no Brasil a se uitlizar do teatro como meio de protesto politico.

 

A autora, bem como a peça em si, foi objeto de estudo realizado por Valéria Andrade Souto Maior e publicado no livro O florete e a máscara: Josefina Álvares de Azevedo, dramaturga do século XIX, lançado pela Editora Mulheres, de Florianópolis, em 2001. Com seu protagonismo, foi acusada de ser contra os princípios do catolicismo, devido ao fato de criticar a Igreja em alguns de de seus artigos ou poemas, como fez em “Fé”, um poema em que faz uma critica aos padres: “A moral de Cristo é a minha religião, essa é a que defendo e procurio incutir no espírito dos meus filhos. A religião dos padres, não; não a quero, nem recomendo a quem quer que seja”.

 

Josefina faleceu em 1/9/1913 e, infelizmente, não encontramos uma biografia sua, exceto alguns verbetes na wikipedia que serviram para a costura desta síntese biográfica. Encontramos um artigo centrado em sua luta pelo direito das mulheres ao voto – Josefina Álvares de Azevedo: teatro e propaganda sufragista no Brasil do século XIX-, publicado por Valéria Andrade Souto Maior e pode ser acessado através do link  525_arquio.pdf (al.sp.gov.br)


José Domingos Brito - Memorial quarta, 19 de outubro de 2022

OS BRASILEIROS: SERGIO MILLIET (ARTIGO DE JOSÉ DOMINGOS BRITO, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

OS BRASILEIROS: Sergio Milliet

José Domingos Brito

 


 

Sérgio Milliet da Costa e Silva  nasceu em São Paulo, SP, em  20/9/1898. Escritor, pintor, poeta, sociólogo, bibliotecário, professor, crítico de arte e tradutor. Conhecido como um “intelectual poliédrico” entre os organizadores da Semana de Arte Moderna de 1922, foi um dos pioneiros da crítica de arte e literária.  

 

Filho de Aída Milliet e Fernando da Costa e Silva, concluiu os primeiros estudos em São Paulo e mudou-se para Genebra aos 12 anos, onde estudou humanidades e concluiu o curso na Universidade de Berna. Lá tornou-se colaborador da revista Le Carmel e permaneceu até 1920, atravessando todo o período da I Guerra Mundial. A neutralidade da Suíça no conflito atraiu muitos artistas e escritores, com os quais o rapaz manteve convivência. Lá publicou seus primeiros livros de poesia: Par le sentir (1917) e Le depart sous la pluie (1919).

 

De volta ao Brasil, em 1920, juntou-se ao meio intelectual e artístico de São Paulo, que pouco depois realizaria a Semana de Arte Moderna. Como ainda dominava mal o português, sua participação na Semana ficou restrita a apresentação de um poema lido por um amigo. Participou mais da organização do evento e, dotado de espírito de liderança, fez a ligação entre o modernismo europeu e o que se projetava em São Paulo, firmando sólida amizade com seus protagonistas: Mario e Oswald de Andrade, Rubens Borba de Moraes (também recém-chegado da Suíça), Anita Malfatti, Di Cavalcanti...

 

Em 1923 retornou à Europa, levando o amigo Di Cavalcanti a tiracolo, que tempos depois declarou numa entrevista: “...em Paris entrei em contato com BraquePicasso e toda a vanguarda francesa, sempre levado e guiado pela mão de Sérgio Milliet”. Sua poesia era naturalmente avançada e, conforme o crítico Leodegário A. de Azevedo Fº, observa-se uma "falta quase total de pontuação, superposição de ideias e imagens em lugar da sequência lógica, técnica analógica, simultaneidade, versos elíticos, independentes, dando ideia de descontinuidade". Em Paris, continuou intermediando os modernistas brasileiros e europeus através de colaborações nas revistas Klaxon, Terra Roxa, Ariel e Revista do Brasil e traduzindo poemas dos brasileiros para a revista Lumière.

 

Retornou à São Paulo, em 1925, e criou a revista Cultura junto com Oswald de Andrade e Afonso Schmidt. Pouco depois foi gerente do Diário Nacional, jornal do Partido Democrático, onde manteve a coluna de crítica artística “Terminus Seco”, que resultou em livro com o mesmo título, publicado em 1932.  Pouco depois, junto com os amigos da Semana de 22, participou da criação do Departamento de Cultura da Prefeitura de São Paulo, onde foi nomeado chefe da Divisão de Documentação Histórica e Social. Em seguida foi professor da Escola de Sociologia e Política, onde atuou também com secretário e ajudou o antropólogo Claude Lévi-Strauss a viabilizar sua expedição etnográfica.

 

Colaborou com artigos e crítica para o jornal O Estado de São Paulo e passou a escrever uma série de livros: Pintores e Pintura, Sal da Heresia, Fora de Forma e A Marginalidade da Pintura Moderna. No contato com os pintores paulistas, começou a pintar. Em 1943 viajou para os EUA e ao retornar publicou A pintura norte-americana. No mesmo ano foi convidado a dirigir a Biblioteca Municipal, imprimindo uma série de atividades culturais e criando o primeiro acervo público de arte moderna brasileira. Em 1944 publicou Pintura quase sempre e iniciou a publicação de seu Diário crítico, uma antologia de 10 volumes, concluída em 1959. Sua atuação destacada como crítico, levou-o a fundar a Associação Brasileira de Críticos de Arte, presidindo-a durante dez anos (1949-1959).

 

Como tradutor, verteu diversas e importantes obras para o português, entre elas Os Ensaios de Michel de MontaigneO segundo sexo, de Simone de Beauvoir e a obra completa de Guy de Maupassant. Foi um dos articuladores na formação do MAM/SP-Museu de Arte Moderna de São Paulo, inaugurado em 1948.  Pontificou nas artes como pintor, curador de exposições, dirigente de museus e diretor da 2ª, 3ª e 4ª Bienal Internacional de São Paulo e ficou consagrado como um dos mais importantes críticos de arte no Brasil.

 

Faleceu em 9/11/1966 e no ano seguinte o MAM/SP organizou uma exposição retrospectiva de suas pinturas. Em 1998, no centenário de seu nascimento, foram promovidos eventos lembrando sua contribuição ao Modernismo Brasileiro no MIS/SP- Museu da Imagem e do Som; na USP-Universidade de São Paulo e na Biblioteca Municipal de São Paulo Mario de Andrade. Foi homenageado com seu nome em algumas escolas e biblioteca de São Paulo, mas tem sido injustamente esquecido entre os protagonistas do Movimento Modernista. Um livro realiza o resgate de suas contribuições: Sérgio Milliet: crítico de arte, de   Lisbeth Rebollo Gonçalves, publicado pela editora Perspectiva, em 1992, ampliado e relançado pela Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, em 2004 com o título Sergio Milliet Cem Anos.

 

 

ESPECIAL CENTENÁRIO DA SEMANA DE ARTE MODERNA : SÉRGIO MILLIET - YouTube

 

 

 


José Domingos Brito - Memorial quarta, 12 de outubro de 2022

AS BRASILEIRAS: MALVINA TAVARES (ARTIGO DE JOSÉ DOMINGOS BRITO, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

AS BRASILEIRAS: Malvina Tavares

José Domingos Brito

 


 

Julia Malvina Hailliot Tavares nasceu em 24/11/1866, em Encruzilhada do Sul, RS. Professora, escritora, poeta e ativista política. Foi pioneira na implantação de uma  metodologia de ensino libertário nos moldes da Escola Moderna, do pedagogo espanhol Francisc Ferrer y Guardia.

 

Filha de Henriette Souleaux Hailliot e François de Lalemode Hailliot, imigrantes franceses que aportaram aqui em meados do século XIX. Dados em seu diário fazem  referência ao fato de sua mãe ter nascido num castelo em Bordeaux, dando a entender uma possível origem aristocrática. Em fins da década de 1880 foi estudar na Escola Normal de Porto Alegre, onde passou a lecionar como professora da rede escolar do Estado.   

 

Casou-se em 1890 com o comerciante português José Joaquim Tavares e manteve-se ativa no movimento político como defensora do federalismo, que não admitia a inteferência dos republicanos em algumas áreas da província. O embate resultou numa guerra civil, a Revolução Federalista ocorrida no período 1983-1895, tendo Julio de Castilhos (republicano) um de seus lideres, à quem Malvina combatia. Conta a história que ele próprio providenciou sua transferência para a vila de Encruzilhada do Sul, como represália ao seu posicionamento político, em 1898.

 

Pouco depois mudou-se para Cruzeiro do Sul, onde lecionou até o fim de sua vida. Em seu método de ensino foram abolidos os castigos corporais aos alunos e o ensino religioso, adotando uma didática revolucionária para a época. Pesquisadores de sua história acreditam que, devido às críticas que mantinha ao governo e ao seu pensamento libertário, tudo leva a crer que ocorreu um silenciamento intencional de sua memória. Desse modo, invisibilizada pela história local, acabou sendo esquecida.

 

O que restou de sua memória são estudos acadêmicos e pesquisas sobre sua trajetória. Alguns a definem como anarquista; outros negam. Faleceu em 16/10/1939 e deixou um considerável legado no movimento operário e vários de seus alunos se tornaram destacados líderes anarquistas e sindicalistas, tais como Armando MartinsArtur Fabião CarneiroCecílio Villar, Dulcina  Martins, Nino Martins e Virgínia Martins.

 

Em sua família persistiram os ideais revolucionários por gerações. Um de seus netos, o jornalista Flávio Tavares participou da luta armada contra a ditadura em fins da década de 1960. Foi um dos 15 presos políticos trocados pelo embaixador norte-americano Charles Burke Elbrick, sequestrado pelos grupos de resistência em setembro de 1969. Temos notícia que sua conterrânea, a escritora Laura Peixoto, está escrevendo um romance biográfico sobre Malvina.

 

Biografia ainda não temos, mas dispomos de esboços biográficos: Mulheres em cena: as trajetórias de Ana Aurora e Malvina Tavares no limiar do século XX, de Carlos Gilberto Pereira Dias, publicado pela Editora Primas, 2016 e Escrituras marginais: fragmentos de memórias da professora  Malvina Tavares (1891–1930), um artigo publicado pelas pesquisadoras Doris Bittencourt Almeida e Luciane Sagrbi Santos Graziottin, publicado na Revista Brasileira de História da Educação, vol 15, nº 1: 109-142, jan./abr. 2015, disponível no link:

https://periodicos.uem.br/ojs/index.php/rbhe/article/view/38912/pdf_51

 

 

 


José Domingos Brito - Memorial quarta, 05 de outubro de 2022

OS BRASILEIROS: ZÉ ARIGÓ (ARTIGO DE JOSÉ DOMINGOS BRITO, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

OS BRASILEIROS: Zé Arigó

José Domingos Brito

 

 

José Pedro de Freitas nasceu em Congonhas do Campo, MG, em 18/10/1921. Célebre médium e dirigente do Centro Espírita Jesus Nazareno, ganhou fama internacional devido a milhares de cirurgias realizadas por intermédio de um espírito alemão, denominado Dr. Fritz. Foi contemporâneo e amigo de Chico Xavier, Divaldo Franco e Herculano Pires, destacados espíritas da época.

 

Filho de Maria André de Freitas e Antônio de Freitas Sobrinho, família humilde de sitiantes. Estudou até o 3º ano do curso primário e recebeu o apelido “Arigó”, que significa roceiro, matuto, analfabeto. Aos 15 anos ingressou numa empresa de mineração, onde trabalhou por 6 anos, e prestou concurso para trabalhar como funcionário público no IAPTC, atual INSS, onde permaneceu até o fim da vida. A partir de 1950 passou a sentir fortes dores de cabeça, ter visões de uma brilhante luz e ouvir uma voz gutural em outro idioma. Acreditou encontrar-se à beira da loucura e procurou tratamento por 3 anos sem melhora ou diagnóstico.

 

Em seguida teve um sonho nítido, junto com a voz que o atormentava, vendo uma pessoa robusta e calva, com avental branco supervisionando alguns médicos e enfermeiros numa sala cirúrgica em torno de um paciente. O sonho se repetiu mais algumas vezes e o personagem apresentou-se como o médico alemão Adolph Fritz, falecido durante a I Guerra Mundial sem completar sua obra. Mesmo ignorando o idioma, Arigó compreendeu a mensagem que lhe foi dirigida. Ele fora escolhido como médium para completar a obra do médico. Nessa tarefa ele seria ajudado por outros médicos e enfermeiros.  

 

Acordou do sonho assustado e saiu correndo pela rua aos gritos e, de volta à sua casa, chorou copiosamente. Novos exames clínicos e psicológicos foram realizados sem sucesso, contando até com sessões de exorcismo feitas por um padre. Desesperado e sofrendo as interferências do Dr. Fritz, decidiu experimentar as orientações. Pediu a um amigo aleijado para largar as muletas e caminhar. Deu-se o “milagre” e o amigo passou a andar. A partir daí, começou a sentir uma força estranha em suas mãos e um impulso dirigido a procedimentos cirúrgicos no atendimento aos enfermos.  

 

Em 1950 conheceu Carlos Alberto Lúcio Bittencourt, candidato a deputado federal e futuro senador, diagnosticado com um câncer no pulmão e recomendação para uma cirurgia imediata. Devido a campanha eleitoral, o político adiou a cirurgia e convidou Arigó (ex-líder sindical) para realizar comícios em Belo Horizonte. Os dois hospedaram-se no mesmo hotel e na madrugada, segundo relato do próprio político, ele viu a porta de seu quarto se abrir e sentiu a presença de um vulto, que parecia ser Arigó, com uma navalha na mão. Tentou levantar-se, mas sentiu-se dominado por uma prostração que o fez cair adormecido sobre a cama. Na manhã seguinte, acordou com o pijama sujo de sangue e cortado nas costas. O tumor fora removido e o político foi curado.

 

A fama logo se espalhou e ele abriu uma clínica em Congonhas, atendendo gratuitamente até 200 pessoas por dia. Vinha gente de todos os Estados, EUA, Europa, incluindo Argentina e Chile, que mantinham linha de ônibus regular e direta. O atendimento a numerosos enfermos incomodou os médicos e a Associação Médica de Minas Gerais instaurou um processo acusando-o de curandeirismo. Em 1958 foi condenado a 15 meses de prisão, mas foi indultado pelo presidente Juscelino Kubistschek, cuja filha também foi curada pelo médium. Em novo processo (1964) foi preso de novo e recusou o indulto alegando que “indulto é para criminoso”.  Detido por 7 meses, passou a atender alguns enfermos dentro da prisão. Ao ser libertado teve a fama alavancada.

 

Pouco depois o fenômeno despertou interesse científico internacional. Henri Belk, pesquisador de fenômenos paranormais e Andrija Puharich, especialista em bioengenharia, acompanhados por Jorge Rizzini, conhecido pesquisador espírita, iniciaram uma pesquisa com Arigó. Na ocasião, o Dr. Puahrich teve extraído um lipoma de seu cotovelo num procedimento indolor, em apenas 5 segundos, com um canivete. A cirurgia foi filmada e causou espanto na comunidade científica. Em 1968, mais 2 médicos (Laurence John e P. Aile Breveterd) da William Benk Psychic Foundation vieram investigar o fenômeno. Não alcançaram  uma explicação conclusiva, mas comprovaram que a prática do médium não comportava ilusionismo ou feitiçaria, declarando que 95% dos diagnósticos do médium eram corretos e que suas cirurgias só eram possíveis devido à sua sensibilidade, explicável apenas à luz da parapsicologia

 

Arigó faleceu em 11/1/1971 num acidente de carro e teve sua vida esmiuçada pela imprensa, em diversos artigos acadêmicos e biografias:  COMENALE, Reinaldo. Zé Arigó, a oitava maravilha. B.Horizonte (1968), Ed. Boa Imagem, com prefácio de Chico Xavier; FULLER, John Grant. Arigo: surgeon of the rusty knife. New York (1974), Ed. Thomas Y. Crowell; OLIVEIRA, Leida Lúcia de. Cirurgias espirituais de José Arigó. B. Horizonte (2014), AME Editora. A história do espírito Arigó  ficou a cargo de seu amigo e pesquisador José Herculano Pires, com o livro que se tornou clássico na literatura sobre o espiritismo: Arigó: vida, mediunidade e martírio, reeditado diversas vezes e pode ser consultado gratuitamente na Internet.

 

O fenômemo Arigó durou de 1950 a 1970 e passou mais de 50 anos esquecido do grande público. Agora há pouco, em meados de 2019, o cinema veio resgatar sua história com o filme Predestinado: Arigó e o espírito do Dr, Fritz, previsto para exibição em 2021, ano do centenário do médium. Porém, a pandemia interrompeu o projeto, que foi adiado para setembro de 2022. Trata-se de um belo filme dirigido por Gustavo Fernandez numa coprodução da Paramount Pictures e Camisa Listrada, contando com grande elenco.

 

Tributo a Zé Arigó - YouTube

 


José Domingos Brito - Memorial quarta, 28 de setembro de 2022

AS BRASILEIRAS: LUÍSA MAHIN (CRÔNICA DE JOSÉ DOMINGOS BRITO, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

AS BRASILEIRAS: Luísa Mahin

José Domingos Brito

 

 

Luísa Mahin nasceu em fins do século XVIII na Costa da Mina, África, ou  Salvador, BA. Sua existência histórica é controversa, porém existem documentos comprovando que foi uma ex-escrava alforriada em 1812 e que teve participação ativa na Revolta dos Malês (1835) e na Sabinada (1837). A história conta que sua banca de quitutes era um ponto de informações sigilosas dos revoltosos e sua casa foi transformada em quartel general destas revoltas.  

O único registro existente sobre sua vida é uma carta de 1880, escrita por Luís Gama e enviada ao jornalista Lúcio de Mendonça, onde o abolicionista afirma que Luísa Mahin foi sua mãe. No entanto, alguns historiadores não descartam a hipótese que ela tenha sido uma espécie de alter ego dele, também ex-escravo tornado escritor e poeta. O fato é que ela se tornou um mito na história da escravidão brasileira, estudado em diversas épocas e que adquiriu uma existência real ao ser inscrita no “Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria” através da Lei nº 13.816, de 24/4/2019. 

 

Já na década de 1930, Pedro Calmon publicou o romance histórico Malês: a insurreição das senzalas, onde surge pela primeira vez seu nome como líder da Rebelião dos Malês, uma revolta dos negros muçulmanos, ocorrida em 1835 em Salvador. No entanto, o pesquisador João José Reis ao publicar o livro Rebelião escrava no Brasil (1986) afirmou que embora tenha estudado exaustivamente os documentos sobre a rebelião Malê, não localizou uma única referência sobre Luísa Mahin, o que o leva a crer que se trate de "um misto de realidade possível, ficção abusiva e mito libertário".

 

Em 2006, a escritora Ana Maria Gonçalves publicou o romance histórico Um defeito de cor com mais de 900 páginas percorrendo sua trajetória de vida dos 5 anos até sua morte. Pouco depois surgiram estudos tentando desvendar o mito. Em 2010 Aline Najara da Silva Gonçalves publicou o estudo Luísa Mahin entre ficção e história e no ano seguinte, Dulcilei C. Lima lançou o estudo Desvendando Luísa Mahin: um mito libertário no cerne do feminismo negro. Trata-se de uma busca da compreensão sobre a enigmática figura de Luísa Mahin.

 

Há relatos que em 1837, após a Revolta Sabinada, ela conseguiu evadir-se para o Rio de Janeiro, onde foi detida e presa. Mas não existe nenhum documento que comprove esta informação. Alguns autores acreditam que ela tenha conseguido fugir para o Maranhão, onde desenvolveu  o tambor de crioula. Há também relatos que ela, junto com outros negros amotinados, tenha sido presos e deportados para Angola. Mas são relatos sem provas documentais.

 

Luís Gama conclui em sua carta afirmando que ela “Era dotada de atividade. Em 1837, depois da Revolução do doutor Sabino, na Bahia, veio ela ao Rio de Janeiro, e nunca mais voltou. Procurei-a em 1847, em 1856, em 1861, na corte, sem que a pudesse encontrar. Em 1862, soube, por uns pretos minas, que a conheciam e que me deram sinais certos que ela, acompanhada com malungos desordeiros, em uma “casa de dar fortuna”, em 1838, fora posta em prisão; e que tanto ela como os seus companheiros desapareceram. Era opinião dos meus informantes que esses ‘amotinados’ fossem mandados para fora pelo governo, que, nesse tempo, tratava rigorosamente os africanos livres, tidos como provocadores”. E encerra dizendo que “Nada mais pude alcançar a respeito dela”.

 

Em 2018 a Escola de Samba Alegria da Zona Sul desfilou com o enredo Bravos Malês! A Saga de Luísa Mahim. No ano seguinte apareceu de novo no Carnaval carioca, citada como heroína entre outras figuras históricas negras, no enredo História para ninar gente grande, com o qual a Escola de Samba Mangueira ganhou o primeiro lugar. A manchete do jornal O Globo anunciava: “Enredo da  Mangueira contará o lado B da história do Brasil na Sapucaí”.

 

Exibir, se possível, vídeo:  

Os Malês e a resistência negra na Bahia, por Lili Schwarcz

 


José Domingos Brito - Memorial quarta, 21 de setembro de 2022

OS BRASILEIROS: MANUEL BANDEIRA (ARTIGO DE JOSE DOMINGOS BRITO, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

OS BRASILERIOS: Manuel Bandeira

José Domingos Brito

 

 

 

Manuel Carneiro de Sousa Bandeira Filho nasceu em 19/4/1886, no Recife, PE. Crítico literário e de arte, professor, cronista, ensaísta, tradutor e essencialmente poeta. Foi chamado por Mario de Andrade  “São João Batista do Modernismo brasileiro”, por ter antecipado certos postulados do novo movimento artístico. Seu poema -Os Sapos- foi o abre-alas da Semana de Arte Moderna, em 1922.

 

Filho de Francelina Ribeiro e Manuel Carneiro de Souza Bandeira, tradicional família do Recife, mudou-se para o Rio de Janeiro ainda criança e estudou no Colégio Pedro II. Em 1903 mudou-se para São Paulo, onde ingressou na Escola Politécnica para estudar arquitetura, mas logo interrompeu o curso devido a uma tuberculose. Voltou ao Rio de Janeiro na busca de tratamento e morou em algumas cidades serranas: Petrópolis, Teresópolis e Campanha. Não encontrando melhora, partiu para a Suíça, em 1913, e ficou internado mais de um ano no Sanatório Clavadel.

 

Lá conviveu com o poeta Paul Éluard, através do qual teve contato com a vanguarda francesa. Levado pela perspectiva da morte, passou a fazer poesia “para de certo modo iludir o sentimento de vazia inutilidade”, como dizia. Com a eclosão da I Guerra Mundial, voltou para o Brasil em 1914. Publicou seu primeiro livro -A cinza das horas- em 1917, ainda parnasiano e simbolista. Em 1919 publicou Carnaval já se utilizando do verso livre e incursionando na linha modernista. O primeiro verso esbanjava: “Quero beber, cantar asneiras”. Um crítico do Diário de Pernambuco escreveu: “O sr. Bandeira conseguiu plenamente o que queria” e arrancou gargalhadas do poeta.

 

Em 1921, numa reunião na casa de Ronald de Carvalho, conheceu Mario de Andrade, Oswald de Andrade e Sergio Buarque de Holanda, protagonistas da Semana de Arte Moderna de 1922. Não participou diretamente do evento, mas colaborou nas revistas Klaxon, Revista de AntropofagiaLanterna VerdeTerra Roxa e A Revista. Em 1924 publicou Ritmo absoluto, reiterando a transição para uma nova poesia, cuja feição definitiva foi alcançada em 1930, com a publicação de Libertinagem.  Em 1935 foi nomeado inspetor federal do ensino secundário pelo ministro Gustavo Capanema. No ano seguinte foi publicada a Homenagem a Manuel Bandeira, coletânea de estudos sobre sua obra, assinada pelos grandes críticos da época. Em 1937, recebeu o prêmio da Sociedade Filipe de Oliveira pelo conjunto da obra. A consagração pública viria 3 anos depois ao entrar na ABL-Academia de Letras, em 1940.

 

A literatura não o afastou do magistério. Nos anos 1938-1942 lecionou literatura no Colégio Pedro II e, mais tarde, na Faculdade de Filosofia da Universidade do Brasil (atual UFRJ) lecionando Literatura Hispano-Americana até se aposentar em 1956. A produção literária foi se ampliando na poesia: Poesias completas (1948), Mafuá do malungo (1948), Estrela da tarde (1958) etc. e na prosa: Crônicas da província do Brasil (1936), A autoria das cartas chilenas (1940), Noções de histórias das literaturas (1944), Literatura hispano-americana (1949), Itinerário de Pasárgada (1954). Flauta de papel (1956) etc. Em 1958 sua obra completa foi incluída nas “edições da plêiade”, publicada pela Editora Aguilar. Ao completar 80 anos a Editora José Olympio lançou sua obra poética reunida: Estrela da vida inteira.

 

Sua obra reflete o quotidiano, porém marcada de um apuro técnico e musicalidade. Não obstante estar vinculado ao modernismo, nunca deixou de utilizar as formas tradicionais, como sonetos, redondilhas e baladas. Segundo os críticos, seu estilo é simples e direto, conforme se vê no poema Autoretrato:

Provinciano que nunca soube

Escolher bem uma gravata;

Pernambucano a quem repugna

a faca do pernambucano;

Poeta ruim que na arte da prosa

envelheceu na infância da arte,

E até mesmo escrevendo crônicas

Ficou cronista de província;

Arquiteto falhado, músico

Falhado (engoliu um dia

Um piano, mas o teclado

ficou de fora); sem família,

Religião ou filosofia;

Mal tendo a inquietação de espírito

Que vem do sobrenatural,

E em matéria de profissão

Um tísico profissional.

Seu círculo amizades era extenso e mantinha um bom relacionamento com seus colegas João Cabral de Melo Neto e Carlos Drummond de Andrade, que o consideravam o grande poeta brasileiro. No entanto viveu solitariamente e mesmo sendo um apaixonado pelas mulheres, nunca se casou. Dizia que “perdera a vez”. Vivia num pequeno apartamento na Lapa e faleceu em 13/10/1968 vitimado por uma parada cardíaca e não de tuberculose que o acompanhara durante grande parte da vida.

 A bibliografia sobre o poeta e sua obra é extensa, com destaque para o livro de Ivan Junqueira -Testamento de Pasárgada-, publicado em 1981 e reeditado em 2003, contendo uma crítica literária acrescido de uma bela antologia. Merecem destaque também as obras de David Arrigucci Jr.: Humildade, paixão e morte - a poesia de Manuel Bandeira (2003); Stefan Baciu: Manuel Bandeira de corpo inteiro (1966) e Yudith Rosebaum: Manuel Bandeira – uma poesia da ausência (1993). Duas entrevistas dão conta da simplicidade, do bom humor e da seriedade do poeta. A primeira, em meados da década de 1940, conduzida por Homero Sena, e a segunda em março de 1964, realizada por Pedro Bloch podem ser vistas no link Manuel Bandeira (tirodeletra.com.br).

 

 

O Habitante de Pasárgada - Manuel Bandeira - YouTube

 


Vídeo "O Habitante de Pasárgada", sobre o poeta Manuel Bandeira. O documentário faz parte do DVD "Encontro Marcado com o cinema de Fernando ...


José Domingos Brito - Memorial quarta, 14 de setembro de 2022

AS BRASILEIRAS : CORA CORALINA (CRÔNICA DE JOSÉ DOMINGOS BRITO, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

AS BRASILEIRAS: Cora Coralina

José Domingos Brito

 


 

Anna Lins dos Guimarães Peixoto Bretas nasceu na Cidade de Goiás (ou Goiás Velho), GO, antiga capital do estado, em 20/8/1889. Poeta, contista e doceira, com seu estilo simples e alheio a escolas literárias, é considerada uma das maiores poetas brasileiras. Publicou seu primeiro livro aos 75 anos, mesmo escrevendo desde a adolescência.  

 

Filha de Jacyntha Luiza do Couto Brandão e Francisco de Paula Lins dos Guimarães Peixoto, desembargador nomeado por D. Pedro II. Concluiu apenas o curso primário e passou a escrever os primeiros textos aos 14 anos, publicando-os mais tarde em jornais da cidade e outros locais. Seus primeiros textos foram publicados no jornal Tribuna Espírita, do Rio de Janeiro, em 1905. Publicou seu primeiro poema –“A tua volta”- no semanário Folha do Sul, da cidade de Bela Vista, em 1906, e no semanário A Rosa, em 1907, fundado por ela junto com as amigas Leodegária de Jesus, Rosa Godinho e Alice Santana.

 

Por essa época, frequentou o “Clube Literário Goiano” e escreveu o poema evocativo “Velho Sobrado”. O primeiro conto -Tragédia na roça”’- foi publicado em 1910, no Anuário Histórico e Geográfico do Estado de Goiás. Neste ano seu padrasto faleceu; a família passou por uns perrengues e ela adotou o pseudônimo “Cora Coralina”. Aos 22 anos conheceu o advogado Cantídio Tolentino de Figueiredo e fugiu com ele para Jaboticabal, SP, onde nasceram seus 6 filhos. Em 1922 ficou sabendo da Semana de Arte Moderna na capital e manifestou interesse em participar do evento, mas foi dissuadida pelo marido.

 

Dois anos depois, mudou-se para a capital em plena “Revolta Paulista”, comandada pelos tenentes contra o presidente Arthur Bernardes. Em 1926, casou-se de papel passado. Com o falecimento do marido, em 1934, vendeu a pensão que mantinham e passou trabalhar para o editor José Olympio na venda de livros. Pouco depois Mudou-se para Andradina; montou loja de retalhos de tecidos; comprou um sítio; candidatou-se a vereadora, mas não se elegeu. Retornou à Goiás em 1956, aos 67 anos, e voltou a viver em sua velha “Casa da Ponte”, no centro da cidade. Escreveu o panfleto “Cântico da volta”; retomou a escrita de poemas e passou por uma transformação que ela mesma definiu como a “perda do medo”.

 

Seu primeiro livro publicado -Poemas dos becos de Goiás e estórias mais (1965), aos 75 anos, pela Editora José Olympio, foi bem recebido pelo público e crítica. Porém foi com a 2ª edição, em 1978 pela Editora da UFGO, que passou a ser admirada em todo o País. A edição primorosa foi saudada por Carlos Drummond de Andrade numa crônica publicada no Jornal do Brasil, em 27/12/1980, após ler seu poema “Vintém de cobre”: "Minha querida amiga Cora Coralina: Seu Vintém de Cobre é, para mim, moeda de ouro, e de um ouro que não sofre as oscilações do mercado. É poesia das mais diretas e comunicativas que já tenho lido e amado. Que riqueza de experiência humana, que sensibilidade especial e que lirismo identificado com as fontes da vida! Aninha hoje não nos pertence. É patrimônio de nós todos, que nascemos no Brasil e amamos a poesia”.

 

A 3ª edição saiu em 1980 pela Editora da UFGO, incluída na “Coleção Documentos Goianos”. Pouco depois publicou Vintém de cobre: meias confissões de Aninha (1983) pela Editora Global. Por essa época, aos 95 anos, a saúde deu sinais de alerta e veio a falecer, lúcida, em 10/4/1985. A casa onde viveu, no centro da cidade, foi transformada em “Museu Casa de Cora Coralina”, em 20/8/1989, na comemoração do centenário de seu nascimento. 20 anos depois, O Museu da Língua Portuguesa prestou-lhe homenagem com a exposição “Cora Coralina – Coração do Brasil”, em 2000. Em Goiás, a Secretaria de Turismo inaugurou o “Caminho de Cora” (caminho dos antigos bandeirantes), um trecho de 300 km. ligando Vila Boa a Corumbá de Goiás.  

 

Em 2019, na comemoração do seu 130º ano de nascimento, o Governo de Goiás decretou o “Ano Cora Coralina”. Deixou mais de 15 livros publicados e bastante material inédito em seus cadernos escolares para alguns livros póstumos. Conta com dezenas de obras biográficas, críticas literárias, teses e dissertações publicadas: Cora coragem; Cora poesia, de Vicência Bretas Tahan (Ed. Global, 1989), Cora Coralina: celebração da volta, de Darcy França Denófrio e Goiandira Ortiz de Camargo (Cânone Editorial, 2006) e Cora Coralina: raízes de Aninha, de Clóvis Carvalho Britto (Ed. Ideias & Letras, 2011) entre outros.

 

Foi contemplada com diversos prêmios e títulos: Doutora Honoris Causa pela UFGO (1983); Intelectual do Ano, com o Prêmio Juca Pato, da UBE-União Brasileira dos Escritores (1983); condecoração póstuma com a Ordem do Mérito Cultural do Governo de Goiás (2006). Em seu túmulo no cemitério São Miguel, na Cidade de Goiás, está registrado:

“Não morre aquele
Que deixou na terra
A melodia de seu cântico
Na música de seus versos”

Cora Coralina -Todas as vidas dentro de mim

 


José Domingos Brito - Memorial quarta, 07 de setembro de 2022

OS BRASILEIROS: CASTRO MAYA (CRÔNICA DE JOSÉ DOMINGOS BRITO, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

OS BRASILEIROS: Castro Maya

José Domingos Brito

 

 

Raymundo Ottoni de Castro Maya nasceu em Paris, em 1894.  Advogado, industrial, ecologista, colecionador de obras de arte, fundador do MAM-Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro e destacado mecenas. Seu trabalho de remodelação da Floresta da Tijuca, na década de 1940, possibilitou a criação do Parque Nacional da Tijuca, em 1961. Foi um dos milionários mais conhecidos do Rio de Janeiro na década de 1920.

 

Filho de Teodósia Ottoni de Castro Maya e do diplomata Raymundo de Castro Maya, tradicional família carioca. Seu pai foi convidado por D. Pedro II para ser preceptor de seus netos. Passou toda infância em Paris e, aos 5 anos, mudou-se para o Rio de Janeiro, anos, onde ingressou no colégio jesuíta Santo Inácio. Em seguida formou-se em Direito, mas nunca exerceu a profissão. Destacou-se na área industrial com a fábrica de óleos vegetais e no comércio atacadista de tecidos. Porém, ficou conhecido sobretudo como grande colecionador de obras de arte com um acervo de 22 mil peças.

 

Tal acervo encontra-se aberto à visitação pública nos Museus Castro Maya (Museu da Chácara do Céu e Museu do Açude), locais onde residiu nos bairros de Santa Tereza e Alto da Boa Vista, respectivamente, integrados ao IPHAN-Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. O Museu da Chácara do Céu oferece uma das melhores vistas panorâmicas do Rio de Janeiro. Fica no alto do morro de Santa Teresa, num terreno de 25 mil m² com paisagismo assinado por Roberto Burle Marx. A área conta com um bambuzal, que funciona como uma espécie de isolante acústico, garantindo um silêncio absoluto. O Museu do Açude é outro belo recanto incrustado no alto da Boa Vista numa área de 151 mil m². Definidos pelo trinômio Museu-Natureza-Cidade, o visitante fica em dúvida sobre qual aspecto deve ser melhor apreciado: a natureza ou o conjunto de peças artísticas ali instalado.

 

A única função pública que exerceu em vida se deu a convite do então prefeito do Rio de Janeiro Henrique Dodsworth. Devido ao seu interesse em manter a beleza natural da cidade, recebeu a missão de coordenar os trabalhos de remodelação da Floresta da Tijuca, uma área de quase 40 km². Tal trabalho foi realizado em 4 anos com a condição de que não fosse remunerado. Recebia o salário mensal de um cruzeiro e os cariocas deram-lhe o apelido de “One dólar man”

 

Sua contribuição, além da doação de seu acervo ao patrimônio público, foi significativa no campo cultural. Criou a Sociedade dos Cem Bibliófilos do Brasil, em 1943, com a edição de livros raros, e a Sociedade dos Amigos da Gravura, em 1952. Foi também um dos principais incentivadores da criação do MAM e seu primeiro presidente, em 1948. Nas comemorações do IV Centenário do Rio de Janeiro, coordenou a comissão organizadora dos festejos. Como executivo, foi membro da Câmara do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e do Conselho Federal de Cultura, para o qual foi nomeado em 1967.

 

A riqueza artística de seus museus já contou com obras de Picasso, Matisse, Salvador Dali e Monet, que infelizmente foram roubadas em 2006. Mas conta ainda com alguns quadros de Portinari e a maior coleção de obras de Jean-Baptiste Debret, constituída de 451 aquarelas, 58 desenhos e 29 gravuras, retratando a vida no Brasil colonial. Entre os artistas brasileiros, encontram-se obras de Di Cavalcanti, Alfredo Volpi, Iberê Camargo, Antônio Bandeira, José Pancetti, Manabu Mabe, Poty, Aldemir Martins... Entre os estrangeiros, temos Joan Miró, Modigliani, Edgar Degas e George Seurat entre outros. Faleceu em 1968 e o poeta Drummond chamou-o de “O carioca da perfeição”.

 

Deixou publicado um único livro, espécie de relatório poético sobre o trabalho realizado na Tijuca -A floresta da Tijuca-, pu- blicado em 1967 pela Bloch Editores, considerado hoje um livro raro. Não encontramos biografia do refinado colecionador e mecenas, exceto um ensaio realizado por Vera de Alencar, publicado em 2002 pela Editora Nova Fronteira: Castro Maya: Bibliófilo. Para compensar esta lacuna, temos uma bela cinebiografia, um documentário de Silvio Tendler, realizado em 2016: Castro Maya: carioca da perfeição, apresentado no link

https://www.youtube.com/watch?v=segGCSFL5IQ

 


José Domingos Brito - Memorial quarta, 31 de agosto de 2022

AS BRASILEIRAS : ANA AURORA (ARTIGO DE JOSÉ DOMINGOS BRITO, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO

 

AS BRASILEIRAS: Ana Aurora

José Domingos Brito

 

Em 22 de março de 1952, falece Ana Aurora do Amaral Lisboa | NPC

 

Ana Aurora do Amaral Lisboa nasceu em 24/9/1860 em Rio Pardo, RS. Professora, escritora, poeta, dramaturga, jornalista, e ativista política. Foi precursora do ensino supletivo para adultos e pioneira do movimento feminista com destacada atuação política em fins do século XIX e princípios do século XX. Junto com a irmã Zamira, fundou o Colégio Amaral Lisboa.  

 

14ª filha de Maria Carlota do Amaral e Joaquim Pedro da Silva Lisboa, comandante da Guarda Nacional de Rio Pardo. Diplomou-se na Escola Normal de Porto Alegre, em 1881, com distinção em todas as matérias e foi contratada como professora do Estado. Sua família tinha posicionamento contrário ao Partido Republicano. Eram federalistas e o fato causou-lhe perseguições políticas, que a obrigou a exonerar-se do cargo público e entrar no Partido Federalista, vindo a participar da Guerra Federalista no Rio Grande do Sul em 1893.

 

Na época sua irmã publicou na imprensa um poema elogiando o federalista Gumercindo Saraiva. Um republicano, major do Exército -Antero de Fontoura-, não gostou do elogio feito ao seu opositor e achando que foi ela e não a irmã a autora do poema, escreveu-lhe uma carta recriminando a atitude nos seguintes termos: “Essa não é a missão da mulher, deixar o lar doméstico para vir intrometer-se na política. Com tanto cultivo da inteligência, não pensais que a mulher, principalmente a solteira e sem pai, deve arrojar-se a vir provocar homem...” Ela se aborreceu com o insulto e decidiu resolver a parada nos moldes gaúchos da época.

 

Adquiriu uma arma, procurou o major e exigiu retratamento apontando-lhe a arma. Deve ter se desculpado, pois o desfecho não resultou em tiro, mas lhe rendeu um processo-crime. Foi julgada e absolvida por estar no pleno direito de “defesa da honra”. Este pode ser mais um pioneirismo alcançado por Ana Aurora, por se beneficiar de um direito até então só utilizado pelos homens. O episódio ficou marcado em sua biografia e alavancou sua carreira como colunista política e “membra honorária” dos federalistas. Pouco depois, junto com as irmãs Zamira e Carlota, fundou o Colégio Amaral Lisboa, dirigindo-o até 1924. Junto ao trabalho educacional, foi articulista em diversos órgãos da imprensa, onde expunha seus ideais políticos e educacionais. Através destes artigos, alguns deles utilizando-se de pseudônimos, ganhou notoriedade na política local.  

 

Colaborou no jornal A Reforma, do Partido Federalista; no O Canabarro, de Santana do Livramento; Gaspar Martins, de Santa Maria; Correio do Povo,  de Porto Alegre e jornais do Rio de Janeiro. Foi também escritora, poeta e dramaturga, tendo o primeiro livro -Minha defesa- publicado em 1895. Em Caxias do Sul, fundou e dirigiu o periódico O Estímulo, mantido de 1916 a 1918, ao mesmo tempo em que se dedicava a Literatura. Seu segundo livro -Traços meus-, uma coletânea de contos, foi publicado em 1924, pela Livraria do Globo.

 

Manteve intensa vida social com participação destacada na Sociedade Feminina Sempre-Viva e Grêmio Rio-pardense de Letras. Em 1915 criou curso de ensino noturno gratuito para adultos, bem antes do ensino supletivo ser instituído em 1931.  Casou-se em 1922 com o Dr. Hermenegildo de Barros Lins e mudaram-se para o Ceará. Após breve estadia no Rio de Janeiro, voltou a morar em Rio Pardo, onde passou a cuidar do Colégio fundado pela família.

 

Junto com a irmã Zamira, dedicou-se durante 55 anos ao ensino, acolhendo alguns alunos gratuitamente. Em meados da década de 1930, o colégio passou por uns perrengues financeiros, devido em parte ao episódio ocorrido com o major, e as irmãs tiveram que viver numa condição precária em idade avançada. Em 1937 o governo do Estado, em reconhecimento aos serviços prestados na educação, lhes concedeu uma modesta pensão vitalícia, permitindo-lhes a sobrevivência. Seus ex-alunos também reconheceram suas contribuições ao ensino e ergueram uma herma na Praça Barão de Santo Ângelo, no centro da cidade, em 1944, expondo o busto das irmãs. Na inauguração do pedestal sua expressão, aos 84 anos, exprimia uma comoção e agradecimento à homenagem prestada.

 

Faleceu em 22/4/1951 e deixou alguns livros publicados, além dos já citados:  Preitos à LiberdadeA culpa dos pais. Em termos biográficos, encontramos apenas breves verbetes na Wikipedia, que serviram para costurar esta síntese, e o livro Mulheres em cena: as trajetórias de Ana Aurora e Malvina Tavares no limiar do século XX, de Carlos Dias, publicado pela Editora Primas, em 2016. Malvina Tavares foi uma destacada ativista política, contemporânea de Ana Aurora, que se encontra no radar deste Memorial.

 


José Domingos Brito - Memorial quarta, 24 de agosto de 2022

OS BRASILEIRO: FRANCISCO JULIÃO (CRÔNICA DE JOSÉ DOMINGOS BRITO, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

OS BRASILEIROS: Francisco Julião

José Domingos Brito

 

 

 

Francisco Julião Arruda de Paula nasceu em Bom Jardim, PE, em 16/2/1915. Advogado, escritor e político. Ficou conhecido como líder do movimento “Ligas Camponesas”, no início da década de 1960. Parlamentar e advogado do movimento, batalhou pela reforma agrária e foi protagonista de importantes conquistas sociais para o campesinato brasileiro.

 

Filho de Maria Lídia Arruda de Paula e Adauto Barbosa de Paulo, aos 13 anos, foi estudar no Recife e concluiu o curso secundário no Instituto Carneiro Leão, em 1933. Em seguida entrou na Faculdade de Direito, diplomando-se em fins de 1939. Na Faculdade, um núcleo de oposição ao governo, envolveu-se na política social junto aos camponeses. Após montar seu escritório de advocacia, verificou a enorme distância que separava “a lei codificada e a que realmente se aplicava no campo” e costumava dizer que a “grande revolução em curso se limitava a tirar o camponês da porta do delegado para a porta do juiz”. Como advogado dos camponeses, escreveu alguns  documentos, como a “Carta aos foreiros de Pernambuco”, em 1946, incentivando a presença dos camponeses nas audiências e julgamentos dos processos.  Em 1951 publicou seu primeiro livro -Cachaça-, um relato sobre a prática dos latifundiários em pagar os trabalhadores com a bebida, o qual foi elogiado por Gilberto Freyre. Ingressou no PSB-Partido Socialista Brasileiro, em 1954, e foi eleito deputado estadual. No ano seguinte assumiu a defesa dos moradores do engenho Galileia, um engenho desativado, cujo proprietário arrendou as terras em pequenos sítios, num sistema de cooperativa, às 140 famílias lá existentes.  

 

O proprietário do engenho decidiu acabar com a cooperativa e expulsar os camponeses. Julião entrou com um processo na justiça afim de garantir a posse pelos moradores, deflagrando uma luta jurídica, com ganho de causa 4 anos depois pelos camponeses. Foi a partir daí que o movimento ganhou o nome de “Ligas Camponesas”. Em 1955 ocorreu o “Congresso pela Salvação do Nordeste”, organizado pela Prefeitura do Recife, sob a gestão de Pelópidas Silveira. Na ocasião deu-se uma concentração de 3 mil camponeses na Assembleia Legislativa, onde Josué de Castro, autor do livro Geografia da fome, fez uma palestra sobre a reforma agrária. O movimento das “Ligas” foi intensificado até 1958, quando Cid Sampaio foi eleito governador. Uma coligação dos partidos de esquerda foi vencedora pela primeira vez desde o fim do Estado Novo. Com a criação de um departamento de terras e colonização, no governo, foram organizadas algumas cooperativas de agricultores visando diminuir o poder das “Ligas”, que passam a despertar o interesse da imprensa e ganham repercussão nacional.

 

No início da década de 1960, o jornal The New York Times publicou artigos sobre a gravidade da situação econômica-social e do movimento político no Nordeste.  Pernambuco foi visitado por jornalistas e políticos dos EUA, que viam a situação como séria ameaça. Segundo analistas, o impacto causado pela recente revolução cubana foi utilizado pelos norte-americanos para criar uma “mitologia em torno das ligas”, que deu ao movimento “uma dimensão que ele não tinha”. Com a renúncia do presidente Jânio Quadros e a posse de Jango, o programa de reformas de base ganhou impulso. Após o Congresso de Trabalhadores Agrícolas, realizado em 1961, foi decidida a “radical transformação da estrutura agrária do país” e a “aplicação da parte da legislação trabalhista já existente que se estende aos trabalhadores agrícolas”, além da “elaboração de um estatuto que vise uma legislação adequada aos trabalhadores rurais”.

 

A partir de 1962, deu-se o enquadramento institucional patrocinado pelo governo. A CLT-Consolidação das Leis do Trabalho e o direito de organização sindical foram estendidos ao campo. No mesmo ano, Julião foi eleito deputado federal numa coligação do PSB-Partido Socialista Brasileiro com o PST- Partido Social Trabalhista e foi combatido pelo governo de João Goulart e pela Igreja. Nas eleições para governador, aliou-se a candidatura de Miguel Arraes, que teve apoio de todas as forças nacionalistas e de esquerda. A vitória de Arraes ocorreu no momento em que se dava em todo o país a polarização entre as forças que defendiam reformas sociais e as tendências conservadoras. No ano seguinte, deu-se a primeira greve dos trabalhadores rurais de Pernambuco, que paralisou a economia do estado e tiveram suas reivindicações atendidas.

 

As tensões políticas foram intensificadas em todo o País e tivemos o Golpe Militar de 31 de março de 1964. Julião encontrava-se na Câmara dos Deputados, que foi cercada pela tropa militar. Saiu dali escondido num carro e foi para Belo Horizonte disfarçado de migrante nordestino. Em 9 de abril, com a edição do Ato Institucional nº 1, ele estava entre os primeiros atingidos e passou a ser procurado. Em 3 de junho foi encontrado e preso por 20 dias em Brasília. Em seguida foi entregue à tutela do IV Exército, no Recife, onde ficou 40 dias numa cela solitária. Depois foi ficou preso num alojamento do Corpo de Bombeiros junto com o governador Miguel Arraes.

 

Em 27/9/1965, foi libertado através de um habeas-corpus impetrado por seu advogado Sobral Pinto. Deram-lhe 24 horas para deixar o País e recebeu convite de Fidel Castro para viver em Cuba. Preferiu viver com a família em Cuernavaca, México. A partir daí, passou a proferir palestras, ministrar cursos e redigir artigos regulares para os jornais Siempre e El Dia, além de publicar o livro Cambão: a cara oculta do Brasil. Mais tarde participou do Encontro dos Trabalhistas do Brasil com os Trabalhistas no Exílio, em Lisboa sob a liderança de Leonel Brizola, em 1979.  No mesmo ano, com a anistia, retornou ao Brasil e passou a reorganizar o PTB junto com Brizola. No entanto, perderam a sigla numa disputa com a ex-deputada Ivete Vargas e criaram o PDT-Partido Democrático Trabalhista.

 

Em 1985 participou da campanha eleitoral do candidato a prefeito de São Paulo, Ademar de Barros Filho. Foi criticado por isto, mas alegou que ele representava o capital nacional e que era preciso unir forças com diversas correntes políticas. Em 1986 concorreu a uma vaga de deputado constituinte por Pernambuco, pelo PDT, com apoio do PT-Partido dos Trabalhadores e PSB-Partido Socialista Brasileiro. No arco das coligações partidárias, participou de comícios do PFL-Partido da Frente Liberal ao lado de usineiros e apoiou a candidatura do pefelista Roberto Magalhães ao Senado. Tal aproximação com seus adversários na década de 1960, provocou um estranhamento entre seus eleitores e correligionários, incluindo seus dois filhos Anatólio e Anatilde, dirigentes regionais do PDT, que se desligaram do Partido e ingressaram no PMDB-Partido do Movimento Democrático Brasileiro, em protesto contra a atitude do pai.

 

Pouco depois, derrotado eleitoralmente, declarou ter dado “um golpe de misericórdia no próprio mito”. Em fins de 1986 recebeu convite de uma editora mexicana para escrever o livro Os últimos soldados de Zapata e voltou a viver no México, onde faleceu em 10/7/1999. Além dos livros citados, publicou Irmão Juazeiro (1961), O que são as Ligas Camponesas (1962), Até quarta, Isabela (1965) e Escuta camponês (s.d). No Exílio, traduziu do francês, junto com Miguel Arraes, o livro A mistificação das massas pela propaganda política (1967), de Sergei Tchakhotine. Em termos biográficos, temos um alentado trabalho de 10 anos de pesquisa, realizado por Cláudio Aguiar, que resultou no livro Francisco Julião: uma biografia, publicado pela Ed. José Olympio em 2015.

   

Documentário "Testemunho - Francisco Julião" (2002)

 

 


José Domingos Brito - Memorial quarta, 17 de agosto de 2022

AS BRASILEIRAS : NIOMAR BITTENCOURT (CRÔNICA DE JOSÉ DOMINGO SBRITO, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

AS BRASILEIRAS: Niomar Bittencourt

José Domingos Brito

 

 

 

Niomar Moniz Sodré Bittencourt nasceu em 4/9/1916, em Salvador, BA. Escritora, jornalista, empresária, mecenas e proprietária do Correio da Manhã (1901-1974), um dos jornais mais importantes nas décadas de 1950-60. Pretendeu e conseguiu fazer do MAM-Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro a “obra de sua vida”, conforme declarou Lucio Costa.

 

Filha de Maria de Teive Argollo e do deputado Antonio Moniz Sodré de Aragão. Estudou breve período no Colégio Sacré Couer de Jesus, de onde foi expulsa por não se adaptar às rígidas normas da escola. O estopim se deu com o fato de se recusar a tomar banho de camisola. Em seguida foi estudar Colégio Sion do Rio de Janeiro, menos rígido, porém ainda inadequado para o temperamento da moça que o deixou antes de graduar-se.  

 

Desde jovem começou a escrever novelas, contos e crônicas, colaborando mais tarde em jornais e revistas: A Noite, Vamos Ler, Carioca. Aos 15 anos apaixonou-se pelo primo e manteve o namoro em segredo até o dia em que o pai flagrou o casal. Deu-se o maior “barraco”; o velho danou-se e expulsou o rapaz de casa. No outro dia ela fugiu indo morar num hotel. Mandou avisar o pai que só voltaria se fosse para casar com o primo. Teve que esperar até completar 16 anos, a idade permitida, e casou-se em 1932 com o primo Hélio Moniz Sodré Pereira. Viveu com ele até princípios da década de 1940 e separou-se. Pouco depois casou-se com o jornalista Paulo Bittencourt, dono do Correio da Manhã.

 

Passou a se interessar por artes plásticas e tornou-se uma grande colecionadora de obras de arte. Era amiga do empresário Raymundo Ottoni de Castro Maia e da escultora Maria Martins, junto aos quais engajou-se na criação do MAM-Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, inaugurado em 1948. Durante 10 anos ocupou sua diretoria e projetou a sede atual no Aterro do Flamengo. Depois ficou como presidente de honra, membro do conselho deliberativo, do comitê internacional e dos comitês de exposição, aquisição e doação no Brasil e no exterior. Segundo Lucio Costa, ao assumir a direção do Museu, deliberou fazer dele a obra de sua vida. Projetou o MAM no cenário internacional.  

 

Com a morte do marido, em 1963, assumiu a direção do Correio da Manhã até 1969, quando foi presa, processada devido ao posicionamento político do jornal e teve os direitos políticos cassados pelo AI-5 por 10 anos. Apesar do apoio dado ao Golpe Militar de 1964, passou a criticar logo em seguida o regime ditatorial, denunciando casos de tortura entre os presos políticos. Em fins de 1985 foi homenageada com um almoço no MAM, onde o então presidente José Sarney discursou e se desculpou em nome do governo brasileiro, pelas perseguições políticas, junto com seu jornal, no período do regime militar. O jornal sofreu algumas pressões econômicas e políticas, que forçaram sua transferência a um grupo empresarial que modificou a linha editorial e posicionamento político.

 

Como decorrência do endividamento dos arrendatários, ela recusou-se a retomar o jornal antes que expirasse o prazo do contrato. Assim, foi decretada a falência do jornal, que deixou de circular em 1974. No mesmo ano mudou-se para Paris, onde viveu 10 anos, retornando ao Brasil em 1984. Em seguida participou do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio de Janeiro e da ABI-Associação Brasileira de Imprensa, representando-a na Conferência de Chapultepec, no México. Como uma das fundadoras do MAM, representou o Brasil na Bienal de Veneza. Em 1993 foi diagnosticada como portadora do Mal de Alzheimer e faleceu em 31/10/2003.

 

Não contamos ainda com uma sua biografia publicada em livro, mas temos um trabalho biográfico consistente na forma de uma dissertação de mestrado -De coadjuvantes a protagonistas: a trajetória de três mulheres que trocaram os salões de sociedade pelo controle de grandes jornais brasileiros nas décadas de 50 e 60 apresentada por Flávia Bessone na PUC/Rio, em 2001. A parte referente a Niomar foi publicada na Internet, acessível no link:

http://esquecidaniomar.blogspot.com/search/label/Biografia

 


José Domingos Brito - Memorial quarta, 03 de agosto de 2022

AS BRASILEIRAS : ALMERINDA GAMA

AS BRASILEIRAS: Almerinda Gama

José Domingos Brito

 

 

   

Almerinda Farias Gama nasceu em 16/5/1/1899, em Maceió, AL. Advogada, escritora, jornalista, poeta, tradutora e sindicalista nas horas deo lazer. Foi uma das primeiras mulheres negras a ter participação destacada na política brasileira e pioneira no combate ao patriarcalismo. Costumava dizer que “A inteligência não tem sexo” “Eu sempre, por instinto, me revoltei contra a desigualdade de direitos entre homem e mulher”.

 

Filha de Eulália da Rocha Gama e José Antônio Gama, ficou órfã do pai aos 8 anos e foi morar com uma tia em Belém do Pará. Já quase adulta fez curso de datilografia e pouco depois frequentou a Escola Prática de Comércio. Aos 21 anos passou a escrever crônicas para o jornal A Província. Aos 24 casou-se com o primo, o escritor Benigno Farias Gama, que escrevia para vários jornais, falecido 2 anos depois. Logo percebeu que o salário pago aos homens era metade daquele pago às datilógrafas.  

 

Em 1929 mudou-se para o Rio de Janeiro e filiou-se à Federação Brasileira pelo Progresso Feminino (FBPF), presidida pela bióloga Bertha Lutz, que a incentivou a criar o Sindicato dos Datilógrafos e Taquígrafos, reconhecido em 1933. Na FBPF a pauta predominante era o direito ao voto feminino, conquistado em 1932. Outra conquista foi a criação de uma data para a comemoração do “Dia das Mães”, com o Decreto nº 21.366, de 5/5/1932, consagrando o segundo domingo de maio para a celebração da data no Brasil.

 

Pouco depois passou a colaborar com O Jornal, com a coluna “Para a mulher no lar”, onde escreveu diversos artigos sobre a falta de estímulos para a publicação de livros escritos por mulheres sobre, incluindo uma carta aberta ao escritor Humberto de Campos, contrário ao ingresso de mulheres na ABL-Academia Brasileira de Letras. Participou da Assembleia Constituinte de 1933, junto com a deputada Carlota Pereira de Queiroz, como delegada classista representando o Sindicato dos Datilógrafos e Taquígrafos e a Federação do Trabalho do Distrito Federal. Candidatou-se a deputada federal em 1934, sem êxito. Em sua propaganda política dizia-se Advogada consciente dos direitos das classes trabalhadoras, jornalista combativa e feminista de ação. Lutando pela independência econômica da mulher, pela garantia legal do trabalhador e pelo ensino obrigatório e gratuito de todos os brasileiros em todos os graus“.

 

Devido à sua atuação nas lutas pelo ensino obrigatório e gratuito, foi homenageada com seu nome dado ao “Ginásio Almerinda Gama”, dirigido por Laurentino Garrido, em São João do Meriti. Em seguida passou a dirigir o Partido Proletário Socialista, ao lado de Plínio Gomes de Melo, Vasco de Toledo, Waldemar Rikdal, João Vitaca e Orlando Ramos, entre outros. Permaneceu na direção do Partido até 1937, quando o Partido foi extinto com o golpe do Estado Novo. Por esta época concluiu o curso de Direito, em meados de 1935.

 

Junto a estas atividades, foi professora e tradutora dos idiomas francês, inglês e espanhol e publicou algumas coletâneas de poemas -Zumbi (1942) e O dedo de Luciano (1964), além de contos e crônicas em revistas e jornais do Rio de Janeiro. Em 1943, foi contratada como escrevente do 9º Ofício de Notas, onde trabalhou até 1967. Em 1984, concedeu ao CPDOC da FGV-Fundação Getúlio Vargas uma longa entrevista para o projeto Velhos Militantes, publicado em livro, pela Editora Zahar, em 1988.  

 

Pouco antes de completar 100 anos, faleceu em 31/3/1999 em São Paulo. Em 2016 a Prefeitura de São Paulo instituiu o “Prêmio Almerinda Farias Gama”, para distinguir iniciativas na área das comunicações ligadas à defesa da população negra. Como biografia temos a dissertação de Mestrado em História na Universidade de Brasília, realizada por Patrícia Cibele Tenório, A trajetória de vida de Almerinda Farias Gama (1899-1999): feminismo, sindicalismo e identidade política, em 2020. No canal Youtube temos dois belos documentários sobre sua trajetória:  ABVP - Almerinda, uma mulher de trinta - YouTube e Almerinda, a luta continua - YouTube

 

ALMERINDA, UMA MULHER DE TRINTA

ALMERINDA, A LUTA CONTINUA


José Domingos Brito - Memorial quarta, 27 de julho de 2022

OS BRASILEIROS: DYONÉLIO MACHADO

OS BRASILEIROS: Dyonélio Machado

José Domingos Brito

 


 

Dyonélio Tubino Machado nasceu em Quaraí, RS, em  21/8/1895. Escritor, poeta, ensaísta, jornalista, psiquiatra, político e um dos pioneiros da psicanálise no Rio Grande do Sul. Foi também um autor destacado na 2ª geração do Modernismo brasileiro.

 

Filho de Elvira Tubino Machado e Sylvio Rodrigues Machado, morto num duelo quando ele era uma criança, fato que o marcou por toda a vida. Para ajudar no sustento da família, vendia bilhetes de loteria junto com o irmão. Contudo, continuou estudando e se dando bem na escola. Auxiliava os alunos mais atrasados e com isso conseguiu gratuidade na escola para si e o irmão. Aos 12 anos conseguiu um emprego como auxiliar no jornal O Quaraí e passou a conhecer a intelectualidade local. O gosto pelo jornalismo estimulou-o a fundar um jornal intitulado O Martelo por volta dos 16 anos, demonstrando certo interesse pelo comunismo

 

Em 1921 mudou-se para Porto Alegre e fundou o jornal A Informação, ligado ao Partido Republicano. Pouco depois publicou o ensaio Política contemporânea: três aspectos e ingressa na Faculdade de Medicina, em 1924. Diplomado em 1929, foi trabalhar no Hospital Psiquiátrico São Pedro. Em seguida, passou 2 anos no Rio de Janeiro, onde se especializa em psiquiatria e neurologia e publica sua tese de doutorado: Uma definição biológica do crime. De volta à Porto Alegre, foi um dos responsáveis pela divulgação da psicanálise no Rio Grande do Sul. Em 1934 traduziu o livro Elementos de psicanálise, de Edoardo Weiss e fez dessa especialidade sua profissão.

 

No entanto, manteve o interesse pelo jornalismo, que foi estendido à literatura. Assim, participou de um círculo de amigos conhecido como “a turma da Praça da Harmonia”. A estreia literária se deu em 1927 com uma coletânea de contos: Um pobre homem. Por insistência do amigo Érico Veríssimo, escreveu o romance Os Ratos, em 1935, e ganhou o Prêmio Machado de Assis, tornando-se sua obra prima. No mesmo ano, devido à “Intentona Comunista”, foi preso por 2 anos e na cadeia adere ao PCB-Partido Comunista Brasileiro. Em 1942 publicou O louco do Cati, mais um romance muito bem recebido pela crítica e público.

 

Eleito deputado constituinte, pelo PCB, em 1947, manteve-se até ser cassado com a dissolução do partido. Afastou-se da política e do mercado editorial por quase 20 anos, dedicando-se à medicina e escrevendo romances. Além da medicina e da literatura, foi um entusiasta do jornalismo. Participou da fundação da pioneira ARI-Associação Rio-Grandense de Imprensa, em 1935, e foi colaborador dos jornais Correio do Povo e Diário de Notícias. Em 1946, junto com Décio Freitas, fundou a Tribuna Gaúcha, porta-voz do PCB. Em 1966, com a reedição de Os Ratos, voltou a cena literária com a publicação de Deuses econômicos (1976), Endiabrados (1980), Ele vem do fundão (1982) e O estadista, publicação póstuma em 1995.

 

Sua obra, após um período de esquecimento, foi resgatada no meio acadêmico a partir de 1990, devido ao caráter psicológico arraigado em suas obras, particularmente em Os Ratos e O Louco do Cati. Foi considerado um “escritor maldito” bem antes do tempo em o termo foi aplicado a alguns escritores na década de 1970. Ele mesmo confirmou esta impressão ao declarar “Eu sou um rebelde. Eu não sou do público. Sou incapaz de escrever algo pensando no que vão achar, qual será a impressão que causará. Sou incapaz de ser vendido à editora, ou ao público”, publicado no livro O cheiro da coisa viva, em 1995, pela Graphia Editorial.

 

Independente da fama de maldito, fato é que Os Ratos e O Louco do Cati encontram-se no cânone da literatura brasileira, conforme diversos críticos e estudiosos que se debruçaram em sua obra através de teses e dissertações acadêmicas. Faleceu em 19/6/1985 e seu último livro – Proscritos- teve publicação póstuma em 2014 pela editora Siglaviva. Entre as biografias do autor, contamos com uma “intelectual”, escrita por Marinês Dors: Dionélio Machado (1895-1985): os múltiplos fios da trajetória ambivalente de um intelectual, na forma de uma dissertação de mestrado realizada na UNISINOS-Universidade do Vale dos Sinos, em 2008 e outra, digamos, “literária”, escrita por Maria Zenilda Grawunder: Instituição literária: análise da legitimação da obra de Dyonélio Machado, publicada pela EDIPUCRS, em 1997.

 

Encontramos também um “retrato” do autor, que pode se constituir numa síntese biográfica, escrita por Jonas K. Moreira Dornelles: Dyonélio Machado como figura pública e intelectual brasileiro – notas para compreensão, na forma de um artigo publicado na revista Opinião Filosófica, vol. 10, nº 2, de 2019, a disposição na Internet: https://opiniaofilosofica.org/index.php/opiniaofilosofica/article/view/921/756


José Domingos Brito - Memorial quarta, 20 de julho de 2022

AS BRASILEIRAS: CRISTINA TAVARES

 

AS BRASILEIRAS: Cristina Tavares

José Domingos Brito

 


 

Maria Cristina de Lima Tavares Correia nasceu em 10/6/1934, em Garanhuns, PE. Linguísta, professora, jornalista e política. Como deputada federal foi uma das fundadoras do PSDB-Patido da Social Demcracia Brasileira e ficou conhecida como defensora intransigente de uma política nacional de informática. Foi a primeira mulher a liderar uma bancada na história do parlamento brasileiro.

 

Filha de Maria Mercês de Lima Tavares Correia e José Alves Tavares Correia, dono do maior hotel de Garanhuns, o antigo Sanatório Tavares Correia. Certamente realizou os primeiros estudos num dos 3 grandes colégios da cidade: Diocesano, 15 de Novembro ou no Colégio Santa Sofia, dirigido às moças. Em 1955 graduou-se em línguas neolatinas pela Faculdade de Filosofia do Recife e passou a trabalhar  no jornalismo, atuando no Jornal do Comércio, Diário de Pernambuco e Jornal da Cidade, e como correspondente da Folha de São Paulo em Recife, além de dirigir a surcursal da revista Visão no periodo 1973-75.

 

Em 1960, recebeu o casal Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir em viagem pelo Recife. O filósofo apaixonou-se por Cristina e queria levá-la à Paris. Na ocasião sua esposa ficou doente e registrou em suas memórias: “Enquanto eu jazia no meu leito de dor, ele passeava com ela”.  Em meados da década de 1970, ingressou na política, pelas mãos do deputado Fernando Lira e candidatou-se a deputada federal, em 1978, pelo MDB-Movimento Democrático Brasileiro, fazendo parte do “Grupo Autêntico” e integrando a assessoria de Ulysses Guimarães, presidente do Partido. Foi empossada no ano seguinte e exerceu a vice-presidência da Comissão de Comunicação e titular de CPIs (Comissão Parlamentar de Inquérito) sobre fome, desnutrição e saúde, comercialização do café brasileiro e cheias do Rio São Francisco.

 

Em seguida, pelo mesmo partido, já transformado em Partido Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), ganhou mais dois mandatos consecutivos como deputada federal: em 1982 (legislatura 1983-1987), com 27.963 votos, e em 1986 (legislatura 1987-1991), com 40.613 votos. Com a extinção do bipartidarismo, em 1979, tornou-se vice-lider do PMDB. Nesta legislatura, foi relatora do “Simpósio sobre Informática” e do “Simpósio sobre”. Em 1982 reelegeu-se deputada federal e fundou o Centro de Estudos Políticos e Sociais Teotônio Vilela. Na Câmara Federal atuou com destaque nas comissões de Economia, Indústria e Comércio e de Comunicação e Informática. Votou a favor das eleições diretas em 1984 e no candidato oposicionista Tancredo Neves, em 1985, que não pode assumir devido ao falecimento em 31 de abril.

 

No mesmo ano integrou a delegação brasileira no “Seminário sobre Dívida Externa”, em Havana.  Na Assembleia Nacional Constituinte, em 1987, foi relatora das comissões da Família, da Educação e Esportes, da Ciência e Tecnologia e da Comunicação e titular da Comissão de Sistematização.  Ainda na Constituinte votou a favor da limitação do direito de propriedade privada, do mandado de segurança coletivo, da jornada de 40 horas semanais, da unicidade sindical, do voto aos 16 anos, da criação do fundo de apoio à reforma agrária e contra a pena de morte, a pluralidade sindical, o presidencialismo e o mandato de 5 anos para José Sarney. Devido a um câncer de mama, faltou às votações do segundo turno e licenciou-se do mandato para tratamento no exterior.

 

Atuou na Constituinte em defesa da Lei de Informática, da revisão do Código Nacional de Telecomunicações e mudanças no regime de propriedade dos meios de comunicação. Defendeu também reinvidicações do movimento feminista: descriminalização do aborto, instalação obrigatória de creches nas empresas e ampliação dos direitos da mulher trabalhadora. Em 1988 participou da fundação do PSDB-Partido da Social Democracia Brasileira e pouco depois. Na primeira eleição presidencial por voto direto, em 1989, filiou-se ao PDT-Partido Democrático Trabalhista e apoiou à candidatura de Brizola. No pleito de 1990, candidatou-se à reeleição como deputada pelo PDT, mas não obteve êxito e deixou a Câmara dos Deputados em 1991. Em seguida passou a dirigir, no Recife, a seção regional do Instituto Alberto Pasqualini, organismo de estudos políticos ligado ao PDT. Faleceu em 23/2/1992, vitimada por um câncer.

 

Em sua vida pública, elaborou 139 projetos, proferiu 334 discursos, participou de diversas Comissões Parlamentares e foi relatora de dois simpósios. Na Constituição de 1986, apresentou 227 emendas, das quais 95 foram aprovadas. Deixou 6 livros publicados: Cristina Tavares Correia, repórter (1978), relato sobre sua visão da imprensa; Conversações com Arraes (1979), suas conversas com o governador; Informática: a batalha do século XXI (1984), em co-autoria com Mílton Seligman; Informática e a Nova República (1985), Onde está o meu filho? (1985), em co-autoria com Chico de Assis, Gilvandrio Filho, Glória Brandão e Jodeval Duarte e A última célula: minha luta contra o câncer (1990), um relato pungente sobre seu martírio.

 

O Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Estado de Pernambuco instituiu, em 1993, o “Prêmio Cristina Tavares de Jornalismo”, outorgado anualmente aos profissionais destacados na área. Na falta de uma biografia p.p. dita, temos o texto de Tereza Cruvinel -Cristina Tavares: ensaio biográfico- publicado na série “Perfis Parlamentares” nº 71, da Câmara dos Deputados, em 2016, e o trabalho Cristina Tavares: memória, imagem e representação, apresentado no XIII Encontro Estadual de História, em 2020, que pode ser acessado no link

1601080002_ARQUIVO_4ac1aab915564734b3eff6d5700c42c8.pdf (anpuh.org)


José Domingos Brito - Memorial quarta, 13 de julho de 2022

OS BRASILEIROS: PINHEIRO MACHADO

OS BRASILEIROS: Pinheiro Machado

José Domingos Brito

 

 

 

José Gomes Pinheiro Machado nasceu em Cruz Alta, RS, em 8/5/1851. Advogado, jornalista e militar-civil ou vice-versa. Foi um dos políticos mais influentes da República Velha (1889-1930) e recebeu o epiteto de “o condestável da República”. Na condição de senador, devido ao seu poder e influência, era visto como um símbolo da “política dos governadores”.  

 

Filho Maria Manoela de Oliveira Ayres e do deputado federal Antônio Gomes Pinheiro Machado. Estudou na Escola Militar e aos 15 anos largou o curso para lutar, como voluntário e contra a vontade do pai, na Guerra do Paraguai. Afastou-se do Exército em 1868 e passou a viver na fazenda da família até meados da década de 1870. Em seguida foi viver em São Paulo afim de ingressar na Faculdade de Direito, concluindo o curso em 1878. Durante o curso, e interessado na política, juntou-se a alguns colegas, criou o Clube Republicano Acadêmico e fundou o jornal A República.

 

Logo após formado, casou-se com Benedita Brazilina da Silva Moniz, voltou para o Sul e passou a viver em São Luiz Gonzaga, onde montou escritório e fundou o primeiro partido republicano da província junto com Venâncio AiresDemétrio RibeiroApolinário Porto AlegreRamiro BarcelosJoaquim Francisco de Assis Brasil e Júlio Prates de Castilhos, seu grande amigo. Com a Proclamação da República (1889), foi eleito senador e passou a viver no Rio de Janeiro. Em 1893, com a Revolução Federalista em seu estado, decidiu licenciar-se do cargo para assumir o comando da Divisão Norte. Com sua experiência em combates, foi bem-sucedido na Batalha de Passo Fundo, ganhou a patente de general de brigada honorário e retornou ao Senado.

Sua primeira articulação política se deu com o presidente Deodoro da Fonseca. A pedido de Júlio de Castilhos tentou convencê-lo a moderar o relacionamento com os políticos, apelando em nome do Rio Grande do Sul para que não fechasse o Congresso Nacional. O diálogo não logrou sucesso, mas impressionou o então presidente. Em 1897 ocorreu o atentado contra o Presidente Prudente de Morais e ele foi acusado de ser o mandante junto com Francisco Glicério. Foi preso por alguns dias, mas logo foi solto devido à falta de provas. No início da República o ambiente político era bastante conturbado e os partidos eram organizados apenas em âmbito regional. Com sua influência e ambição ampliou o âmbito político com a criação do PRC-Partido Republicano Conservador Nacional.

 

Em 1902 tornou-se vice-presidente do senado e passou a coordenar a Comissão de Verificação de Poderes, um simulacro de tribunal de justiça eleitoral. Com tal poder em mãos, conseguiu eliminar diversos mandatos parlamentares de alguns adversários. No período, que foi até 1914, seu poder político atingiu o ápice. Na época havia uma piada contando que Hermes da Fonseca ao passar a faixa presidencial para seu sucessor Venceslau Brás, teria dito: “Olha Venceslau, o Pinheiro é tão bom amigo que chega a governar pela gente". Teve intenção de disputar a presidência, mas seus oponentes não deixaram. Assim, continuou nos bastidores da política. Seu temperamento era difícil e algumas vezes enfrentou o clamor das ruas. Ao tentar impor o nome de Hermes da Fonseca ao senado quase foi linchado por uma multidão.

 

Em 8/9/1915, acompanhado pelos deputados paulistas Cardoso de Almeida e Bueno de Andrade no saguão do Hotel dos Estrangeiros, no Rio de Janeiro, foi apunhalado pelas costas por Francisco Manço de Paiva e faleceu. O assassino foi preso e assumiu a autoria do crime sem revelar mandantes. Meses antes, previu sua própria morte numa entrevista ao jornalista João de Rio: “Morro na luta. Matam-me pelas costas, são uns ‘pernas finas’. Pena que não seja no Senado, como César”. Era famoso na política nacional e implacável com seus desafetos. Seu conterrâneo e senador Pedro Simon disse que ele era “um político afastado dos holofotes, mais voltado para a atividade de gabinete e totalmente interessado nas manobras de bastidores e na costura dos grandes acordos políticos. Era uma eminência parda... Quem mandava e elegia presidentes era o Machado, um dos mais influentes políticos da República, de quem hoje ninguém fala.”

 

Era poderoso também no Nordeste, com suas ligações com o Padre Cícero no Ceará. Através de seus conchavos políticos, colocou o Padre como terceiro vice-presidente estadual da província, ampliando seus poderes na região. Seus embates com Rui Barbosa no plenário do Senado eram frequentes. A “Águia de Haia”, diplomata, jurista e jornalista tinha tudo para ser eleito presidente da República nas eleições de 1910, mas perdeu para Hermes da Fonseca, devido às suas articulações.

 

Os dois brigavam por qualquer coisa: o estouro do tempo das falas, ofensas infantis e correções gramaticais expostas por Rui, que irritavam ainda mais o “nobre” senador. Foi um político importante para a consolidação da República e foi homenageado com um monumento na Praça Nossa Senhora da Paz, em Ipanema, inaugurado em 1931, além de nomear uma cidade no Rio Grande do Sul. Sua biografia -Pinheiro Machado- escrita de modo quase mítico, foi publicada em 1951 pelo historiador Cyro Silva, editada pela Livraria Tupã Editora. Quase 70 anos depois, outra biografia, não menos mítica a julgar pelo subtítulo, saiu em 2018 publicada por seu sobrinho-bisneto José Antônio Pinheiro Machado: O Senador acaba de morrer: a vida e o assassinato de um dos políticos mais importantes da História do Brasil.

 

Grandes Personagens - Pinheiro Machado

 

 


José Domingos Brito - Memorial quarta, 06 de julho de 2022

A BRASILEIRAS: MARIA LACERDA DE MOURA

AS BRASILEIRAS: Maria Lacerda de Moura

José Domingos Brito

 

 

 

 

Maria Lacerda de Moura nasceu em Manhuaçu, MG, em 16/5/1887. Escritora, professora, jornalista, ativista política e uma das pioneiras do movimento feminista no Brasil. Destacou-se também na luta pelas reformas educacionais e campanhas nacionais de alfabetização.

 

Teve os primeiros estudos em Barbacena, onde foi diplomada professora pela Escola Normal Municipal, em 1904. Foi diretora do Pedagogium de Barbacena e teve atuação destacada na Campanha Barbacense de Alfabetização. Não era bem-vista pela igreja local, devido ao fato de seus pais serem espíritas e anticlericais. Publicou crônicas no jornal da idade a partir de 1912 e teve seu primeiro livro -Em torno da educação- publicado em 1918. Por essa época conheceu o jornalista José Oiticica e teve contatos com as ideias pedagógicas renovadoras de Maria Montessori, Paul Robin, Sebastien Faure e Francisco Ferrer y Guardia. Em 1921 mudou-se para São Paulo e iniciou contatos com o movimento feminista e operário, comandado pelos anarquistas.

 

Foi convidada para unir-se à Bertha Lutz, líder do Movimento Sufragista, com quem fundou a Liga para a Emancipação Intelectual da Mulher, logo transformada em Federação Brasileira pelo Progresso Feminino, em 1922. Por esta época foram conquistados o ingresso de meninas no Colégio Pedro II, o voto feminino e leis de proteção à mulher e à criança. Ainda em 1922 foi presidente da Federação Internacional Feminista, mas logo afastou-se do movimento por considerar que estava muito ligado ao sufrágio feminino. Para ela, a luta pelo direito de voto respondia a uma parcela muito limitada das necessidades femininas.

 

Colaborou regularmente com a imprensa operária nos jornais A Plebe, O Combate, A Tribuna e o jornal feminista gaúcho O Corymbo. Em 1923 fundou a revista Renascença, publicação cultural divulgada entre setores progressistas. Na revista intensificou suas convicções teosóficas em contato com seu programador visual, o poeta e pintor santista Ângelo Guido. Em 1926 manteve contatos com a obra do anarquista francês Han Ryner, causando-lhe grande impacto e segundo ela mesma "desejo maior de uma purificação interior bem mais alta", dando-lhe "a noção mais alta da liberdade ética... livre de escolas, livre de igrejas, livre de dogmas, livre de academias, livre de muletas, livre de prejuízos governamentais, religiosos e sociais".

 

No período 1928-1937, viveu numa comunidade agrícola em Guararema (SP), formada por anarquistas e desertores espanhóis, e passou a se destacar na militância política. A convite de instituições educacionais, proferiu palestras no Uruguai e na Argentina, onde manteve contatos com Luiz Carlos Prestes, do Partido Comunista, exilado em Buenos Aires, numa entrevista para o jornal O Combate. Como jornalista tratava de temas ligados ao amor livre, direito ao prazer sexual, divórcio, maternidade consciente, prostituição, combate ao clericalismo, ao fascismo e ao militarismo. Seu posicionamento político era bastante avançado para a época e em muitos aspectos eram semelhantes àqueles das feministas da década de 1960.

 

Entre 1934 e 1935 publicou dois livros -Clero e fascismo: horda de embrutecedores! e Fascismo: filho dilecto da igreja e do capital- gerando polêmicas no meio político. Em 1935 rompeu com a Fraternidade Rozacruz, com a qual mantinha certa proximidade, ao saber que sua sede em Berlim havia sido cedida aos nazistas e passou a atuar no Comitê Feminino Contra a Guerra. Com o Estado Novo, em 1937, a Comunidade de Guararema foi desmantelada pela repressão polícia, deixando-a na clandestinidade por alguns meses. Voltou a morar em Barbacena, onde tentou retomar a vida de professora e ampliar suas reflexões nas ciências ocultas.

 

Não suportou o marasmo de uma cidade do interior e mudou-se em 1938 para o Rio de Janeiro. Em 1942 a saúde deu sinais de alerta e passou a levar uma vida mais tranquila participando de um programa na Rádio Mayrink Veiga sobre astrologia. Sua última atividade pública foi uma conferência na Fraternidade Roza-Cruz Antiqua, em 1944, intitulada O Silêncio e veio a falecer em 20/3/1945. Não obstante a intensa vida social,  casou-se em 1905 com Carlos Ferreira de Moura; não teve filhos; manteve o casamento até 1925, quando separou-se, mas continuaram amigos até o fim de sua vida. Teve 2 filhos adotivos: um sobrinho e uma órfã carente. De 1926 a 1937, teve como companheiro o francês André Néblind, mentor da Comunidade Guararema, preso e deportado em 1937.

 

Foi uma política bastante criticada pelos conservadores, mas foi defendida por estudantes de esquerda, intelectuais e escritores, como Raquel de Queiroz. É muito pouco citada na história oficial, incluindo os estudos sobre anarquismo no Brasil e até mesmo na história do feminismo, mesmo tendo escrito 20 livros. Não fosse o extenso trabalho de pesquisa e resgate realizados pela historiadora Miriam Moreira Leite, pouco saberíamos sobre esta feminista diferenciada.

 

Publicou dois livros: Outra face do feminismo: Maria Lacerda de Moura (2003), um estudo biográfico, e Maria Lacerda de Moura, uma feminista utópica (2005), uma pesquisa historiográfica, além do documentário Maria Lacerda de Moura: trajetória de uma rebelde (2003), que pode ser visto no link https://www.youtube.com/watch?v=pom4W-FW4jo

 


José Domingos Brito - Memorial quarta, 29 de junho de 2022

OS BRASILEIROS: PEREIRA PASSOS

 

 

OS BRASILEIROS: Pereira Passos

José Domingos Brito

 

 

Francisco Franco Pereira Passos nasceu em São João Marcos, RJ, em 29/8/1836. Engenheiro, político e prefeito do Rio de Janeiro (1902-1906), nomeado pelo presidente Rodrigues Alves. Foi chamado por Olavo Bilac de “furor das picaretas regeneradoras” e recebeu da população o apelido de “Bota Abaixo”, devido a radical transformação urbana ocorrida na cidade, colocando-a no patamar das metrópoles mundiais.

 

Filho de Clara Oliveira e Antônio Pereira Passos, barão de Mangaratiba. Teve os primeiros estudos no Colégio São Pedro de Alcântara e ingressou na Escola Militar (atual Escola Politécnica da UFRJ), onde diplomou-se engenheiro civil em 1856. No ano seguinte mudou-se para Paris e estudou na École de Ponts et Chaussées. Conviveu com a reforma ubana empreendida pelo Barão Haussmann, o “artista demolidor”,  prefeito da cidade, que ficou conhecido na história do urbanismo. Retornou ao Brasil, em 1860, e passou a dedicar-se à construção e expansão das ferrovias requeridas pela demanda da economia cafeeira: Estrada de Ferro Santos-Juundiaí (1867), prolongamento da Estrada de Ferro D.Pedro II (1868). Foi também consultor do Ministério da Agricultura e Obras Publicas (1870).

 

Voltou à Europa em companhia do Visconde de Mauá, a serviço do Governo Imperial e estudou os sistemas ferroviários, particularmente na Suiça, onde analisou a estrada de ferro com grande inclinação para aplicar o sistema no prolongamentio da estrada de ferro da Serra de Petrópolis. Tal sistema foi aplicado fambém na Estrada de Ferro do Corcovado, a primeira estrada turística do Brasil. Convidado pelo Barão de Mauá, diriigiu o Arsenal de Ponta da Areia, na construção de vagões, trihos e equipamentos ferroviários. Na condição de engenheiro do Império, acompanhou todas as obras urbanas e integrou a comissão de planejamento da reforma urbana da capital, base do futuro plano diretor que iniciaria mais tarde como prefeito.

 

Passou mais um ano em Paris, onde estudou na Sorbonne, no College de France e visitando siderúrgicas e obras públicas. Na volta ao Brasil, passou a residir no Paraná para acompanhar a construção da ferrovia ligando o Porto de Paranaguá a Curitiba, um projeto realizado pelos irmãos Rebouças (André e Antonio) que até hoje se destaca pela ousadia em sua concepção. Após sua inauguração em 1882, retornou ao Rio de Janeiro e assumiu a diretoria da Companhia Ferro-Carril de São Cristovão. Em dois anos reestruturou a empresa e propôs a  construção de uma grande avenida no centro da cidade. O plano só veio  prosperar 20 anos depois com a abertura da Avenida Central, quando tornou-se prefeito. Vale lembrar que no início do séc. XX, o Rio de Janeiro era uma grande  cidade com quase um milhão de habitantes, conhecida no mundo como “cidade da morte”, devido a precariedade de sua infra-estrutura com o rápido e desordenado crescimento ocorrido pela imigração europeia e pela transição do trabalho escravo para o livre.

 

Quando assumiu a prefeitura, em 1902, o centro da cidade com sua estrutura colonial não dispunha de equipamentos urbanos e eclodiam as habitações coletivas insalubres (cortiços) em ruas estreitas sem abastecimento de água e rede de esgotos. Tal adensamento da população em condições precárias foi a causa de epidemias de febre amarela, varíola e cólera no segundo ano de seu governo, resultando na ação do médico Oswaldo Cruz e a consequente “Revolta da Vacina”, em 1904. Assim, a reforma urbana visava o saneamento, o urbanismo e embelezamento da cidade. Logo no inicio, foram iniciadas as obras da Av. Beira Mar ligando o centro da cidade ao Morro da Viúva. Esta obra foi muito útil na ligação posterior com a abertura dos túneis.

 

Um dos marcos de sua administração é Avenida Central (atual Av. Rio Branco), com 1.800 m. de comprimento e 33 m. de largura, que ainda hoje exerce o papel de centro econômico e administrativo. Outro marco destacado é a Av. Atlântica no bairro de Copacabana. A lista de suas obras é grande e vale registrar algumas: Biblioteca Nacional (1905), Vista Chinesa (1903), ajardinamento da Praça Tiradentes, Largo do Machado, Praça da Glória entre outras (1903), Mercado Municipal (1907), Aquário do Passeio Público (1904), Teatro Municipal (1905), Av. Maracanã, Embelezamento de Paquetá (1904), Palácio Monroe (1906), alargamento e abertura de diveras ruas do centro etc., além da demolição de alguns morros para permitir o arejamento de zonas densamente povoadas. Calcula-se que 1.600 velhos prédios foram demolidos para alargamento e construção de novas ruas.

 

Com suas obras e o trabalho do sanitarista Oswaldo Cruz, o Rio perdeu o apelido de “Cidade da Morte” e passou ficar conhecido como “Cidade Maravilhosa”. O custo social da empreitada foi enorme. A população com alguma renda teve que mudar-se para o subúrbio e os  mais pobres tiveram que habitar nas encostas dos morros, engrossando o contingente das favelas que começavam a surgir desde a abolição da escravatura. Boa parte da população permaneceu na região e nos morros do centro da cidade: Providência, Santo Antônio. Outros, pouco habitados, sofreram uma rápida ocupação com o contigente operário, dando origem as favelas.    

 

Foi um dos primeiros presidentes do Clube de Engenharia do Rio de Janeiro e teve papel destacado no desenvolvimento da engenharia em seus primórdios. A prefeitura do Rio de Janeiro prestou-lhe uma homenagem em reconhecimento ao seu trabalho com um monumento e seu busto esculpido em bronze por Rodolfo Bernardelli, localizado na Praça da Igreja da Candelária, em 1913, ano de seu falecimento a bordo do navio Araguaia, quando realizava mais uma de suas viagens à França. Publicou também uma breve biografia -Pereira Passos, vida e obra- na coleção “Rio Estudos, nº 221, em agosto de 2006.

 


A REFORMA URBANA DO RIO DE JANEIRO - YouTube

 


José Domingos Brito - Memorial quarta, 15 de junho de 2022

AS BRASILEIRAS: ALZIRA SORIANO

AS BRASILEIRAS: Alzira Soriano

José Domingos Brito

 


 

Luiza Alzira Teixeira Soriano nasceu em 29/4/1897, em Jardim de Angicos, RN, na época um distrito de Lages. Política e primeira mulher prefeita de uma cidade na América Latina numa época em que o “Feminismo” engatinhava. Assim, deu provas de sua condição com base em fatos e atitudes muito além das palavras de ordem e proclamas provenientes de uma necessidade do meio social.

 

Filha de Margarida de Vasconcelos e Miguel Teixeira de Vasconcellos, coronel da Guarda Nacional e lider politico regional, casou-se aos 17 anos com um promotor público, com quem teve 4 filhas e faleceu 4 anos depois vitimado pela Gripe Espanhola, em 1919. Alzira contava com 22 anos; estava grávida da quarta filha e voltou a morar na fazenda dos pais.  Em seguida foi morar no Recife, afim de educar melhor as filhas, na casa da sogra. Porém, não se deu bem e retornou à Jardim de Angicos. Passou a administrar a fazenda e participava das reuniões políticas promovidas por seu pai. Nestas reuniões, chamou a atenção do governador Juvenal Lamartine de Faria e da lider feminista Bertha Lutz, que lá se encontrava justamente para propor uma candidatura feminina.

 

Lembremos que o Rio Grande do Norte foi o primeiro estado do Brasil a instituir o voto feminino em 1927 e Bertha Lutz foi lider feminista, fundadora da “Liga para a Emancipação Intelectual da Mulher”, em 1919 e pioneira na luta pelo sufrágio feminino.

Contando com o apoio do pai, de Lamartine e Bertha Lutz,  aceitou disputar a prefeitura de Lages como candidata do Partido Republicano em 1928. Durante a campanha sofreu todo tipo de preconceito e difamação. Chegaram a dizer que ela tinha um caso com o governador. Achavam, também, que pelo fato de querer ser uma “mulher pública”, poderia ser uma prostituta.

 

Foi eleita, em 1929, com mais de 60% dos votos e o fato revelou-se num fenômeno mundial, noticiado no jornal New York Times. O adversário político -Sérvulo Pires Neto Galvão- envergonhado por ter perdido a eleição para uma mulher, abandonou a política e a própria cidade. Seu governo foi responsável pela construção de estradas, mercado público, escolas e a implantação da iluminação pública a vapor. Na eleição presidencial de 1930, apoiou o paulista Júlio Prestes.  Porém, com a Revolução de 1930 e o “Estado Novo”, que levou Getúlio Vargas ao poder, os prefeitos de todo o país foram substituídos por interventores.

 

Apesar de ser convidada a permanecer na prefeitura, não aceitou o cargo de interventora municipal. Antes de deixar o  cargo, visitou seus eleitores para agradecer o apoio recebido. Conta a história que um de seus opositores ao vê-la na rua, passou a cantarolar versos contra ela. Sua reação consistiu nuns tapas na cara do opositor, quebrando-lhe os óculos. Em casa e repreendida pela famíla, revelou que “só tive essa reação por que disse o que faria e não quis bancar a covarde”.  

 

Mudou-se para Natal em 1932, onde as filhas foram estudar; retornou à fazenda Primavera e reconstruiu sua atividade política. Em 1947 foi eleita vereadora de Lajes pela UDN-União Democrática Nacional. Na época enfrentou opositores políticos até em sua família, incluindo o irmão caçula, eleito prefeito. Mas os laços familiares se mantiveram intactos. Foi  reeleita vereadora de Lajes por mais dois mandatos e presidiu  a Câmara Municipal. Em fins de 1961, descobriu um câncer no útero e foi se tratar no Rio de Janeiro. A doença estava em estado avançado e retornou à Natal, onde veio a falecer em 28/5/1963, aos 66 anos.

 

Hoje o desenho de seu retrato encontra-se no brasão da bandeira do Município de Jardim de Angicos e é reconhecida como pioneira da participação política da mulher no Brasil. Em 2008, a cidade de Lages instituiu a “Semana Alzira Soriano”, evento anual para concentrar estudos e debates sobre a defesa dos direitos da muher e sua participação política. Em 2018, a Prefeitura de Jardim de Angicos adotou a data de seu nascimento como feriado municipal.

 

No mesmo ano recebeu, como homenagem póstuma, o “Diploma Mulher-Cidadã Carlota Pereira de Queiróz”, da Câmara dos Deputados. Ainda não dispomos de uma biografia disposta a relatar todos seus feitos e legado no mundo da Política municipal, aquela mais ligada ao eleitor. Mas podemos contar com um trabalho acadêmico de conclusão de curso de licenciatura em História -A primeira prefeita brasileira Alzira Soriano: o poder político coronelístico, Lages/RN, 1928- Trata-se de uma pesquisa, digna de uma dissertação de mestrado, desenvolvida por Isabel Engler e apresentada na UFFS-Universidade Federal da Fronteira Sul, em 2019, disponivel no link ENGLER.pdf (uffs.edu.br)   


José Domingos Brito - Memorial quarta, 08 de junho de 2022

OS BRASILEIROS: PRUDENTE DE MORAES

OS BRASILEIROS: Prudente de Moraes

José Domingos Brito

 

 

 

Prudente José de Moraes Barros nasceu em 4/10/1841, em Mairinque, SP. Advogado, político e primeiro presidente civil do Brasil (1894-1898), numa eleição direta. Com ele dá-se a ascensão da oligarquia cafeicultora de São Paulo no poder político nacional e a consolidação da Repúlica, que manteve-se em constante disputa após sua proclamação em 1889.

 

Filho de Catarina Maria de Moraes e José Marcelino de Barros, foi descendente dos primeiros colonizadores de São Paulo. Ficou órfão do pai aos 5 anos; graduou-se advogado em 1863 e passou a exercer a profissão em Piracicaba por 2 anos. Ingressou na politica e elegeu-se vereador em 1865. Na condição de  mais votado, assumiu a presidência da Câmara Municipal. Em 1866 casou-se com Adelaide Benvinda Gordo e tiveram 9 filhos. A casa onde viveram, atualmente sedia o Museu Histórico e Pedagógico Prudente de Moraes. Como vereador conseguiu mudar o nome da cidade de Vila Nova da Constituição para Piracicaba, um nome indígena que significa “lugar onde moram os peixes”.

 

Na eleição seguinte foi deputado provincial (1868-1869) pelo Partido Liberal. Abraçou a causa republicana em 1876 e a causa abolicionista em 1886. Com a proclamação da República, em 1889, passou a integrar a junta do Governo de São Paulo e logo governador do Estado até 1890 No ano seguinte foi eleito senador, exercendo a presidência da Assembleia Nacional Constituinte e a vice-presidència do Senado (1891). Neste ano disputou a presidência com Deodoro da Fonseca, numa eleição indireta, e perdeu. Porém, assumiu a presidência do Senado até 1894, quando foi eleito presidente da República numa eleição direta. Governou o País até 1898 e passou chefiar o Partido Republicano Dissidente.

 

Em plena crise econômica, em decorrência da política do "encilhamento", enfrentou intensa oposição política, liderada por militares florianistas; pelo Partido Monarquista que buscava se reorganizar; e por parcelas dos setores médios da população, além da Revolta Federalista no Rio Grande do Sul em 1893-95. Em 1896 licenciou-se do cargo por motivo de saúde, agravando a crise política, que passou a ser enfrentada pelo vice Manuel Vitorino, aliado de Floriano. A crise agiganta-se com a eclosão da Guerra de Canudos, no sertão da Bahia, liderada por Antonio Conselheiro, e vista como uma reação da Monarquia. Na verdade, era apenas um movimento messiânico pregando uma vida ascética, que atraiu uns 30 mil sertanejos.

 

Os revoltosos venceram as tropas da Bahia e mobilizou o Exército a enviar tropas federais, sendo vencidas em duas batalhas. A batalha final deu-se em agosto de 1897 com a devastação do arraial de Canudos por uma expedição do Exército de 8 mil homens, equipada com canhões. A batalha resultou numa carnificina denunciada por Euclides da Cunha em seu livro Os Sertões. Pouco depois o presidente reassume o governo na nova sede do governo, o Palácio do Catete. Em 5/11/1897, na recepção dos batalhões que retornavam de Canudos, sofreu um atentado cometido por um soldado, que resultou na morte do ministro da Guerra Marechal Bittencourt. Foi decretado o “estado de sítio” no Distrito Federal, livrando-se dos oposicionistas mais radicais.

 

Não obstante o período conturbado de seu governo, conseguiu êxitos em questões fundamentais para o País:  restabeleceu as relações diplomáticas com Portugal, rompidas por Floriano durante a Revolta da Armada; assinou o Tratado de Amizade, Comércio e Navegação com o Japão, com o objetivo de fomentar a vinda de imigrantes japoneses; enfrentou a questão diplomática com os ingleses, que tomaram posse da  Ilha da Trindade e com a França, que invadiu o Amapá. Nestas questões, valeu-se sempre do arbitramento internacional, contando com os governos de Portugal e Suiça, e foram resolvidas favoravelmente ao Brasil. Obteve sucesso, também, na questão dos limites com a Argentina, arbitrada pelo presidente dos EUA e comandada pelo Barão do Rio Branco. 

 

Não menos fáceis foram as questões econômico-financeiras, herdadas da crise do encilhamento, acentuadas em sua administração, devido aos gastos militares, aumentando as dívidas com os credores estrangeiros. Assessorado por seus ministros da FazendaRodrigues Alves e Bernardino de Campos, negociou com os banqueiros ingleses a consolidação da dívida externa. Ao fim de seu mandato em 15/11/1898, gozava de grande popularidade e passou o cargo ao sucessor Campos Sales. Retornou à Piracicaba e retomou a advocacia até 3/12/1902, quando veio a falecer vitimado por uma tubeculose.

 

Escreveu, entre outros textos, Orçamento e política geral (1888), Projeto de impostos sobre escravos (1888) e A nação brasileira (1894), além dos discursos e um belo manifesto ao assumir, como primeiro civil, a presidência da jovem República Brasileira. Foi homenageado com seu nome dado à cidades em 3 estados: Presidente Prudente (SP), Prudentópolis (PR) e Prudente de Morais (MG). Entre suas biografias, destacam-se Prudente de Moraes: uma vida marcada (1971), de Antonio Barreto do Amaral, Biografia de Prudente de Moraes (s.d.), da Academia Piracicabana de Letras e Os Presidentes: Prudente de Moraes (1983), de Hélio Silva.


José Domingos Brito - Memorial quarta, 01 de junho de 2022

AS BRASILEIRA: ANTONIETA DE BARROS

AS BRASILEIRAS: Antonieta de Barros

José Domingos Brito

 

 

 

Antonieta de Barros nasceu em 11/7/1901, em Florianópolis, SC. Professora, jornalista e política, foi a primeira mulher negra brasileira a ocupar um mandato como deputada e uma das primeiras mulheres eleitas no Brasil. Batalhou pela emancipação feminina, pela educação de qualidade e pelo reconhecimento da cultura negra no Sul do País.

 

Filha da lavadeira Catarina de Barros e Rodolfo de Barros, ficou órfã do pai ainda criança. A mãe era empregada na casa do político Vidal Ramos, pai de Nereu Ramos, futuro presidente da República. Sua irmã e seu irmão foram ativistas no incipiente movimento negro local. Em seguida a mãe criou uma pensão para estudantes em sua casa, criando um ambiente propício à alfabetização dos filhos.

 

Teve os primeiros estudos na Escola Lauro Miller e aos 17 anos ingressou na Escola Normal Catarinense. Colaborava na edição da revista da escola e presidiu o Grêmio Estudantil. Diplomada professora em 1921, criou no ano seguinte o “Curso Particular Antonieta de Barros” em sua casa, voltado à população carente. Queria ser advogada, mas o curso de Direito era vedado à mulher. Mais tarde lecionou na escola onde fez o curso primário, no Colégio Coração de Jesus e na escola onde se formou professora, na qual foi diretora nos anos 1944-51, quando foi exonerada por motivos políticos. Além do magistério, teve atuação destacada como jornalista e escritora. Fundou e dirigiu o jornal A Semana entre os anos 1922-27, conseguindo com isto outro pioneirismo: a primeira mulher negra a exercer o jornalismo.

 

Suas crônicas tratavam das questões ligadas à educação,  condição feminina, desmandos políticos e preconceito. Em 1930 dirigiu a revista Vida Ilhoa e escrevia sob o pseudônimo “Maria da Ilha”. Em 1937 reuniu algumas de suas crônicas e publicou o livro Farrapos de ideias. Participou da Associação Catarinense de Imprensa e passou a trocar correspondência com a Federação Brasileira pelo Progresso Feminino, através de sua fundadora, a bióloga Bertha Lutz. Em 1934, na primeira eleição em que as mulheres puderam ser votadas, foi convidada pelo deputado Nereu Ramos a ingressar no Partido Liberal Catarinense e candidatar-se a Deputada.

 

Foi eleita deputada estadual em 1935 e ficou responsável pelos capítulos Educação e Funcionalismo na Assembleia Constituinte. Em 1937 assumiu a presidência da Assembleia Legislativa e concluiu seu mandato no mesmo ano com a instauração do “Estado Novo” e o fechamento dos parlamentos em todo o País. Voltou à política em 1947, foi eleita deputada em 1948, centrando sua atuação na área da educação. Batalhou pela concessão de bolsas de cursos superiores e magistério, dirigidos à alunos carentes e foi autora da lei estadual nº 145, de 12/10/1948, instituindo o Dia do Professor e feriado escolar no estado.

 

Foi vítima do preconceito e atacada pelo deputado Oswaldo Rodrigues Cabral, em 1951, quando disse que suas ideias políticas e educacionais eram uma “intriga barata da senzala”. Sua delicada resposta veio através de um artigo publicado no jornal O Estado: “Fizemos do Magistério o nosso caminho, e agimos sempre respeitando a professora que não morreu em nós, ainda, graças a Deus. Como, pois, a intriga? Compreendemos que a delicada sensibilidade do nobre Deputado tenha sofrido diante daquela frase. Sua Excelência, para a felicidade de todos quantos são arianos – apesar de portador de um diploma de jornalista – não milita no ensino público. Dizemos felicidade porque, à sua Excelência, falta uma das qualidades de professor: não distinguir raças, nem castas, nem classes”.

 

Aposentou-se em 1951, mas continuou lecionando até o ano seguinte, quando veio a falecer em 28/3/1952, vitimada pela diabetes. Ela passou por um processo de “apagamento histórico” até fins da década de 1990, quando a ex-senadora Ideli Salvatti iniciou o resgate de sua memória e uma série de homenagens foram e vem sendo feitas com seu nome extrapolando a fronteira de seu Estado: nome do auditório do palácio do governo, nome do programa de formação de jovens aprendizes, projeto de inclusão de seu nome no “Livro dos Heróis da Pátria”, Medalha Antonieta de Barros, comenda da Câmara Municipal, concedida a mulheres relevantes etc., além de seu nome dado à alguns logradouros de Florianópolis. Sua biografia -Antonieta de Barros: professora, escritora, primeira deputada catarinense e negra do Brasil- foi publicada em 2021 por Jeruze Romão.

 

QUEM FOI ANTONIETA DE BARROS?



José Domingos Brito - Memorial quarta, 25 de maio de 2022

OS BRASILEIROS: ARY BARROSO

OS BRASILEIROS: Ary Barroso

José Domingos Brito

 


 

Ary Evangelista Barroso nasceu em 7/11/1903, em Ubá, MG. Compositor, pianista, cronista, jornalista, radialista e autor de Aquarela do Brasil, uma das músicas mais gravadas no País, que deu origem ao chamado “samba-exaltação”. ??????????????????????Foi um grande revelador e incentivador de talentos musicais.

 

Filho de Angelina de Resende e do promotor público João Evangelista Barroso, perdeu os pais logo cedo e foi criado pela avó materna e pela tia Ritinha, com quem aprendeu a tocar piano, solfejo e teoria musical. Teve os primeiros estudos em sua cidade natal, Viçosa e Cataguases. Aos 12 anos iniciou como pianista auxiliar no Cinema Ideal, em Ubá, e aos 15 compôs o cateretê De longe e a marcha Ubaenses gloriosos.

 

Em 1920 faleceu o tio Sabino Barroso, ex-ministro da Fazenda, e recebeu uma gorda herança de 40 contos de réis. No mesmo ano mudou-se para o Rio de Janeiro, onde foi viver sob a tutela do Dr. Carlos Peixoto. Ingressou na Faculdade de Direito aos 18 anos; conheceu e fez amizade com diversos futuros radialistas, juristas, políticos, artistas e caiu na boemia. Assim, foi reprovado no 2º ano e abandonou o curso. Logo, torrou o dinheiro da herança e teve que se empregar como pianista de cinema, teatro e diversas orquestras da cidade. 

 

Sem largar o piano, retomou o curso de Direito, concluído em 1929. Nesse meio tempo, tocou em diversas orquestras e passou a compor: Amor de mulato, Cachorro quente e Oh! Nina em parceria com Lamartine Babo. Junto com Mario Reis compôs Vou à Penha e Vamos de deixar de intimidades, seu primeiro sucesso. No ano seguinte venceu o Grande Concurso de Música Popular, promovido pela Casa Edison e o jornal Correio da Manhã, com a marchinha Dá nela e ganhou 5 contos de réis. Aproveitou o prêmio para casar-se com Ivone Belfort de Arantes, em 1930. Pouco depois foi trabalhar na Rádio Phillips como pianista, mas logo se torna, também, locutor esportivo, humorista e animador.

 

Em São Paulo, comandou o programa “Hora H”, na Rádio Cosmos, logo transferido para a Rádio Cruzeiro do Sul, no Rio de Janeiro. Na mesma Rádio foi substituir um colega como locutor esportivo e empolgou a torcida. Flamenguista fanático, irradiava o jogo ao mesmo tempo em que torcia ostensivamente, comemorando os gols de seu time ou lamentando os gols do adversário. Em 1937 lançou o programa “Calouros em desfile”, onde obrigava os candidatos a só cantarem músicas brasileiras. O sucesso do programa levou-o à grande Rádio Tupi.

 

Outras gravações vão surgindo até o grande sucesso Aquarela do Brasil, gravada por Francisco Alves em 1939 com arranjos e acompanhamento de Radamés Gnattali, regravada centenas vezes aqui e no exterior. Até hoje é uma das músicas que mais produz direitos autorais ne exterior. Nos EUA foi interpretada por Frank Sinatra e Bing Crosby, cujo sucesso rendeu-lhe um contrato para trabalhar em Hollywood. Compôs a trilha sonora do filme Você já foi à Bahia?, dirigido por Walt Disney e foi  premiado pela Academia de Ciências e Artes Cinematográficas, em 1944. No ano seguinte compôs a trilha sonora para a comédia musical Brazil, dirigida por Joseph Santley, indicada ao “Oscar” de 1945. Como compositor, deixou diversas músicas clássicas do cancioneiro popular: No rancho fundo (1931), Na batucada da vida (1934), No tabuleiro da baiana (1936), Na baixa do sapateiro (1938), Camisa amarela (1930), Os quindins de Yayá (1941), Risque (1952), É luxo só (1957) etc.  Nas décadas de 1940 1950  tornou-se o compositor mais gravado por Carmen Miranda. 

 

Motivado pelos amigos, ingressou na política, em 1946, e foi o vereador mais votado do Rio de Janeiro, pela UDN-União Democrática Nacional. As duas causas em que mais atuou foi a construção do Estádio Maracanã e a defesa do direito autoral. Era dotado de excepcional senso de humor. Quando foi internado no hospital, diagnosticado com cirrose hepática que o vitimaria, ligou para seu amigo David Nasser, despedindo-se porque ia morrer. Nasser perguntou: “Como você sabe?”. “É que estão tocando muito minhas músicas no rádio”, respondeu tranquilo. Realmente, faleceu em 9/2/1964, num domingo de carnaval.

 

Segundo os críticos, Ary Barroso celebra a invenção da brasilidade mestiça da Era Vargas, quando o samba, a mulata, a ginga e a natureza tropical passam a traduzir as cores da nação. Foi homenageado pela Escola de Samba União da Ilha do Governador, em 1988, com o enredo "Aquarilha do Brasil", contando sua história. No ano de seu centenário (2003), a Rede STV SESC SENAC produziu o documentário O Brasil Brasileiro de Ary Barroso, dirigido por Dimas Oliveira Jr., com depoimentos de diversos amigos. Sergio Cabral pesquisou sua vida e escreveu uma bela biografia -No tempo de Ary Barroso- publicada pela Lumiar Editora. Os interessados numa visão panorâmica de seu legado, podem consultar seu site oficial na Internet Ary Barroso : Vida

 


José Domingos Brito - Memorial quarta, 18 de maio de 2022

AS BRASILEIRAS: CARLOTA QUEIROZ

AS BRASILEIRAS: Carlota Queiroz

José Domingos Brito

 

 

 

Carlota Pereira de Queiroz nasceu em São Paulo, SP, em 13/2/1892. Médica, pedagoga, escritora, historiadora e política, foi a primeira deputada federal do Brasil. Teve uma atuação diferenciada no incipiente movimento feminista e participou dos trabalhos na Assembleia Nacional Constituinte, entre 1934 e 1935.

 

Filha de Maria Vicentina de Azevedo Pereira de Queiroz e José Pereira de Queiroz, foi diplomada professora pela Escola Normal Caetano de Campos, em 1909, onde lecionou e foi inspetora de 1910 a 1913.  Logo se interessou por métodos modernos de ensino, como os sistemas Frobel e Montessori e pouco depois se entediou com a carreira. Escreveu no seu diário: “Desiludi-me com a carreira de professora. O meio era acanhado, não havia grande futuro, os melhores lugares eram dos homens. Eu aspiro a mais. Deixei o magistério público, continuando a dar aulas particulares para ter certa independência econômica”.

 

Em 1920 ingressou na Faculdade de Medicina da USP e no 4º ano transferiu o curso para a Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, vindo a diplomar-se em 1926. Sua tese -Estudos sobre o câncer- recebeu o prêmio Miguel Couto. Na volta à São Paulo, assumiu a chefia do laboratório de clínica pediátrica da Santa Casa de Misericórdia e do serviço de hematologia da Clínica de Obstetrícia e Ginecologia da Faculdade de Medicina da USP. Em 1929 viajou para a Suíça, na condição de comissionada pelo governo paulista, para estudar dietética infantil.  

 

Na Revolução Constitucionalista de 1932, organizou e liderou um grupo de 700 mulheres para dar assistência aos feridos. Tal participação e seu envolvimento na luta pelos ideais democráticos defendidos por São Paulo, levaram-na a ingressar na política em 1933, elegendo-se como deputada federal pelo Partido Constitucionalista. Integrou a Comissão de Saúde e Educação, trabalhando pela alfabetização e assistência social. Foi de sua autoria o primeiro projeto sobre a criação de serviços sociais, bem como a emenda que viabilizou a criação da Casa do Jornaleiro e a criação do Laboratório de Biologia Infantil.

 

Como deputada batalhou pela defesa da mulher e das crianças e, como pedagoga, reivindicou melhorias no sistema educacional. Além disso, publicou uma série de trabalhos em defesa dos direitos da mulher. Ocupou o cargo até o Golpe de 1937, quando Getúlio Vargas fechou o Congresso. Em seu discurso de posse, discorreu sobre o novo papel que a mulher deveria ocupar no quadro político do País: “Além de representante feminina, única nesta Assembleia, sou, como todos os que aqui se encontram, uma brasileira, integrada nos destinos do seu país e identificada para sempre com os seus problemas. (…) Quem observar a evolução da mulher na vida, não deixará por certo de compreender esta conquista, resultante da grande evolução industrial que se operou no mundo e que já repercutiu no nosso país. (...) E assim foi que ingressaram nas carreiras liberais. Essa nova situação despertou-lhes o interesse pelas questões políticas sociais. O lugar que ocupo neste momento nada mais significa, portanto, do que o fruto dessa evolução”.

 

Como integrante do IHGSP-Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, desde 1934, tinha certa predileção pela história e publicou dois livros sobre a formação de seu Estado, envolvendo sua família:  Um Fazendeiro Paulista no século XIX (1965) e Vida e Morte de um Capitão-Mor (1969), ambos publicados pelo Conselho Estadual de Cultura. Na área médica integrou a Associação Paulista de Medicina, Association Française pour l'Étude du Cancer", Academia Nacional de Medicina e Academia Nacional de Medicina de Buenos Aires. Em 1950 fundou a Academia Brasileira de Mulheres Médicas, da qual foi presidente nos anos seguintes.

 

A primeira deputada federal do País ainda não tem uma biografia p.p. dita, mas tem um biógrafa: Mônica Raisa Schpun publicou extenso artigo -Entre feminino e masculino: a identidade política de Carlota Pereira de Queiroz- nos Cadernos Pagu, nº 12 em 1999, relatando sua vida e legado. Segundo ela, Dona Carlota não era uma feminista-padrão. Ao contrário de Bertha Lutz (a segunda deputada do País), era contrária à criação do Departamento Nacional da Mulher. Ela se opôs que “seus cargos fossem preenchidos por mulheres. Cotas eram consideradas sexistas por Carlota”. Em alguns pontos “não concordava com as feministas... e se permitiu fazer política defendendo aquilo que lhe parecia mais importante”. Os interessados no artigo podem acessá-lo no link Microsoft Word - n12a20.doc (ufsc.br)


José Domingos Brito - Memorial quarta, 11 de maio de 2022

OS BRASILEIROS: PATATIVA DO ASSARÉ

OS BRASILEIROS: Patativa do Assaré

José Domingos Brito

 

 

 

Antônio Gonçalves da Silva nasceu em 5/3/1909, em Assaré, CE. Poeta, compositor, cantor, violeiro e improvisador (repentista). Considerado um dos principais representantes da música popular nordestina do século XX, recebeu o epiteto “Patativa do Assaré” devido ao fato de sua poesia cantada se comparar à beleza do canto dessa ave.

 

Nascido numa família pobre e vivendo da agricultura de subsistência, ficou cego olho direito, aos 4 anos, deviddo ao sarampo. Aos 8 anos, com morte do pai, passou a trabalhar no sustento da família. Aos 12 frequentou a escola local, onde  foi alfabetizado em 6 meses. Aos 16 anos comprou sua primeira viola e passou e cantar repentes com apresentações em festas e feiras. Aos 20 mudou-se para Belém e foi “descoberto” pelo folclorista e jornalista José Carvalho de Brito, correspondente do jornal Correio do Ceará. Apresentando-o com “Patativa”, publicou alguns poemas no jornal e no seu livro O caboclo do Pará e o matuto cearense, um capítulo sobre o jovem violeiro. Pouco depois retornou ao Ceará e incoporou o topônimo Assaré ao nome. “Patativa” é um passáro cantador conhecido na região.

 

Em meados de 1956, frequentava a feira de Crato e participava de um programa da Rádio Araripe, declamando seus poemas. Aí  teve contato com José Arraes de Alencar, que gostou dos poemas e incentivou a edição de seu primeiro livro Inspiração nordestina, em 1956. Mais tarde saiu uma 2ª edição ampliada com o título Cantos do Patativa. Mais um lançamento se deu em 1988, com a coletânea de poemas Ispinho de fulô. Ao todo lançou 12 livros, alguns deles em pareceria ou organizado por Geraldo Gonçalves de Alencar. A fama vai se alargando no encontro com outro ícone  nordestino: Luiz Gonzaga gravou sua toada A triste partida e deu o titulo ao seu novo LP em 1965.

 

Mais tarde, em 1973, Fagner gravou o poema O vaquêro com o nome Sina, sem lhe dar o crédito. Porém retratou-se e tornaram-se amigos, vindo a autorizar Fagner gravar Vaca estrela e boi fubá, em 1980, cantada em dupla com Luiz Gonzaga. Em 1970 lançou uma nova coletânea Patativa do Assaré: novos poemas. O livro que o tornou mais conhecido viria em 1978 com Cante lá que eu canto cá, apresentado na programação cultural do encontro da SBPC-Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, em 1979. No mesmo ano se apresentou no Teatro José de Alencar, num espetáculo produzido por seu conterrâneo Fagner, que editou o show e lançou o LP Poemas e canções pela gravadora CBS.

 

Apartir daí ficou conhecido no meio intelectual e estudantil, com presença constante em eventos artisticos. No mesmo ano lançou seu primeiro disco “Poemas e canções”, produzido por Fagner. A amizade entre o poeta e o cantor foi consolidada em apresentações, como no Festival de Verão de Guarujá e no Memorial da América Latina, em 1981. Neste ano esteve no programa “Som Brasil”, da TV Globo, apresentado por Rolando Boldrin. Em 1985 Chico Buarque de Holanda, Milton Nascimento e Fagner musicam seu poema Seca d’água, em solidariedade aos flagelados das enchentes no Nordeste. No mesmo ano, o Banco do Estado do Ceará lançou um disco com seus poemas. Em 1989 foi lançado o LP Canto Nordestino, produzido por Rosemberg Cariry. Seus últimos lançamentos foram o livro Aqui tem coisa e o LP 85 anos de poesia, em 1994. Faleceu em 8/7/2002.

 

Não obstante a popularidade alcançada, costumava dizer que nunca buscou a fama, nem teve intenção de se tornar um profissional da poesia. Manteve a família de 9 filhos como agricultor e passou toda a vida em Assaré. Era dotado de um grande poder de memória e não escrevia seus poemas. Tal capacidade se manteve até mais dos 90 anos recitando os poemas, que se distinguiam pela oralidade no sotaque carregado. Sua obra, quando transcrita para meios gráficos, perde boa parte do significado expresso verbalmente (voz, entonação, pausas, expressões faciais...). Já na oralidade ficam realçados a ironia, veemência, hesitação...

 

No entanto, ele sabia criar versos nos moldes camonianos, incluindo sonetos na forma clássica. Ele mesmo diferenciava seus versos em linguagem culta daqueles em linguagem popular, que chamava de “poesia matuta”. Mais tarde deixou de fazer cantorias com seus versos para concentrar-se apenas na poesia: "Eu deixei de ser violeiro, porque nunca tive prazer em cantar ao som da viola. (...) minha ideia de versejar estava muito acima dessa nossa poesia de viola, que podemos dizer é uma poesia mais ou menos corriqueira. (...) sempre gostei de escrever meus versos, a atualidade, a marcha da vida".

 

Foi homenageado diversas vezes com premiações, títulos e comendas: diploma de “Amigo da Cultura”, outorgado pela Secretaria da Cultura do Estado do Ceará (1982);  recebeu  títulos de doutor honoris causa de 6 universidades; cidadão honorário de Fortaleza (1982) e Rio Grande do Norte (2000); prêmio Ministério da Cultura na categora Cultura Popular (1995); nomeação de duas bibliotecas públicas no Piauí e a  rodovia ligando Assaré a Antonina do Norte entre outras homenagens. Em 1999 foi inaugurado o “Memorial Patativa do Assaré” em sua cidade.

No ano de seu centenário (2009), o projeto Patativa do Assaré Encanta em Todo Canto percorreu num caminhão 95 cidades do Ceará com o objetivo de difundir a poesia popular. Alguns livros e biografias dão conta de seu legado: O metapoema em Patativa do Assaré: Uma introdução ao pensamento literário do poeta, de Francisco de Assis Brito, da Faculdade de Filosofia de Crato (1984); Filosofando com Patativa, de Jesus Rocha, pela Stylus Comunicações (1991); Patativa do Assaré: as razões da emoção, de Cláudio Henrique Sales Andrade, pela Editora UFC (2004).

 

RAIMUNDO FAGNER - PATATIVA DO ASSARÉ | AVE POESIA - YouTube

 

   


José Domingos Brito - Memorial quarta, 27 de abril de 2022

OS BRASILEIROS: PIXINGUINHA

OS BRASILEIROS: Pixinguinha

José Domingos Brito

 

 

Em 1956 consolida a fama com seu nome dado à rua onde vivia desde 1939. Em fins do ano seguinte teve um encontro com Louis Armstrong no Palácio Laranjeiras, num jantar oferecido pelo presidente Juscelino Kubitschek. A  nata da música brasileira estava presente: Dorival Caymmi, Ary Barroso, João de Barro, Herivelto Martins, Lamartine Babo, Ataulfo Alves... Seguem-se mais shows e discos, intercalados por uma crise cardíaca logo superada, até 1958, na festa de recepção da Seleção Brasileira, campeã mundial de futebol. Cobrindo o evento, estava lá seu futuro biógrafo, o jornalista Sergio Cabral: “Eu, que estava lá e já era fã, aproveitei o intervalo da música para ir conversar com ele. Queria puxar o saco do Pixinguinha”. Pouco depois o presidente Jânio Quadros nomeou-o para integrar o Conselho Nacional de Música, a pedido do professor Mozart de Araújo, em 1961. Em seguida enveredou noutras áreas e produziu a trilha sonora do filme Sol sobre a lama (1963), de Alex Viany, em parceria com Vinicius de Moraes. O “poetinha” disse mais tarde que essa parceria “foi uma coisa dos deuses, nenhum casamento valeu tanto dentro da alma quanto essa parceria com Pixinguinha”. Para ele Pixinguinha era “o maior de todos os músicos populares brasileiros”. Logo saiu a primeira gravação da suíte Retratos, em 4 movimentos pela CBS, orquestrado por Radamés Gnattali, que dá ao primeiro movimento o nome de Pixinguinha.

Em meados de 1964 foi internado por 50 dias no Hospital Getúlio Vargas com um edema pulmonar e passou a fazer eletrocardiogramas quinzenalmente. Após gravar um disco em parceria com Vinicius, em 1966, participou da série de depoimentos ao MIS-Museu da Imagem e do Som, seguido de outras homenagens ao completar 70 anos. Na ocasião foi homenageado com um almoço no Palácio do Itamaraty, ao lado de Tom Jobim, Vinicius de Moraes, Elis Regina e Gilberto Gil, oferecido pelo Ministro das Relações Exteriores, Magalhães Pinto. Pouco depois, foi condecorado com a Ordem do Mérito do Trabalho, pelo Ministro do Trabalho, Jarbas Passarinho. As homenagens culminam num concerto no Teatro Municipal, onde ele, no camarote presidencial, vê suas músicas interpretadas por Radamés Gnattali, Jacob do Bandolim, conjunto Época de Ouro, entre outros.

O espetáculo resultou no LP Pixinguinha 70, lançado em pelo MIS.

 

Em 1969, vendeu sua casa em Ramos e mudou-se para outra alugada em Jacarepaguá. Novas dificuldades econômicas levam-no a se mudar novamente, agora para Inhaúma, num apartamento do Conjunto Residencial dos Músicos. Em junho de 1972 sua esposa Betty veio a falecer e a tristeza tomou conta da casa até a manhã do dia 17/2/1973, quando recebe a visita dos amigos Hermínio Bello de Carvalho, Walter Firmo e Eduardo Marques. Conversam amenidades, ouvem música e, na despedida, ele chora. À tarde, foi até Ipanema batizar o filho de um amigo. No instante em que foi assinar o livro da igreja, caiu no altar fulminado por um infarto. Dentre as homenagens ao músico, além das regravações de discos, merece destaque o “Dia Nacional do Choro”, em 23 de abril, data presumida de seu nascimento, criado em 2000; tema-enredo da Escola de Samba Portela, em 1974: “O Mundo Melhor de Pixinguinha”; estátua no Bar da Portuguesa, em Ramos; filme Pixinguinha, um homem carinhoso (2021), dirigido por Denise Saraceni etc. Entre as biografias, cabe destacar: Pixinguinha, vida e obra (1978) de Sergio Cabral, e Pixinguinha, filho de Ogum bexiguento (1998), de Marília Trindade Barbosa e Arthur de Oliveira Filho. Toda sua obra, biografia, cronologia e legado são mantidos pelo IMS-Instituto Moreira Salles, aberto à visitação e no site https://pixinguinha.com.br.

 

PIXINGUINHA E A VELHA GUARDA DO SAMBA

 


José Domingos Brito - Memorial quarta, 13 de abril de 2022

OS BRASILEIROS - RADAMÉS GNATTALI

OS BRASILEIROS: Radamés Gnattali

(José Domingos Brito)

 

 

 

Radamés Gnattali nasceu em Porto Alegre, RS, em  27/1/1906. Músico, compositor, pianista, maestro e um dos mais destacados arranjadores musicais. Substituiu Pixinguinha na gravadora RCA Victor; trabalhou 30 anos como arranjador na Rádio Nacional; fez arranjos para os 4 grandes cantores do rádio: Francisco Alves, Silvio Caldas, Carlos Galhardo e Orlando Silva; participou da criação do choro, como forma musical e foi um dos maiores compositores da música clássica brasileira.

 

Nascido numa família de músicos italianos, foi iniciado no piano aos 3 anos pela mãe Adélia Fossati Gnattali. Aos 14 ingressou no Instituto de Belas Artes de Porto Alegre e passou a dedicar-se ao estudo da música através do piano, flauta, clarineta, violino e viola, dentre outros instrumentos. Formado em 1924, iniciou tocando piano em cinemas e bailes de Porto Alegre, além de participar de serestas e blocos carnavalescos tocando cavaquinho e violão. No ano seguinte integrou o quarteto de cordas de Henrique Oswald, onde atuou por 4 anos. 

 

Em fins da década de 1920, mudou-se para o Rio de Janeiro com a intenção de tornar-se concertista. Antes, porém, teve que se manter tocando viola e piano em orquestras de teatro e da Rádio Clube do Brasil e integrar o quarteto do Hotel Central. Em 1930 apresentou ao público suas primeiras composições eruditas. Mas para garantir a manutenção, aproximou-se da música popular e passa a trabalhar como arranjador, regente e compor para o teatro musicado. Por essa época gravou seus primeiros choros utilizando o pseudônimo “Vero”. Com a proliferação das rádios comerciais e início da indústria fonográfica, passou a ser mais solicitado e deixa a carreira de concertista em segundo plano.

 

Segue compondo música erudita nas horas vagas entremeadas com alguns concertos. Em 1936, foi contratado como maestro e arranjador na Rádio Nacional e criou a Orquesta Carioca. Com o acréscimo de 2 violões, cavaquinho e vasta percussão, criou a Orquestra Brasileira de Radamés Gnattali, em 1943. A proposta é clara: dar um ar mais brasileiro às orquestrações.  Segundo os críticos, ele criou um estilo próprio ao sistematizar uma nova forma de orquestrar o samba, ao transferir a cadência rítmica da percussão para o naipe dos metais. Tal recurso pode ser ouvido no “riff” da Aquarela do Brasil, executado pelos saxofones. “Riff’ (refrão) é um pequeno fragmento rítmico-harmônico, em geral sincopado, executado na forma de “ostinato”, que vem a ser uma figura repetida obstinadamente.

 

Tal como Pixinguinha, suas composições têm alguma influência do jazz, como no uso da orquestra completa de metais, que gera nos arranjos um timbre influenciado pela música norte-americana, mas criando um estilo próprio. Na década de 1930, o rádio e a música popular representam a ideologia do governo Vargas. Assim, de modo semelhante ao maestro Villa-Lobos, ele aproveita o espaço aberto aos novos maestros e arranjadores. Claro que sua atuação, como a de Villa-Lobos, não é fazer propaganda do governo. Porém, estão em consonância com os projetos do governo e com a atuação da Divisão de Radiodifusão do DIP-Departamento de Imprensa e Propaganda. O trabalho destes compositores ajudou a criar um “imaginário sonoro” do País com um repertório “nacional” de qualidade musical.

 

Com o fim da era Vargas, em 1945, liberta-se dessa fase nacionalista neoclássica e parte para as grandes formas musicais, tais como “Trio miniatura”, “Brasiliana nº 1” e “Concerto romântico’. Mesmo nos arranjos feitos para os 4 grandes cantores do Rádio, podem-se ouvir alguns instrumentos e timbres considerados como precursores da bossa nova. O arranjo de “Copacabana”, por exemplo, gravado em 1946 por Dick Farney, é considerado por alguns críticos como um marco neste processo, que culminou na bossa nova. Outra inovação é a instrumentação de suas peças, escrevendo para solistas, como “Concerto para harmônica de boca e orquestra”, para Edu da Gaita e “Concerto para acordeão e orquestra”, para Chiquinho do Acordeom.

 

Com o fim das orquestras radiofônicas e o surgimento da TV, passou a trabalhar na TV Excelsior e TV Globo como maestro e arranjador no período 1968-1979 e volta a dedicar-se à composição erudita. Ainda na década de 1970, com o renascimento do “choro”, deu algumas “canjas” com apresentações em público. Assim, transitou entre o popular e o erudito com uma vasta produção -mais de 400 obras- no repertório da música brasileira. Uma de suas últimas composições foi o “Hino de Mato Grosso do Sul”, que venceu o concurso público nacional, em 1979. Em 1983 recebeu o Prêmio Shell na categoria de música erudita.

 

No mesmo ano, junto com Elizeth Cardoso, prestou homenagem a Pixinguinha com o recital “Uma Rosa para Pixinguinha” e gravou o disco Vivaldi e Pixinguinha. Encerrou a carreira com a gravação de diversos volumes de história infantil para discos LP (Coleção Disquinho). Em 1986 sofreu um AVC que o deixou meio paralisado e veio a falecer em 13/2/1988. Temos uma vasta bibliografia sobre seu legado musical e em termos biográficos contamos com os livros de Valdinha Barbosa e Ana Maria Devos: Radamés Gnattali, o eterno experimentador, publicado pela FUNARTE, em 1985, e o de Aluísio Didier: Radamés Gnattali, publicado em 1996 pela editora Brasiliana Produções.

 

Radamés Gnattali - Gatinhos no piano (Radamés Gnattali, piano; e conjunto)

 

 


José Domingos Brito - Memorial quarta, 06 de abril de 2022

AS BRASILEIRA: GUIOMAR NOVAES

AS BRASILEIRAS: Guiomar Novaes

José Domingoa Brito

 


 

Guiomar Novaes nasceu em São João da Boa Vista, SP, em 28/2/1894. Compositora e pianista com sólida carreira internacional e destacada intérprete das obras de Chopin e Schumann. Foi uma das responsáveis pela divulgação de Villa-Lobos no exterior e participante da Semana de Arte Moderna de 1922.

 

Filha da pianista Ana de Carvalho Meneses e José da Cruz Novaes, major e negociante de café. Foi a 17ª dos 19 filhos do casal. Demonstrou interesse pelo piano aos 4 anos, tocando de ouvido. Aos 6 anos a família se mudou para a capital e passou a ter aulas com o professor Eugênio Nogueira, além do incentivo da mãe. Em seguida teve aulas com o professor Luigi Chiaffarelli, famoso mestre italiano, quando foi aprimorada na base técnica e teórica. Aos 8 anos estreou, digamos profissionalmente, em salas de concerto e foi notícia de jornal como menina prodígio. Em São Paulo, era vizinha do escritor Monteiro Lobato, e serviu-lhe de inspiração para criar a personagem “Narizinho”.

 

Aos 15 anos foi contemplada com uma bolsa de estudos no Conservatório de Paris, onde estudou com o mestre húngaro Isidore Philipp. Lá passou por uma banca examinadora, da qual participava o compositor Debussy, e ficou em primeiro lugar ente 35 concorrentes, além de ganhar 1200 francos e um piano de cauda. Ao chegar em Paris foi convidada para visitar a Princesa Isabel, também pianista, que desejava ouvi-la. Foi ela quem estimulou Guiomar a incluir em seu repertorio a Grande fantasia triunfal sobre o Hino Nacional Brasileiro. Após 2 anos de curso no Conservatório, recebeu diversas ofertas de contratos e fez uma turnê pela Europa.

 

Retornou ao Brasil em 1914 e nos anos seguintes fez apresentações no Madison Square Garden (1915) e Carnegie Hall (1916), acompanhada pela Orquestra Filarmônica de Nova Iorque. No Brasil, os organizadores da Semana de Arte Moderna de 1922 precisavam de um nome importante para se apresentar no evento e ela foi convidada. Não gostou do deboche à música de Chopin e manifestou seu protesto numa entrevista. Mesmo assim, fez sua apresentação num dos poucos momentos em que a plateia ficou em silencio para ouvi-la tocar. No mesmo ano se casou com o arquiteto e compositor Oscar Pinto, com quem teve um casal de filhos. 

 

A partir daí incluiu em seu repertório as obras de Villa-Lobos, tornando-se importante divulgadora do maestro nos EUA, onde se apresentou inúmeras vezes.  A imprensa norte-americana a reconheceu como a melhor pianista do mundo. Em 1938 foi convidada a tocar para o presidente Franklin Roosevelt. Em meados da década de 1950, seu marido faleceu. Sofreu um abalo e cogitou um fim de carreira, mas logo se ergueu e voltou aos palcos, fortalecendo-se com a música. Em 1963 foi convidada para representar a América Latina na comemoração dos 15 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, promovida pela ONU.

 

Em março de 1967 foi escolhida, entre vários artistas do mundo, pela rainha Elizabeth II para participar da inauguração do Queen Elizabeth Hall, em Londres. No mês seguinte foi, de novo, convidada pela rainha para um recital no Palácio de Buckingham. Foi condecorada diversas vezes com títulos, medalhas, insígnias, comendas, e homenagens, dentre as quais o grau de “Chevalier” da Legião de Honra da França (1939) e a Ordem Nacional do Mérito (1955), concedida pelo governo brasileiro. Sua última temporada se deu em 1972 nos EUA, aos 78 anos, e veio a falecer em 7/3/1979, em São Paulo, vitimada por um infarto do miocárdio. Foi velada na Academia Paulista de Letras e sepultada no Cemitério da Consolação ao som da Marcha Fúnebre, da Sinfonia Eroica, de Beethoven, executada pela Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, sob a regência do Maestro Eleazar de Carvalho. 

 

Sua vasta discografia, num período de 60 anos, foi gravada pelas companhias RCA Victor, Duo Art, Columbia Vox, Vanguard e Fermata, que gravou seu último disco com uma série de obras de compositores brasileiros: Francisco Mignone, Marlos Nobre, Souza Lima, Camargo Guarnieri e Villa-Lobos. Dois documentários nos dão um retrato fiel da grande pianista: Guiomar Novaes: depoimento e memória (1978), produzido por Olívio Tavares de Araújo e Infinitamente Guiomar Novaes (2003), dirigido por Norma Benguel. Boa parte de sua biografia pode ser encontrada em Guiomar Novaes do Brasil: a trajetória da pianista em Nova York, incluindo 2 CDs, publicada em 2011 por Luciana Medeiros e João Luiz Sampaio.

 

Documentário sobre a pianista Guiomar Novaes - YouTube

 


José Domingos Brito - Memorial terça, 22 de março de 2022

AS BRASILEIRAS: ANESIA PINHEIRO MACHADO

AS BRASILEIRAS: Anesia Pinheiro Machado

José Domingos Brito

 

 

 

Anesia Pinheiro Machado nasceu em Itapetininga, SP, em 5/6/1904. Jornalista, taquígrafa e aviadora, foi a primeira mulher a realizar um voo com passageiro; primeira brasileira a realizar um voo acrobático e decana mundial da aviação feminina. Foi também pioneira como atriz do cinema mudo e ativista do movimento de emancipação da mulher ao participar do Primeiro Congresso Internacional Feminista, representando a Liga Paulista pelo Progresso Feminino, em 1922.

 

Filha de Aurélia de Vasconcelos Pinheiro Machado e Gustavo Pinheiro Machado, teve os primeiros estudos em sua cidade natal. A paixão pela aviação se deu em 1920, na “Festa do Divino”, quando um piloto norte-americano a convidou para dar um passeio em seu avião. No ano seguinte voltou a voar com outro piloto, de quem recebeu informações sobre o curso de pilotagem. Aos 17 anos mudou-se para São Paulo e iniciou o curso, tendo como instrutor o piloto alemão Fritz Roesler. Seu primeiro voo solo se deu em 17/3/1922, pilotando um biplano Caudron G.3., e recebeu o brevet do Aero Club do Brasil no mês seguinte, junto com Thereza de Marzo, as duas primeiras brasileiras a terem licença de voo. 

No mesmo ano, nas comemorações do centenário da Independência, realizou o primeiro voo São Paulo-Rio de Janeiro, onde participou do show de acrobacias aéreas. Na ocasião foi homenageada por Santos Dumont, que lhe deu uma medalha de ouro, réplica de uma que ele recebeu da Princesa Isabel. O fato foi relevante também para a causa feminista, devido a sua participação nos eventos feministas realizados naquele ano. Dois anos após, participou da Revolta Paulista de 1924 ao lado dos capitães Joaquim e Juarez Távora, chegando a ser detida pelas tropas revoltosas.

 

Sua participação na Revolta deu-se com um voo sobre as tropas legalistas e sobre o encouraçado Minas Geraes, jogando flores e panfletos com a frase "E se fosse uma bomba?". Por conta disso, foi proibida de voar. Por isso, no período 1927-1928, voltou ao jornalismo e manteve um coluna sobre aviação no jornal O Paiz; trabalhou no DIP-Departamento de Imprensa e Propaganda e na Assembleia Legislativa, voltando a voar somente em 1939. Em seguida realizou um voo acrobático que impressionou a fundadora da Women’s International Association of Aeronautics, Elizabeth Lippincott McQueen, em 1940. No mesmo ano obteve licenças de piloto privado e piloto comercial do DAC-Departamento de Aviação Civil e 2 anos após, obteve a licença de piloto instrutor pelo Aeroclube do Brasil.

 

Recebeu, em 1943 durante a II Guerra Mundial, convite da FAA-Federal Aviation Administration para realizar um curso avançado de aviação nos EUA e trabalhou como piloto e instrutora de voo na Panair do Brasil, de 1944 a 1948 e no CPOR-Centro de Preparação de Oficiais da Reserva, da FAB-Força Aérea Brasileira. São diversos feitos e pioneirismos na aviação: travessia da Cordilheira dos Andes e uma viagem transcontinental pelas três Américas, em 1951; proclamada “Decana Mundial da Aviação Feminina”, pela Federação Aeronáutica Internacional, durante a Conferência de Istambul, em 1954. Na ocasião recebeu o Diploma “Paul Tissander”, pioneiro da aviação francesa.

 

No livro Frontier by air (1942), a escritora e jornalista Alice Roger Hager deixou registrado que “Anesia is the finest pilot in the country, there was no question abour her ability. When we went to the Aero Club she took a little Bucher up and outflew any women stunt pilot I have ever seen”. Foi homenageada nos EUA como cidadã honorária em diversos estados: Missouri, Oklahoma, Iowa, Louisiania e Kansas. Entre nós, recebeu o título de Cidadã Carioca e Paulistana. Recebeu dezenas de condecorações civis e militares, brasileiras e estrangeiras. Sua cidade natal, orgulhosa de seus feitos, exibe hoje sua estátua em tamanho natural no Largo dos Amores. 

 

Faleceu em 10/5/1999, aos 95 anos. Perguntada diversas vezes por que dedicou-se à aviação, dizia: “O meu desejo de voar talvez seja fruto do meu anseio, sempre cada vez mais intenso, de me elevar, de sair da banalidade do viver comum. É o incontido ímpeto de minha alma, que me impulsiona e me leva a procurar as emoções mais fortes do voo. A vida corriqueira não me satisfaz; ando sempre em busca de alguma coisa nova. É essa faceta de minha personalidade que dirão inconstante, que fez com que eu me dedicasse à aviação”.

 

Anésia Pinheiro Machado, fantastico 2002 - YouTube

 

 


José Domingos Brito - Memorial segunda, 21 de março de 2022

OS BRASILEIROS: PAULO PRADO
 

OS BRASILEIROS: Paulo Prado

José Domingos Brito

 

Descendente de uma influente família paulista, era o primogênito do conselheiro Antônio Prado, primeiro prefeito da cidade de São Paulo, e Maria Catarina da Costa Pinto e Silva. Em 1890, aos 21 anos, diplomou-se advogado e viajou para a Europa, onde passou alguns anos com o tio Eduardo Prado, que o levava para conversar com o português Eça de Queiroz e outros intelectuais e escritores deste quilate. Na companhia do tio, de Olavo Bilac e Domício da Gama, participou das homenagens ao 10º aniversário da morte de Gustave Flaubert, em Rouen. Durante a viagem de Paris a Rouen, dividiu o vagão na 1ª classe com Émile Zola, Edmond de Goncourt e Guy de Maupassant. Convivia também com alguns brasileiros que, de vez em quando, por lá flanavam, tais como Joaquim Nabuco e o Barão do Rio Branco. Só voltou em meados de 1910, a chamado do pai para cuidar dos negócios da família, que não eram poucos. Entre 1911 e 1924, foi gerente e presidente da exportadora de café Casa Prado, Chaves & Cia., a maior empresa brasileira no ramo. Seu envolvimento com a arte deu-se em 1919 ao promover a “Exposição de Pintura e Esculturas Francesas” no hall do Teatro Municipal e a montagem da peça O contratador de diamantes, de Afonso Arinos.

Sua importância na Semana de Arte Moderna de 1922 pode ser vista através do diálogo de seus organizadores, publicado na entrevista de um deles, Rubens Borba de Moraes:

– Mas, para fazer essa coisa, precisamos de dinheiro.

E aí alguém disse:

– Justamente com o dinheiro não tem importância. Nós vamos falar com o Paulo Prado.

O Paulo Prado era um grande senhor, um homem milionário, que ia todos os anos à Europa, tinha vivido em Paris, tinha conhecido Eça de Queiroz e estava a par do que você falasse sobre Picasso…de maneira que disse:

– Nós vamos fazer isso. Mas é preciso fazer o seguinte: vamos arranjar o dinheiro com os homens ricos de São Paulo, eu peço para eles, e eles dão esse dinheiro para fazer isso.

E organizamos a Semana de Arte Moderna, e esses milionários paulistas entraram com o dinheiro… e depois ficaram decepcionadas com as manifestações da Semana”. (clique aqui para ler). Após a “Semana”, começou a promover a emigração de alguns artistas modernistas à Paris, como Brecheret, Anita Malfatti, Tarsila do Amaral, Di Cavalcanti e Villa Lobos, bem como a imigração do poeta Blaise Cendrars ao Brasil e a visita do arquiteto Le Corbusier, em 1929, para conferências em São Paulo, Rio de Janeiro e Buenos Aires.

Sua relevância no movimento modernista é confirmada através dos depoimentos de seus protagonistas Mário de Andrade: “Sem ser artista ou poeta, sem ser o propositor central dos padrões renovadores de expressão – embora fosse conhecedor e opinasse a respeito – Paulo Prado foi justamente quem deu expressão social ao Modernismo, o que significa dizer que deu o sentido de movimento às experiências até então isoladas dos modernistas” e Oswald de Andrade: “sem a inteligência e a compreensão de Paulo Prado, nada teria sido possível. Ele foi o agente de ligação entre o grupo que se formava e o medalhão Graça Aranha”. Seu nome não é apenas o primeiro a aparecer na lista dos financiadores da Semana. Encarregou-se também do programa, da divulgação e demais detalhes de evento. Mário de Andrade reitera que seu prestígio “abre a lista das contribuições e arrasta atrás de si os seus pares aristocratas e mais alguns que sua figura dominava”.

Suas atividades, além do poderio econômico, extrapolou para a política cultural, que vinha despontando desde muito antes ao negociar com o poeta Paul Claudel, Encarregado dos Negócios da França no Brasil, o estabelecimento do Convênio Franco-Brasileiro em 1917. Por tal feito recebeu a mais alta condecoração francesa: a medalha da Legião de Honra, instituida por Napoleão Bonaparte para recompensar os méritos militares ou civis à nação francesa. Mesmo após a “Semana de 1922” são lançadas diversas revistas de divulgação da produção modernista e seu mome aparece s associado à fundação e ao controle de boa parte dessas publicações. Assumiu o controle da Revista do Brasil, de grande repercussão e longevidade no início do século XX, a Revista do Brasil, editada de 1918 a 1925 por Monteiro Lobato. Devido ao sucesso da publicação, Lobato funda a editora “Monteiro Lobato & Cia”, que conta com sua colaboração financeira na montagem do parque gráfico, e revolucionou o mercado editorial brasileiro. Nesse período, entre 1923 e 1925, enquanto Lobato concentra seus esforços na editora, a Revista do Brasil passa a ser dirigida por Paulo Prado.

Como se viu, o empresário viveu entre duas épocas e dois mundos bem distintos: fins do século XIX e início do século XX, numa Europa que se modernizava e um Brasil que ainda não engatinhava no modernismo. Por esta razão é visto como uma figura de “transição”, representando o ponto de encontro de duas épocas, e duas mentalidades distintas. É também um período de transição da Monarquia à República, da escravidão negra à mão de-obra livre, do apogeu da exportação do café aos primórdios da industrialização. Em contatos com o historiador Capistrano de Abreu (1853-1927), passou a se interessar pela história e publicou dois livros: a história de São Paulo – Paulística (1925) – e a formação do Brasil – Retrato do Brasil: ensaio sobre a tristeza brasileira (1928), que causou grande polêmica entre os intelectuais. A pedido de Capistrano, empreendeu parte do projeto inacabado de Eduardo Prado, financiando diversas obras raras sobre a história do Brasil. A coleção Eduardo Prado: para conhecer melhor o Brasil teve seus primeiros volumes iniciados em 1922.

O Retrato do Brasil busca explicar as origens do atraso econômico e cultural do País e dos vícios crônicos dos regimes políticos, através do processo de formação racial e cultural da nacionalidade. Segundo alguns estudiosos, apresenta “uma noção racista de superioridade do povo branco paulista e uma concepção do negro como uma raça inferior e corruptora no seio das famílias”. Ou seja, uma noção contraposta a suas ideias de ruptura com o passado, expostas na Semana de Arte Moderna. Tal contradição, levou seu amigo Gilberto Freyre a descrevê-lo como “um dos casos mais curiosos de Dr. Jekyll e Mr. Hyde que já houve no Brasil”, exagerando na comparação.

No entanto, trata-se de um livro que vem sendo reeditado até hoje e considerado básico para o entendimento de algumas peculiaridades na formação do povo brasileiro. Em 2012 o pesquisador Carlos Augusto Calil organizou uma nova edição pela Companhia das Letras, revista e ampliada incluindo a seção “Outros retratos do Brasil” com textos dispersos do autor. Tal lançamento e a repercussão causada certificam que “o apelo veemente à modernização do Brasil e a denúncia dos males da política ainda hão de reverberar como questões candentes (e irresolutas) ao leitor de hoje”. Segundo o historiador Francisco Iglésias, o ensaio de Paulo Prado “é um livro muito errado, mas fundamental e brilhante que se lê com muito prazer”. Para o historiador Boris Fausto, trata-se de “uma tentativa de fazer uma psicologia coletiva, ao passo que as análises de Gilberto Freyre e Sérgio Buarque têm uma amplitude muito maior e dão mais atenção à vida material. Nesse sentido, Retrato do Brasil seria, isso sim, um precursor da tendência que seria depois chamada de história das mentalidades”.

Não contamos ainda com uma biografia p.p. dita do empresário paulista, mas um apanhado de seu envolvimento com a cultura brasileira pode ser visto no bem intitulado artigo – A face oculta e visionária da Semana de Arte Moderna de 1922 – à disposição na Internet (clique aqui para ler) o que se aproxima mais de uma biografia pode ser visto no livro de Carlos Eduardo Ornelas Berriel – Tietê, Tejo, Sena; a obra de Paulo Prado – lançado pela editora Papiros, em 2000.


José Domingos Brito - Memorial quarta, 09 de março de 2022

AS BRASILEIRAS: LEOLINDA DALTRO

AS BRASILEIRAS: Leolinda Daltro  

José Domingos Brito

 

   

 

Leolinda Figueiredo Daltro nasceu em Salvador, BA, em 14/7/1859. Professora, escritora, política, indigenista, pioneira na luta pela emancipação das mulheres com direito ao voto e pioneira no reconhecimento do indígena como elemento constituinte da nação e sua integração na sociedade. Atuou na fundação do PRF-Partido Republicano Feminista e batalhou por um sistema de alfabetização laica dirigido aos índios. Era uma “antropóloga amadora”.

 

Casou-se ainda jovem, teve 2 filhos, mas logo separou-se do marido e pasou a estudar a fim se tornar professora. Aos 24 anos, casou-se de novo, teve mais 3 filhos e mudou-se para o Rio de Janeiro. Pouco depois separou-se de novo ou ficou viúva, não se sabe ao certo. Porém, sabe-se que criou os filhos sozinha na condição de professora. No Rio, tornou-se próxima de Quintino Bocaiúva e amiga pessoal de Orsina da Fonseca, esposa do presidente Hermes da Fonseca.

 

Como professora, passou a se interessar pelos índios e defendia sua incorporação à sociedade através da alfabetização laica. Em 1896 iniciou um ambicioso projeto de percorrer o País levando suas ideias. Deixou os filhos com parentes e partiu em direção à São Paulo, onde encontrou, inclusive apoio financeiro, da elite paulista: a família Prado. Prosseguiu viagem até o Triângulo Mineiro e seguiu para os sertões de Goiás, chegando até o Maranhão e Pará. Em 1902, procurou o Instituto Histórico Brasileiro, de Goiás, para propor a criação de uma associação civil de amparo aos indígenas, mas foi impedida de participar da reunião sob a alegação de que era mulher.

 

De volta ao Rio de Janeiro, fundou o Grêmio Patriótico Leolinda Daltro, para defender a catequisação dos índios sem a interferência da Igreja. Com esta “bandeira”, passou a participar cde movimentos cívicos, ganhou notoriedade na imprensa e o tema dividia a opinião pública. Nessa época foi muito criticada e rdicularizada com suas ideias referentes à educação indígena. De qualquer modo, o Governo criou o Serviço de Proteção ao Índio-SPI, em 1910, mas ela não foi convidada para a cerimônia de fundação. Mesmo assim, ela comemorou esta pequena vitória no cuidado com os índios.

 

A partir daí passou a lutar pela conquista do direito ao voto da mulher e requereu seu alistamento eleitoral. Coma a recusa do pedido, fundou em 1910 o Partido Republicano Feminino para integrar as mulheres no movimento sufragista. Para isso contou com a participação da poeta Gilka Machado e colaboração de sua amiga, a primeira dama Orsina da Fonseca. Lembremos que o movimento sufragista das mulheres só tomou corpo 12 anos depois com Bertha Lutz e a criação da FBPF-Federação Brasileira pelo Progresso Feminino, e que o direito ao voto das mulheres (alfabetizadas e assalariadas) deu-se apenas em 1932, com o governo Vargas, e que o direito ao voto de todas as pessoas alfabetizadas e maiores de 18 anos, deu-se apenas em 1946.

 

Com sua experiência de professora, assumiu a direção da “Escola de Ciências, Artes e Profissões Orsina da Fonseca” e passou a atuar junto com as amigas Gilka e Orsina em defesa da igualdade entre os sexos, contando com apoio de alguns intelectuais, entre estes o famoso jornalista Carlos de Laet. Em 1919, lançou-se candidata à Intendência Municipal (atual prefeito) numa campanha simbólica argumentando: “Como mulher que sou, com um sentido superior de altruísmo, tenho me preocupado com a necessidade de minorar o sofrimento humano e de se atingir uma melhor distribuição da Justiça.” No ano seguinte registrou suas andanças pelos sertões e experiências com os índios e publicou o livro Da catequese dos índios do Brasil (notícias e documentos para a história) 1896-1911 pela tipografia da Escola Orsina da Fonseca. Em 1911, João do Rio publicou uma crônica citando sua coragem: “O Brazil é dos índios. E tanto o Brazil é dos índios, que, ao pensar em symbolizar o Brazil, logo os desenhistas pintam um jovem índio de casaca, claque alto e tanga emplumada... Como nunca tive a coragem civilisadora da professora Daltro, só consigo aproximar-me dos authenticos proprietários deste paiz quando por cá aparece alguma caravana de sujeitos de nariz esborrachado, a pedir ao Papae Grande instrumentos agrários. Essas caravanas são conduzidas por jesuítas dedicados”.    

 

Mais tarde ela declarou que estava feliz e que podia morrer vitoriosa na luta pela emancipação política da mulher pelo fato de alcançarem o direito ao voto em 1932. Com mais de 70 anos, ainda participou da luta feminista na década de 1930, integrando a “Aliança Nacional de Mulheres” e veio a falecer num acidente de automóvel em 4/5/1935. A revista “Mulher”, da FBPF noticiou que “teve ela que lutar contra a pior das armas de que se serviam os adversários da mulher: o ridículo. Talvez isto a houvesse magoado profundamente tanto que se afastou das lides feministas. Mas a sua obra patriótica não parou aí: dedicou-se à obra da alfabetização no meio desses milhões de analfabetos, nela consumindo a sua velhice”.

 

Em junho de 1935, a revista “Ilustração Brasileira” também publicou seu necrológio. A lembrança de seu legado e a merecida honra que lhe foi atribuída muito mais tarde, em 2003, quando a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro aprovou a Resolução nº 233, instituindo o “Diploma Mulher Cidadã Leolinda de Figueiredo Daltro”, outorgado todo ano a 10 mulheres por seu destaque na vida pública e na defesa dos direitos femininos. Procurei alguma biografia sua na Internet e não encontrei. Achei apenas alguns estudos acadêmicos, dissertações e teses sobre sua vida e legado e outros verbetes que me ajudaram a compor esta síntese biográfica. Infelizmente ainda não despertou o interesse das feministas ou historiadores numa biografia mais completa.

 

Leolinda Daltro, a brasileira que era chamada de “mulher do diabo", por querer justiça.

 

 


José Domingos Brito - Memorial quarta, 02 de março de 2022

OS BRASILEIROS: OSWALD DE ANDRADE

OS BRASILEIROS: Oswald de Andrade

José Domingos Brito

 


 

José Oswald de Sousa de Andrade nasceu em São Paulo, SP, em 11/1/1890. Poeta, escritor, advogado, jornalista e dramaturgo. Destacado integrante do modernismo literário brasileiro, é considerado -junto com Mário de Andrade- um dos “dínamos” da Semana de Arte Moderna de 1922. Era conhecido pelo estilo e temperamento irreverente, combativo e inovador. Suas ideias vieram a influenciar o Movimento Tropicalista em meados da década de 1970.  

 

Filho de Inês Henriqueta Inglês de Souza de Andrade (irmã do escritor Inglês de Souza) e José Oswald Nogueira de Andrade, tradicional família paulista. Teve os primeiros estudos no Ginásio Caetano de Campos e iniciou no jornalismo em 1909, como colunista da seção “Teatros e Salões”, do Diário Popular. No mesmo ano ingressou na Faculdade de Direito, interropendo o curso diversas vezes. Em seguida, foi conhecer o Rio de Janeiro, onde ficou hospedado na casa do famoso tio escritor. Em 1911, com ajuda financeira da mãe, fundou o irreverente semanário O Pirralho, contando com a colaboração de  Amadeu Amaral, Cornélio Pires e Alexandre Marcondes entre outros. Mais tarde, Di Cavalcanti veio a ilustrar as capas e conteúdo da revista.

 

Passou uma temporada de 7 meses na Europa em contato com artistas e escritores envoltos no “Movimento Modernista”, em 1912. A morte de sua mãe, apressou a volta, trazendo a tiracolo a estudante francesa Kamiá (Henriette Denise Boufflers), com a qual tem seu primeiro filho (Nonê), e reassume seu posto na redação d’O Pirralho. No ano seguinte, passa a frequentar reuniões de artistas e intelectuais na Vila Kirial e conhece o artista plástico Lasar Segall. Seu primeiro trabalho publicado se dá em 1913 com a peça A recusa, um drama em três atos. Em 1914 ingressa na Faculdade de Filosofia de São Bento e no ano seguinte torna-se membro da Sociedade Brasileira dos Homens de Letras, fundada em São Paulo por Olavo Bilac. Em 1917 namorou a jornalista Maria de Lourdes Olzani, e através dela conheceu Mário de Andrade. Conheceu também a pintora Anita Malfatti e, junto com Mário, defende a pintora das críticas acirradas feitas por Monteiro Lobato. Por esta época começa a se esboçar o grupo que viria a realizar a Semana de Arte Moderna. Em 1920 edita a revista Papel e Tinta e passa a colaborar no jornal Correio Paulistano.  

 

Publicou o romance Os condenados em 1922 e inicia namoro com a pintora Tarsila do Amaral, seu relacionamento mais prolongado, que durou até 1929. Em novas viagens pela Europa, amplia o percurso pelo Oriente Médio e África. Em Paris participa de encontros com a intelectualidade francesa; dá palestra na Sorbonne e mantém amizade com o poeta Blaise Cendrars. De volta ao Brasil, publicou no Correio da Manhã o "Manifesto da Poesia Pau Brasil", em 18/03/1924, no mesmo ano em que foi divulgado o “Manifesto Surrealista” de André Breton. Como se vê, o Brasil seguia os passos do movimento artístico das vanguardas mundiais. Neste ano integrou a "Caravana Modernista", com Mário de Andrade, Tarsila do Amaral, Olívia Penteado, Blaise Cendrars, Goffredo Telles e René Thiollier,  ao carnaval do Rio emendando até Belo Horizonte. Aí foram recebidos por Carlos Drummond de Andrade, Aníbal Machado e Pedro Nava e excursionam pelas cidades históricas. Em 1925 publicou Memórias sentimentais de João Miramar, viaja de novo pela Europa com Tarsila, monta apartamento em Paris, passa a frequentar a casa de campo de Blaise Cendrars e publica na França o livro de poemas Pau Brasil.  

 

Em 1928 divulgou o “Manifesto Antropófago” na Revista de Antropofagia, criada junto com os amigos Raul Bopp e Antônio de Alcântara Machado. A ideia do Movimento Antropofágico era assimilar, deglutir outras culturas, mas não copiar. Na crise econômica mundial de 1929, deu-se uma crise também no seu casamento e no relacionamento com o amigo Mário de Andrade. Seu novo amor agora é uma jovem de 20 anos: Pagu, com quem se casou em 1930. O “casamento” se deu no Cemitério da Consolação, causando certo alvoroço na imprensa. No mês seguinte, a união foi oficializada na igreja e no cartório, com Pagu já grávida do filho, que foi batizado com o nome Rudá Poronominare Galvão de Andrade. O primeiro nome significa o deus do amor e o segundo o nome indígena para um ser malicioso. Com Pagu, uma moça politizada e ligada ao teatro, ele aproxima-se da política, torna-se militante do Partido Comunista e fundam o jornal O Homem do Povo, que durou até 1945.

 

Em 1933 publicou o romance Serafim Ponte Grande e patrocinou a publicação do livro Parque industrial, romance de Pagu. No ano seguinte, deixa Pagu e une-se à pianista Pilar Ferrer. Publica A Escada Vermelha, terceiro romance d'A trilogia do exílio, e O homem e o cavalo. Quando Lévi-Strauss esteve em São Paulo, em 1935, foi seu cicerone e acompanhou-o numa excursão até Foz do Iguaçu. Passa a escrever sátira política para a revista A Platéia; integra o movimento artístico cultural “Quarteirão” e a tocar sua vida boêmia. Em dezembro de 1936, aos 46 anos é hora de casar-se mais uma vez, agora com a escritora Julieta Bárbara Guerrini, tendo como padrinhos o jornalista Casper Líbero e o pintor Portinari. Seu estilo de vida boêmia era conhecido de todos, tanto como casamenteiro em grande estilo.   

 

Passa a residir no Rio de Janeiro e em São Paulo simultaneamente. Sua atuação política se dá com artigos publicados na revista Problemas. Na área da dramaturgia, sua peça mais conhecida é O rei da vela, publicada em 1937 e representada apenas em 1967 pelo Grupo Oficina, com direção de José Celso Martinez Corrêa. Em 1943 começou a publicar a coluna "Feira das Sextas" no Diário de São Paulo e casa-se com Maria Antonieta d'Alkmin. No ano seguinte reúne no volume Ponta de Lança artigos esparsos publicados na imprensa. Pouco depois ciceroneou Pablo Neruda em visita ao Brasil e iniciou a organização da Ala Progressista Brasileira, reunindo alguns políticos num programa de conciliação nacional. Em seguida lançou um “Manifesto ao Povo de São Paulo” e rompeu com o Partido Comunista em 1945. No final da década publicou na revista Anhembi o ensaio   O modernismo e manteve contato com um outro modernista. Recepcionou o escritor Albert Camus e realizaram uma excursão à Iguape, em 1949, para assistir às tradicionais festas do Divino. Como bom anfitrião, foi encarregado de receber o escritor francês de passagem por São Paulo para fazer conferências.

 

Em fins da década de 1940 e início de 1950, dedicou-se mais ao jornalismo e manteve a coluna “3 linhas e 4 verdades” na Folha de São Paulo e a série “A Marcha das Utopias” n’O Estado de São Paulo. Em 1954, a saúde sofre uns abalos e passa a escrever o primeiro volume de sua autobiografia: Memórias: Um homem sem profissão, publicado pela José Olympio Editora. Por esta época o escritor Marcos Rey foi encontrá-lo para tratar da edição de um livro de depoimentos e entrevista, que não chegou a ser concluído. Via-se que não ia bem de saúde e veio a falecer pouco depois, em 22/10/1954. Veja sua última entrevista no link Oswald de Andrade (tirodeletra.com.br). Sua trajetória ficou registrada no trabalho de Maria Augusta Fonseca -Oswald de Andrade–Biografia-, publicado em 1985. Um trabalho que segundo ela: "o resgate da vida do artista não leva apenas às suas agruras pessoais, mas recobre uma parte substantiva da tumultuada história do país, que vai de fins do século XIX à primeira metade do século XX".

 

BIOGRAFIAS - Oswald de Andrade - YouTube

 

 


José Domingos Brito - Memorial quinta, 17 de fevereiro de 2022

OS BRASILEIROS: DI CAVALCANTI

OS BRASILEIROS: Di Cavalcanti

José Domingos Brito

 

 

 

Emiliano Augusto Cavalcanti de Albuquerque Melo nasceu em 6/9/1897, no Rio de Janeiro. Pintor, ilustrador, desenhista, cenógrafo, jornalista, muralista, caricaturista e um dos expoentes da pintura brasileira. Participou da Semana de Arte Moderna, em 1922, e imprimiu um caráter nacional em suas obras ao abordar temas típicos da cultura brasileira, como carnaval, mulatas e figuras populares em cores exuberantes e formas sinuosas.   

 

Filho de Frederico Augusto Cavalcanti de Albuquerque, membro de uma tradicional família pernambucana, e Rosalia de Sena. Pelo lado materno, era sobrinho da esposa de José do Patrocínio, abolicionista do século XIX. Iniciou a carreira como caricaturista, na revista Fon-Fon, em 1914, e mudou-se para São Paulo em 1917, onde ingressou na Faculdade de Direito. Na ocasião, trabalhou como ilustrador de conteúdo e capas para a revista O Pirralho, fez a ilustração do livro Carnaval (1919), de Manuel Bandeira e se entrosou com os artistas e escritores paulistas. A exposição da pintora Anita Malfatti, em 1917, e os contatos com Rubens Borba de Moraes e Sergio Milliet, apresentando-lhe as pinturas de Pablo Picasso, deram-lhe ânimo para retomar o estudo de pintura com o professor alemão Georg Elpons, no Rio de Janeiro. Pouco depois a capital paulista entra num período de efervescência cultural capitaneado por Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Guilherme de Almeida, Sergio Milliet etc. dos quais se tornou amigo.

 

Para ajudá-lo financeiramente, os amigos planejaram uma exposição de suas caricaturas, mas ele sugeriu que no lugar de uma “exposiçãozinha” poderiam fazer um evento maior incluindo outras artes, como música e literatura. Assim, deu-se início a organização da Semana de Arte Moderna, para a qual criou o catálogo e cartaz e expôs algumas de suas obras. No ano seguinte, quando Milliet voltou para a Europa, ele foi junto e arrumou emprego na revista Monde, em Paris. Aí permaneceu até 1925 e frequentou a Académie Ranson. Na condição de jornalista, “sem contar a ninguém que era pintor, entrei em contato com Picasso, Braque, Matisse, Fernand Léger, Jean Cocteau e toda a vanguarda francesa, sempre levado pela mão de Sergio Milliet”. Destes artistas recebeu influências que foram trabalhadas ao seu modo, numa linguagem pessoal.

 

Tais influências marcam um redirecionamento em sua obra. Passa a adotar uma temática nacionalista ligada a questão social. A tela Samba (1925), considerada sua obra-prima reflete esta tendência. Representa a figura da mulher negra seminua e o samba, ícones da cultura popular brasileira. A influência de Picasso fica evidente no porte volumoso e tratamento dado às mãos e aos pés das figuras. Segundo o crítico Jones Bergamin, este quadro tem um reconhecimento similar ao de Abaporu (1928), de Tarsila do Amaral e constitui-se numa “das bandeiras da arte brasileira”. Quando retornou ao Brasil, filiou-se ao Partido Comunista em 1928. Retoma com mais afinco sua obra e aprimora seu estilo, influenciado agora pelo expressionismo alemão, com formas simplificadas e curvilíneas em cores quentes, em especial vários tons de vermelho.    

Em 1932 fundou em São Paulo, junto com os pintores Flavio de Carvalho e Antonio Gomide, o CAM-Clube dos Artistas Modernos. No mesmo ano foi preso durante a Revolução Constitucionalista e no ano seguinte publicou o álbum A Realidade Brasileira, uma série de 12 desenhos satirizando os militares. Em seguida casou-se com a pintora Noêmia Mourão. Na década de 1940 atinge a maturidade artística e o reconhecimento público no cenário nacional. Adepto da arte figurativa, deu uma conferência no MAM-Museu de Arte Moderna , em 1948, publicada na revista Fundamentos, sob o título Realismo e abstracionismo, defendendo uma arte brasileira e contra o abstracionismo. Por esta época incursiona na arte muralista, sob a influência do mexicano Diego Rivera e produz alguns murais em edifícios de São Paulo. Em 1960 realizou o painel “Candango” na Câmara dos Deputados, em Brasília.  

Ao mesmo tempo em que mantinha a carreira artística, participava dos movimentos político-sociais. Foi preso, de novo, em 1936 e libertado por amigos, mudou-se para Paris, onde permaneceu até 1940. Lá recebeu medalha de ouro com a decoração do Pavilhão da Companhia Franco-Brasileira, na Exposição de Arte Técnica. Pouco antes da II Guerra Mundial, retornou ao Brasil, fixando-se em São Paulo. Em seguida passou a expor em Lisboa, México, Buenos Aires e Montevideo e obteve reconhecimento internacional. Participou da I Bienal Internacional de Arte de São Paulo, em 1951 e recebeu a láurea de melhor pintor na II Bienal, prêmio dividido com Alfredo Volpi. Por essa época fez uma generosa doação de mais de 500 desenhos ao MASP-Museu de Arte de São Paulo.

Em 1954, o MAM-Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro fez uma retrospectiva de suas obras e 2 anos depois participou da Bienal de Veneza. No mesmo ano recebeu o I Prêmio da Mostra Internacional de Arte Sacra de Trieste. Em 1960 criou imagens para a tapeçaria do Palácio da Alvorada e pintou as estações da via sacra, na Catedral de Brasília. No México, ganhou uma sala especial na Bienal Interamericana e foi contemplado com a Medalha de Ouro. Teve sala especial, também, na VII Bienal de São Paulo em 1962. Foi indicado pelo presidente João Goulart para ser adido cultural na França, embarcou para Paris, mas não pode assumir o cargo devido ao Golpe Militar de 1964. Passou a viver em Paris com Ivete Bahia Rocha e lançou uma espécie de autobiografia: Reminiscências líricas de um perfeito carioca.

A década de 1970 foi marcada com diversas exposições retrospectivas, premiações e comendas: Prêmio da Associação Brasileira de Críticos de Arte; título de doutor honoris causa, da UFBA e teve sua obra Cinco moças de Guaratinguetá, reproduzida em selo postal. Em 1975 recebeu a comenda da Ordem do Infante Dom Henrique de Portugal. Faleceu em 26/10/1976 e seu funeral foi filmado por Glauber Rocha, constituindo-se no documentário Di-Glauber (1977) em homenagem ao pintor. Principais obras: Pierrete e Pierrot (1924) Samba (1925), Mangue (1929), 5 moças de Guaratinguetá (1930), Músicos (1963) etc.

 

Em seu centenário, em 1997 foram realizadas exposições comemorativas e retrospectivas: As mulheres de Di, pelo Centro Cultural do Banco do Brasil; Di, meu Brasil brasileiro, pelo Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro e Di Cavalcanti, 100 anos, pelo Museu de Arte Brasileira da Fundação Armando Álvares Penteado. Três livros, entre tantos outros, dão conta de sua vida, legado e sua contribuição à pintura brasileira:  Contando a arte de Di Cavalcanti, de Angela Braga-Torres (Global Editora, 2021); Di Cavalcanti: conquistador de lirismos, de Denise Mattar e Elisabeth Di Cavalcanti (Ed. Capivara, 2016) e A querela do Brasil: a questão da identidade da arte brasileira: a obra de Tarsila, Di Cavalcanti e Portinari: 1922-1945, de Carlos Zilio (Ed. Relume Dumará, 1997).

 

Di Cavalcanti (1897 - 1976) - YouTube


José Domingos Brito - Memorial quarta, 02 de fevereiro de 2022

CENTENÁRIO DA SEMANA DE ARTE MODERNA DE 1922

CENTENÁRIO DA SEMANA DE ARTE MODERNA DE 1922

José Domingos Brito

 

Tenho comigo uma raridade, que quero compartilhar com os leitores: uma longa entrevista com seu principal organizador, Rubens Borba de Moraes.

Rubens foi um colega bibliotecário que eu conheci em 1984 pouco antes de ele falecer.

Foi também o pioneiro da Biblioteconomia no País e um dos grandes bibliófilos do mundo.

Estou preparando sua biografia concisa para publicarmos no próximo domingo na minha coluna.

Assim, envio anexo uma nota sobre o evento e o link da entrevista, que peço-lhe publicar.

Grato e Abraços

* * *

Entrevista com o organizador da Semana de Arte Moderna

Rubens Borba de Moraes é o primeiro sentado à esquerda

É um dos principais organizadores da Semana de Arte Moderna, em fevereiro de 1922, em São Paulo. É o nosso entrevistado na comemoração do centenário do evento que marcou uma época na História do Brasil.

Na longa entrevista Rubens detalha porque, como se deu e quem foram os protagonistas do movimento modernista. Qual a repercussão, o que representou e quais os desdobramentos em nossa cultura? O centenário da Semana é um momento propício para conhecimento e reflexão sobre uma importante etapa do desenvolvimento do País.

Clique aqui e leia a entrevista completa com Rubens Borba de Moraes  no blog Tiro de Letra.

No próximo domingo, a coluna Memorial publicará a biografia concisa de Rubens Borba de Moraes.


José Domingos Brito - Memorial quarta, 26 de janeiro de 2022

AS BRASILEIRAS: ARACY DE CARVALHO

AS BRASILEIRAS: Aracy de Carvalho

José Domingos Brito

 


 

Aracy Moebius de Carvalho Guimarães Rosa nasceu em Rio Negro, PR, em 5/12/1908. Funcionária do consulado brasileiro em Hamburgo, Alemanha, prestou ajuda a muitos judeus - perseguidos pelos nazistas - entrarem ilegalmente no Brasil. É conhecida como o “Anjo de Hamburgo’ e recebeu o título de “Justa entre as Nações” pelo governo de Israel, tendo seu nome inscrito no Jardim dos Justos entre as Nações do Yad Vashem (Museu do Holocausto) e também no Museu do Holocausto de Washington.

 

Filha da alemã Sidonie Moebius de Carvalho e do português Amadeu Anselmo de Carvalho, passou a infância em Guarujá, SP,  onde o pai era dono do Grande Hotel. Em 1930 casou-se com o alemão Johann Eduard Ludwig Tess com quem teve um filho. Separou-se 5 anos depois e, para fugir do preconceito contra as mulheres divorciadas, foi morar na Alemanha com sua tia Lucy Luttmer. Dominando 4 idiomas (português, alemão, inglês e francês), conseguiu - através do chanceler Macedo Soares - emprego no Consulado brasileiro em Hamburgo, onde passou a chefiar a Seção de Passaportes.

 

Pouco antes de eclodir a II Guerra Mundial, entrou em vigor no Brasil uma restrição secreta impedindo a entrada de judeus no País, fugitivos da Alemanha nazista. Aracy ignorou a restrição e continuou preparando vistos para judeus, permitindo sua entrada no Brasil. Para obter a assinatura do cônsul geral aprovando os vistos, ela deixava de colocar no passaporte a letra “J”, identificando os judeus. Além dessa ajuda, ela forjava atestados de residência falsos, para poder atender judeus de outras cidades e chegou a transportar na mala do carro um judeu até a fronteira da Dinamarca; visitava judeus para levar mantimentos; dava orientações sobre como repatriar bens para fora do país e guardava valores de judeus até o embarque para evitar que fossem roubados por nazistas.

  

Em 1938 conheceu o cônsul adjunto João Guimarães Rosa, casou-se e permaneceram na Alemanha até 1942, quando o Brasil teve as relações diplomáticas rompidas com este país e passou a apoiar os países aliados. Devido ao conflito, o casal ficou 4 meses detido pelo governo alemão até serem trocados por diplomatas alemães. Devido ao fato de não haver divórcio no Brasil, o casamento foi oficializado apenas em 1947, na embaixada do México, no Rio de Janeiro. Sua história só ficou conhecida em princípios da década de 1980, quando uma judia alemã que fugiu para o Brasil decidiu divulgar os feitos da brasileira na Alemanha, durante a II Guerra Mundial. A história foi reconhecida pelo governo de Israel em 1982, quando recebeu as devidas homenagens.

 

Tal história foi contada em detalhes a partir da pesquisa realizada pela historiadora brasileira Mônica Schpun, da École des Hautes Études en Sciences Sociales, de Paris. A pesquisa resultou na publicação do livro Justa – Aracy de Carvalho e o resgate dos judeus trocando a Alemanha nazista pelo Brasil, publicado em 2011 pela Editora Record. Um dado relevante nesta biografia é a revelação da importância que Aracy teve na formação do escritor, não só auxiliando-o na revisão do livro Sagarana, mas também fornecendo-lhe conhecimentos sobre a cultura alemã. Em cartas dirigidas à ela, Rosa costumava chamar “o nosso Sagarana”, referindo-se ao livro. Seus biógrafos dizem que “De um só golpe, Rosa absorveu o lado “bom” dos alemães, sua cultura, e o lado “perverso” dessa mesma civilização, encontrando para esse dilema soluções que serão a chave de sua nova literatura. Nada disso, porém, seria possível sem a presença de Aracy ao seu lado naquele momento fundamental”.

 

Sua disposição de ajudar pessoas perseguidas por motivos políticos prossegue até quando passou a viver no Brasil. Consta em sua biografia o apoio e alojamento a compositores e intelectuais perseguidos durante o regime militar implantado no Brasil em 1964, entre eles Geraldo Vandré, de cuja tia Aracy era amiga.  Em 1967, com o falecimento de Guimarães Rosa, passou a anonimamente até 1982, quando recebeu as devidas homenagens do governo de Israel e passou a ser conhecida do público. Mais tarde foi diagnosticada com o Mal de Alzheimer e faleceu em  28/2/2011, aos 102 anos. Foi sepultada no Mausoléu da Academia Brasileira de Letras, ao lado de seu marido, no Cemitério de São João Batista, no Rio de Janeiro.

 

A história de Aracy foi retratada, também, no documentário “Esse viver ninguém me tira”, de Caco Ciocler, produzido em 2014, à disposição no Youtube. O governo brasileiro entrou no rol das homenagens, em 2019, quando os Correios colocaram em circulação 54 mil selos especiais com sua imagem estampada. Atualmente a TV Globo vem exibindo a série Passaporte para a liberdade, livremente baseada no livro de Mônica Schpun, produzida em parceria com a Sony Pictures Television. O seriado, em 8 capítulos, foi filmado em língua inglesa e deverá rodar o mundo após sua apresentação no Brasil.

 

Uma justa homenagem a uma justa entre as nações - YouTube


José Domingos Brito - Memorial domingo, 23 de janeiro de 2022

OS BRASILEIROS: PADRE ROMA
 

OS BRASILEIROS: Padre Roma

José Domingos Brito

 

 

José Inácio Ribeiro de Abreu e Lima, mais conhecido como Padre Roma, nasceu no Recife, PE, em 1768. Advogado, religioso e um dos líderes da Revolução Pernambucana de 1817. Demonstrou vocação religiosa aos 16 anos e entrou para o Convento do Carmo, em Goiana. Em seguida foi para Portugal e fez o curso de Teologia na Universidade de Coimbra. Depois partiu para Roma, onde concluiu os estudos religiosos e ordenou-se padre. Mais tarde a vocação religiosa foi colocada em dúvida; pediu dispensa da Ordem Carmelita, em 1807. No Recife; casou-se; abriu uma banca de advocacia e passou a conspirar contra o domínio português e lutar pela independência do Brasil.

Era um homem culto com conhecimentos de grego e latim e por ter vivido em Roma recebeu este apelido. Possuía o dom da oratória e era dotado de sólidos conhecimentos jurídicos. Assim, ficou famoso no Recife, particularmente por defender causas populares e adesão às ideias liberais em voga na época. Com a vinda de Dom João VI, em 1808, foram criados muitos impostos para manter a família imperial, e o Brasil passou por profundas mudanças com uma opressiva administração da colônia. Ao mesmo tempo, ideais nativistas e anticolonialistas eram defendidos pela maçonaria e propagados em centros como o Areópago de Itambé e o Seminário de Olinda. Dessa forma, os interesses de alguns militares, dos padres e maçons uniram-se num mesmo ideal de emancipação política do Brasil.

Estes grupos passaram a conspirar abertamente contra o poder imperial e as ordens vindas do Rio de Janeiro. Os padres tinham um papel relevante na conspiração, incitando os fiéis à causa libertária do jugo português. Os preparativos para a revolta popular foram se acumulando até 6/3/1817, quando o governador da província – Caetano Pinto de Miranda Montenegro – mandou prender os revoltosos implicados na conspiração. O primeiro a receber ordem de prisão foi o capitão José de Barros Lima, apelidado de “Leão Coroado”, que atravessou com uma espada o oficial português encarregado de prendê-lo. A revolta alastrou-se rapidamente e tomou as ruas do Recife. Em seguida os revoltosos elegeram o Governo Provisório, composto por 5 membros representantes do exército, clero, comércio, agricultura e magistratura.

A revolta logo teve a adesão do Ceará, Paraíba e Rio Grande do Norte. Padre Roma, devido a sua eloquência e poder de convencimento, foi designado para ir clandestinamente até a Bahia para obter adesão ao movimento. Levou mais de 50 correspondências endereçadas a membros da maçonaria baiana e outros simpatizantes. Depois de velejar numa jangada pela costa de Alagoas até a praia de Itapuã, em Salvador, avistou as tropas portuguesas que o aguardava. Jogou todos os papéis no mar, para não incriminar os aliados baianos, e foi preso. Junto com ele, vinha seu filho mais novo, Luís Ignácio. O mais velho, com o mesmo nome do pai e futuro General Abreu e Lima, já estava preso em Salvador.

Foi preso em 26/6/1817 e nos três dias em que foi torturado não entregou os companheiros que contataria em Salvador. A tortura incluía a visita ao cárcere do filho mais jovem nu e estendido sobre a lama, mais parecendo um espectro do que ser vivente. O filho mais velho – Abreu e Lima – que já estava preso há mais tempo, manifestou o desejo de ver o pai antes do fuzilamento. Seus algozes portugueses atenderam o pedido. Foi obrigado a assistir o fuzilamento do pai, por ordem do Conde dos Arcos, em 29/6/1817. Ele já foi incluído neste Memorial e pode ser visto clicando aqui.

Segundo o historiador Pereira da Costa, autor do Dicionário Biográfico de Pernambucanos Célebres, a morte do Padre Roma foi assim descrita pelo filho Abreu e Lima, presente na execução: “O seu porte em presença do conselho, no oratório e durante o trajeto para o lugar do suplício, foi sempre o de um filósofo cristão, corajoso, senhor de si, mas tranquilo e designado. Suas faces não se desbotaram senão quando o sangue que as tingia correu de suas feridas, regando o solo onde, cinco anos depois, se firmou para sempre a independência de sua pátria”. Conta ainda a história que em seus últimos instantes, ele dispensou a venda nos olhos, encarou o pelotão de fuzilamento, pôs a mão sobre o coração e gritou: “Camaradas eu vos perdôo a minha morte. Lembrai-vos que aqui é a fonte da vida!”.

Procurei na Internet alguma biografia do Padre Roma e não encontrei. Achei apenas alguns curtos verbetes, mas ele é um nome conhecido em muitas cidades do País com seu nome dado a diversos logradouros. Aqui mesmo, em São Paulo, no bairro da Lapa temos uma importante rua chamada Padre Roma. Porém, acho que muitas pessoas não sabem a quem se refere aquele nome. Já perguntei a alguns moradores e tive mais de uma resposta dizendo a mesma coisa: “Não sei, mas deve ser ao Papa, né? O padre de Roma.”

Clique aqui e assisto ao vídeo Lula, padre Roma e a luta pela liberdade e a soberania


José Domingos Brito - Memorial quarta, 12 de janeiro de 2022

AS BRASILEIRAS : ADMA E VIOLETA JAFET

 

AS BRASILEIRAS: Adma e Violeta Jafet

José Domingo Brito

 


 

 

Adma Jafet nasceu em 1886, no Líbano; Violeta Jafet, sua filha, nasceu em 1908, em São Paulo, SP. São duas representantes de uma família de empreendedores libaneses que veio para o Brasil em fins do século XIX. Tornou-se um dos maiores grupos empresariais familiares do País, atuando nos ramos têxtil, mineração, finanças e navegação. Hoje não se pode falar em filantropia em São Paulo, sem citar a Família Jafet.  

 

Tudo começou em 1921, quando Adma, junto com colegas da comunidade árabe, fundou a Sociedade Beneficente de Senhoras do Hospital Sírio-Libanês. Violeta, com 13 anos, estava presente na reunião, ao lado de outras 27 mulheres. O sonho delas era criar um hospital à altura de São Paulo, como forma de retribuir o acolhimento propiciado pela colônia na cidade. Com ajuda financeira de um grupo de doadores, teve início as obras do hospital numa colina do bairro Bela Vista, em 1931. “Foi em boa hora que tomamos a nosso cargo erguer este edifício sob o céu límpido do Brasil. Deus nos ajude a realizar as nossas aspirações, a servir à nação, a fazer uma obra útil à humanidade”, discursou dona Adma no lançamento da pedra fundamental do hospital.

 

Em 1937, chegaram os primeiros equipamentos e no ano seguinte foi realizada a primeira reunião dentro do edifício. Em 1941, já se marcava a data da inauguração, quando o governo paulista requisitou o prédio para instalar uma escola de cadetes. Estávamos em plena II Guerra Mundial e, por meio de um decreto, o local foi transformado num centro militar por mais de 20 anos. Dona Adma faleceu em 1956 e não pode ver a instituição pronta. A tarefa ficou com a filha, que batalhou pela reconquista do prédio. Junto com o genro Lourenço Chohfi, percorreu quarteis e gabinetes de políticos com poucos resultados. Até que em meados da década de 1960 se utilizou da influência de Ricardo Jafet, seu ??????????? na época presidente do Banco do Brasil, e conseguiram com o governador Jânio Quadros resgatar o prédio em 1959.

 

Em 1960 assumiu a presidência da Sociedade, chamou as amigas de sua mãe, congregou novos aliados e convocou empresários e médicos para ajudá-la na empreitada. O Dr. Daher Elias Cutait ficou encarregado da direção clínica e em 15/8/1965 foi inaugurado oficialmente o Hospital Sírio-Libanês coexistindo com a Sociedade Beneficente. Segundo dona Violeta, “a ideia era formar um hospital que tivesse pobres e ricos, gratuitos e pagantes, para que os pagantes pudessem também pagar as despesas dos menos favorecidos”. Como resultado temos um hospital que foi o primeiro do País a implantar uma UTI-Unidade de Terapia Intensiva, em 1971, e o primeiro do hemisfério sul a realizar uma cirurgia remota por microcâmera, com o paciente em São Paulo e o cirurgião em Baltimore (EUA).

 

Dona Violeta costumava dizer que o hospital não é nem sírio nem libanês: é “universal” e procurou ampliar sua atuação dedicando-se à educação e investigação científica. Desde 2005 mantém o Instituto de Ensino e Pesquisas e recebeu aprovação do Ministério da Educação para ministrar cursos de pós-graduação lato sensu stricto sensu. Hoje o hospital conta com 3 unidades em São Paulo e 5 em Brasília, incluindo os centros de oncologia e diagnósticos. É uma referência mundial na área médica e serviços hospitalares. O compromisso assumido há 100 anos por suas fundadoras está fundado em 4 pilares: integração com a comunidade, ambulatórios de filantropia, Instituto Sírio-Libanês de Responsabilidade Social e projetos de apoio ao SUS-Sistema Único de Saúde.

 

O hospital é mantido com a receita oriunda dos convênios médicos (70%) e dos pacientes particulares (30%). As doações espontâneas são esporádicas e do que se arrecada, a maior parte é reinvestida no hospital, tendo uma parcela destinada a projetos filantrópicos nas redondezas. Em 2006, aos 98 anos, Dona Violeta se afastou da presidência executiva da Sociedade. A gestão foi profissionalizada, mas ela continuou a par de tudo e marcando presença nas reuniões até 26/12/2016, quando veio a falecer aos 108 anos. Pouco depois a administração do hospital instituiu o “Prêmio Violeta Jafet” de excelência no cuidado com os pacientes e dirigido aos funcionários do hospital. Uma comenda que bem poderia se entender à todos os cuidadores da saúde.   

 

Em 2017, na celebração dos 130 anos da imigração no Brasil, a família Jafet promoveu uma festa no Clube Atlético Monte Líbano, com a presença de mais de 500 de seus descendentes. O objetivo não era apenas festejar a data, mas também demonstrar o legado deixado para as gerações seguintes. A comissão organizadora do evento -integrada por primos descendentes dos seis irmãos que chegaram ao Brasil a partir de 1887: Benjamin, Basílio, Nami, João, Miguel e Hala- ofereceu um coquetel de boas-vindas e exibiu a árvore genealógica atualizada: 1.265 descendentes, sendo que 873 estão vivos, permitindo que os presentes marcassem todos os familiares do mesmo ramo genealógico. O evento culminou com uma série de atividades voltadas às crianças, um “pocket show” apresentado por cinco descendentes cantores e uma homenagem aos nove descendentes vivos, com idades acima de 90 anos.

 

Na comemoração do centenário do Hospital, em 2021, todas as diretorias da Sociedade Beneficente se manifestaram no sentido de manter e alargar as conquistas da entidade como forma de retribuição ao acolhimento da cidade de São Paulo e o Brasil propiciado aos imigrantes.

 

Família Jafet veio do Líbano há 125 anos - YouTube

 

 


José Domingos Brito - Memorial quarta, 29 de dezembro de 2021

OS BRASILEIROS: CASTRO ALVES

OS BRASILEIROS: Castro Alves

José Domingos Brito

 

 

 

Antônio Frederico de Castro Alves nasceu em 14/3/1847, na Freguesia de Curralinho, atual Castro Alves, BA. Poeta, dramaturgo e expoente da 3ª fase do Romantismo, conhecido como “Poeta dos Escravos”, entre outros epítetos: “Poeta Republicano” (Machado de Assis); “Poeta nacional, social, humano e humanitário” (Joaquim Nabuco); “Maior poeta brasileiro, lírico e épico” (Afrânio Peixoto) e “Apóstolo andante do condoreirismo” (José M. da Cruz).

 

Iniciou os primeiros estudos na cidade de Cachoeira e logo a família mudou-se para Salvador, onde estudou no Colégio Sebrão até 1857. Ano seguinte ingressou no Ginásio Baiano, do célebre educador Dr. Abílio César Borges, futuro Barão de Macaúbas. Nesta escola, onde também estudava Rui Barbosa, foi seduzido pelos frequentes saraus e declamações de poesia e discursos. Alí foi revelado o poeta, com os primeiros poemas aos 13 / 14 anos. Na época, a mãe -Clélia Brasília- faleceu; o pai casou-se de novo e ele, junto com o irmão mais velho, mudaram-se para o Recife, em 1862, a fim de ingressarem na Faculdade de Direito.

 

Reprovado no “vestibular” da época, mergulhou na vida cultural da cidade e passou a frequentar a “Escola do Recife”, um núcleo de intelectuais dentro da Faculdade de Direito. Aos 16 anos, publicou o poema A Canção do Africano no jornal “Primavera”, em maio de 1863, quando ainda não se ouvia falar de “Abolição da escravatura”. Poesia era um dos talentos do rapaz; o outro era desenho, vindo a tornar-se bom desenhista e até pintor. Nesse período conheceu a atriz portuguesa Eugênia Câmara, com quem se enamorou, e pouco depois consegue matricular-se na Faculdade. No ano seguinte sentiu um abalo com o suicídio do irmão, ampliado com a notícia do diagnóstico de tuberculose, e retorna à Salvador.

 

Em março de 1865, volta ao Recife em companhia do poeta Fagundes Varela. No ano seguinte, reencontra Rui Barbosa e fundam uma sociedade abolicionista. Em seguida passou a viver com Eugênia Câmara e tem início grande produção poética junto com declamações públicas. Seu contemporâneo Vicente de Azevedo disse que “ele sabia preparar a cena, como emérito que era. Para essas ocasiões, punha pó de arroz no rosto, a fim de acentuar mais a palidez; um pouco de carmim nos lábios e muito óleo nos cabelos que ele arremessa da formosa cabeça". Além da abolição da escravatura, passou também a lutar pela causa republicana, quando finaliza o drama Gonzaga, ou a Revolução de Minas, representada no Teatro São João, em Salvador.

 

Nessa estadia no Recife ocorreu uma acirrada disputa com Tobias Barreto, 10 anos mais velho e protagonista da “Escola do Recife”. Conta-se que o filósofo tinha temperamento nervoso, às vezes insociável, uma antítese do poeta baiano, de índole meiga e atraente. A disputa se deu quando Tobias se enamorou da atriz Adelaide Amaral, da mesma companhia de Eugênia, e passa a defendê-la em detrimento da outra. A partir daí surgem dois núcleos na cidade em que cada grupo defendia suas musas. Após uma noite em que Tobias e seus aliados vaiam Eugênia, Castro Alves improvisa de forma avassaladora na réplica e, dias depois, em novo confronto, nova vitória sobre o rival com versos que ficaram memoráveis, levando a disputa às páginas da imprensa e a uma derrota fragorosa de Tobias Barreto.  

 

Em 1868, partiu junto com Eugênia para o Rio de Janeiro, onde manteve contato com o romancista José de Alencar, que publicou o artigo Um Poeta no Correio Mercantil. Além do artigo, Alencar apresentou-o a Machado de Assis junto com um bilhete pedindo: “Seja o Virgílio do jovem Dante, conduza-o pelos ínvios caminhos por onde se vai à decepção, à indiferença e finalmente à glória, que são os três círculos máximos da divina comédia do talento”. Foi curta a permanência no Rio de Janeiro; em seguida, mudou-se para São Paulo e ingressa no 3º ano da Faculdade de Direito, onde retoma a vida acadêmica e cultural iniciada no Recife. Logo dá-se a primeira apresentação pública de Tragédia no Mar, que pouco depois teve o título mudado para Navio Negreiro. Ingressou na Loja América, da Maçonaria, onde reencontra o amigo Rui Barbosa, que baixou um decreto obrigando os afiliados a adotarem a imediata libertação de seus escravos. Pouco depois já estava participando da comissão de literatura do “Ateneu”, o jornal dos estudantes e da “Bucha”, sociedade secreta criada a fim de ajudar os estudantes em situação precária, mas que transcendeu o ambiente acadêmico e teve projeção política.

 

Não chegou a concluir o curso; dedicou-se mais aos poemas, alcançando êxito no meio cultural da cidade. Diz-se que o sucesso lhe subiu a cabeça, fazendo-o descuidar-se da amada Eugênia, resultando em traições, brigas e separações até o dia em que ela efetivou o desenlace. Segundo Afrânio Peixoto, ele passou por uns perrengues: "não lia, não escrevia; passeava, fumava, saía à caça, sem disparar sequer um tiro". Numa dessas caçadas, ao transpor a vala num pulo, a espingarda disparou acertando-lhe o pé esquerdo. O tratamento prestado não surtiu efeito e os antigos padecimentos com o pulmão reapareceram mais agravados. Em 19/3/1869 embarcou para o Rio de Janeiro, onde havia mais recursos médicos. A solução consistiu numa amputação sem anestesia, pois a situação pulmonar não permitia o uso de clorofórmio, o anestésico da época.

 

Pouco depois, retorna à Salvador; visita Curralinho; reencontra Leonídia Fraga, sua prometida desde menino; compõe versos melancólicos; vagueia de um lado pra outro e prepara os manuscritos para a edição do livro Os Escravos. Em outubro de 1870, já combalido pela tuberculose, pediu ao amigo José Joaquim de Palma que lhe emprestasse a voz para declamar alguns poemas, o que é feito no Teatro São João e foi ovacionado. No mês seguinte, dá-se o lançamento de Espumas Flutuantes, seu único livro publicado em vida. Na ocasião, Adelaide apresenta-o à cantora lírica Agnese Trinci Murri, por quem fica encantado, escreve-lhe cartas de amor e tenta roubar-lhe um beijo, mas foi rejeitado. São os últimos lampejos do poeta romântico.

 

Em 21/3/1871 participou de um sarau e faz declaração pública de seu amor por Agnesi, que é correspondido apenas na forma de um amor platônico. Em fins de junho, já “acamado” e pressentindo o ato final, pediu que sua cama fosse colocada na sala. Segundo Adelaide, “queria morrer olhando para o infinito azul, esse infinito que irá em breve recolher suas últimas aspirações”. Seguem-se os dias de agonia até 6/7/1871 pela manhã, quando Adelaide lhe passa o lenço pela fronte úmida. Lúcido e com um fiapo de voz, fixa o olhar na irmã e murmura: “Guarda este lenço… com ele enxugaste o suor de minha agonia…”. Aos poucos o olhar foi-se esmaecendo até às 15:30, quando deu-se a partida.

 

No dia seguinte foi sepultado no Cemitério do Campo Santo e teve sua memória mantida e divulgada pela irmã Adelaide, falecida em 1940. Segundo Afrânio Peixoto, a ela o poeta deve muito de sua fama. Em 6/7/1881, no 10º ano de sua morte, o “Largo do Teatro”, em Salvador, foi renomeado para “Praça Castro Alves”, ao lado do Elevador Lacerda e principal ponto turístico da cidade. Lá foi erguido um monumento, em 1923, com sua estátua esculpida em bronze pelo italiano Pasquale De Chirico, de 2,9 metros, num pedestal com 11 metros de altura. No centenário da morte, em 6/7/1971, na gestão do prefeito Antônio Carlos Magalhães, foi realizado o translado de seus restos mortais para o monumento. Em 1977, Caetano Veloso parafraseou o poeta –A praça é do povo, como o céu é do condor- e cantou no Frevo novo: “A Praça Castro Alves é do povo, como o céu é do avião”.

 

Em 1997, a Biblioteca Nacional e o Departamento Nacional do Livro realizaram ampla comemoração dos 150 anos de nascimento do poeta, com a exposição “Castro Alves: o olhar do outro” e diversas homenagens. É o poeta mais conhecido dos brasileiros, através do cinema, teatro, TV e inúmeras biografias. Desde a 1ª, em 1896 com Múcio Teixeira: Vida e obras de Castro Alves, até 1942 com Afrânio Peixoto e seu Castro Alves: o poeta e o poema, da coleção Brasiliana e Jorge Amado com seu ABC de Castro Alves entre outros. Em 1960, outro conterrâneo entusiasmado -Norlandio Meirelles de Almeida- realizou um trabalho de fôlego e publicou Cronologia de Castro Alves, relatando ano-a-ano a vida do poeta, incluindo fotos e trechos dos poemas pertinentes a cada fase de sua curta vida. Não por acaso, o dia de seu nascimento é celebrado como o “Dia da Poesia”

 

Documentário com Ancelmo Goes

 

 


José Domingos Brito - Memorial terça, 21 de dezembro de 2021

AS BRASILEIRAS: ENEIDA DE MORAES

AS BRASILEIRAS: Eneida de Moraes

José Domingos Brito

 

 

 

 

Eneida de Villas Boas Costa de Moraes nasceu em Belém, PA, em 23/10/1904. Escritora, poeta, jornalista, tradutora, pesquisadora, política e carnavalesca. Autora do primeiro livro sobre o carnaval: História do carnaval carioca (1958), que definiu os conceitos de cordão, corso, ranchos, entrudo etc., além de participar diretamente nas lutas contra a ditadura de Vargas no período do "Estado Novo”. Brincou com os brasileiros e lutou pelo Brasil numa combinação bem-sucedida.     

 

Filha de um comandante de navios, tinha grande afeição pelos rios e pela Amazônia. O gosto pela literatura surgiu cedo. Aos 7 anos se inscreveu num concurso de conto infantil na revista “Tico-Tico”, sem que a família soubesse. Mandou um conto sobre o caboclo amazônida e ganhou o 1º lugar, além de 20 mil réis. Aos 10 anos foi estudar em Petrópolis (RJ) no famoso Colégio Sion, onde teve sólida formação escolar. Nas décadas de 1920 e 1930, colaborou em jornais como o “Estado do Pará” e revistas: “Para Todos”, “Guajarina”, “A Semana’ e “Belém Nova’. Em 1930 recebeu o “Prêmio Muiraquitan”, de um grupo de intelectuais amazonenses, por sua participação no movimento literário de seu Estado. No mesmo ano mudou-se para o Rio de Janeiro e filiou-se ao PCB-Partido Comunista Brasileiro. Na época liderou greves e manifestações políticas.  

 

Envolveu-se diretamente nas revoluções de 1932 e 1935, resultando em 11 prisões durante o Estado Novo, além de sofrer torturas e viver na clandestinidade ou exílio. Na prisão, conhece Graciliano Ramos, que a imortalizou em seu livro Memórias do Cárcere. Na Casa de Detenção do Rio de Janeiro, verificou que uma “vigorosa conversa política ali se desenvolvia […] dominada por um vozeirão de instrutor. Quem seria aquela mulher de fala dura e enérgica? […] Despedi-me de Nise e desci, uma pergunta a verrumar-me, insistente, os miolos: quem seria a criatura feminina de pulmões tão rijos e garganta macha? […] Foi Valdemar Bessa quem me satisfez a curiosidade: a mulher de voz forte era Eneida. E apertava-se uma dúzia delas na sala 4. Olga Prestes, Elisa Berger, Carmen Ghioldi, Maria Werneck, Rosa Meireles […]”

 

Atuou como jornalista profissional em periódicos partidários e da grande imprensa, nas funções de repórter e de cronista, entremeando tais atividades com a publicação de 11 livros e várias traduções. Mas não abriu mão do carnaval, que tanto gostava, e fez uma grande pesquisa, tornando-se a primeira estudiosa na área. Animou o carnaval com a criação do “Baile do Pierrot” no Rio de Janeiro e em Belém. Publicou alguns livros de poesia e de longas crônicas: Promessa em azul e branco (1957), Paris e outros sonhos (1951), Caminhos da terra (1959), Cão da madrugada (1954), Aruanda (1957), Copacabana: história dos subúrbios (1959), Boa noite, professor (1965) e a antologia de poemas Terra verde (1929). São livros esgotados, existentes apenas nos sebos, mas alguns deles foram reeditados pela Secretaria de Cultura do Pará.

 

Foi homenageada por mais de uma Escola de Samba. Em 1973, a Salgueiro desfilou com o tema “Eneida, amor e fantasia”; a Império do Samba (de Belém) no mesmo ano, saiu com “Eneida sempre amor” e em 2010 a Paraíso do Tuiuti saiu com “Eneida, o Pierrot está de volta”. Foi a primeira madrinha da “Banda de Ipanema”, criada em 1965. Para o poeta João de Jesus Loureiro, foi “uma mulher de sentimento livre, de uma grande inteligência, com uma utopia política de um Brasil justo com forte expressão literária, sendo que tanto no romance, quanto nas crônicas sempre estava presente a memória do Pará, mas sobretudo a expressão de uma mulher escritora que ultrapassou as limitações do seu tempo, sendo pioneira na afirmação da mulher como intelectual independente e com a sua maneira de viver livre e precursora da mentalidade feminina atual”.

 

O professor do Programa de Pós-Graduação da Universidade da Amazônia (Unama), José Guilherme Castro, afirma que a escritora sempre rompeu todas as barreiras desde criança. “Eneida é uma mulher de vanguarda que abriu a porta para outras mulheres não só na literatura como na história social”. Ele teve como tema de seu curso de mestrado, as crônicas de Eneida. As obras dela continuam importantes e atuais para entender o mundo. “Quem lê a obra da Eneida está praticamente vendo a atualidade”, destaca. “Ela abre caminho para outras mulheres escreverem na literatura brasileira.

 

Hoje a Faculdade de Ciências Sociais da UFPA-Universidade Federal do Pará mantém o “Grupo de Estudos Eneida de Moraes” com um considerável acervo de publicações. Em 2004 a professora Eunice Ferreira dos Santos concluiu uma pesquisa, que resultou na tese “Eneida de Moraes: militância e política”, defendida na Faculdade de Letras da UFMG-Universidade Federal de Minas Gerais, enfatizando o lado político, além de trazer uma biografia completa da escritora e jornalista paraense. No largo elenco de atividades culturais e políticas, consta também sua participação na criação da Associação Brasileira de Escritores, em meados da década de 1940 e, pouco antes de falecer -ainda jovem aos 67 anos, em 27/4/1971- na fundação do Museu Paraense da Imagem e do Som.

 

Eneida de Moraes na palavra de Eunice Ferreira, Funtelpa ...

 

 


José Domingos Brito - Memorial quarta, 15 de dezembro de 2021

OS BRASILEIROS: GLAUBER ROCHA

 

OS BRASILEIROS: Glauber Rocha

José Domingos Brito

 

 

Glauber Pedro de Andrade Rocha nasceu em 14/3/1939, em Vitória da Conquista, BA. Jornalista, escritor e essencialmente cineasta. Foi precoce na vida e na morte. Aos 10 anos escreveu uma peça de teatro: O fio de ouro, com ele no papel principal. Fio de ouro não deixa de ser um prenúncio da sua inserção na cinematografia internacional com o “cinema novo”, tendo “Deus e o diabo na terra do sol”, sob sua direção, que se tornou referência obrigatória na história do cinema brasileiro.   

  

Filho de Adamastor Bráulio Silva Rocha e Lúcia Mendes de Andrade Rocha, teve os primeiros estudos em casa, com sua mãe e ingressou numa escola católica. Em 1947 a família mudou-se para Salvador e passou a estudar no Colégio 2 de Julho, instituição presbiteriana, onde participou de um grupo de teatro, escrevendo e atuando. Aos 13 anos participou de um programa de rádio, como crítico de cinema. Até 1956 integrou alguns grupos e teatro e entrou na Cooperativa Cinematográfica Iemanjá. Aos 18 anos passou a escrever regularmente para algumas revistas culturais de caráter politico: “O Momento“, “Sete Dias”, “Mapa” e “Ângulos”. No ano seguinte, já consagrado como jornalista, assume a direção do suplemento literário do “Jornal da Bahia” e passa a escrever também para o “Diário de Notícias de Salvador” e suplemento dominical do “Jornal do Brasil”. 

 

Em 1959, foi cursar Direito na UFBA, mas largou 2 anos depois para se dedicar ao jornalismo e cinema. Por essa época casou-se com sua colega Helena Ignez. Seu primeiro filme foi um curta-metragem O pátio (1959), seguido de Cruz na praça (1960). O primeiro longa-metragem se deu em 1961, com Barravento, premiado na Tchecoslováquia. A partir daí o movimento “cinema novo” irrompe pregando um cinema nacional autêntico, com uma temática social e uma nova linguagem cinematográfica explorando cenas externas, próximas do filme documentário. Glauber liderou o movimento, tendo Nelson Pereira dos Santos e Joaquim Pedro de Andrade encabeçando o movimento no Rio de Janeiro e Roberto Santos, em São Paulo. Além destes, outros destacados cineastas integraram o movimento: Cacá Diegues, Zelito Viana, Arnaldo Jabor, Ruy Guerra, Leon Hirzman, Helena Solberg entre outros.

 

A fim de consolidar o movimento, lançou em 1963 o livro Revisão crítica do cinema brasileiro, apresentando as linhas mestras de uma nova cinematografia nacional. No ano seguinte tais linhas mestras foram para a tela com o filme Deus e o diabo na terra do sol (1964), premiado no Festival de Cinema Livre, Itália; indicado para receber a Palma Ouro, no Festival de Cannes e representar o Brasil no Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, em 1965. Assim, ficou conhecido no plano internacional. Em seguida produziu e dirigiu outros filmes de grande repercussão aqui e no exterior: Terra em transe (1967), que lhe deu o Prêmio Luis Buñuel, no Festival de Cannes e indicado para receber a Palma de Ouro e O dragão da maldade contra o santo guerreiro (1969), que lhe garantiu o Prêmio de Melhor Direção no Festival de Cannes. Com a radicalização do regime ditatorial no País em princípios da década de 1970, foi considerado um dos expoentes da esquerda brasileira e procurou um autoexílio em Portugal, em 1971.

 

Por esta época realizou mais alguns filmes, predominando a temática poíitica, com pouca repercussão no público, devido a precária distribuição e também a complexidade dos temas, atraindo um público mais seletivo: O leão de 7 cabeças (1970), Cabeças cortadas (1970) O rei do milagre (1971) e As armas e o povo (1974), um documentário gravado nas ruas de Lisboa durante a “Revolução dos Cravos”, que derrubou o regime ditatorial do governo Salazar. Em 1977 sofreu um abalo com a morte da irmã, a atriz Anecy Rocha, que caiu num fosso de elevador. No ano seguinte declarou: “Eu pretendo, lenta e gradualmente, passar a ser mais romancista e menos cineasta. Não quero mais filmar tanto, porque acho que meus livros acabarão sendo filmados por mim ou por outra pessoa” e lançou o romance Riverão sussuarana”.  

 

Em meados de 1979, a situação política no País estava conturbada diante da polarização ideológica e da luta pela anistia que foi decretada naquele ano. Neste cenário Glauber fez um comentário que abalou a esquerda brasileira. Declarou que Golbery (Chefe da Casa Civil) era o gênio da raça. Logo passou a ser chamado de louco pela esquerda. Mais tarde Darcy Ribeiro explicou que ele estava fazendo uma referência ao regime militar nacionalista no Peru, onde o governo Alvarado promovia reformas estruturais para debelar a pobreza. Não houve entendimento entre Glauber e muitos intelectuais de esquerda e ele passou a ser combatido, isolado ou até mesmo sofrer a acusação de ter sido cooptado pelos militares. Alguns diziam que aquela declaração seria o atestado de que ele realmente estava ficando louco. Pouco depois passou a comandar um programa aos domingos à noite na TV Tupi, intitulado Abertura, um programa de variedades culturais e política sobre a situação brasileira, onde pode exercer a contento sua veia jornalística.

                                                                                                                                              Em outubro de 1979, fez sua última apresentação do programa e concluiu com uma despedida e espécie de manifesto: “Dediquei 20 anos de minha vida ao cinema brasileiro. Sou um dos seus principais artífices. Realizei alguns filmes de repercussão internacional e me encontro marginalizado em meu país. Sou famosíssimo e paupérrimo. Isso é o Brasil. E o cinema é a superestrutura de um regime econômico. A mais importante de todas as artes. Boa noite Brasil! Aqui é o desmascaramento histórico (coloca e tira máscaras no rosto em close). Nós mulatos, sertanejos, brasileiros, perguntamos: o Brasil precisa ou não de reformas estruturais? Porque todo mundo fala, fala, fala um papo furado, um papo jurídico, fala em Rui Barbosa e Joaquim Nabuco, aquele negócio decadente, bem brasileiro e não fala no básico, que são as reformas estruturais que prejudicariam uma parte dos patrícios. Mas será que essa parte não poderia ceder em função de uma nova utopia? Por que a burguesia tem que ser cruel? Matéria para reflexão. Boa noite, saravá! Não vai aqui nenhum sentido de provocação. Assim é a democracia. Todos nós temos um ego semelhante. Nada de guardar rancores, loucuras escondidas. Voltemos para dentro do Brasil, de nossos rios, de nossas florestas, onde vive povo pobre, liquidado, doente, que precisa realmente de ser resgatado. Vamos deixar de lado a revolução francesa e a soviética para descobrir a feijoada, o carnaval, o frevo. Nossa cultura é a macumba, não é a ópera. Vamos descobrir o Brasil. Ninguém fala do Piauí, de Sergipe, da Paraíba, terra de mulher macho sim sinhô. Queria ver o Doca Street na Paraíba! Tô de saco cheio de teorias, tô querendo soluções! Alô, alô Antônio Carlos Jobim. Pau no Sinatra! Estou entrando de férias para terminar a montagem do meu filme A idade da terra, tem os livros que estou terminando e tenho de ir para a Europa para cuidar da saúde”.

                                                                                                                                                                   

Foi sua última aparição na TV brasileira. Partiu para Portugal, onde passou a viver, filmar e viajar pelo mundo.  Em meados agosto de 1981, a saúde apresentou problemas pulmonares, foi internado em Lisboa e pouco depois entrou em estado de coma. Os amigos providenciaram sua transferência para um hospital no Rio de Janeiro e veio a falecer em 22/8/1981. Costumava dizer que era uma reencarnação de Castro Alves e que iria morrer aos 42 anos.  Em seu enterro, Darcy Ribeiro fez um comovente discurso ressaltando sua indignação política. Seu último filme foi A idade da terra (1980), que concorreu ao Leão de Ouro no Festival Internacional de Cinema de Veneza. Foi seu 5º filme na lista dos “100 Melhores Filmes Brasileiros de Todos os Tempos”. Entre os dias 14 e 24 de março de 2019, ao completar 80 anos se estivesse vivo, a Prefeitura de Vitória da Conquista realizou ampla programação com o evento “Glauber Rocha ressuscita o povo brasileiro“,  com mostra de filmes, debates, exposição etc.

 

O cineasta deixou um enorme acervo de filmes, textos inéditos, fotos, desenhos e documentos em geral, organizados por Dona Lúcia e Paloma Rocha, mãe e filha respectivamente, colocados à disposição do público no “Tempo Glauber”, um espaço cultural no Rio de Janeiro, de 1983 a 2017, quando foi transferido para a Cinemateca Brasileira. Pouco depois do falecimento, uma frase-síntese de sua vida passou a circular no meio intelectual: “Foi um cineasta controvertido e incompreendido, patrulhado pela esquerda e pela direita”. Para muitos era considerado gênio do cinema; para outros era um “profeta” dado o acerto de algumas de suas afirmações.   

 

Após sua morte, surgiram alguns livros na tentativa de compreender o homem e/ou sua obra: Glauber Rocha, de Sylvie Pierre (Papirus, 1997); Sertão Mar: Glauber e a estética da fome, de Ismail Xavier (Cosac & Naify, 2007); Glauber Rocha: cinema, estética e revolução, de Humberto Pereira de Souza (Paco Editorial, 2016); A primavera do dragão, de Nelson Motta (Objetiva, 2019), além de uma de uma densa biografia publicada por seu amigo João Carlos Teixeira: Glauber Rocha, esse vulcão, lançada em 1997 pela editora Nova Fronteira. Um livro interessante e revelador de sua personalidade foi publicado em 1997 (Cia. das Letras), organizado por Ivana Bentes. Trata-se de Cartas ao mundo, reunindo 270 cartas escritas por ele, entre 14 e 42 anos, e dirigidas aos parentes e amigos (Jorge Amado, Carlos Drummond de Andrade, Nelson Pereira dos Santos, Joaquim Pedro de Andrade, João Ubaldo Ribeiro, José Guilherme Merquior, Caetano Veloso... Vistas no conjunto, as cartas apresentam um retrato íntimo de uma das personalidades mais fascinantes do século passado.

 

Funerais de Glauber Rocha

 

 

Darcy Ribeiro: Exéquias de Glauber Rocha

 

 


José Domingos Brito - Memorial terça, 07 de dezembro de 2021

AS BRASILEIRAS: OLÍVIA PENTEADO

 

AS BRASILEIRAS: Olívia Penteado

José Domingoa Brito

 


 

 

Olívia Guedes Penteado nasceu em Campinas, SP, em 12/3/1872. Escritora e mecenas dos artistas da Semana de Arte Moderna de 1922. Integrante da aristocracia paulista, foi apelidada de “Nossa Senhora do Brasil”, pelos modernistas. Batalhou pelo voto feminino, promoveu a eleição da 1ª mulher deputada federal (Carlota Pereira de Queiroz) e participou ativamente da Revolução Constitucionalista de 1932, em São Paulo.

 

Filha de José Guedes de Souza e  Carolina Álvares Guedes, casou-se com seu primo Ignácio Penteado, irmão do conde Álvares Penteado, em 1888, e foi viver em Paris, onde fez de sua casa um importante ponto de encontro cultural e conheceu aluguns dos protagonistas do movimento modernista brasileiro, que por lá “flanavam”. Antes de conhecer os modernistas costumava receber os poetas parnasianos, tais como Olavo Bilac e Alberto de Oliveira. Em 1923, ao ficar viúva, voltou a viver em São Paulo e reuniu a nata da intelectualidade paulista em sua casa. Em seguida, criou o “Salão de Arte Moderna”, instituindo o “Modernismo” na cultura brasileira. Na condição de colaboradora da revista “Contemporânea”, veículo lisboeta de divulgação dos modernistas portugueses, tornou-se correspondente da revista no Brasil.   

 

Em São Paulo sua mansão -ocupando a esquina das ruas Duque de Caxias e Conselheiro Nébias (onde hoje fica o Hotel Comodoro)-  foi projetada por Ramos de Azevedo e foi reformada incluindo um pavilhão para abrigar as obras de arte. A pintura do teto foi refeita por Lasar Segal, tendo em vista uma melhor adequação com as “artes modernas”. Contava com uma bela coleção de obras de arte, incluindo o fantástico Le Polichinelle lisant “Le Populaire”, de Picasso; a escultura “Négresse Blonde”, de Brancusi e obras de Delanay, Foujita, Cézanne, Degas, Marie Laurencin, Brecheret, Portinari, Di Cavalcanti e Tarsila do Amaral entre outras

 

As reuniões semanais reunia uma plêiade de artistas e escritores daqui e de fora. Em 18/2/1924 o “Correio Paulistano” noticiou: "A sociedade paulista, que tem em D. Olívia Guedes Penteado uma das figuras de mais fino relevo e mais aristocrática tradição, festejou anteontem o notável escritor francês Blaise Cendrars, que teve na fidalga residência da Rua Conselheiro Nébias um acolhimento de excepcional elegância e de inexcedível fidalguia e intelectualidade". Tais encontros e reuniões incluía também o chá das terças-feiras e os grandes jantares nos salões de décor clássico frequentados pela elite paulistana, incluindo, é claro, os protagonistas da Semana de Arte Moderna.

 

Blaise Cendrars ficou amigo dos modernistas e veio outras vezes à São Paulo. Numa dessas viagens juntou-se a um grupo de paulistas para visitar as cidades históricas de Minas Gerais. Participaram da excursão: ela, Mário e Oswald de Andrade e seu filho Noné, René Thiollier e Tarsila do Amaral. O poeta francês ficou encantado com as obras de Aleijadinho e Dona Olívia ficou indignada com o estado de abandono das igrejas. De volta à São Paulo, ela decidiu criar a “Sociedade dos Amigos dos Monumentos Históricos do Brasil”, cujos estatutos foram redigidos pelo poeta em um “chá das cinco” e logo foram inscritos não apenas os que viajaram à Minas, bem como Carlos de Campos, recém-empossado presidente do Estado e outras personalidades presentes na solenidade do chá.

 

Esse turismo cultural, promovido por ela, denominado por Mario de Andrade “viagens de descobrimento do Brasil”, alcançou o carnaval do Rio de Janeiro e chegou até à Amazônia, em 1927, numa viagem de navio subindo o rio Solimões até Iquitos, no Peru. Estas excursões ficaram registradas nas poesias de Oswald de Andrade (Pau Brasil), Mário de Andrade (Noturno de Belo Horizonte) e em pinturas de Tarsila do Amaral. Mas nem só de arte vivia a aristocracia paulista. Na Revolta Paulista de 1924, ou segunda revolta tenentista, São Paulo foi tomada por canhões e o poeta Cendrars, que participara da I Guerra Mundial, onde perdeu um braço, deu-lhe orientações como proteger a casa e sua coleção.   

 

Em 1932 passou a integrar o Instituto Geográfico e Histórico de São Paulo e no mesmo ano participou da Revolução Constitucionalista de 1932, ajudando os feridos e as famílias dos combatentes na condição de Diretora do Departamento de Assistência Civil. Prestou substancial ajuda ao movimento doando valiosas joias à “Campanha de Ouro para o Brasil”, necessária à manutenção das frentes de combate. Por essa época estimulou e patrocinou a candidatura de Carlota Pereira de Queiroz, a primeira mulher a se eleger deputada no Brasil. Foi uma mulher à frente de seu tempo e transitou bem entre dois séculos e duas estéticas. Faleceu em 9/6/1934 de apendicite. Foi sepultada no Cemitério da Consolação e seu túmulo conta com uma escultura -O Sepultamento- feita por Victor Brecheret. O filho de seu genro, Goffredo da Silva Telles Jr., lembra que ao levar o caixão embandeirado ao carro dos bombeiros “sentimos um movimento do povo, uma aproximação compacta de gente, em torno de nós (...) E então vimos o total inesperado. O povo silenciosamente se assenhorou do esquife embandeirado. Homens desconhecidos, segurando as alças do féretro, puseram se a caminho. E o levaram, na força de seus braços, pelas ruas de São Paulo”.

 

Foi descrita com uma mulher sensível, bela, boa e de uma elegância soberana. Seu retrato (106 x 135 cm.) foi pintado, em 1911, por Henri Gervex e encontra-se exposto na Pinacoteca do Estado. Em 2002 o Museu de Arte Brasileira, da FAAP-Fundação Armando Alvares Penteado, realizou a exposição “No tempo dos modernistas: Dona Olívia Penteado, Senhora das Artes” e lançou o livro homônimo, organizado por Denise Mattar e Aracy A. Amaral. Um belo relato de sua trajetória e época, que pode ser visto no link Sesc São Paulo - Olívia Guedes Penteado - Revistas - Online (sescsp.org.br)


José Domingos Brito - Memorial terça, 30 de novembro de 2021

OS BRASILEIROS: PLÁCIDO DE CASTRO

 

OS BRASILEIROS: Plácido de Castro

José Domingos Brito

 


 

José Plácido de Castro nasceu em 12/12/1873, em São Gabriel, RS. Militar do Exército Brasileiro, no posto de Major, combateu na Revolução Federalista (1893-1895) ao lado dos “Maragatos” contra os “Chimangos” do Partido Republicano comandando por Júlio de Castilhos. Recusou a anistia oferecida aos envolvidos na revolta, abandonou a carreira militar e foi para o Acre, onde liderou a guerra contra a Bolívia para anexar aquela região ao território brasileiro.

 

Filho, neto e bisneto de militares, trabalhou em diversas atividades desde os 9 anos e ficou órfão de pai aos 11. Continuou trabalhando até os 16 anos, quando entrou no 1º Regimento de Artilharia de Campanha como 2º cadete. Pouco depois matriculou-se na Escola Tática do Rio Pardo, obtendo máximo aproveitamento e voltou ao Regimento, onde serviu como 2º sargento. Ao se dar a “Revolução Federalista, em 1893, era aluno da Escola Militar de Porto Alegre. A renúncia de Deodoro da Fonseca e a posse do vice Floriano Peixoto, desagradou parte do Exército, que queria novas eleições diretas. Os dois grupos: Federalistas (Maragatos) e Republicanos (Chimangos) entraram em conflito e Plácido aderiu aos Federalistas, que foram derrotados no conflito que durou por 2 anos.

 

A causa da Revolução Federalista consistiu no fato de os Maragatos quererem um governo mais descentralizado, uma federação de estados e os Chimangos pleiteavam um governo mais centralizado, uma república. Ao fim da revolta, com a vitória dos Chimangos, todos os envolvidos no conflito foram anistiados, mas ele recusou a anistia, abandonou a carreira militar e mudou-se para o Rio de Janeiro, onde tornou-se agrimensor. Inquieto e aventureiro, mudou-se para o Acre, em 1899, uma região em conflito na demarcação de fronteiras com a Bolívia. Aos 26 anos viu ali uma oportunidade para tentar a sorte, tendo em vista as ofertas oferecidas ao trabalho de agrimensor na demarcação de terras.  

 

Em princípios do século XX, já instalado na região, tomou parte nos conflitos entre o Brasil e a Bolívia pelo domínio da região. Sua participação na “Revolução Acreana” se deu em 1902, quando a Bolívia arrendou o território a um sindicato estrangeiro (Bolivian Syndicate), constituído por capitais ingleses e norte-americanos. Tratava-se de uma guerra pela conquista do mercado da borracha em alta no mercado internacional. Com recursos financeiros e militares fornecidos pelo Sindicato, os bolivianos travaram algumas batalhas com os brasileiros, em grande parte seringueiros habitantes da região. Numa das batalhas, com apenas 60 seringueiros sob seu comando, enfrentou um contingente de 400 bolivianos. Na batalha final seu “exército”, contando com 30 mil homens, venceu as tropas bolivianas contando com 100 mil soldados

 

Assim, foi proclamado o “Estado Independente do Acre’, tendo Plácido de Castro como protagonista do evento. Poucos meses depois batalha final, ele esteve em Riberalta, cidade boliviana, para tratar da legalização das terras em sua posse e ficou surpreendido pela acolhida dos habitantes numa recepção promovida por Don Nicolas Suarez, o maior proprietário de terras daquela região, para lhe agradecer em nome de seu país, a fidalguia com que Plácido tratara seus compatriotas bolivianos prisioneiros de guerra.

 

Em 1903, com o “Tratado de Petrópolis”, o Acre foi anexado ao Brasil e o “Estado Independente” foi dissolvido, mas ele continuou por lá exercendo poder e influência até que em 1906 foi nomeado governador do “Território do Acre”.  Pouco depois viajou para o Rio de Janeiro, em visita à família, e lhe foi oferecido o posto de coronel da Guarda Nacional, que foi prontamente recusado. Quando voltou à região, foi nomeado prefeito da Região do Alto Acre. Sua atuação e conquistas nos confins do Brasil causaram ciúmes em alguns líderes políticos, particularmente no subdelegado das tropas acreanas -coronel Alexandrino José da Silva-, que insatisfeito com sua posição no poder do Acre, bem menor que o de Plácido, dizem que armou uma emboscada composta por mais de 10 jagunços e mataram-no em 11/8/1908.

 

Antes de falecer, pediu ao irmão Genesco de Castro: "Logo que puderes, retira daqui os meus ossos. Direi como aquele general africano: 'Esta terra que tão mal pagou a liberdade que lhe dei, é indigna de possuí-los.'”. O crime nunca foi devidamente investigado e ficou para sempre impune. Seus ossos foram sepultados no Cemitério da Santa Casa de Misericórdia, em Porto Alegre. A família fez questão de deixar gravado no pedestal do túmulo os nomes e sobrenomes dos seus 14 carrascos. Passado um longo tempo, passou a receber diversas homenagens no Acre, no Rio Grande do Sul e reconhecido em âmbito nacional.

 

Em 1973, no centenário de nascimento, foi inaugurado um busto em sua homenagem na Praça Nações Unidas, em Porto Alegre. Seu nome é reverenciado na região norte como o “Libertador do Acre” e em 1976 seu nome foi dado ao novo município criado a 100 km. da capital Rio Branco. É também o patrono do 4º Batalhão de Infantaria de Selva do Exército Brasileiro, o “Batalhão Plácido de Castro”. Em 2004 foi entronizado no “Panteão da Pátria e da Liberdade”, na Praça dos Três Poderes, em Brasília. Sua vida e legado foram documentados no livro Plácido de Castro: um caudilho contra o imperialismo, uma narrativa histórico-biográfica, escrita por Cláudio Araújo Lima, na década de 1950.  Um livro bem recebido pelo público, que se encontra na 6ª edição, publicado pela Editora Valer.

 

Plácido de Castro - Construtores do Brasil - YouTube


José Domingos Brito - Memorial quarta, 17 de novembro de 2021

AS BRASILEIRAS: GILKA MACHADO

AS BRASILEIRAS: Gilka Machado

José Domingoa Brito 

 

 

 

Gilka da Costa de Melo Machado nasceu no Rio de Janeiro, RJ, em 12/3/1893. Poeta e uma das primeiras mulheres a fazer poesia erótica no Brasil. Sua obra causou certo escândalo no meio social e críticas num restrito circuito literário da época. Porém foi elogiada por autores, como Lima Barreto, Olavo Bilac, Drummond e Jorge Amado. Foi também precursora na luta pela participação da mulher na Política, com a criação do PRF-Partido Republicano Feminino, em 1910.

 

Filha e neta de poetas e artistas: a mãe -Thereza Cristina Moniz da Costa- era atriz; o pai -Hortêncio da Gama Souza Melo- era poeta; o avô -Francisco Moniz Barreto- era poeta repentista, conhecido como “Bocage brasileiro”, é patrono na Academia de Letras da Bahia. Aos 14 anos venceu concurso de poesia no jornal “A imprensa”, ocupando os 3 primeiros lugares com seu nome e pseudônimos. O crítico Afrânio Peixoto, ao ver os poemas, disse que aqueles versos só poderiam ter sido escritos por uma “matrona imoral”, sem conhecer a autora. 

 

Casou-se em 1910 com o poeta e jornalista Rodolfo Machado e teve 2 filhos: Hélios e Heros, que veio a se tonar a conhecida bailarina e atriz Eros Volúsia. No mesmo ano fundou o PRF, assumindo o cargo de secretária e tesoureira. Seu primeiro livro de poemas -Cristais partidos- saiu em 1915 e foi festejado por alguns críticos. Conta-se que ela teria recusado o prefácio de Olavo Bilac, pois queria “aparecer sem defesa nenhuma, sem escudo... com um prefácio seu, todo mundo já está me achando ótima”, teria explicado ao poeta. Nos anos seguintes, vieram outros: A revelação dos perfumes (1916), Estado de alma (1917), Poesias, 1915/1917 (1918) e Mulher nua (1922). Ao ficar viúva, aos 30 anos, passou por uns perrengues financeiros, abriu uma pensão frequentada por intelectuais e artistas e continuou escrevendo.  Em 1933 venceu, com grande margem de votos, o concurso promovido pela revista “Malho”, e recebeu o título de “Maior Poeta do século XX”. Para dar uma ideia do tamanho da vitória, ela teve 100 pontos e Pagu (Patrícia Galvão) teve 7; Cecilia Meireles teve 6; Henriqueta Lisboa teve 3.

 

Numa época em que as mulheres eram confinadas numa vida doméstica e recatada, o que a análise deduz é que ela rompeu as barreiras do decoro público e chocou a sociedade com suas poesias exaltando paixões e desejos proibidos à mulher. Segundo Drummond, sua obra não era apenas poesia erótica. Ela mesclava “elementos simbolistas e em sua formação, tinha também algo de misticismo, às vezes contendo preocupações de ordem social, chegando a uma espécie de anarquismo romântico”. E disse mais em sua coluna no Jornal do Brasil, em 18/12/1980: “Gilka foi a primeira mulher nua da poesia brasileira”.

 

Já o crítico Péricles Eugênio da Silva Ramos, achava que "ela foi a maior figura feminina de nosso Simbolismo, em cuja ortodoxia se encaixa com seus dois livros capitais, Cristais Partidos (1915) e Estados de Alma" (1917). Mas havia muita gente que não apreciava sua poesia. Rui Barbosa se perguntava: “como seria possível conciliar o espírito das senhoras de boa sociedade com o espírito de uma poetisa que tem o mau gosto de escrever essas coisas plebeias”. Para achincalhar sua pessoa, um jornal do Rio publicou caricatura onde ela pousa com uma saia esvoaçante com a legenda: “Eu sinto que nasci para o pecado”, retirado do soneto “Reflexões” de sua autoria. O achincalhe, como notícia de jornal, rendeu-lhe enorme visibilidade social e cultural.     

 

Em 1952, aos 59 anos, retirou-se da vida pública: “Eu tomei enjoo – da poesia não, mas do ambiente”, revelou numa entrevista a Nádia Batella Gotlib, em 1979. A entrevistadora relata a dificuldade dos críticos em elogiar suas poesias. Para fazê-lo, alguns tiveram que dividi-la em duas. Humberto de Campos, por exemplo, “ressalta suas qualidades de poeta, mas faz questão de afirmar que, por outro lado, ela era ‘a mais virtuosa das mulheres e a mais abnegada das mães’”. Em 1977 Rachel de Queiroz e Jorge Amado estimularam sua candidatura. Não pleiteou a vaga, mas a ABL reconheceu seus méritos literários com a concessão do “Prêmio Machado de Assis”, em 1979, pelo conjunto da obra. No ano seguinte veio a falecer em 11/12/1980.

 

Pouco antes havia declarado: “Sonhei ser útil à humanidade. Não consegui, mas fiz versos. Estou convicta de que a poesia é tão indispensável à existência como a água, o ar, a luz, a crença, o pão e o amor”. Um de seus poemas mais conhecidos, extraído do livro Cristais partidos (1915) -Ser mulher- retrata a difícil condição da mulher, conforme se vê no trecho:

 

Ser mulher, desejar outra alma pura e alada

para poder, com ela, o infinito transpor;

sentir a vida triste, insipida, isolada,

buscar um companheiro e encontrar um senhor...

 

Em 2017 foi relançada, pela editora Demônio Negro, sua Obra completa, organizada por Jamyle Rkain, num trabalho de resgate alertando que “precisamos olhar para as mulheres que sofreram a mesma invisibilidade que Gilka sofreu. Precisamos olhar para o passado – não só na literatura, mas na História em geral – sem os preconceitos que eram mais arraigados para tirarmos essas mulheres dos porões e mostrarmos suas contribuições para o mundo. Existem muitas.” Aqui mesmo, no JBF,  o colega Pedro Malta tem publicado alguns de seus poemas.



GILKA MACHADO | #MulherDeFibra - YouTube

 

 

 


José Domingos Brito - Memorial quarta, 10 de novembro de 2021

OS BRASILEIROS: FLORESTAN FERNANDES

 

OS BRASILEIROS: Florestan Fernandes

José Domingos Brito

 


 

Florestan Fernandes nasceu em São Paulo, SP, em 22/7/1920. Sociólogo, professor, escritor, político e “Patrono da Sociologia Brasileira”. Estabeleceu novas metodologias de investigação sociológica com rigor analítico e novos padrões de atuação do intelectual no quadro político do País. É considerado o “protótipo do intelectual público”, dado seu rigor acadêmico com o compromisso pela liberdade e igualdade no trato da coisa pública. 

 

Filho de Maria Fernandes, portuguesa e empregada doméstica na casa de Hermínia Bresser de Lima, tradicional família paulistana, de quem tornou-se “afilhado”. Aí viveu até os 3 anos e voltou a morar na casa da “madrinha” aos 6 anos. “Aquilo que poucos da plebe conseguiam ter, a ideia do que era a outra vida, a vida dos ricos, dos poderosos – eu era capaz de perceber através de experiências concretas”. Na época estudou numa escola particular do Brás e tinha plena consciência de sua condição social. Nesta casa viveu até o dia em que a “madrinha” pediu à sua mãe que lhe desse o filho. A resposta foi “só cachorro é que se dá” e foi morar em cortiços. Estudou até o 3º ano do curso primário, mas deixou o curso aos 9 anos para trabalhar e ajudar a mãe. Começou como auxiliar numa barbearia, engraxate, auxiliar de marcenaria, açougue, alfaiataria...

 

Aos 17 anos trabalhou como garçom no Bar Bidu, na Rua Líbero Badaró, ao lado do Ginásio Riachuelo. “Os professores iam ao bar tomar seu lanche, depois das aulas. Eu sempre ficava atento aos fregueses com os quais podia aprender alguma coisa”. Nesse convívio foi estimulado pelos clientes a retomar os estudos num “curso de madureza” (supletivo) do ginásio ao lado, obtendo certo aproveitamento. Após o serviço militar, conseguiu emprego no Laboratório Novoterápica e passou a ganhar salário suficiente para custear os estudos e ajudar a mãe. Neste emprego teve os primeiros contatos com a política através dos colegas, filhos de italianos, que traziam notícias sobre o movimento socialista europeu. Como leitor de jornais, passou a frequentar as redações d’ O Estado de São Paulo e Folha da Manhã, onde conheceu Hermínio Saccheta, líder do movimento trotskista, e tornou-se militante do Partido Socialista Revolucionário. “Passei, então, de pato a ganso. As minhas leituras desordenadas adquiriram outra direção e, pela primeira vez, passei a ler os clássicos com afinco e me concentrar sobre a literatura, especialmente a brasileira”. Ao concluir o Curso de Madureza, prestou o exame vestibular e entrou na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, da USP, em 1941. “Sentia-me à vontade com os colegas e era um estudante promissor para alguns professores”.

 

Formado em Ciências Sociais, em 1943, iniciou a carreira docente no ano seguinte como assistente do prof. Fernando de Azevedo. Tal conquista deveu-se a indicação de outro assistente, seu colega Antônio Cândido. A partir daí inicia a carreira acadêmica, fazendo o curso de mestrado na Escola Livre de Sociologia e Política, com a dissertação “A organização social dos Tupinambá”. Em seguida retornou à USP para o curso de doutorado. Aprofundou os estudos sobre o povo Tupinambá e, em 1951, defendeu a tese “A função social da guerra na sociedade Tupinambá”, Dissertação e tese resultaram em dois livros lançados em 1949 e 1951, sendo o último consagrado como clássico da etnologia brasileira. Com o estudo crítico de diversas fontes e, sobretudo, de relatos de viagens, conseguiu imprimir nas ciências sociais um caráter científico com métodos e critérios rigorosos de avaliação. Tal caráter ficou mais claro no livro Fundamentos empíricos da explicação sociológica, publicado em 1959. É o início da chamada “Escola Paulista de Sociologia”, integrada por Fernando Henrique Cardoso, Octavio Ianni, Gabriel Cohn e Maria Sylvia de Carvalho Franco, entre outros. Junto com Roger Bastide, passou a estudar as relações entre negros e brancos em São Paulo, a convite da UNESCO.

 

A partir de um grupo de estudos e participação da comunidade negra da cidade, começam a desmontar a ideia da tal “democracia racial’, defendida pela sociologia de Gilberto Freyre. Junto com os alunos foram feitas pesquisas na periferia, baseadas numa metodologia aplicada. No período 1954-1964, assumiu a cátedra de livre docente em sociologia, substituindo o prof. Roger Bastide, com a tese “A integração do negro na sociedade de classes”, resultado da pesquisa solicitada pela UNESCO. A conclusão do estudo é que as mudanças ocorridas com o fim da escravidão “não foram suficientemente profundas para desorganizar o sistema de relações sociais, que se elabora como conexão da escravidão e da dominação senhorial”. Neste ponto dá-se o início de sua carreira como “intelectual público”, consolidada no final da década de 1950, ao sair do confinamento acadêmico para defender a escola pública. Passa, então, a integrar a luta pela aprovação da “Lei de Diretrizes e Bases da Educação”, ao lado de Anísio Teixeira e Darcy Ribeiro.

 

Com o Golpe Militar de 1964 foi submetido a um IPM-Inquérito Policial Militar, junto com outros professores da USP. Seu envolvimento na resistência política vai se ampliando até 1968, quando dá entrevista ao “Correio da Manhã”, e afirma que é preciso “lutar contra o comportamento fascista do setor militar que empolgou o Governo”. Com o AI-5 e o recrudescimento da ditadura, entrou na lista dos cassados e foi aposentado compulsoriamente. A saída foi aceitar o convite para lecionar numa universidade do Canadá. Outra saída foi aprofundar o estudo sobre a situação política do Brasil, que resultou na publicação de A revolução burguesa no Brasil (1973) e Circuito fechado (1976). De volta do Canadá, em 1972, enfrentou uma série de perrengues: foi contaminado com o vírus da hepatite B numa cirurgia (1975); uma separação temporária da esposa e um ataque cardíaco (1981). Retomou as aulas como professor de pós-graduação na PUC-Pontifícia Universidade Católica e ampliou seu envolvimento político, que resultou na filiação ao recém-criado PT-Partido dos Trabalhadores. A filiação não foi imediata e não integrou o grupo de fundadores. Passou a escrever artigos no jornal Folha de São Paulo, em 1983 e seus textos produziram uma aproximação com o PT, vindo a assinar a ficha de filiação em 1986 e disputar  vaga de deputado constituinte.

 

Uma vez eleito, teve atuação destacada no congresso constituinte e participação pública através de sua coluna semanal no jornal Folha de São Paulo, a partir de 1989. No ano seguinte, foi reeleito deputado federal e retomou sua luta pela educação pública e gratuita. Em 1994 a saúde deu sinais de alerta, mas continuou bastante ativo com artigos na imprensa. Nas eleições presidenciais de 1994 (FHC x Lula), não apoiou seu aluno predileto e grande amigo Fernando Henrique Cardoso, mas absteve-se de criticá-lo. No entanto fez duras críticas ao PSDB em suas alianças com o PFL e lamentava a cisão entre o PT e PSDB. Em agosto de 1995, ao passar por um transplante de fígado malsucedido, veio a falecer. No ano seguinte foi agraciado postumamente com uma almejada comenda: “Prêmio Anísio Teixeira”, que homenageia os brasileiros que mais se dedicaram à educação pública.

 

Deixou um legado com mais de 50 livros publicados e um aporte considerável ao estudo da sociologia. Existem algumas biografias registrando sua trajetória de vida e legado: Florestan (1998), de José de Souza Martins.  Florestan Fernandes (2001), de Antônio Candido; Florestan Fernandes: vida e obra (2004), de Laurez Cerqueira; Florestan Fernandes: sociologia crítica e militante (2005), de Octavio Ianni. Temos inclusive uma que aborda exclusivamente sua formação diante da vida precária que teve na infância e adolescência. Sylvia G. Garcia realizou belo trabalho, combinando biografia e análise histórica; sobre as circunstâncias em que viveu o sociólogo; os problemas enfrentados; os resultados de tal vivência e deu um título síntese de seu estudo: Destino ímpar: sobre a formação de Florestan Fernandes (2002).

 

Florestan Fernandes sobre posicionamento das elites nos Brasil

 


José Domingos Brito - Memorial quinta, 28 de outubro de 2021

OS BRASILEIROS: CASIMIRO MONTENEGRO

OS BRASILEIROS: Casimiro Montenegro

José Domingos Brito

 

 

Casimiro Montenegro Filho nasceu em Fortaleza, CE, em 29/10/1904. Militar da Aeronáutica, Marechal-do-Ar, pioneiro do CAN-Correio Aéreo Nacional, criador do ITA-Instituto Tecnológico de Aeronáutica, patrono da Área de Engenharia da FAB-Força Aérea Brasileira e da Academia Nacional de Engenharia e um dos patronos do INCAER-Instituto Histórico-Cultural da Aeronáutica.

 

Concluiu os primeiros estudos em Fortaleza e mudou-se para o Rio de Janeiro, em 1923, a fim de tornar-se piloto do Exército. Ingressou na Escola Militar do Realengo e tornou-se Aspirante-a-Oficial do Exército em 1928, integrando a primeira turma da Arma de Aviação Militar da Escola de Aviação Militar, que iniciava no Campo dos Afonsos. Teve destacada atuação na “Revolução de 1930” junto com o brigadeiro Eduardo Gomes, Juarez Távora e Siqueira Campos. Ao atingir o posto de tenente, fez o voo inaugural entre Rio-São Paulo, que resultou na criação do CAN-Correio Aéreo Nacional, em 1931. Em seguida cruzou o País de norte a sul em voos expostos às mais diversas e inseguras condições, aterrissando em campos improvisados e pilotando sem instrumentação de voo.

 

Em 1938 concluiu o curso de Engenheiro Militar na Escola Técnica do Exército, atual IME-Instituto Militar de Engenharia. Em seguida deu-se a unificação dos serviços de voos da Exército e da Marinha, dando origem ao Ministério da Aeronáutica, em 1941. No novo Ministério, assumiu a Subdiretoria Técnica da Aeronáutica. Tinha em mente uma ideia, aparentemente, óbvia e costumava dizer que “somente seria possível desenvolver uma indústria aeronáutica no Brasil se o país dispusesse de uma escola que proporcionasse formação técnica de alto nível”. Assim, em 1943, viajou para os EUA afim de adquirir um lote de aviões e, com sua ideia de formar engenheiros aeronáuticos, visitou o MIT-Massachusetts Institut of Technology e ficou encantado com sua estrutura educacional. Retornou ao Brasil disposto a criar algo semelhante num país sem condições de fabricar até bicicletas.

 

Claro que a ideia de projetar e fabricar aviões pareceram excêntricas demais aos olhos dos colegas. Mal sabiam que ele contava com a ajuda de um contato feito nos EUA: o prof. Richard Herbert Smith, chefe do Departamento de Engenharia do MIT. Em 1945 reuniu um grupo de oficiais da Aeronáutica no local, que viria a ser um campus universitário, e apresentou seu projeto: “Aqui construiremos o túnel aerodinâmico, mais à direita o laboratório de motores, ali a área residencial: casas e apartamentos para os professores, oficiais e pessoal da administração e alojamento para os alunos. Ali à esquerda, os edifícios escolares e laboratórios. Aqui será o futuro aeroporto. Esta área está reservada para a indústria aeronáutica. Tudo isto constituirá o Centro Técnico da Aeronáutica.” Ao concluir a apresentação, verificou que a plateia havia sumido. Um dos oficiais que permaneceu no local, despediu-se gracejando da megalomania do projetista: “Até a vista, Júlio Verne!”.

 

Na década seguinte o sonho do piloto visionário começou a se concretizar e pouco depois estava criado o ITA-Instituto Tecnológico de Aeronáutica, em 1950. Com instalações adequadas, bons professores inicialmente trazidos do exterior e residindo no próprio campus junto aos alunos, criou-se uma escola de engenharia de alto nível no País. Sua função não era apenas ensinar bem, mas também educar, o que não era assumido pelos cursos universitários brasileiros. Alguns itens constantes do ensino “Iteano”: cumprimento rigoroso do calendário de ensino, as aulas não dadas têm que ser repostas; diversificação dos professores não apenas na formação profissional, mas também na nacionalidade com muitos professores estrangeiros; currículo composto de matérias não técnicas (humanidades); professor e aluno morando próximos, possibilitando encontros fora das salas de aula.

 

Porém o atributo educacional que mais diferencia o ITA de outras universidades é a chamada “disciplina consciente”, que implica na realização honesta de todos os trabalhos escolares. A “cola” comprovada é punida com severidade, a expulsão do aluno. Em 1950, o Reitor Joseph Morgan Stokes delegou esta função aos alunos através do Centro Acadêmico, que para isso criou o Departamento de Ordem e Orientação. Ou seja, os vigilantes desse processo eram os próprios alunos, que identificavam o transgressor, julgavam e propunham a penalidade. Ao reitor cabia apenas a execução. Outra inovação relevante se deu com a pós-graduação, em 1961. Através de convênio mantido com a Universidade de Michigan, foi adotado o modelo de pós-graduação vigente nos EUA, com poucas alterações, que teve grande repercussão Brasil. No ano seguinte, a COOPE-Coordenadoria de Pós-Graduação em Engenharia, da UFRJ, seguiu o ITA e ambas influenciaram o Conselho Nacional de Educação, com sua resolução de 1965, que alterou toda a pós-graduação brasileira.

 

Na sequência, outro visionário, o engº Ozires Silva, entra em cena e cria o primeiro avião usado nas linhas regionais, denominado “Bandeirante” (1968). No ano seguinte foi criada a EMBRAER-Empresa Brasileira de Aeronáutica, tornando-se a 3ª maior fabricante de aviões do mundo. Junto com Santos Dumont e Ozires Silva, Casimiro integra o que vem sendo chamado de “Santíssima Trindade da Aviação Brasileira” e já foi homenageado em diversas ocasiões, contando com sua estátua no Campus do ITA, que lhe concedeu o título de Doutor Honoris Causa. Em 1975 recebeu o mesmo título da Unicamp-Universidade Estadual de Campinas e em 1981 foi agraciado com o “Prêmio Anísio Teixeira”, a mais prestigiada comenda dirigida aos grandes educadores brasileiros. Faleceu 26/2/2000, aos 95 anos, e foi sepultado na Cripta dos Aviadores do Cemitério São João Batista, no Rio de Janeiro. Pouco depois foi aclamado “Patrono da Engenharia da Aeronáutica”, por Decreto Presidencial, de 28/6/2000.  

 

Duas biografias dão conta de sua trajetória, além de alguns textos na Internet: Montenegro: as aventuras do Marechal que fez uma revolução nos céus do Brasil, de Fernando de Morais, publicada em 2006 e Marechal Montenegro, criador do ITA e do Centro Técnico Aeroespacial (CTA), de seus amigos Ozires Silva e Decio Josué Antonio Fischetti, publicada em 2006. Há um consenso em se afirmar que “se a indústria aeronáutica é o que é, hoje, em termos mundiais, isso começou com o ITA e com o antigo CTA, com a criação do Bandeirante”, aproveitando o nome que os paulistas deram aos desbravadores do interior do Brasil.  Em 2020, o ITA fez 70 anos e realizou uma exposição virtual – “Asas para que te quero”, mostrando as diversas áreas da instituição e relato de sua história. Vale a pena dar uma olhada: Mostra #VicentinaNaSuaCasa on Behance    

 

Vídeo de Apresentação do projeto ITA 70 ANOS - 2020 - YouTube

 

 

  


José Domingos Brito - Memorial quarta, 20 de outubro de 2021

AS BRASILEIRAS : DORINA NOWILL

AS BRASILEIRAS: Dorina Nowill

José Domingos Brito

 

 

 

Dorina de Gouvêa Nowill nasceu em 28/5/1919, em São Paulo, SP. Professora, administradora, filantropa e pioneira da educação e inclusão social das pessoas com deficiência visual. Criou a Fundação para o Livro do Cego no Brasil, em 1946, com a implantação da imprensa Braille, constituindo-se numa das maiores gráficas no gênero do mundo.  

 

Ficou cega aos 17 anos; foi a primeira aluna a frequentar um curso regular e conseguiu a matrícula de outra colega cega na Escola Normal Caetano de Campos, onde se formou professora em 1945. Na ocasião, junto com outras colegas, desenvolveu um projeto dirigido a formação de crianças cegas. Visando aprimorar o projeto, realizou curso de especialização em educação de cegos no Teacher’s College, da Universidade de Columbia, em Nova Iorque. Lá conheceu Edward Huber Alexander, com quem se casou em 1950. De volta ao Brasil, fundou a FLCB-Fundação para o Livro do Cego no Brasil.

 

Nos EUA, manteve reunião com as diretorias da Kellog’s Foundation e American Foundation for Overseas Blind. Expôs o problema da falta de livros em Braille para cegos e a necessidade de se conseguir uma imprensa para a Fundação recém-criada no Brasil. Em 1948, a Fundação recebeu uma imprensa Braille completa. 43 anos depois, a FLCB passou a se chamar Fundação Dorina Nowill. Dizem que hoje não há uma só pessoa cega alfabetizada no Brasil que não tenha tido em mãos pelo menos um livro em Braille produzido pela Fundação.  Trata-se de uma das maiores imprensa Braille do mundo em capacidade produtiva, com produção em larga escala. A Fundação distribui gratuitamente livros em Braille para mais de 2500 escolas e organizações que atendem ao público com deficiência visual. Além da imprensa Braille, mantém livros em áudio e em formato digital. 

 

Em 1954, ela conseguiu que o Conselho Mundial para o Bem-Estar do Cego se reunisse no Brasil, em conjunto com o Conselho Brasileiro de Oftalmologia e a Associação Panamericana de Saúde. Tais reuniões serviram de plataforma para lançamento de um movimento junto aos órgãos públicos visando a inclusão escolar das crianças cegas. O passo seguinte foi a elaboração da lei de integração escolar, regulamentada em 1956. Em seguida, dirigiu a “Campanha Nacional de Educação de Cegos” do MEC-Ministério da Educação e Cultura, no período 1961-1973. Em sua gestão foram criados serviços de educação de cegos em todos os estados do Brasil.

 

Em 1979 foi eleita presidente do Conselho Mundial para o Bem-Estar dos Cegos e sua luta pela inclusão da pessoa cega não se deu apenas na educação. Lutou também pela abertura e encaminhamento destas pessoas no mercado de trabalho. Em 1982, na Conferência da OIT-Organização Internacional do Trabalho, conseguiu que a “Recomendação 99”, que trata sobre a reabilitação profissional, fosse rediscutida. No ano seguinte, a Conferência com o apoio dos representantes do governo brasileiro, dos empresários e dos trabalhadores, votou a favor da proposta do Conselho Mundial para o Bem-Estar do Cego, pela aprovação da “Convenção 159” e da “Recomendação 168”, da OIT, convocando os Estados membros a cumprirem o acordo, oferecendo programas de reabilitação, treinamento e emprego para as pessoas com deficiência.

 

Na década de 1990 foi reconhecida como pioneira na luta pela inclusão da pessoa cega e a FLCB passa a se chamar “Fundação Dorina Nowill”, em 1991.  Publicou sua autobiografia –“... E eu venci assim mesmo”, em 1996, traduzida para o espanhol e distribuída em toda a Europa e América Latina. A partir daí foi homenageada em diversas ocasiões, incluindo seu nome dado por Mauricio de Souza à personagem com deficiência visual –“Dorinha”- da Turma da Mônica, em 2004, uma homenagem que deixou-a sensibilizada. Em 2009, ano do centenário de Louis Braille, inventor do sistema Braille, realizou palestras em diversas instituições e foi incluída entre “Os 100 brasileiros mais influentes de 2009”, numa enquete realizada pela revista “Época”. Foi a última homenagem que recebeu em vida. Faleceu em 29/8/2010.

 

As homenagens prosseguem em 2011, quando o jornalista Luiz Roberto de Souza Queiroz tratou de documentar sua trajetória e lançou o livro Dorina Nowill: um relato da luta pela inclusão social dos cegos. Continua em 2013, com o Senado Federal homenageando-a com a criação da Comenda “Dorina Nowill”, entregue anualmente a personalidades destacadas na defesa das pessoas com deficiência no Brasil. Atualmente, é mantida na Internet a “Dorinateca”, uma biblioteca digital online, da Fundação Dorina Nowill, disponível no site www.dorinateca.org.br.

 


José Domingos Brito - Memorial quarta, 13 de outubro de 2021

OS BRASILEIROS: VICTOR BRECHERET

 

OS BRASILEIROS: Victor Brecheret

José Domingos Brito

 


 

Vittorio Brecheret nasceu em Farnese, Itália, em 15/12/1894. Escultor expoente do Modernismo no Brasil, tem diversas obras instaladas em logradouros de São Paulo, dentre as quais o “Monumento às Bandeiras”, no Ibirapuera. Considerado um dos principais artistas de vanguarda, nunca abandonou a formação clássica, ligada à arte greco-romana e renascentista e fez uso de diferentes técnicas de escultura, do mármore à terracota.

 

Ao perder a mãe aos 6 anos, foi criado pelo tio materno Enrico Nanni, cuja família emigrou para o Brasil quando o garoto tinha 9 anos. Só aos 30 e poucos anos é que recorreu à Justiça para inscrever seu registro de nascimento. Assim, consolidou sua nacionalidade brasileira. Quando criança, trabalhava e estudava, mas não se interessava pelos estudos. Era tímido, retraído e passava horas brincando com barro modelando figuras. Vendo seu interesse na modelação com barro, a Tia estimulou-o a se matricular no Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo, em 1912. Observando seu talento, os professores do Liceu incentivam-no e estudar em Roma, polo da escultura europeia.

 

Em 1914, através da Maçonaria, tornou-se auxiliar do escultor Arturo Dazzi, prestigiado artista que trabalhava para o rei Vittorio Emanuelle III. Ali aprendeu técnicas da tradição mesclando o clássico (Michelangelo) e o naturalismo com Auguste Rodin. Também conheceu o escultor Ivan Mestrovic, de quem sofreu influência com sua linguagem dramática e heroica. Em Roma participou de algumas mostras coletivas e foi elogiado pela crítica. Junto ao mestre Dazzi, não gostou das lições de anatomia com a dissecação de humanos e animais e abriu seu próprio ateliê, aos 22 anos, e passou a viver dizendo-se sul-americano para não ser convocado para a I Guerra Mundial. De volta ao Brasil, em 1919, reencontrou os amigos no Liceu e o novo diretor Ramos de Azevedo, que conseguiu-lhe um ateliê no Palácio das Indústrias.

 

Após um ano de enorme produção, foi descoberto pelos críticos e artistas modernistas, que viram em sua obra algo de novo, totalmente diferente do que existia na cena paulista. Aos poucos e em contatos com Di Cavalcanti, Mario de Andrade, Oswald de Andrade e Menotti del Picchia, foi se integrando ao métier artístico até tornar-se o mestre da escultura do movimento modernista brasileiro, em 1922. Antes disso e já conceituado como escultor, recebeu a incumbência de realizar a maquete para o Monumento às Bandeira, evocando a saga dos bandeirantes, sua maior obra. Por motivos politicos, a obra só foi inaugurada 33 anos depois, na comemoração do IV Centenário da Cidade, em 1954, um ano antes de seu falecimento em 17/12/1955.

 

Em 1921 ganhou uma bolsa do Pensionato Artístico do Estado de São Paulo e viaja para Paris, onde viveu por 5 anos. Mesmo ausente da Semana de Arte Moderna, participou do evento com 12 esculturas, dentre as quais a famosa “Cabeça de Cristo”, mais conhecida como “Cristo de trancinhas”, que foi adquirida por Mario de Andrade. Em Paris aprofundou sua arte ao fundir 3 fontes: ênfase no volume geométrico, tratamento sintético da forma, dado pelo escultor Constantin Brancusi e estilização elegante do “art-déco”. A partir daí passou a se utilizar de formas lineares e simplificadas de cunho ornamental evocando um clima de grande serenidade. Sua vivência em Paris, foi ntensificada a partir de 1923, com chegada de Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral e Anita Malfati, que introduziu-o no circuito das artes, conhecendo Blaise Cendrars e os cubistas André Lhote e Léger. A partir dessa época manteve a carreira vivendo entre Paris e São Paulo, em diversas exposições.

 

Após 15 anos em Paris, se estabeleceu em São Paulo, realizando encomendas de esculturas públicas e trabalhos religiosos. Em 1932 fundou, junto com outros artistas, a SPAM-Sociedade Pró-Arte Moderna e passa a cultivar temas ligados à cultura indigena em esculturas de bronze ou terracota. Na ocasião, retoma sua maior obra, o Monumento às Bandeiras. Pouco depois, retornou à Paris para destativar seu ateliê e se despedir de sua namorada, que foi contra o retorno ao Brasil, pois já era famoso por lá. Em 1938 casou-se com Jurandy Helena, retratada em diversas esculturas, e teve 3 filhos. Em 1941 deu-se o concurso internacional de maquetes para homenagear Duque de Caxias. Ele venceu o concurso, entre 30 concorrentes, e a estátua de 48 metros de altura –o duque em bronze montado num cavalo sob um um pedestal de granito- foi instalada na praça Princesa Isabel, centro da cidade. Dizem que é o maior  monumento equestre do mundo. Ou seja, suas duas maiores obras estão expostas em São Paulo.

 

Além destas grandes obras, existem outras de tamanho médio expostas noutros logradouros da cidade: Carregadora de perfumes, no Parque da Luz; Musa Impassível, na Pinacoteca do Estado; Fauno, no Parque Trianon; Graças, na Galeria Prestes Maia; Eva, no Centro Cultural São Paulo; Depois do banho, no Largo do Arouche, entre outras. Em sua fase final ampliou o interesse em representar temas indígenas na busca de uma identidade nacional. A obra O Índio e a Suaçuapara recebeu o primeiro Prêmio de Escultura Nacionnal da I Bienal de São Paulo, em 1951. Outra vertente enfocada nesta fase foi a escultura de santos, particularmente São Francisco (São Francisco e as Pombas, São Francisco com Boizinho, São Francisco com Jumento), incluindo a Cabeça de São Francisco, sua última obra.

 

Boa parte destas obras encontram-se hoje em coleções particulares e algumas em túmulos de cemitérios e igrejas centrais de São Paulo. Assim, tornou-se também mestre na “arte funerária”. Em 2007 foi realizada uma grande exposição de suas obras no Centro Cultural da Caixa Econõmica, em São Paulo. Uma visão completa de seu legado e obras podem ser vistas na Fundação Victor Brecheret, criado por sua filha Sandra Brecheret, através do site www.victor.brecheret.nom.br, onde consta uma entrevista com o escultor, realizada em 1953.

 

 


José Domingos Brito - Memorial quarta, 06 de outubro de 2021

AS BRASILEIRAS: RITA LOBATO

 

AS BRASILEIRAS: Rita Lobato

José Domingos Brito

 


 

Rita Lobato Velho Lopes nasceu em Rio Grande, RS, em 9/6/1866. Médica, política e uma das prioneiras do movimento feminista  brasileiro. Considerada a primeira mulher médica formada no Brasil e a segunda a obter êxito acadêmico na América do Sul. Aos 17 anos, vendo a morte da mãe no parto do 14º filho, firmou a promessa de se tornar médica obstetra, enfrentando os obstáculos da época em tal empreitada.

 

Filha de Rita Carolina Velho Lopes e Francisco Lobato Lopes, rico  estancieiro e comerciante de charque gaúcho, viveu e teve os primeiros estudos em diversas estâncias perto de Pelotas. Perseguindo o sonho de se tornar médica, a familia mudou-se para o Rio de Janeiro em 1884, onde ela e o irmão entraram na Faculdade de Medicina. No 1º ano do curso, seu irmão teve problemas com a Reitoria, devido a discordâncias sobre a Reforma Felipe Franco de Sá, que alterava o regulamento da escola e outras medidas que alguns alunos julgaram prejudiciais. Afim de evitar retaliações contra os filhos, a família mudou-se para Salvador, onde ela e o irmão ingressaram no 2º ano do curso de medicina, em 1885.

 

O entrosamento com os professores e seu empenho nos estudos possibilitou que requeresse adiantamento dos exames e fosse  aprovada, conforme a norma da faculdade. Estudando incessantemente, conseguiu maticula no 3º ano do curso em março de 1886. Um novo pedido de adiantamento, permitiu-lhe ingressar no 4º ano do curso, em julho do mesmo ano. Em outubro a aluna prodígio fez mais um pedido de adiantamento e realizou as provas que a levaram ao 5º ano. Fez uma pausa, passou 5 meses viajando pelo interior da Bahia e retornou ao curso, que foi concluído em menos de 3 meses, em outrubro de 1887, aos 21 anos. Um fenômeno em termos de capacidade realçado pelo fato de ser mulher. O curso de medicina, com duração de 6 anos foi realizado em 3 anos.

 

Com boas notas em todas as disciplinas, apresentou o trabalho de conclusão do curso, num auditório lotado, e foi aprovada em novembro de 1987 com a tese “Paralelo entre os métodos preconizados na operação cesariana”. No mês seguinte, na ccerimônia de formatura, conquistou o título de 1ª mulher médica do Brasil. Na época subverteu o sistema dominante onde o pudor imperava em detrimento da saúde e quando começou a atender, muitas mulheres que se recusavam a ser examinadas por médicos passaram a frequentar seu consultório instalado em Porto Alegre. Em 1889 casou-se com Antonio Maria Amaro de Freitas, um namorado da adolescência, que ficou esperando a conclusão do curso. A partir daí passou a atender a clientela em sua própria casa. 

 

Com o nascimento da primeira e única filha, o casal pssou a viver na Estância de Capivari e no ano seguinte realizaram uma viagem pela Europa. Tempos depois, em 191 e com a família consolidada, passou 5 meses fazendo cursos em Buenos Aires, atualizando-se sobre as novas descobertas na área médica e fazendo estágios em hospitais. De volta ao Brasil, passou a atender a clientela na região de Capivari, Rio Pardo e arredores. Em 1925, logo após o casamento da filha, decidiu encerrar a carreira e se aposentou aos 59 anos. No ano seguinte, dá-se o falecimento de marido e, vivendo sozinha abraçou a causa da descriminação da mulher e passou a defender seu direito  ao voto, uma luta que vinha sendo travada pela bióloga Bertha Lutz.

 

Nesta nova fase, participou do incipiente movimento fminista e testemunhou algumas vitórias, como a conquista do “Código Eleitoral de 1932” e a eleição da médica Carlota Pereira de Queiroz como Deputada Federal. Como militante da causa feminista, filiou-se ao Partido Libertador e foi eleita vereadora de Rio Pardo em 1934. Assim, a 1ª médica formada no Brasil tornou-se também a 1ª vereadora gaúcha. Com o golpe getulista de 1937 e a ascensão do Estado Novo, seu mandato foi interrmpido. Porém, não deixou de participar da politica, mesmo após o acidente vascular cerebral, que sofreu aos 73 anos, em 1940.

 

Em seus últimos anos de vida, perdeu parcialmente a visão e audição, mas manteve-se lúcida e altiva até 6/1/1954, quando veio a falecer. Além de alguns logradouros de Porto Alegre, que receberam seu nome, foi homenageada em com um selo postal pelos Correios, emitido em 9/6/1967, numa referência ao dia de seu nascimento. Não temos ainda uma biografia mais detalhada de sua trajetória profissional ou pessoal. Constam apenas alguns verbetes na Wikipedia, os quais serviram para a elaboração desta biografia concisa.

 

Rita Lobato: primeira mulher a formar-se em Medicina no Brasil:


 


José Domingos Brito - Memorial quarta, 29 de setembro de 2021

OS BRASILEIROS: ANTÔNIO CANDIDO

OS BRASILEIROS: Antônio Candido

José Domingos Brito

 


 

Antônio Candido de Mello e Souza nasceu no Rio de Janeiro, em 24/7/1918. Sociólogo,  professor, escritor, político, crítico literário e estudioso da literatura brasileira, é uma das principais referências do País na área da cultura e um dos pensadores sobre a formação do Brasil ao lado de Gilberto Freyre, Sergio Buarque de Holanda e Caio Prado Júnior, Florestan Fernandes chamados de “intérpretes do Brasil”.

Filho do médico Aristides Candido de Mello e Souza, seus primeiros estudos se deram em casa, com a mãe, Clarisse Tolentino de Mello e Souza. Concluiu o ensino secundário em 1935, no Ginásio Estadual de São João da Boa Vista, SP. Iniciou a formação acadêmica na Faculdade de Direito e Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, da USP, em 1939. A primeira foi abandonada no 5º ano e formou-se em Ciências Sociais em 1942. A carreira de crítico literário teve início na revista “Clima”, em princípios da década de 1940, junto com um grupo de destacados amigos: Paulo Emilio Salles Gomes, Alfredo Mesquita, Décio de Almeida Prado, Gilda Rocha de Mello e Souza, com quem veio a se casar, dentre outros.

Iniciou a carreira de professor em 1942, na USP, como assistente do prof. Fernando de Azevedo, de quem era também assistente Florestan Fernandes. No ano seguinte, passou a colaborar com o jornal Folha da Manhã, com artigos sobre escritores que despontavam, tais como João Cabral de Melo Neto e Clarice Lispector. Em 1945, obteve o título de livre-docente com a tese “Introdução ao método crítico de Silvio Romero”. O título de doutor em Ciências Sociais veio em 1954 com a tese “Parceiros do Rio Bonito: estudo sobre o caipira paulista e a transformação dos seus meios de vida”, um de seus destacados livros, publicado em 1964. Trata-se de uma obra considerada até hoje como um marco nos estudos brasileiros sobre sociedades tradicionais.

As carreiras de crítico e professor foram intercaladas com a militância política, iniciando com o Grupo Radical de Ação Popular, em princípios da década de 1940. Por essa época, participou da criação do jornal clandestino “Resistência”, para combater a ditadura de Getúlio Vargas. Em seguida, o grupo cria a União Democrática Socialista (UDS), que pouco depois adere à esquerda democrática, para formar o Partido Socialista Brasileiro (PSB), em 1947. Aí permaneceu até 1954 e foi dirigente da seção paulista. Consolidando a carreira de crítico, criou o Suplemento Literário, encartado aos domingos no jornal O Estado de São Paulo, junto com os amigos Paulo Emilio Salles Gomes e Wilson Martins. Durante muitos anos, o suplemento dominical foi visto como o principal veículo do pensamento crítico brasileiro.

Sua obra-prima, Formação da literatura brasileira: momentos decisivos, lançada em 1959, consiste num apurado estudo da produção literária nacional. Para isso, utiliza-se de um método amplamente empregado mais tarde: a dialética, que envolve uma visão inter e transdisciplinar, que entende a literatura como uma das expressões da nossa cultura e objeto de estudos das Ciências Sociais. Segundo o autor, “o livro constitui uma história dos brasileiros no seu desejo de ter uma literatura”. Pode-se dizer, também, que é uma história de brasileiras e brasileiros em “seu desejo de ter uma nação”. Vem daí a sua inclusão entre os autores “intérpretes do Brasil”.

No período de 1964-1966, quando o Brasil ficou inabitável para qualquer intelectual avesso ao Golpe Militar de 1964, foi dar aulas de literatura brasileira na Universidade de Paris. Em 1968, no auge da ditadura, lecionou literatura comparada na Universidade de Yale, nos EUA. De volta ao Brasil, retoma sua cadeira na USP e, a partir de 1974, torna-se professor-titular de Teoria Literária e introduz o estudo da Literatura Comparada na grade curricular da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. No cargo, foi responsável pela formação de destacados nomes: Antônio L. de Almeida Prado, Fernando Henrique Cardoso, Roberto Schwarz, Davi Arrigucci Jr., Walnice Nogueira Galvão, João Luiz Lafetá, Antônio Arnoni Prado e Antônio Cagnin entre outros. 

 

Aposentou-se em 1978, mas permaneceu ligado à pós-graduação, orientando trabalhos acadêmicos até 1992, quando orientou a última tese, a do crítico mexicano Jorge Ruedas de la Serna. Permaneceu como crítico atuante na área literária e na política. Em 1980, ao lado de outros intelectuais, como Sergio Buarque de Holanda, participou da criação do Partido dos Trabalhadores (PT). Para ele, no sistema capitalista “não havia face humana nenhuma” e a redução da desigualdade social é fruto das lutas do socialismo, a exemplo de direitos trabalhistas, como as férias e a jornada de 8 horas de trabalho. Em sua opinião, o socialismo seria a possibilidade de almejar a equidade. Explicava: “Por exemplo, sou um professor aposentado da USP e ganho muito bem, ganho provavelmente 50, 100 vezes mais que um trabalhador rural. Isso não pode”.

Foi agraciado com grandes premiações literárias, como o Prêmio Camões, em 1998, e o Prêmio Internacional Alfonso Reyes, no México, em 2005. Foi contemplado também com o Prêmio Jabuti em 4 ocasiões: 1960, 1965, 1966 e 1993; Prêmio Juca Pato (2007); e Prêmio Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras (1993). Em 2005, sofreu um abalo com a morte de sua esposa, Gilda de Mello e Souza, também professora da USP, e passou a viver mais recluso, distante da vida social e acadêmica, porém sempre procurado por alunos e instituições. Faleceu em 12/5/2017.

Antônio Candido deixa um considerável acervo de obras essenciais, com destaque, além das citadas, para: Tese e antítese: ensaios (1964); Literatura e sociedade: estudos de teoria e história literária (1965); Na sala de aula: caderno de análise literária (1985); O estudo analítico do poema (1987); O discurso e a cidade (1993); Iniciação à literatura brasileira - Resumo para principiantes (1997); O Romantismo no Brasil (2002) e outros livros em parceria. Em termos biográficos, expondo seu legado, temos: Antônio Candido: pensamento e militância (1999), de Flavio Aguiar; Antônio Candido y los estúdios latinoamericanos (2002), de Raúl Antelo; História e literatura: homenagem a Antônio Candido (1999), de Jorge Ruedas de la Serna; A formação de Antonio Candido: uma biografia ilustrada (2020), de sua filha Ana Luiza Escorel. Uma síntese biográfica pode ser vista na homenagem que lhe foi prestada pelo Jornal da USP, em 2017, no link:https://jornal.usp.br/cultura/a-vida-a-obra-e-o-legado-de-antonio-candido/

 

CONVERSA COM ANTÔNIO CÂNDIDO

O DIREITO À LITERATURA

 


José Domingos Brito - Memorial quarta, 22 de setembro de 2021

AS BRASILEIRAS: PÉROLA BYINGTON

AS BRASILEIRAS: Pérola Byington

José Domingos Brito

 

Pérola Ellis Byington nasceu em 3/12/1879, em Santa Bárbara do Oeste, SP. Professora, ativista social e filantropa. Integrante da Cruz Vermelha, nos EUA, e pioneira em sua instalação no Brasil, com a fundação da Cruzada Pró-Infância na década de 1930, transformada em hospital em 1959. Pouco depois o hospital recebeu o nome “Pérola Byington”, centro de referência da saúde da mulher, na capital de São Paulo.

 

Filha de imigrantes norte-americanos, casou-se em 1901 com Alberto Jackson Byington, precursor da indústria no Brasil. Durante a 1ª Guerra Mundial estava nos EUA e foi responsável por uma seção da Cruz Vermelha. De volta ao Brasil liderou, junto com Maria Antonieta de Castro, uma campanha de combate à mortalidade infantil. É importante ressaltar que as duas rezavam em catecismos diferentes e que naquela época protestantes (Pérola) e católicos (Maria) não se bicavam bem. No entanto, deixaram as divergências religiosas de lado para trabalhar em conjunto, guiadas por seus princípios sociais.

 

Pérola, morando num casarão da Av. Paulista, perguntava-se: “O que esperar de um país onde as crianças morrem ao nascer?”. Este foi o mote de seu trabalho iniciado em sua casa, em bases sólidas e que resultou na fundação de uma das maiores instituições de assistência social, que recebeu o nome de “cruzada’, dada as dificuldades e empenho na sua realização. Pouco depois conseguiu instalar um hospital dedicado às mulheres e crianças: O Hospital da Cruzada Pró-Infância, em 1959.

 

Em 1932, na Revolução Constitucionalista, a Cruzada teve relevante participação com a confecção de ataduras, roupas para os soldados e assistência às suas famílias. Seu trabalho não se restringia ao aspecto caritativo. Batalhou pela igualdade de direitos iguais entre homens e mulheres; lutou pelo direito do voto feminino; foi a primeira pessoa a apresentar projeto sobre a necessidade da educação sexual nas escolas e foi responsável pela institucionalização do “Dia da Criança” não como uma data criada para a venda de brinquedos, mas como um dia para celebrar o direito das crianças no Brasil. No período 1930-1960 ficou conhecida como uma das mulheres mais importantes em São Paulo e, talvez, no Brasil.  

 

Em 1963 reuniu amigos e colaboradores para anunciar uma viagem aos EUA para conhecer os bisnetos e rever os netos, filhos de Elizabeth Byington, sua filha que lá vivia. Brincando com os netos, sofreu uma queda e veio a falecer em 6/11/1963. No mesmo ano foi homenageada com seu nome dado ao Hospital da Cruzada Pró-Infância. A partir daí as homenagens foram se multiplicado. Em sua cidade natal uma das avenidas recebeu seu nome e em 2016, a Câmara Municipal criou o “Diploma Pérola Byington”, concedido anualmente às pessoas que exercem o serviço voluntário, pelo menos, por 2 anos em Santa Bárbara do Oeste.

 

No Paraná, um distrito do município de Xambrê foi elevado a categoria de cidade e recebeu o nome Pérola, onde localizava-se a Companhia Byington de Colonização Ltda. Em Campinas, nomeou o 64º Grupo de Escoteiros do Brasil. Para familiarizar os leitores com seus descendentes, dona Pérola é bisavó da atriz Bianca Byington e da cantora Olivia Byington, mãe do ator e escritor Gregório Duvivier. Sua neta Maria Elisa Botelho Byington declarou aos 88 anos: “O discurso que Pérola tinha é totalmente atual. Fico pensando como ele seria encarado hoje pois sinto que estamos regredindo 100 anos ao questionar a educação sexual nas escolas. Ela defendia que prevenção era a palavra que deveria ser guia de qualquer área do governo. Estamos esquecendo a nossa história”.

 

Maria Elisa ficava inconformada pelo fato de sua vó ser conhecida em São Paulo apenas pelo nome de um grande hospital e da praça onde está localizado. Para que seu nome e legado não caíssem no esquecimento, juntou-se às historiadoras Maria Lucia Mott e Olga Sofia Fabergé Alves e publicaram o livro O Gesto que Salva - Pérola Byington e Cruzada Pró-Infância”, lançado em 2005. Conforme o título indica, não se trata apenas de uma biografia e sim um relato dos sucessos e dificuldades de uma das maiores instituições de assistência social do País. Maria Elisa é filha de Alberto Byigton Jr., um dos dois filhos de Pérola, empresário e pioneiro da indústria cinematográfica no Brasil. Como se vê a família Byington tem história para contar sobre o Brasil.

 

 

 


José Domingos Brito - Memorial quarta, 15 de setembro de 2021

OS BRASILEIROS - MARIO DE ANDRADE

 

OS BRASILEIROS: Mário de Andrade

José Domingos Brito

 

 

Mário Raul de Morais Andrade nasceu em 9/10/1893, em São Paulo, SP. Escritor, poeta, administrador, cronista, musicólogo, fotógrafo, crítico de literatura e de arte, pesquisador do folclore, agitador cultural... Eu sou 300, sou 350”, disse no poema Remate dos males. Foi protagonista do “Movimento Modernista” (1922), pioneiro no estudo da “etnomusicologia” e na preservação da memória nacional com a criação do IPHAN-Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, em 1937.

 

Nascido numa aristocrática família paulistana, teve os primeiros estudos em casa e foi considerado um pianista pródigo na infância, quando lia em francês e estudava história da arte como autodidata. A educação formal veio apenas aos 18 anos, quando ingressou no Conservatório Dramático de Musical de São Paulo. Em 1913, seu irmão mais novo faleceu, causando-lhe um profundo choque. Retirou-se, para tratamento, numa fazenda da família em Araraquara e teve que deixar o piano devido a um tremor das mãos. Passou a estudar canto e teoria musical com a intenção de se tornar professor de música, ao mesmo tempo em que se interessou, também, pela literatura.

 

Ao se formar, em 1917, publicou seu primeiro livro de poemas -Há uma gota de sangue em cada poema-, com o pseudônimo Mário Sobral, considerado hoje raríssimo e disputado entre os bibliófilos. Em seguida, passou a viajar pelo interior do Brasil realizando meticuloso trabalho de documentação da música e folclore local ao mesmo tempo em que publicava ensaios na imprensa paulista. Duas destas viagens (1919 e 1924) foram nas cidades históricas de Minas Gerais, e viu “que Aleijadinho não copiou, mas inventou, fundiu o barroco com o rococó e criou uma identidade na sua obra”, conforme Ângelo Oswaldo. Em 1928 publicou o ensaio O Aleijadinho no livro Aspectos das artes Plásticas no Brasil, imprimindo nova visão sobre a obra do escultor e redimensionando sua importância em âmbito internacional. Pode-se dizer que é a partir daí que Aleijadinho adquire o prestígio que veio a ter na arte brasileira.

 

Escrevendo e lecionando piano no Conservatório, angariou grande número de amigos, jovens artistas e escritores antenados como a cultura europeia. Em 1920, comprou uma escultura -Busto de Cristo- de seu amigo Victor Brecheret, um Cristo brasileiro de cabelos trançados, que deixou a família chocada. Aborrecido, retirou-se para o quarto, e da varanda pôs-se a observar a praça “sem realmente vê-la. Ruídos, luzes, as brincadeiras ingênuas dos taxistas: todos flutuaram até mim. Eu estava aparentemente calmo e não pensando em nada em particular. Não sei o que de repente aconteceu comigo. Fui até minha mesa, abri um caderno e anotei um título que nunca havia passado pela minha cabeça: Pauliceia Desvairada!”.

 

O título inesperado deu origem ao segundo livro, anunciando a “Semana de Arte Moderna”, com verso livre, transgressões sintáticas, valorização da fala brasileira e ausência da solenidade poética, entre outras inovações que marcaram a ruptura com o “parnasianismo”. Enquanto trabalhava na edição do livro, preparava junto ao “Grupo dos Cinco” (Ele, Oswald de Andrade, Anita Malfatti, Menotti del Picchia e Tarsila do Amaral) a “Semana de Arte Moderna”. No evento leu o “Prefácio extremamente interessante”  do livro como o clímax da “Semana”. Em seguida as viagens pelo interior do País foram intensificadas, ampliando o estudo a cultura e o folclore, bem como as dimensões sociais da música. Tais viagens renderam um diário, que resultou numa coluna no jornal “O Diário Nacional”, seguido do livro O turista aprendiz, em 1927, um documentário (com fotos) do Brasil. No mesmo ano lançou o romance Amar, verbo intransitivo, a história de uma alemã, cuja profissão era iniciar sexualmente os jovens. Ou seja, mais uma transgressão literária.

 

No ano seguinte veio a grande obra -Macunaíma-, consagrando o romancista e seu envolvimento com a cidade. Tal envolvimento resultou na organização do Departamento de Cultura, em 1935, com o empenho do prefeito Paulo Duarte, cuja função era resgatar e divulgar a cultura brasileira e não apenas paulista. Um dos principais legados do Departamento foi a criação da biblioteca municipal, que em 1960 recebeu seu nome e tornou-se a segunda maior do País,  além do sistema de bibliotecas públicas, contando hoje com 51 bibliotecas em quase todos os bairros da cidade. Criou também parques públicos e fundou a Discoteca Municipal, um dos maiores e melhores acervos organizado sobre música do hemisfério. Nessa época e na condição de diretor do Departamento pôde ajudar Claude Lévy-Straus em suas pesquisas para o livro Tristes trópicos, que viria publicar em 1955.  

 

Em 1937 elaborou a lei de criação do SPHAN-Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e passa a ter problemas políticos com a volta do Governo Vargas. No ano seguinte criou, junto com o antropólogo Lévi-Strauss, a Sociedade de Etnografia e Folclore. Por essa época, perdeu o cargo na Prefeitura de São Paulo. O prefeito Prestes Maia estava mais interessado em abrir grandes avenidas na cidade e não via tanto interesse no Departamento de Cultura, que acabou em terceiro plano. Segundo seu amigo Rubens Borba de Moraes, Mário passou por uns perrengues, ficou desanimado e em 1938 foi incentivado pelos amigos Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Rodrigo Melo Franco e o ministro Gustavo Capanema a viver no Rio de Janeiro, onde ocupou o cargo de diretor do Instituto de Artes da Universidade do Distrito Federal. Na ocasião, dirigiu o Congresso da Língua Nacional Cantada, importante conferência de folclore e música folclórica.

 

No Rio sua vida sofreu grande transformação. Não obstante continuar escrevendo e participando da vida cultural da cidade e fazer projetos para o ministro Capanema, passou a sentir certo vazio, “não se ambientava, não conseguia fazer sua vida, trabalhar direito. Tudo lhe parecia tão inútil e fútil. Não conseguia equilibrar-se de novo”. No encontro que teve com o amigo Rubens Borba de Moraes, revelou: “Sabe, dei para beber. Tomo bebedeiras! Caí na farra...” O fato é que no Rio caiu numa roda de jovens literatos e boêmios e fez o que não fizera quando moço. Em 1942, retornou à São Paulo, mas não era o mesmo. Mais tarde, Rubens encontrou-o num bar da Rua Líbero Badaró. “Estava magro, esverdeado, acabado e queixando-se da saúde. Suas moléstias indefinidas eram psicossomáticas: resultado dessa vontade de viver. Não tinha ânimo para reagir, deixou-se morrer”. (Moraes, Rubens Borba de. Testemunha ocular - recordações). Brasília, Briquet de Lemos Livros, 2011).  Foi vitimado por um ataque cardíaco em 25/2/1945.

 

10 anos após foram publicados seus Poemas completos (1955), marcando o início de sua “canonização” na cultura brasileira. Deixou um considerável legado, tanto na produção literária, com 58 livros, como na institucionalização e no cuidado com a memória, criando o SPHAN, e com a cultura, criando o Departamento de Cultura (SP).  Atualmente, depois de Machado de Assis, é o autor mais estudado da literatura brasileira. Foi o autor que mais praticou a “literatura epistolar“ no Brasil. Manteve correspondência com centenas de cartas à quase todos os escritores e artistas conhecidos. Muitos dos quais deixaram livros publicados sobre essa troca de correspondência. Sua vida e legado foi registrado em diversos ensaios, artigos e biografias. As duas últimas publicadas: Eu sou trezentos: Mário de Andrade – Vida e obra, (2018), de Eduardo Jardim e Em busca da alma brasileira: biografia de Mário de Andrade (2019), de Jason Tércio, apresentam amplo e documentado panorama de sua trajetória.

 

BIOGRAFIA DE MÁRIO DE ANDRADE


José Domingos Brito - Memorial quarta, 01 de setembro de 2021

OS BRASILEIROS: NOEL ROSA

 

OS BRASILEIROS:  Noel Rosa

José Domingos Brito

 

 

Noel de Medeiros Rosa nasceu em 11/12/1910, no Rio de Janeiro, RJ. Compositor, cantor, violonista e um dos nomes mais destacados não apenas no samba, mas na história da música popular brasileira. Sua contribuição foi fundamental na legitimação do samba como ritmo genuinamente brasileiro. Em seu curto período de vida deixou mais de 250 músicas, muitas delas clássicas do cancioneiro popular.   

 

Nascido de um parto complicado, que incluiu o uso de fórceps para salvar a vida da mãe e da criança. Além disso, tinha uma hipoplasia, com uma diminuição da mandíbula, que marcou sua feição dotando-o de uma fisionomia particular. Cresceu no bairro carioca de Vila Isabel, reduto de boêmios e sambistas tradicionais do Rio de Janeiro, oriundo de uma família de classe média. Estudou no tradicional Colégio de São Bento e dizem que, não obstante a inteligência, não era um aluno aplicado nos estudos.

 

Aprendeu a tocar bandolim de ouvido ainda adolescente e gostou da atenção que despertou nos ouvintes. Pouco depois passou ao violão e logo fazia parta das rodas de samba. Aos 21 anos entrou na Faculdade de Medicina, mas cedo se deu conta da inviabilidade do projeto de ser médico diante da vida de artista que se apresentava entre as noitadas regadas a cerveja. Aos 19 anos já era integrante do “Bando dos Tangarás”, ao lado de Braguinha, Almirante e Henrique Brito. Em 1929 compôs Minha viola e Festa no céu e no ano seguinte, aos 20 anos, surge o primeiro grande sucesso Com que roupa?, uma de suas clássicas composições,

 

No folclore musical surgiu uma história em que ele, em certa noite,  queria sair com os amigos, mas sua mãe não deixou, escondendo suas roupas. Foi aí que perguntou: “Com que roupa eu vou?” Mas esta história foi desmentida por Almirante, seu parceiro e primeiro biógrafo. Ele atesta que os primeiros acordes da música eram muito parecidos aos do Hino Nacional. O problema foi detectado pelo maestro Homero Dornelas e Noel prontamente fez a modificação. O fato é que ele era um grande cronista e suas músicas eram um retrato da vida simples e cotidiana, que primam pelo humor e pela veia crítica. Orestes Barbosa chamava-o de “o Rei das letras”.

 

O cotidiano e o humor sempre estiveram nas letras de suas músicas, incluindo as “brigas”. Numa polêmica com seu rival Wilson Batista, os dois pelejaram em sambas. Os dois andaram enamorados de uma morena do “Dancing Apollo. Noel compôs o samba Rapaz folgado, detonando a empáfia de Lenço no pescoço, de Wilson. Este, quando ouviu o samba, deu o troco com Mocinho da Vila, aconselhando Noel a cuidar de seu microfone e deixar quem era malandro em paz e ao final orgulhava-se “modéstia à parte, eu sou rapaz (folgado?)”. Noel continuou a polêmica com Feitiço da Vila: “modéstia à parte, eu sou da Vila (Isabel)”. Em seguida, Wilson compõe Conversa fiada, questionando a superioridade do bairro. Noel retruca com o samba Palpite infeliz. Ao final da “briga”, os dois tornaram-se parceiros e amigos.

 

A vida boêmia nos bares da lapa era intensa e parece que começava cedo no café da manhã: Seu garçom, faça o favor de me trazer depressa / Uma boa média que não seja requentada / Um pão bem quente com manteiga à beça... Essa Conversa de botequim é um dos seus maiores sucessos. Até agora já foi executada mais de 546 mil vezes na Spotfy e 1.3 milhão de vezes no Youtube. Ao longo da breve vida teve muitas namoradas e foi amante de outras já casadas. Aos 24 anos  casou-se com Lindaura Martins, por quem tinha certo afeto, mas era apaixonado mesmo por Ceci, prostituta de um cabaré na Lapa. Essa paixão resultou no samba Dama do Cabaré, outro sucesso. Ele quis tirá-la da “vida fácil”, dar-lhe uma casa e uma vida tranquila como amante. Mas ela recusou a oferta; não queria ser uma “manteúda”; queria alguém que assumisse o casamento. Era uma mulher bonita, elegante e educada. Mas ele não pode encarar o escândalo social e na família, que não aceitaria o casamento com uma meretriz.  

 

A vida boêmia segue o curso, às vezes interrompida com tratamentos contra a tuberculose que o consumia. Viajou diversas vezes para cidades montanhosas em função do clima e passou uma temporada em Belo Horizonte. De lá, escreveu ao seu médico, Dr. Graça Melo: “Já apresento melhoras/Pois levanto muito cedo/E deitar às nove horas/Para mim é um brinquedo/A injeção me tortura/E muito medo me mete/Mas minha temperatura/Não passa de trinta e sete/Creio que fiz muito mal/Em desprezar o cigarro/Pois não há material/Para o exame de escarro".

 

De volta ao Rio, sentiu alguma melhora  e parou com as medicações. Achou que estava curado, mas pouco depois adoeceu fortemente, não conseguindo mais se alimentar e nem levantar da cama. Faleceu repentinamente em 4/5/1937 aos 26 anos. Sua vida foi filmada e biografada diversas vezes. São filmes de curta, média e longa duração, com destaque para “Noel – Poeta da Vila” (2007), baseado na essencial biografia Noel Rosa: uma biografia (1990), de João Máximo e Carlos Didier. No teatro também foi retratado na peça O poeta da Vila e seus amores (1977), de Plínio Marcos e cenário de Flávio Império, inaugurando o Teatro do SESI, em São Paulo. Em 2010, centenário de seu nascimento, a Escola de Samba Unidos da Vila Isabel desfilou em sua homenagem com o samba Noel: a presença do “Poeta  da Vila”, de Martinho da Vila. Em 2016 foi agraciado in memoriam com a “Ordem do Mérito Cultural do Brasil”, na classe de grão-mestre.

 


José Domingos Brito - Memorial quarta, 25 de agosto de 2021

OS BRASILEIROS JOSÉ LUTZENBERGER

 

OS BRASILEIROS: José Lutzenberger

José Domingos Brito

 

 

 

José Antonio Lutzenberger nasceu em 17/12/1926, em Porto Alegre, RS. Engenheiro agrônomo, cientista, escritor, filósofo, ambientalista e pioneiro na luta em defesa do meio ambiente. Trocou uma próspera carreira, como técnico e executivo de empresas multinacionais, pela organização do movimento ecológico na década de 1970, com a publicação do “Manifesto Ecológico Brasileiro”.

 

Filho do artista plástico Joseph Franz Seraph Lutzenberger e Emma Kroeff, imigrantes alemães, desde criança mantinha contato e encanto pela natureza. Estudou no Colégio Farroupilha e do Rosário, com interesse em química e física. Após o serviço militar, entrou na  Faculdade de Agronomia, da UFRGS e demonstrava temperamento combativo. Era visto como excêntrico pelos colegas. Diplomado em 1950, passou 2 anos nos EUA fazendo pós-graduação na Universidade de Louisiana em agroquímica.  De volta à Porto Alegre, empregou-se na Companhia Riograndense de Adubos, onde trabalhou por 4 anos e transferiu-se para a Sulpampa Agropastoril, no cargo de intérprete de línguas do diretor da Basf, empresa associada. Em 1957 foi convidado para trabalhar na Ciba-Geigy, na Alemanha, na área de agrotóxicos. Em seguida mudou-se para a Venezuela, atuando como técnico e executivo na área de adubos da Basf. Pouco depois, já casado e com 2 filhas, foi transferido para o Marrocos, em 1966. Na condição de executivo bem sucedido, conheceu diversos países.    

 

Na Venezuela esteve em contato com o cientista Leon Croizat, aprofundando os estudos em biogeografia. O interesse nos problemas causados pelo agrotóxico foi despertado com a leitura do livro Silent Spring (1962), de Rachel Carson, com quem manteve contato. Discordava dos ataques que a cientista sofria dos  empresários da indústria química e passou a se interessar pela ecologia. A “crise existencial” ou profissional  iniciou quando a Basf passou a produzir agrotóxicos. O dilema foi resolvido com o pedido de demissão, em 1970. Ano seguinte fundou a AGAPAN-Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural, a primeira “Ong” ecológica do País. Logo tornou-se líder do movimento com o lançamento do “Manifesto Ecológico Brasileiro: o fim de futuro?”, numa tiragem de 46 mil exemplares. Em seguida foi  impresso em papel jornal e formato “pasquim” de 22 páginas e foi vendido em bancas de jornal. Assim o movimento ecológico tomou as ruas. Com o manifesto, tornou-se importante líder no movimento ambientalista internacional, recebendo cumprimentos do cientista Konrad Lorenz, Prêmio Nobel de Medicina.

 

Antes do “manifesto” já havia publicado muitos artigos denunciando o desastre ecológico e viajou pelo mundo dando palestras e conquistando adeptos. Se em alguns setores da sociedade era tratado como gênio e pioneiro, noutros era tido como louco e fanático. Denunciava a poluição do lago Guaíba, a perseguição aos morcegos de Porto Alegre, o desmatamento e a redução das áreas verdes urbanas, o uso de agrotóxicos e da energia nuclear etc. Com o empenho e as lutas da AGAPAN, obteve conquistas como a criação do Parque Delta do Jacuí, do Parque Estadual de Itapuã e da Reserva Biológica do Lami. Mas a luta mais notória que enfrentou foi contra a produtora de celulose “Borregaard”, que poluía o ar e as águas do rio Guaíba. Para muitos foi “uma das mais importantes lutas ecológicas da história”, inaugurando um inédito processo de revisão de métodos produtivos. Em fins de 1973, a fábrica foi interditada.  

 

O movimento ecológico torna-se mais expressivo em termos políticos com a criação dos “partidos verdes” em todo o mundo. A entrada de novos atores na AGAPAN, afastou-o da entidade em 1987. "Aconteceu que surgiu um grupo de guris que não sabia nada de nada e que transformou a Agapan em política partidária. E aí eles perderam, inclusive, a penetração nos meios de comunicação. Eles não tinham nada a dizer". Ao deixar a AGAPAN, criou a Fundação Gaia, dedicada a promoção de um modelo de vida sustentável. A fundação atua na área de educação ambiental e na promoção de tecnologias socialmente compatíveis, tais como a agricultura regenerativa, o manejo sustentável dos recursos naturais, a medicina natural, a produção descentralizada de energia e o saneamento alternativo. Presta, também, consultoria ambiental para auxiliar municípios e estados a implantar o desenvolvimento sustentável. Seu envolvimento com a questão ambiental rendeu-lhe o prestigioso “The Right Livelihood Award 1988”, conhecido como o Prêmio Nobel Alternativo na área de ecologia, em Estocolmo. 

 

Além de manter a Fundação, conduzia uma empresa de reciclarem de resíduos industriais. Em 1990, o presidente Fernando Collor, interessado em melhorar a imagem do Brasil no exterior e  tendo em vista a realização da CNUMAD-Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e Desenvolvimento ou “Rio-92”,  convidou-o para assumir a pasta do Meio Ambiente e comandar os preparativos para a grande conferência. Sua ideia era que o Brasil deveria encaminhar uma proposta em que os países possuidores de florestas de grande porte fossem recompensados, através de um fundo internacional, pelo prejuízo de não explorá-las. Defendia ainda que a diplomacia brasileira deveria adotar uma legislação internacional sobre florestas e no estabelecimento de metas precisas para evitar o desmatamento. Em termos políticos p.p. dito, dizia: “Li Marx de ponta a ponta no original, em alemão. Ele é tão tecnocrata quanto os capitalistas; Hitler e Mussolini também diziam ser socialistas, como Fidel. Essa palavra e ser de esquerda não significam mais nada”.

 

Sua permanência no governo durou mais que o previsto (março/1990-março/1992), tendo em vista o temperamento direto e pouco dado às conveniências políticas. Foi demitido antes mesmo da Rio-92, logo após denunciar a corrupção no IBAMA, que ele acusava de ser uma “sucursal de madeireiros”. Nos 2 anos como ministro realizou algumas conquistas, como a demarcação de terras indígenas, em especial a dos Ianomâmis, em Roraima; a definição do conceito de Área de Proteção Ambiental na nova legislação; a decisão do Brasil de abandonar o projeto da bomba atômica e a assinatura do Tratado da Antártida e da Convenção sobre a Diversidade Biológica. Já fora do governo, fez um importante pronunciamento na Rio-92, quando foi homenageado e recebeu convite de Dalai Lama para uma conversa privada. No mesmo ano participou do “Simpósio Internacional sobre questão da Ética na Política”, organizado pelo Instituto Goethe.

 

Seu último trabalho no governo foi de consultor ambiental no estado do Amazonas, em 1997. Faleceu em 14/5/2002 e foi sepultado no bosque da Fundação Gaia do modo como pediu: nu envolto num lençol  e sem caixão para não deixar marcas. Suas ideias e legado ficaram registrados em centenas de artigos e livros, dos quais vale destacar: Pesadelo atômico (1980), Ecologia: do jardim ao poder (1985) e Gaia, o planeta vivo (1989). Em termos biográficos, temos Sinfonia inacabada: a vida de José Lutzenberger (2005), de Lilian Dreyer e Lutz – a história da vida de José Lutzenberger, o grande ambientalista do Brasil (2019), de Amauri Antonio Confortin e outros autores. Recebeu títulos de “Doutor honoris causa” de diversas universidades no Brasil e no exterior e foi agraciado com uns 80 prêmios, homenagens e condecorações.

 

UMA HOMENAGEM A JOSÉ LUTZENBERGER

 


José Domingos Brito - Memorial quarta, 18 de agosto de 2021

AS BRASILEIRAS: BIDU SAYÃO

 

AS BRASILEIRAS: Bidu Sayão

José Domingos Brito

 

 

Balduína de Oliveira Sayão nasceu em Itaguaí, RJ, em 11/5/1902. Cantora lírica, reconhecida como uma das grandes estrelas de ópera do mundo e uma das maiores intérpretes do Brasil. Foi aluna de Arturo Toscanini, que a chamava de “la piccola brasiliana” e projetou-a na Europa. Ao se apresentar na Casa Branca, recebeu convite do presidente Roosevelt, para se tornar cidadã estadunidense, mas declinou: “No Brasil eu nasci e no Brasil morrerei”.

 

Aos 11 anos, o tio pianista, sugeriu que ela se tornasse cantora. Mas que ela queria atriz de cinema, profissão pouco recomendável, na época, para “moças de família”. Foi sugerido, então, que estudasse música, mais especificamente canto. Cantou algumas músicas do tio

e uma amiga avisou-a que a soprano romena Elena Theodorini estava no Rio dando aulas de música. A professora ficou empolgada com a menina, que veio a tonar-se sua melhor aluna. 4 anos depois, a mestre voltou à Europa e sugeriu à família que ela fosse estudar no  exterior. Assim, foram para a Romênia, onde prosseguiu nos estudos. Em seguida passou a viver em Nice, França, onde recebeu aulas do tenor polonês Jean de Reszke, um dos tenores mais famosos do  mundo, e consolidou sua técnica vocal.

 

Aos 20 anos, após 4 de estudos rigorosos, estava pronta para encenar o papel principal na ópera Romeo e Julieta no teatro Ópera de Paris. A plateia ficou encantada e recebeu elogios efusivos da crítica. Em seguida partiu para Roma e procurou o Teatro Constanzi, o maior da cidade, onde se apresentou com a ópera O Barbeiro de Sevilha, de Rossini, em 1926, Nesta apresentação foi consagrada como uma das grandes soprano do mundo. Em 1928, já casada com o empresário Walter Mocchi apresentou-se no Teatro Nacional de São Carlos, em Lisboa.  A plateia lisboeta ficou encantada e orgulhosa de ver uma brasileira, uma quase patrícia, no placo.

 

De volta à Itália, fez uma apresentação especial para recepcionar o príncipe Alberto e a princesa Maria José, da Bélgica. Mussolini, seu fã ardoroso, exigiu que lhe dessem o papel principal na ópera Don Pasquale. Mas, ponderaram que só artistas italianos poderiam participar da ópera. Mas, como contrariar o “Duce”?. Mais uma vez  brilhou no papel de “Norina”.  Na década seguinte se apresentou no Metropolitan Opera House, de Nova Iorque, na ópera Manon, de Massenet. A apresentação lhe proporcionou um contrato para integrar o elenco do Metropolitan durante muitos anos. A baixa estatura e o timbre da voz propiciaram uma adequação para papéis femininos mais delicados. Nos anos seguintes apresentou-se no Teatro Colón, em Buenos Aires, Rio de Janeiro, ao lado de Guiomar Novaes e no Recife, junto com o barítono Giuseppe Danise, com quem viria se casar anos depois.

 

Conta a história que numa apresentação, em 1937, no Teatro Municipal do Rio, quando ela já era famosa na Europa, foi vaiada ao cantar Pelléas et Mélisande.  Conta-se, também, que vaia teria sido organizada pela claque da meia-soprano Gabriella Besanzoni, que não estava disposta a vê-la em desvantagem diante do sucesso de Bidu Sayão. O fato causou-lhe tristeza e mágoa justamente por ocorrer em sua terra natal. Logo depois foi confortada pelos aplausos que obteve no mesmo ano, na apresentação que fez no Metropolitan Opera House, interpretando Manon, de Jules Massenet. Só retornou ao seu País, para novas apresentações, 11 anos depois, nas montagens de Romeu e Julieta e Pelléas et Mélissande, em 15 e 17 de agosto de 1946, as  últimas em solo brasileiro, e retornou aos EUA, onde vivia.

 

A apresentação no Metropolitan Opera House e posterior contratação foi possível a partir da indicação feita pelo maestro Arturo Toscanini, de quem foi amiga e, dizem as “más línguas’, amante. A dupla realizou memoráveis apresentações, como a ópera La Damoiselle Elue, de Debussy, no Carnegie Hall, em Nova Iorque. O crítico Olin Downes escreveu: “A srta. Sayão triunfou da forma como uma Manon deveria triunfar, com educação, jovialidade e charme, e também pela maneira como fez de sua voz um veículo de expressão dramática”. Pouco depois, aos 34 anos, foi recebida, na Casa Branca, pelo casal Roosevelt. Um crítico do O “New York Times” disse que “Ela não demorou a mostrar os méritos de sua arte. Sua voz possui doçura, delicadeza e suavidades pronunciadas. Sua escala é excepcionalmente uniforme durante todo o compasso e alcança o Mi bemol mais agudo... Além da suavidade, a técnica vocal... tem absoluto comando do legato delicado e muito acima da média da flexibilidade e agilidade”. Permaneceu 15 anos como a principal soprano lírica do Metropolitan, que mantém um quadro a óleo na galeria dos grandes nomes da ópera. Em alguns momentos, sua voz elevava-se a alturas quase inacreditáveis e ali permanecia -pendurada, como uma cotovia- desabafando seu coração para o céu”, escreveu um crítico do “Winnipeg Tribune”.

 

Em 1940 esteve no Brasil junto com o tenor Tito Schipa, dirigidos por Toscanini. Em pleno “Estado Novo”, sob o comando de nacionalistas exacerbados, tal como ocorreu com Carmen Miranda, foi criticada devido ao sucesso alcançado nos EUA. Em meados de 1950, conheceu Villa-Lobos e dizem que “a química entre eles foi imediata’. Segundo o biógrafo Dennis Daniel  “o relacionamento amoroso foi evidente”. O fato é que os dois se adoravam, e não apenas em termos artísticos. O compositor se referia a ela como “meu violino humano”. Estava falando do corpo da cantora? A versão do biógrafo: “A referência ao instrumento se prende à capacidade que Bidú possuía de cantar uma parte específica das ‘Bachianas Brasileiras nº 5’ sem a letra, apenas com a boca fechada, sua voz soprano ressonando dentro da cavidade bucal como se saísse pela nariz, uma técnica conhecida como ‘bocca chiusa’”. A cantora acabou agradando o exigente compositor. Fato é que o disco das ‘Bachianas Brasileiras nº 5’ conseguiu ser o mais vendido nos EUA por 2 anos consecutivos.

Não obstante ser apaixonada pelo Brasil –“nada magoava mais Bidú do que ser chamada de antipatriota”, suas relações com a terra natal foram tumultuadas desde 1937, com a vaia que levou no Teatro Municipal do Rio. Mas melhoraram bastante com o convite que recebeu em 1995 para desfilar no carro alegórico da Escola de Samba Beija-Flor, quando sua vida e carreira foram tema do enredo no carnaval. Porém, com tantos anos vivido e a carreira feita nos EUA, naturalizou-se americana em 1960, aos 59 anos, mas não perdeu a cidadania brasileira. Vivia em Lincolnville, Maine, onde faleceu em 12/3/1999, aos 97 anos, sem realizar um de seus desejos: rever a Baía da Guanabara.  Havia uma viagem agendada para este propósito no ano de seu centenário, mas não houve tempo.

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Seu biógrafo -Denis Allan Daniel-, que tem nome americano mas é brasileiro, lançou em 2019 Bidú: paixão e determinação” uma alentada biografia, lamenta: “É triste ter de aceitar que não há uma só lápide em algum cemitério, ou um monumento no Brasil, para honrar a memória de Bidú Sayão. Encontrei na Internet outro livro, que parece ser uma biografia: Bidú Sayão: o rouxinol brasileiro, lançada por  Fernando de Bortoli, em 1992, publicada pela Editora do Autor. Será porque não encontrou editora? E assim lamentamos todos o cuidado que temos com nossos grandes talentos brasileiros. Uma nesga de lembrança da grande soprano restou em Belo Horizonte, com a criação do “Concurso Internacional de Canto Bidú Sayão”, em 1999.

 

BIDU SAYÃO - A BRASILEIRA QUE CONQUISTOU O MUNDO!


José Domingos Brito - Memorial quarta, 11 de agosto de 2021

OS BRASILEIROS: GUERREIRO RAMOS

 

 

OS BRASILEIROS: Guerreiro Ramos

José Domingos Brito

 

 

Alberto Guerreiro Ramos nasceu em 13/9/1915, em Santo Amaro da Purificação, BA. Sociólogo, professor, advogado, jornalista e político. Destacado estudioso da questão social e racial, é segundo o fundador do Departamento de Sociologia da Universidade de Harvard, Pitirim Sorokin, um dos autores que mais contribuíram para o progresso da sociologia no mundo. 

 

Após os primeiros estudos, no Ginásio do Estado, em Salvador,  ganhou uma bolsa de estudos do governo para estudar na Universidade do Brasil (RJ), onde diplomou-se em ciências sociais em 1942 e em Direito no ano seguinte. Foi influenciado pelos intelectuais católicos franceses, sobretudo Jacques Maritain, com que teve ligações pessoais, e Emmanuel Mounier. A partir de 1944, passou a ser influenciado por Max Weber e se interessar pela teoria das organizações. Na área cultural, foi ligado ao Teatro Experimental do Negro-TEN, comandado por seu amigo Abdias do Nascimento, que lhe entregou a coordenação do departamento de estudos e pesquisas, denominado Instituto Nacional do Negro. Uma de suas atividades se deu com o “Seminário de Grupoterapia”, com base no psicodrama como um “espaço que possibilita catarse e reflexão das sequelas trazidas de um passado escravo, de uma vivência de ausência de um lugar, de uma identidade fragmentada”.

 

Assessorou o presidente Getúlio Vargas em seu 2º governo e pouco depois foi designado diretor do Departamento de Sociologia do ISEB-Instituto Superior de Estudos Brasileiros. O ISEB, com autonomia administrativa e plena liberdade de pesquisa e opinião, constituía-se num importante núcleo de formação da ideologia “nacional-desenvolvimentista”, que impregnou todo o sistema político no período 1954-1964. Ele foi um dos formuladores desta ideologia, junto com Hélio Jaguaribe, Candido Mendes de Almeida, Álvaro Vieira Pinto, Nelson Werneck Sodré etc. No ISEB, apoiou as propostas da CEPAL-Comissão Econômica para a América Latina, da ONU, e  publicou 2 livros que se tornaram clássicos: Introdução crítica à sociologia brasileira (1957) e A redução sociológica (1958).

 

Em 1960 entrou na política partidária, participando do diretório nacional do PTB-Partido Trabalhista Brasileiro. Em 1961 foi Delegado do Brasil na XVI Assembleia Geral da ONU, na Comissão de Assuntos Econômicos. No ano seguinte  candidatou-se a deputado federal na “Aliança Socialista Trabalhista”, formada pelo PTB e o PSB-Partido Socialista Brasileiro, quando obteve a 2ª suplência. Em seguida publicou o texto “Mito e verdade da revolução brasileira”, junto com seu manifesto ao PTB sugerindo que o partido renunciasse a “ideologia marxista-leninista”. Como jornalista, colaborou nos jornais “O Imparcial” (MG), “Última Hora”, “O Jornal” e “Diário de Notícias” (RJ). Seus artigos, analisando o marxismo, renderam-lhe viagens à URSS e China e diversas conferências internacionais.

 

De volta ao Brasil, escreveu uma série de artigos criticando o Partido Comunista, quando foi acusado de traidor e oportunista pelos colegas. Foi um dos primeiros intelectuais brasileiros a criticar Stalin. Desde meados da década de 1950 já era um pensador respeitável com livros publicados em espanhol. Foi professor da EBAP-Escola Brasileira de Administração Pública, da FGV, e ministrou cursos no DASP-Departamento de Administração do Serviço Público. Em 1955 deu aulas como professor-visitante da Universidade de Paris. Neste ano, foi publicado no México seu livro Sociologia de la mortalidade infantil, que impressionou o grande sociólogo russo Pitirim Sorokin.

 

No período de agosto de 1963 a abril de 1964, foi deputado federal e  teve os direitos políticos cassados pelo golpe militar de 1964. Na ocasião foi acolhido por Luis Simões Lopes, presidente da FGV, como professor. Em 1966 recebeu um convite da USC-University of Southern California, onde passou a lecionar e só voltou ao Brasil algumas vezes como visitante. Em princípios da década de 1970 foi “visit-fellow” da Yale University e professor-visitante da Wesleyan University. Faleceu em Los angeles, em 7/4/1982, e deixou publicado alguns livros essenciais ao conhecimento de seu País: Sociologia industrial (1951), Cartilha brasileira do aprendiz de sociologia (1955), Introdução crítica à sociologia brasileira (1957), Condições sociais do poder nacional (1957), O problema nacional do Brasil (1960), A crise do poder no Brasil (1961), A redução sociológica (1964). Seu último livro -A nova ciência das organizações: uma reconceitualização da riqueza das nações (1981)- foi publicado pela Universidade de Toronto e só depois teve sua tradução publicada no Brasil.

 

Outro livro -Mito e realidade da revolução brasileira (1963)- ficou conhecido como “o livro proibido de Guerreiro Ramos”. Publicado no ano anterior ao golpe militar, foi incluído no “index” dos livros proibidos pela ditadura e só foi republicado em 2016 pela Editora Insular. Trata-se da exposição de sua tese sobre a necessidade de um caminho brasileiro para o socialismo, contrapondo-se à importação de modelos de revolução. Desse modo, foi um livro que desagradou tantos os militares golpistas como os políticos e intelectuais de esquerda, que ainda seguiam a cartilha dos comunistas soviéticos, através do Partido Comunista. Certamente, esta foi uma das razões para que o livro caísse no limbo da história.    

 

Foi um sociólogo diferenciado, que não se via entre os intelectuais em discursões acadêmicas. Via-se como “um sociólogo em mangas de camisa”, como costumava dizer. Sua área de trabalho era a organização e administração pública, como indica sua vinculação a Fundação Getúlio Vargas. Em 2010, o Conselho Federal de Administração instituiu o “Prêmio Guerreiro Ramos de Gestão Pública”, concedido aos destacados gestores do ano. Em 2014 foi publicado, pela FGV numa edição bilingue, uma série de entrevistas de importantes professores e pesquisadores brasileiros (7) e norte-americanos (9) com depoimentos sobre a pessoa e seu legado: Guerreiro Ramos: coletânea de depoimentos, organizada por Bianor Cavalcanti, Yann Duzert e Eduardo Marques. 

 


José Domingos Brito - Memorial quarta, 04 de agosto de 2021

AS BRASILEIRAS : LYGIA CLARK

 

AS BRASILEIRAS: LYGIA CLARK

José Cominbos Brito

 

 

 

Lygia Pimentel Lins nasceu em 23/10/1920, em Belo Horizonte, MG. Pintora e escultora reconhecida como uma das mais destacadas artistas brasileiras do século 20, Foi uma das fundadoras do Movimento Neoconcretista, em 1959, e gostava de autointitular-se uma “não artista”, ou melhor ainda, uma “propositora”. Tinha como proposta a “desmistificação da arte e do artista e a desalienação do espectador”, cuja apreciação consistia num compartilhamento na criação da obra de arte.

 

Filha de uma família de juristas, mudou-se para o Rio de Janeiro em 1947 e iniciou estudos na área artística sob a supervisão de Burle Marx. Em seguida mudou-se para Paris, onde viveu por 3 anos  (1950-1952) e teve cursos mantidos por importantes artistas: Fernand Léger, Arpad Szènes e Isaac Dobrinsky. Trabalhou com desenhos e teve suas primeiras pinturas a óleo. Realizou sua primeira exposição individual no Institut Endoplastique em 1952. No mesmo ano retornou ao Rio e expôs suas obras no MEC-Ministério da Educação e Cultura. Logo, passou a integrar o “Grupo Frente”, composto por Ivan Serpa, Aluísio Carvão, Abraham Palatik, Lygia Pape e Hélio Oiticica. Reuniam-se no MAM e na casa do crítico Mario Pedrosa, constituindo-se no marco histórico do movimento construtivo no Brasil.

 

Em 1954 participou da Bienal de Veneza, com a série “Composições”, onde incorporou a moldura como elemento plástico em suas obras. A partir daí passou a trabalhar com instalações e “boy art”, uma manifestação da artes plásticas, onde o corpo do próprio artista pode ser utilizado como suporte ou meio de expressão. Em 1959, participou da I Exposição de Arte Neoconcreta, integrada por Ferreira Gullar, Amílcar de CastroFranz WeissmannLygia PapeReynaldo Jardim e Theon Spanudis. Sua proposta era que a pintura não se sustentava mais em seu suporte tradicional. Nas “Unidades, 1959”, moldura e “espaço pictórico” se confundem, um invadindo o outro quando pinta a moldura da cor da tela. É o que ela chama de “linha orgânica”.

 

Em 1960 lecionou artes plásticas no Instituto Nacional dos Surdos (RJ) e criou a série “Bichos”, construções metálicas geométricas que se articulam por meio de dobradiças e requerem a coparticipação do espectador. “Caminhando” (1964) é a obra que marca essa transição, onde o próprio participante realiza a obra de arte. Tal participação passa a ser constante em suas obras, levando-a a dedicar-se à exploração sensorial e a participar do Simpósio de Arte Sensorial, em Los Angeles em 1969. No ano anterior foi convidada pela Bienal Veneza a expor, em sala especial, toda a sua trajetória artística até aquele momento. Em seguida, decidiu mudar-se para Paris, onde viveu de 1970 a 1976. A partir daí sua arte tomou novo rumo, concentrando-se no desenvolvimento de experiências sensórias e seu uso terapêutico. Acreditava que arte e terapia andavam juntas. Assim, “com base em objetos manuseáveis que criava ou recolhia da natureza, como balões de ar, sacos de terra e água e até pedras, pensava ter o dom de curar os males da alma”.

 

Enquanto viveu em Paris, teve sessões de análise com o conhecido psicanalista Pierre Fédida e lecionou na Faculté d’Arts Plastiques St. Charles, na Sorbonne, de 1970 a 1975. Voltou ao Rio de Janeiro, em 1976 e intensificou o estudo das possibilidades terapêuticas da arte sensorial, trabalhando com objetos relacionais. Assumiu de vez este enfoque em suas obras e pouco depois estava proferindo palestra –“O método terapêutico de Lygia Clark”- no Teatro da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1982). Dessa época em diante passou a diminuir o ritmo de suas atividades e publicou os livros Rio meu doce rio e Livro-obra (1983), uma obra aberta contendo estruturas manipuláveis, contando a trajetória de sua obra desde as primeiras criações até o final de sua fase neoconcreta.

 

A partir da década 1980 sua obra ganha reconhecimento internacional com retrospectivas em várias capitais internacionais e em mostras antológicas. Uma grande retrospectiva, com sala especial dedicada a ela e Hélio Oiticica, foi realizada em 1986, por ocasião do IX Salão de Artes Plásticas, no Paço Imperial do Rio de Janeiro. Esta foi sua última exposição em vida. Foi vitimada por um ataque cardíaco em 25/4/1988. Sua obra foi umas das mais valorizadas no mundo das artes. Em maio de 2013, a obra “Contra Relevo” foi arrematada num leilão em Nova Iorque por US$ 2,2 milhões, tornando-se a obra mais valiosa de um artista brasileiro. Em agosto do mesmo ano, a obra “Superfície Modulante” alcançou a cifra de R$ 5,3 milhões, num leilão promovido pela Bolsa de Arte de São Paulo.

Em 2014, o MoMA-Museum of Modern Art, de Nova Iorque, apresentou uma grande retrospectiva com 300 obras reunidas a partir de coleções públicas e privadas, englobando 4 décadas de sua carreira artística. Hoje ela conta com obras expostas em 18 museus do mundo. Ao longo da carreira realizou 136 exposições coletivas e 20 individuais no Brasil e no exterior. Seu legado artístico ficou registrado no livro  Lygia Clark: obra-trajeto, de Maria Alice Milliet, publicado pela Edusp, em 1992. Outros livros explorando sua arte: O espaço de Lygia Clark (1994), de Ricardo Nascimento Fabbrini; Relâmpagos com furor: Lygia Clark e Hélio Oiticia, vida como arte (2004) de Beatriz Scigliano Carneiro e Lygia Clark: linhas vivas (2013), de Renata Sant’Anna e Valquíria Prates e Lygia Clark: the abandonment of art, 1948-1988, numa bela edição ilustrada contendo toda sua obra.

 

LYGIA CLARK, ARTISTA E TERAPEUTA - VIDA E OBRA

 


José Domingos Brito - Memorial quarta, 28 de julho de 2021

OS BRASILEIROS: JOÃO CÂNDIDO

 

OS BRASILEIROS: João Cândido

José Domingos Brito

 

 

 

João Cândido Felisberto nasceu em Encruzilhada do Sul, RS, em 24/6/1880. Militar da Marinha e líder da “Revolta da Chibata”, em 1910, ficou conhecido como “Almirante Negro”. Filho de ex-escravos, entrou na Escola de Aprendizes Marinheiros de Porto Alegre, em 1895. Ao contrário da maioria dos marinheiros, que eram recrutados à força pela polícia, alistou-se como grumete em 10/12/1895, aos 14 anos, no Rio de Janeiro.   

 

Viajou bastante pelo Brasil e vários países do mundo nos 15 anos que esteve na ativa da Marinha. Boa parte das viagens eram de instrução em navios de guerra. A partir de 1908, alguns marinheiros foram enviados à Inglaterra para acompanhar o final da construção de navios encomendados pelo governo. Lá ficou sabendo do motim feito pelos marinheiros russos, em 1905, numa luta por melhores   condições de trabalho. Trata-se da revolta do Encouraçado Potemkin, que virou filme do diretor Sergei Einsenstein em 1925. Era um marinheiro competente, admirado pelos colegas e elogiado pelo comandante, devido ao bom comportamento e por ser um bom timoneiro. Era a pessoa talhada para liderar a “Revolta da Chibata”. O uso da chibata na Marinha foi abolido, por lei, em 1889. Porém o castigo continuou a ser aplicado, a critério dos oficiais, no contingente de 90% de marujos negros e mulatos. O clima de revolta contra esse abuso crescia na tripulação. 

 

Num clima de revolta, os marinheiros, liderados por João Cândido, tiveram audiência com o Governo na presença do Ministro da Marinha, Alexandrino de Alencar, reivindicando o fim dos castigos físicos. Mas nada foi providenciado e os marinheiros decidiram fazer uma sublevação pelo fim do uso da chibata em 25/11/1910. Antes porém, ocorre um fato que precipitou a revolta. 3 dias antes, o marinheiro Marcelino Rodrigues de Menezes foi punido com 250 chibatadas, que não foram interrompidas mesmo após desmaiado, diante de toda a tripulação do navio Minas Gerais. A punição se devia ao fato de o marinheiro ter sido flagrado com uma garrafa de cachaça a bordo. 

 

Á noite do dia 22/11/1910, sabendo que o comandante, João Batista das Neves, dormiria fora do navio, os marinheiros planejaram a tomada de posse das armas, domínio dos oficiais em seus camarotes e o controle do navio, bem como dos demais ancorados na baia da Guanabara. No entanto, o comandante voltou mais cedo do que previsto e surpreendeu os marinheiros no início da revolta. Os ânimos acirrados de ambas as partes resultou no ferimento de um dos marinheiros pelo comandante. Um deles mais exaltado retrucou o ferimento com um tiro na cabeça do comandante e dá-se o combate nos navios Minas Gerais, Bahia e São Paulo com mais 2 oficiais e 3 marinheiros mortos.

 

João Cândido foi indicado pelos demais líderes como o comandante-em-chefe de toda a esquadra em revolta, composta por 6 navios. Acalmados os ânimos, o “Almirante Negro”, assim chamado pela imprensa, declarou ao Correio da Manhã: "As carnes de um servidor da pátria só serão cortadas pelas armas dos inimigos, mas nunca pela chibata de seus irmãos. A chibata avilta". Por 4 dias os navios de guerra Minas GeraisSão Paulo, Bahia e Deodoro apontaram seus canhões para a Capital Federal e mandaram um recado: "Nós, marinheiros, cidadãos brasileiros e republicanos, não podemos mais suportar a escravidão na Marinha brasileira". A rebelião, envolvendo 2379 homens, terminou com o compromisso do governo em acabar com o uso da chibata e conceder anistia aos revoltosos. A anistia foi aprovada no dia 25 e publicada no Diário Oficial, mas não foi cumprida pelo governo. No dia 28 foi publicado um decreto permitindo a expulsão de marinheiros que representassem algum risco para a Marinha.

 

Pouco depois correu o boato que o Exército iria se vingar da humilhação sofrida pelos marinheiros e deu-se a eclosão de um novo motim entre os fuzileiros navais, na Ilha das Cobras, em 9/12/1910. Não tinha ligação com a Revolta da Chibata, mas lá se encontravam presos muitos marinheiros participantes da revolta. O novo motim foi reprimido com um bombardeio sobre pouco mais de 200 amotinados e serviu de justificativa para o governo implantar a lei marcial. João Cândido chegou a ordenar tiro de canhão sobre os marinheiros-fuzileiros amotinados para provar sua lealdade ao governo. Mas, não adiantou. Com a lei marcial, centenas de marinheiros foram dados como mortos ou desaparecidos e 2000 marinheiros foram expulsos da Marinha. Onze foram fuzilados a bordo do Navio Satélite, que levava 105 marinheiros rebeldes para serem jogados nos seringais do Acre.

 

Apesar de não ter participado deste 2º levante (se é que houve),  João Cândido foi expulso da Marinha e preso em 13/12/1910. Foi encarcerado num cubículo, onde 16 dos 17 companheiros de cela morreram asfixiados. No mês seguinte foi transferido para o Hospital dos Alienados, como louco, mas logo retornou à prisão. Foi solto em 1912, contando com a defesa do rábula Evaristo de Moraes, que atuou

de graça. A partir daí passou a viver precariamente, trabalhando como estivador na Praça XV. Em 1930, em meio a efervescência política com o “Estado Novo”, foi preso acusado de subversão, mas logo foi solto. Em 1959 voltou à sua cidade natal para ser homenageado, mas a interferência da Marinha proibiu a cerimônia. No mesmo ano sua memória foi resgatada pelo jornalista Edmar Morel, no livro A Revolta da Chibata. O livro teve 5 edições e praticamente ressuscitou o líder da Revolta que voltou a ser notícia meio século após o acontecimento.  Em seguida o velho marinheiro recolheu-se em São João de Meriti, onde levou uma vida pacata, adoeceu e morreu de câncer em 6/12/1969, aos 89 anos. Na década seguinte, os compositores Aldir Blanc e João Bosco prestaram-lhe homenagem com a música “O mestre-sala dos mares”, mas a censura não gostou e seu apelido “Almirante Negro” teve que ser mudado para “Navegante Negro”. Em 1982, o historiador Marcos Antônio da Silva publicou o livro Contra a chibata: marinheiros brasileiros em 1910, lançado pela editora Braziliense. Por esta época, a “Revolta da Chibata” ainda era tema de interessa geral, fazendo com que o livro de Edmar Morel fosse reeditado pela quarta vez, em 1986.

 

Tantas lembranças da Revolta e o heroísmo de seu líder, levaram o historiador e almirante Helio Leoncio Martins a publicar o livro A revolta dos marinheiros 1910, em 1988, que se constituiu na versão oficial da Marinha. O livro foi incluído na “Coleção Brasiliana”, vol. 384, e destaca os problemas gerais de interpretação histórica. Seu relato pretende adotar uma posição neutra quanto ao movimento e refuta o reconhecimento de João Cândido como seu líder maior e como herói. Em 2005, seu nome foi apresentado como projeto de lei nº 5874/05, inscrevendo-o no “Livro dos Heróis da Pátria”. Porém, foi arquivado porque tal homenagem só poderia se dar após 50 anos da morte da pessoa. Este requisito foi adquirido em 2019, mas até agora nenhum projeto de lei foi reapresentado.

 

Em novembro de 2007, o “Almirante Negro” foi homenageado com uma estátua nos jardins do Museu da República (antigo Palacio do Catete). Na ocasião foi exibido o filme “Memórias da Chibata”, de Marcos Manhães Marins e uma exposição fotográfica. No ano seguinte, na comemoração da “Abolição da Escravatura”, foi publicada a Lei nº 11.756, concedendo anistia “post mortem” ao líder da Revolta e seus companheiros. No entanto, a Lei foi vetada pelo governo na parte em que determinava a reintegração de João Cândido à Marinha. Tal ato imporia à União concessão de aposentadoria e pensão aos seus dependentes, bem como uma possível corrida de outras famílias em busca de reparação financeira. A Lei foi vetada por não apresentar a necessária fonte de custeio. Na realidade, apenas 2 famílias se apresentaram como descendentes destes marinheiros. 

 

Em novembro de 2008, a estátua do “Almirante” foi transferida para a Praça XV de Novembro, no centro do Rio, num evento contando com a presença do presidente Lula, familiares do marinheiro etc. A Marinha não compareceu alegando não poder comemorar, pois prezava a disciplina e a hierarquia. Em 2010 foi dado o nome “João Cândido” ao navio petroleiro da Transpetro, a pedido do presidente da República. A última homenagem que se tem notícia ocorreu em 2018 com a peça Turmalina 18-50: os últimos dias do Almirante Negro em terra, do dramaturgo Vinicius Baião.

 

A REVOLTA DA CHIBATA - EDUARDO BUENO

 

 


José Domingos Brito - Memorial quarta, 21 de julho de 2021

AS BRASILEIRAS : JOHANNA DÖBEREINER

 

 

AS BRASILEIRAS:  Johanna Döbereiner

José Rodrigues Brito

 

 

Johanna Liesbeth Kubelka Döbereiner nasceu em 28/11/1924, em Aussig, República Checa. Engenheira agrônoma, pioneira na área de biologia do solo. Trabalhou no Instituto de Ecologia e Experimentação Agrícola do Serviço Nacional de Pesquisas Agronômicas, o precursor da Embrapa Agrobiologia. Sua atuação possibilitou o avanço do programa Pró-Álcool, além de colocar o Brasil como o 2º maior produtor de soja do mundo. Seus  estudos e pesquisas foram decisivas na produção de alimentos mais baratos e saudáveis, garantindo-lhe a indicação ao Prêmio Nobel de Quimica,  em 1997.

 

Filha do cientista Paul Kubelka, professor de Química da Universidade de Praga e fabricante de produtos químicos de uso na agricultura. O pai foi preso por ajudar judeus na persguição nazista e a mãeParte superior do formulárioParte inferior do formulário -Margarete Kubelka-, morreu num campo de concentração. Após um periodo de perseguições, a familia se instalou na região de Munique, onde ela ingressou na Universidade de Munique, em 1947, no curso de agronomia. Lá conheceu o estudante de medicina veterinária Jürgen Döbereiner, com quem se casou em 1950. Em seguida o casal veio para o Brasil e ela foi trabalhar com o Dr. Álvaro Barcellos Fagundes no atual Centro Nacional de Pesquisa em Agrobiologia da Embrapa, em Seropédica (RJ), onde vivia.  

 

Em sua primeira publicação tratou da relação entre bactérias fixadoras do nitrogênio e plantas superiores e causou estranheza entre os colegas por não haver na literatura qualquer relação entre estes elementos. Naturalizou-se brasileira em 1956 e pouco depois foi fazer pós-graduação nos EUA, onde concluiu o mestrado em 1963, na Universidade de Universidade de Wisconsin-Madison. Em seguida foi à Paris fazer um curso de bacteriologia, no Instituto Pasteur. De volta ao Brasil, montou uma equipe e deu inicio as pesquisas sobre a fixação de nitrogênio atmosférico em gramíneas (milho, sorgo e cana-de-açucar. Ela e seus colegas descreveram mais de nove  espécies de bactérias diazotróficas, fato inédito para o Brasil na área agrícola

 

Sua contribuição científica consistiu em aproveitar as associações entre plantas e bactérias fixadoras de nitrogênio (FBN), contrária ao uso da adubação nitrogenada obrigratória e desenvolvendo uma tecnologia capaz de diminuir e até eliminar nossa dependência desse modo de cultivo. Ou seja, a FBN possibilita a substituição de adubos químicos nitrogenados oferecendo, assim, vantagens econômicas, sociais e ambientais. Isto fez com que o Brasil tivesse o menor custo de produção de soja do mundo. Em 1974 foi a primeira cientista a descrever a ocorrência de uma associação ente bactérias fixadoras de nitrogênio do gênero Azospirillum e a gramínea Paspalum notatum, em seguida tais bactérias foram descritas para o milho e plantas forrageiras. Em 1988 estas associações foram extendidas para a cana-de-açucar. Pode-se dizer que suas descobertas causarm uma revolução na agricultura brasileira e propiciaram uma poupança de 1 a 2 bilhões de dólares por ano.

 

Foi uma das cientistas estrangeiras que mais se apegou ao Brasil. Na década de 1980, um centro de pesquisas canadense convidou-a para trabalhar ganhando 5 vezes mais seu salário na Embrapa. “Sou extremamente grata ao País que me acolheu quando eu precisei. Por amor ao Brasil, continuo na Embrapa”. Certa vez uma repórter disse-lhe “Mas a senhora não é brasileira!”. A resposta veio rápida: “Minha filha, talvez, mais do que você. Porque sou brasileira por opção, e não porque nasci aqui”.

 

Em pesquisa realizada pela Folha de São Paulo, em 1995, foi  considerada a mulher brasileira mais citada pela comunidade científica mundial, e a 7ª considerando-se todos os cientistas do país. Ocupou a vice-presidência daa Academia Brasileira de Ciências, membro da Academia de Ciências do Vaticano e da Academia de Ciências do Terceiro Mundo. Foi agraciada com diversas premiações: prêmio Frederico Menezes Veiga (Embrapa, 1976), prêmio Bernardo Houssay da OEA  (1979); Prêmio de Ciências da UNESCO (1989), Ordem de Mérito de Primeira Classe da República Federal da Alemanha (1990); Prêmio México de Ciência e Tecnologia  (1992) e Grã-Cruz da Ordem Nacional do Mérito (1994). Recebeu o título de doutora honoris causa da Universidade da Flórida (EUA) e da UFRJ.

 

Deixou mais de 500 artigos publicados nas principais revistas do mundo e teve participação destacada em mais de 60 seminários científicos internacionais. Exerceu a profissão até mesmo depois de ter sido diagnosticada com problemas neurológicos e veio a falecer em 5/10/2000. Seu colega e amigo, o geneticista Clodowaldo Pavan disse que “a contribuição de Johanna Döbereiner para a Ciência e o Brasil foi de um nível invulgar e por isso teve amplo reconhecimento internacional”. Disse bem: “amplo reconhecimento internacional”. Falta-lhe apenas o reconhecimento nacional, pois entre nós é uma ilustre desconhecida. Em reconhecimento ao seu trabalho, a Embrapa publicou o livro, uma fotobiogragia, Hanne - Johanna Döbereiner, uma vida dedicada à ciência, em 2018, produzida pela jornalista Kristina Michaelles, com ajuda do marido Jürgen Döbereiner.


José Domingos Brito - Memorial quarta, 14 de julho de 2021

OS BRASILEIROS - MILTON SANTOS

 

MILTON SANTOS

José Domingos Brito

 

 

                                                                                                                                                                                                                      Milton Almeida dos Santos nasceu em Brotas de Macaúbas, BA,  em 3/5/1926. Escritor, professor, jornalista, advogado, cientista e um dos maiores geógrafos do mundo. Considerado um dos mais destacados intelectual brasileiro, lutou contra o modelo de globalização vigente, que chamava de "globalitarismo", e propunha a construção de outra realidade possível, considerada mais justa e mais humana. 

 

Filho e neto de professores primários, apendeu álgebra e francês em casa. Aos 10 anos foi aluno interno do Instituto Baiano de Ensino, onde tomou gosto pela geografia com o prof. Oswaldo Imbassay. Aos 13 anos lecionava matemática e aos 15 geografia. Aos 22 formou-se em Direito pela UFBA, mas nunca advogou. Foi dar aulas de geografia no Colégio Municipal de Ilhéus. Por essa época tomou gosto pela política e entrou no jornalismo como correspondente do jornal “A Tarde” e depois editor sem abandonar a geografia. Seu 3º livro -Zona do cacau; introdução ao estudo geográfico- tornou-se um clássico como volume 296, da Coleção Brasiliana, em 1957.

 

Influenciado pela escola francesa do pós-guerra, seu interesse era centrado na geomorfologia e climatologia. Aos poucos foi se interessando pela demografia e por um entendimento global do meio físico-natural, incluindo a dimensão econômica nas relações cidade-campo, apartir da influência recebida do geógrafo Pierre George. Pouco depois do casamento com Jandira Rocha, mudou-se para Salvador tornando-se professor na Universidade Católica de Salvador, em 1956. No mesmo ano participou do Congresso Internacional de Geografia, no Rio de Janeiro, e travou contato com grandes geógrafos que já conhecia por suas obras. Na ocasião foi convencido por Jean Tricart a fazer um curso de doutorado no Instituto de Geografia da Universidade de Strasbourg, um dos mais renomados da Europa. Concluiu o curso em 1958, com a tese  O centro da cidade de Salvador, e retorna ao Brasil.  

 

De volta a Salvador, criou o Laboratório de Geomorfologia e Estudos Regionais da UFBA, sempre em contatos com os mestres franceses. Pouco depois tornou-se Livre Docente em Geografia Humana pela UFBA, participando ativamente da vida acadêmica, jornalística e política. Em 1961 o presidente Jânio Quadros convidou-a a participar da comitiva numa visita à Cuba e foi nomeado subchefe da Casa Civil na Bahia no curto mandato presidencial. Em 1963 foi eleito presidente da AGB-Associação dos Geógrafos Brasileiros e no mesmo ano o governador Lomanto Júnior convidou-o para  presidir a CPE-Comissão de Planejamento Econômico da Bahia. Enquanto isso, prestou concurso para lecionar na UFBA, mas teve os planos interrompidos pelo golpe militar, em abril de 1964.    

 

Foi preso pelo Exército, por 90 dias, e sofreu um AVC-Acidente Vascular Cerebral em meados de junho. Recuperou a saúde e foi solto após a intervenção do cônsul da França, em Salvador, Raymond Van der Haegen, junto aos militares. Havia recebido vários convites de universidades francesas e após 6 meses de prisão domicilar, partiu para a França já separado do primeiro casamento. Lecionou geografia na Universidade de Toulouse, achando que poderia voltar em breve com o fim da ditadura. Viveu 3 anos em Toulouse e mudou-se para Bordeaux, onde conheceu sua segunda esposa, Marie Hélene Tiercelin, entre suas alunas. Em maio de 1968, em plena efervescência politica, lecionava na Universidade Sorbonne e trabalhava como diretor de pesquisa em planejamento urbano no IEDES-Institut d’Étude du Développement Économique et Social. 

 

Em 1971 foi convidado para lecionar na Universidade de Toronto, no Canadá. Em seguida foi pesquisador do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), nos EUA, onde trabalhou com Noam Chomsky. Foi aí que iniciou sua grande obra -O espaço dividido-, publicada em 1979. Em seguida fez um périplo por alguns paises latino-americanos, universidades europeias e africanas.  Na veneuela, foi diretor de pesquisas sobre planejamento urbano num projeto da ONU e manteve contatos com técnicos da OEA-Organização dos Estados Americanos. Tais contatos lhe proporcionou um convite para lecionar na Faculdade de Engenharia de Lima, Peru, ao mesmo tempo em que foi contratado pela OIT-Organização Internacional do Trabalho para elaborar um estudo sobre a pobreza urbana na América Latina.

 

Por esta época foram intensificados os estudos sobre os processos de urbanização das cidades do “terceiro mundo”, que renderam novas viagens: volta à Venezuela para lecionar na Faculdade de Economia da Universidade Central; organizou o curso de pós-graduação em geografia na Universidade de Dar es Salaam, na Tanzânia, onde viveu por 2 anos, e recebeu convite para retornar ao Brasil, para lecionar na Universidade de Campinas. Mas as condições políticas do Brasil na época não lhe eram favoráveis. A Columbia University, em Nova Iorque soube aproveitar melhor seu talento. Em fins de 1976 houve novos contatos para trabalhar no Brasil. Tentou a UFBA, mas ocorreram novos impedimentos. Recebeu convite para lecionar na Nigéria, mas a vontade de retornar ao Brasil era maior. Algumas colegas geógrafas brasileiras se empenharam em trazê-lo e conseguiram um posto como consultor de planejamento urbano na EMPLASA-Empresa Paulista de Planejamento Metropolitano.              

 

Com seu retorno deu-se uma grande mudança estrutural no ensino e na pesquisa em Geografia no Brasil. Em 1977 passou a lecionar na UFRJ e no ano seguinte foi contratado como professor titular do Departamento de Geografia da USP, onde permaneceu até sua aposentadoria, em 1997, e continuou como professor convidado. Seu livro Por uma nova geografia, publicado em 1978, abriu caminhos para o entendimento de novas configurações urbanas e causou impacto na área. Suas atividades no ensino e execução de projetos lhe garantiu a conquista do Prêmio  Internacional de Geografia Vautrin Lud, em 1994, uma espécie de Nobel da Geografia. Foi o único latino-americano a receber a comenda.

 

Em meados de 1990, soube que portava um câncer de próstata, mas continuou na USP até 2000 e lançou mais 2 livros. No ano seguinte, a doença agravou-se e veio a falecer em 24/6/2001. Uma de suas expressivas contibuições ao estudo da geografia urbana foi derrubar as velhas noções de centro e periferia. Antes mesmo que o conceito de “Globalização” se generalizasse, ele já advertia para “a possibilidade do fim da cultura como produção orginal do conhecimento”. Não se trata de ser contra a globalização e sim contra o modelo vigente no mundo, que ele chamava de “globalitarismo”. Tais ideias foram apresentadas em seu último livro Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal (2000). No penúltimo livro A natureza do espaço (1996) pretendeu estabelecer “uma teoria geral do espaço humano, uma contribuição da geografia e reconstrução da teoria social”.    

 

Além das diversas homenagens e premiações, recebeu títulos de Doutor Honoris Causa de 14 universidades no Brasil e exterior e deixou mais de 40 livros publicados, muitos deles em diversas edições. Devido a sua contribuição no ensino superior e afim de reverenciar sua memória, a ABMES-Associação Brasileira de Mantenedores de Ensino Superior instituiu, em 2004, o Prêmio Milton Santos de Educação Superior, outorgado a cada dois anos aos nomes indicados pelas instituições associadas. Uma biografia homenageando-o  foi publicada na revista eletrônica “Scripta Nova”, da Universidade de Barcelona, em 2002 e pode ser consultada no link El ciudadano, la globalización y la geografía. Homenaje a Milton Santos (ub.edu)

 

ENCONTRO COM MITON SANTOS

 


José Domingos Brito - Memorial terça, 06 de julho de 2021

AS BRASILEIRAS : MARIA DO CARMO TAVARES DE MIRANDA (ARTIGO DE JOSÉ DOMINGOS BRITO, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

 

 AS BRASILEIRAS: MARIA DO CARMO TAVARES DE MIRANDA

José Domingos Brito

 

 

Maria do Carmo Tavares de Miranda nasceu em Vitória de Santo Antão, PE, em 6/8/1926. Filósofa, pedagoga, teóloga e tradutora em 8 idiomas, incluindo o grego, latim, aramaico e hebraico. Era chamada por Gilberto Freyre, de quem foi assistente, de “filósofa de Paris”. Ocupou o cargo de professora livre docente em filosofia da educação da UFPE-Universidade Federal de Pernambuco por mais de 20 anos.

 

Teve sólida formação escolar na condição de filha do professor André Tavares de Miranda, que mantinha um educandário na cidade. Era irmã do conhecido colunista social Tavares de Miranda, da Academia Paulista de Letras. A formação acadêmica se deu com duas graduações (Letras Clássicas e Filosofia) na UFPE e dois títulos de doutora em Filosofia pela Universidade de Sorbonne, em Paris (1956), e pela Universidade de Friburgo, na Alemanha. Em 1966, junto com Gilberto Freyre, teve atuação destacada no Seminário de Tropicologia, mantido pela Fundação Joaquim Nabuco, no Recife, e assumiu sua direção com o falecimento do sociólogo, em 1987. Neste cargo coordenou a publicação dos Anais do Seminário e organizou o curso Fundamentos da Tropicologia, em 1988.

 

Tropicologia, em resumo, vem a ser uma nova área de estudo englobando a sociologia, antropologia e ecologia surgida em princípios do século XX para combater a ideia de que o trópico é inabitável pela raça caucasiana. A crença era que as mais brilhantes civilizações floresciam principalmente nas zonas temperadas. A faixa intertropical, seguindo este raciocínio, era vista como o habitat de negros e bugres incultos. Tanto o trópico seco se mostrava hostil à civilização, como o trópico húmido se constituía num pesadelo com suas endemias. Nestes ambientes imperava a pobreza devido indolência inerente às raças inferiores, as únicas que conseguiam sobreviver em tais condições. Tratam-se de conceitos, ou melhor, de preconceitos enraizados na sociedade elitista.  No Brasil, Gilberto Freyre foi um dos mais destacados estudiosos da Tropicologia.   

 

Enquanto coordenadora do mestrado em Filosofia da UFPE, no período 1979-1982, implantou a Biblioteca do Curso e o Seminário de Pesquisa Filosófica. Recebeu forte influência do filósofo alemão Martin Heidegger, de quem foi aluna, assistente e tradutora de sua obra Da experiência do pensar. Em 1977, publicou o livro Sobre o caminho do campo de Martin Heidegger, onde homenageia o mestre além de fazer uma apurada análise de sua obra. Em 1983 entrou para Academia Pernambucana de Letras e 3 anos depois aposentou-se como professora da UFPE, ocasião em que recebeu o título de professora emérita daquela universidade. A partir daí passou atuar como professora visitante e conferencista em universidades brasileiras e no exterior. 

 

Atuou como membro titular de diversas instituições: Sociedade Interamericana de Filosofia, Associação Latino-Americana de Filósofos Católicos, Instituto Brasileiro de Filosofia, Sociedade Helênica de Estudos Filosóficos, Associação Goerres Gesellschaft para o Desenvolvimento Científico, Conselho Estadual de Cultura de Pernambuco, Instituto de Conhecimento Hebraico, Academia Brasileira de Filosofia e Academia Internacional de Filosofia da Arte, em Atenas. Tais participações não a afastaram de sua cidade natal, no interior de Pernambuco. Era membro do Instituto Histórico e Geográfico de Vitória de Santo Antão e deixou todos seus bens móveis (incluindo a biblioteca) e imóveis doados em testamento ao Instituto após seu falecimento em 20/12/2012.

 

Colaborou com diversas revistas nacionais e estrangeiras, com artigos sobre filosofia, educação e religião. Dentre os livros publicados, destacam-se: Educação no Brasil: esboço de estudo histórico (1960–2.ed. 1975-3.ed. 1978),      Fé hoje? (1966), Os franciscanos e a formação do Brasil (1969-2.ed. 1976),           O ser da matéria (1976), Conjugando memórias (1987), Caminhos do filosofar (1991), L’art, la science et la méthaphysique (1993), Aventura humana (1996), Papas: trajetória e testemunhos (2008).

 

 

 

 

 


José Domingos Brito - Memorial quarta, 30 de junho de 2021

OS BRASILEIROS - JOSÉ MINDLIN

 

OS BRASILEIROS: JOSÉ MINDLIN

José Domingos Brito

 

 

 

José Ephim Mindlin nasceu em São Paulo, SP, em 8/9/1914. Jornalista, advogado, editor, empresário, escritor e um dos maiores bibliófilos do mundo. Sua biblioteca com 40 mil livros raros foi doada, ainda em vida, à Universidade de São Paulo, constituindo-se na “Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin“, o maior acervo de livros sobre o Brasil.  

                                                                                                                     

Aos 15 anos trabalhou como repórter no jornal O Estado de São Paulo e em seguida entrou na Faculdade de Direito da USP-Universidade de São Paulo. Formado em 1936, viajou para Nova Iorque, onde realizou cursos de extensão universitária. De volta ao Brasil, trabalhou como advogado até 1949. Por esta época foi vice-presidente da Congregação Israelita de São Paulo e auxiliou muitos judeus perseguidos pelo nazismo. Dotado de espírito empreendedor, juntou-se a um grupo de amigos e fundou a Metal Leve S/A, fabricante de peças automotivas, em 1951. Foi uma empresa pioneira em pesquisa e desenvolvimento tecnológico e a primeira multinacional brasileira, com 7 mil funcionários e 2 fábricas nos EUA.

 

Em 1996, a Metal Leve foi vendida à multinacional alemã “Mahle” e Mindlin passou a se dedicar ao que mais gostava de fazer: colecionar livros raros e organizar sua biblioteca, com  ajuda de sua esposa Guita Mindlin, bibliotecária especializada em restauração de livros. Seu apego aos livros raros iniciou cedo. Aos 13 anos adquiriu o Discours sur l’histoire universelle, de 1740, de Jacques-Benigne-Bossuet e não parou mais. Perambulava pelos sebos de São Paulo e verificou que os livreiros não se comunicavam entre si. Um livro era vendido num sebo por um preço e noutro era vendido por 10 vezes mais. Ele passou a comprar barato num e vender caro noutro. Mas não queria dinheiro; trocava o seu com uma porção de livros, que foram acumulando em sua biblioteca. Quando os livreiros se deram conta de sua artimanha, passaram a uniformizar os preços e acabaram com seu lucrativo negócio. Mas, até aí ele já havia adquirido uma boa porção de livros mais ou menos raros.

 

Tempos depois resolveu abrir uma livraria (sebo chic), deu o nome “Parthenon” e passou a vender e comprar livros. Os bons livros vendidos tinham o nome e endereço do comprador registrado. Mais tarde, tais livros eram readquiridos por um preço bem mais caro. Está visto que seu negócio como livreiro não podia prosperar. Assim, logo fechou a livraria e prosseguiu no ramo da bibliofilia. Na década de 1970, Rubens Borba de Moraes, seu amigo e um dos maiores bibliófilos do mundo, resolveu vender 1/3 de sua biblioteca para uma universidade norte-americana. Na época Mindlin era Secretário de Cultura, Ciência e Tecnologia. Quando soube que a venda estava sendo articulada, procurou Rubens e disse-lhe que não permitiria  sua realização. A biblioteca teria que ser vendida para ele. Rubens contra-argumentou  que não poderia interromper a negociação, mas que ele, na condição de secretário de estado, poderia. Assim, Mindlin enviou ofício à universidade esclarecendo que aqueles livros eram parte do patrimônio histórico nacional e que não poderiam sair do País.

 

Pagou o preço já combinado com a universidade e assim sua biblioteca foi ampliada significativamente não apenas em termos de quantidade. A partir daí os dois grandes bibliófilos brasileiros passaram a trocar ideias sobre o destino de suas bibliotecas quando não estiverem mais por aqui. Concluíram  que a reunião daquele riquíssimo acervo deveria ficar em poder do Estado, aberto à consulta do público. Dito e feito, quando Rubens faleceu, em 1986, sua biblioteca foi incorporada a de Mindlin, que passou a negociar com a USP os termos da doação.

A doação foi concretizada em 2006, ano em que entrou para a Academia Brasileira de Letras. Na ocasião, declarou: “Nunca me considerei o dono desta biblioteca. Eu e Guita éramos os guardiães destes livros que são um bem público”. Em alguns livros colocou o “ex-libris” elaborado por sua filha: “Le ne fan riem sam”. Não faço nada sem alegria, era seu lema de vida.  

 

Em seguida teve início a construção do prédio da “Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin” no campus da USP, abrigando também o Instituto de Estudos Brasileiros. A biblioteca foi inaugurada em 25/3/2013 e entre as preciosidades do acervo, encontram-se a primeira edição de Os Lusíadas, de Luiz de Camões (1572) e os Triunfos, de Petrarca (1488), o livro mais antigo. Conta também com alguns originais e manuscritos de Graciliano Ramos (Vidas secas), Guimarães Rosa (Grande sertão veredas) e Rachel de Queiroz (O Quinze) e primeiras edições de Marília de Dirceu (1810), de Thomaz Antônio Gonzaga; A Moreninha (1844), de Joaquim Manuel de Macedo e O Guarani (1857), de José de Alencar.

 

Nunca teve atuação direta na política, mas participou como dirigente e conselheiro de diversos órgãos culturais e da administração pública: Conselho Superior da FAPESP-Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, Conselho de Tecnologia da FIESP-Federação das Indústrias do Estado de São Paulo, Conselho do CNPq-Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia, IPT-Instituto de Pesquisa Tecnológica, Comissão Nacional de Tecnologia da Presidência da República, entre outros. Colaborou também como membro de diversas instituições culturais: Academia Brasileira de Ciências, Museu da Arte Moderna do Rio de Janeiro e Museu de Arte Moderna de São Paulo, Museu Lasar Segal, Museu de Arte Moderna de Nova Iorque, Sociedade de Cultura Artística de São Paulo etc. Como bibliófilo foi membro emérito da Diretoria da John Carter Library, dos EUA, uma das principais bibliotecas do mundo de livros raros e da Associação Internacional de Bibliófilos, em Paris.   

 

Apesar de não participar diretamente na política, mantinha firme oposição contra a ditadura e foi um dos poucos industriais paulistas que se recusou a colaborar com a OBAN-Operação Bandeirantes na repressão política logo após o AI-5 em 1968. Em meados da década de 1970, na condição de Secretário da Cultura, Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo, indicou o jornalista Vladimir Herzog para chefiar o Departamento de Jornalismo da TV Cultura. Em 1975, quando o jornalista foi assassinado nos porões da OBAN, ele pediu demissão do cargo e nunca mais teve atuação em cargos públicos.

 

Faleceu em 28/2/2010, aos 95 anos por falência múltipla de órgãos e no mês seguinte foi condecorado com a Grã-Cruz da Ordem do Ipiranga pelo Governo de São Paulo. Durante sua longa vida, colecionou inúmeras homenagens e títulos: doutor honoris causa da Brown University (EUA), Universidade de Brasília, FGV-EAESP, USP, UFBA, prêmio Juca Pato, da UBE-União Brasileira de Escritores, Prêmio Unesco, categoria cultura e Medalha do Conhecimento concedida pelo Ministério de Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior. Deixou uma biografia publicada em 1997, pela Cia. das Letras, numa bela edição com fotos de sua biblioteca, explicitando no título sua convivência com os livros: Uma vida entre livros: reencontros com o tempo e memórias esparsas de uma biblioteca.

 


José Domingos Brito - Memorial quarta, 23 de junho de 2021

AS BRASILEIRAS : ELIZABETH TEIXEIRA (ARTIGO DE JOSÉ DOMINGOS BRITO, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

ELIZABETH TEIXEIRA

José Domingos Brito

Elizabeth Teixeira

 

 

 

 

Elizabeth Altino Teixeira nasceu em 13/2/1925, em Sapé, PB. Camponesa e ativista política como líder do movimento das “Ligas Camponesas”, em princípios da década de 1960. Viveu 17 anos na clandestinidade após o Golpe Militar de 1964 e foi “ressuscitada” pelo cineasta Eduardo Coutinho em 1984, com o filme “Cabra marcado para morrer”. Ficou conhecida como símbolo da resistência da mulher na luta pela reforma agrária e liberdade política.

 

O filme é um semidocumentário sobre a vida de seu marido, João Pedro Teixeira, líder das “Ligas Camponesas”, assassinado em 1962, cujas filmagens foram interrompidas em 1964 com o golpe militar. O filme foi retomado em 1981 com depoimentos dos camponeses que participaram da primeira filmagem e da viúva de João Pedro –Elizabeth Teixeira-, que assumiu a liderança do movimento até 1964, quando passou a viver escondida até 1981 e foi encontrada pelo cineasta. Assim, ela pode reencontrar alguns de seus 11 filhos dispersos desde 1964. Premiado no Festival de Berlim e no Festival Cine Realidade, de Paris em 1985, o filme recebeu outras premiações nacionais e internacionais, incluindo o prêmio Hours Concours do Festival de Gramado naquele ano. Foi considerado pela ABRACCINE-Associação Brasileira de Críticos de Cinema como um dos 100 melhores filmes brasileiros de todos os tempos.

 

Passou a infância numa família modesta, mas remediada com pai comerciante e estudou até o curso primário. Parou os estudos para ajudar a família trabalhando na mercearia do pai. Aí encontrou seu namorado João Pedro, que não foi aceito pela família pelo fato de ser negro e pobre. Aos 16 anos fugiu de casa para viver com ele no Recife. Envolvido no movimento sindical, ele participou da criação do Sindicato dos Trabalhadores da Construção e devido a isto teve dificuldades para encontrar emprego no Recife. A família teve que voltar a viver em Sapé, trabalhando na agricultura. Na década de 1960 participou do movimento “Ligas Camponesas”, institucionalizado em 1955 pelo advogado Francisco Julião, deputado estadual e defensor dos camponeses.

 

Em 1962, com o acirramento da luta sindical no campo, João Pedro foi assassinado numa emboscada de pistoleiros. Ela reuniu o pessoal das Ligas numa assembleia de mais de 2 mil camponeses e assumiu a liderança do movimento. Sofreu alguns atentados e algumas prisões afim de intimidá-la porém sem sucesso. Numa dessas voltas da cadeia para casa, encontrou a filha mais velha morta. Cometeu suicídio achando que a mãe havia sofrido o mesmo destino do pai. Após o golpe de 1964, tentaram incendia sua casa, mas não a encontraram. Ao saber do ocorrido fugiu pelo mato e conseguiu chegar ao Recife. Depois foi para João Pessoa procurar os filhos e foi presa por 4 meses.

 

Uma vez solta,  passou a viver na clandestinidade adotou outro nome e foi viver em São Rafael (RN) com um dos filhos. Os outros foram viver com os parentes. Para sobreviver passou a dar aulas às crianças pobres em troca de alimentação. Saiu da clandestinidade em 1981, quando Eduardo Coutinho encontrou-a com a ajuda de um dos filhos mais velho, jornalista vivendo em Patos (PB). Assim, o filme foi retomado e ela foi incorporada nas filmagens, assumindo o papel de protagonista no lugar do falecido marido. Auxiliada pelo cineasta, ela conseguiu reencontrar os filhos dispersos pelo Rio de Janeiro, Recife São Paulo e Cuba e foi beneficiada pela Lei da Anistia, em 1979.  

 

A partir daí pode-se dizer que nasceu de novo, agora no papel de uma senhora de fibra e convicta de sua atuação no movimento dos trabalhadores agrícolas 20 anos antes, uma sobrevivente do golpe de 1964. Devido a esta participação no filme o cineasta deu-lhe uma casa em João Pessoa (PB), onde passou a residir. Em seguida, com o sucesso do filme, passou a receber homenagens e convites para palestras em diversas instituições. Em 2006 foi agraciada com o “Diploma Bertha Lutz”, concedido pelo Senado Federal. No mesmo ano recebeu a “Medalha Epitácio Pessoa”, a maior comenda da Assembleia Legislativa do Estado da Paraíba. Em 2011, a casa em que viveu com João Pedro foi tombada e destinada a sediar o Memorial das Ligas Camponesas criado em 2008.           

 

Em 2012, a EDEPB-Editora da Universidade Estadual da Paraíba publicou uma bela e completa biografia –Eu marcharei na tua luta!: a vida de Elizabeth Teixeira, obra organizada pelas pesquisadoras Lourdes Maria Bandeira, Neide Miele  e Rosa Maria Godoi Silveira. Em 2017, ao completar 92 anos, o Memorial das Ligas Camponesas junto com o Centro de Comunicação , Turismo e Artes da UFPb e a Secretaria de Cultura do Estado promoveram a “Semana Elizabeth Teixeira” nos dias 13-18 de fevereiro, no Campus da UFPb, na Usina Cultural Energisa e na Escola de Formação João Pedro e Elizabeth Teixeira/MST em Lagoa Secas com uma extensa programação de homenagens, filmes, debates e palestras sobre seu legado e luta em defesa da reforma agrária. Dona Elizabeth Teixeira ficou conhecida como uma “Mulher marcada para viver”. 


José Domingos Brito - Memorial quarta, 16 de junho de 2021

OS BRASILEIROS: ALEIJADINHO

 

 

OS BRASILEIROS: Aleijadinho

José Domingos Brito

 

 

Antônio Francisco Lisboa nasceu em Ouro Preto, MG, em 1738. Carpinteiro, arquiteto, entalhador e o mais destacado escultor do período colonial. Suas obras e esculturas em pedra-sabão, entalhes em madeira, altares, retábulos, igrejas e peças de arte sacra encontram-se em diversas cidades históricas de Minas Gerais. Filho da escrava Isabel e do português e mestre de carpintaria Manuel Francisco Lisboa. Com o pai e o pintor João Gomes Batista aprendeu as noções básicas de arquitetura, desenho e escultura.

 

Seus primeiros estudos, além de latim, religião e música, se deram com os padres de Vila Rica. Em meados do séc. XVIII, graças ao garimpo de ouro, a cidade foi palco de um movimento artístico, onde ele pode desenvolver as atividades de arquiteto e escultor. Porém, na condição de mestiço, seu talento não era reconhecido, nem seus trabalhos recebiam sua assinatura. Só mais tarde, quando a fama chegou a outras cidades e sua obra se encontrava em pleno esplendor, é que seu nome foi reconhecido não só como artista, mas também como animado festeiro e dançarino. Seu primeiro trabalho se deu em 1752 com um chafariz no Palácio dos Governadores de Ouro Preto. Em 1756 viajou para o Rio de Janeiro, onde conheceu grandes obras arquitetônicas, que vieram a influenciar suas obras. 2 anos após, esculpiu mais um chafariz no Hospício da Terra Santa, considerada a primeira obra no estilo “barroco tardio”.

 

Em seguida fez diversos trabalhos em igrejas, tais como a matriz de São João Batista (hoje, Barão de Cocais) e a fachada da Igreja do Carmo, em Ouro Preto. Sua primeira obra de vulto se deu em 1766 com a ornamentação da igreja da Ordem Terceira de São  Francisco, em Ouro Preto. Em princípios de 1770 organizou sua oficina, que foi regulada e reconhecida pela Câmara de Ouro Preto em 1772, e passou a comandar uma equipe de artesãos e dar pareceres sobre obras arquitetônicas de igrejas. Em 1977 foi diagnosticado com a doença hanseníase, deformando seus pés e mãos. No entanto, não deixou de trabalhar. A partir daí as peças foram talhadas com a ajuda dos auxiliares e quando seu talento era exigido, amarrou correias de couro nas mãos para segurar o cinzel, o martelo e a régua. O apelido “Aleijadinho” passou a vigorar a partir de 1790. Uma de suas obras mais expressivas -66 esculturas de madeira encenando a “Via sacra” em Congonhas do Campo- foi concluída em 1799. No ano seguinte e no mesmo local iniciou as esculturas dos “Doze Profetas” em pedra-sabão no adro do Santuário do Bom Jesus de Matosinhos, cuja planta imita o santuário de Bom Jesus de Braga, em Portugal.    

 

Em Ouro Preto a Igreja de São Francisco de Assis, considerada uma obra prima do barroco brasileiro, foi iniciada em 1776 e concluída em 1794. Além da planta da igreja, elaborou a talha; a escultura do frontispício; dois púlpitos com figuras de santos; pia batismal; altar principal com as imagens da Santíssima Trindade e dois anjos. A fachada conta um vistoso medalhão com a imagem do santo. Seu estilo é marcado pela presença do dourado e repleto de detalhes, como arabescos e “rocalhas” imitando rochedos, grutas e produtos brutos da natureza, construídas com pedras, conchas etc. Os anjos e querubins têm formas arredondadas; as torres apresentam um recuo em relação à fachada das igrejas, constituindo-se num ícone do barroco brasileiro.   

 

Sua vida é cercada de lendas e controvérsias, pois todos os dados disponíveis foram extraídos de uma biografia escrita em 1858 por Rodrigo José Ferreira Bretas, 44 anos após sua morte 18/11/1814. Os críticos tendem a considerá-la um pouco fantasiosa; acham que sua personalidade e obra foi manipulada e romantizada com o intuito de elevá-lo à condição de ícone da brasilidade. No entanto, é o único registro existente, sobre o qual foram feitas as biografias posteriores. Após sua morte, passou por um período de relativo obscurecimento, não obstante ter sido comentado por alguns viajantes e eruditos na primeira metade do séc. XIX, como Auguste de Saint-Hilaire e Richard Burton. A fama do artista voltou com força em princípios do séc. XX através das pesquisas de Affonso Celso e Mário de Andrade.

 

Os modernistas, engajados num processo de criação de um novo conceito de brasilidade, encararam-no como um paradigma nacional: um mulato, símbolo do sincretismo cultural e étnico brasileiro. Mário de Andrade, no texto Aleijadinho (1928), entusiasmado com sua história e obra, chegou a criticar os europeus que comentavam suas obras sem considerá-lo um gênio. A partir dessa época muita bibliografia foi produzida nesse sentido, criando uma aura assumida pelas instâncias oficiais da cultura nacional. Tais estudos foram ampliados posteriormente por pesquisadores, como Roger Bastide, Gilberto Freyre, Rodrigo Melo Franco de Andrade entre outros. O artista na opinião de alguns críticos: German Bazin louvou-o como o “Michelangelo brasileiro”; Lezama Lima acha que ele é “a culminação do Barroco americano”; Carlos Fuentes considera-o o “maior ‘poeta’ da América colonial”; Regis St. Louis destaca-o na história da arte internacional; John Crow coloca-o ao lado dos criadores mais dotados deste hemisfério em todos os tempos.   

 

A quantidade de obras que lhe foram atribuídas tem variado ao longo do tempo, devido mesmo ao valor que adquiriram no mercado. Um catálogo geral publicado por Marcio Jardim em 2006, conta com 425 peças. Um nº muito superior as 163 obras contadas em 1951 numa primeira catalogação. Um estudo realizado por Myriam de Oliveira, Antonio Batista dos Santos e Olinto Rodrigues e publicado pelo IPHAN-Instituto do Patrimônio Artístico Nacional, em 2003, contestou centenas dessas atribuições. Guiomar de Grammont não acredita nestes números e alegou ter “razão para desconfiar que existe um conluio entre colecionadores e críticos para valorizar obras anônimas". Independente dessa controvérsia, seu prestígio junto à crítica especializada acompanha seu prestigio entre os leigos. Em 2007 o Centro Cultural Banco do Brasil realizou a exposição “Aleijadinho e seu tempo: fé engenho e arte”, atraindo um público recorde de 968.577 visitantes.

 

Sua história já foi retratada no cinema e na TV. Em 1915 Guelfo Andaló dirigiu a primeira cinebiografia; em 1968 foi interpretado por Geraldo Del Rey no filme Cristo de Lama; por Maurício Gonçalves no filme Aleijadinho:  paixão, glória e suplício (2003) e Stênio Garcia num Caso Especial da TV Globo. Em 1978 foi tema de um documentário -O Aleijadinho- dirigido por Joaquim Pedro de Andrade e narrado por Ferreira Gullar. Em 1968 foi inaugurado o “Museu Aleijadinho”, em Ouro Preto, onde é realizada regularmente a “Semana do Aleijadinho”, evento reunindo artistas e historiadores com palestras e exposições. Dentre suas várias biografias, destacam-se: O Aleijadinho e a escultura barroca no Brasil (Record, 1963), de Germain Bazin; Vida e obra de Antônio Francisco Lisboa: o Aleijadinho (Cia. Ed. Nacional, 1979), de Sylvio Vasconcellos; O Aleijadinho: sua vida, sua obra, seu gênio (Difel, 1984), de Fernando Jorge; Aleijadinho e o aeroplano: o paraíso barroco e a construção do herói (Civilização Brasileira, 2008), de Guiomar de Grammont.

 

Documentário – O Aleijadinho

 

 


José Domingos Brito - Memorial quarta, 09 de junho de 2021

AS BRASILEIRAS: MARIA DA CRUZ

 

AS BRASILEIRAS: Maria da Cruz

 

 

 

 

Maria da Cruz Porto Carreiro nasceu em Penedo, comarca de Alagoas, na época pertencente ao bispado de Pernambuco, em princípios do século 18. Sabe-se que era filha do capitão-mor de Sergipe del Rei, Pedro Gomes de Abreu, e ficou viúva do paulista Salvador Cardoso de Oliveira, em 1734, quando passou a administrar a grande propriedade da família no sertão de Minas Gerais, local hoje uma cidade que leva seu nome: Pedras de Maria da Cruz. Foi uma mulher que não consta na lista das heroínas brasileiras, mas liderou uma revolta -“Sedição de 1736”-, conhecida na historiografia como “Motins do Sertão” contra os impostos de Portugal, que durou 5 meses e abalou o sertão daquelas plagas.

 

Sua história confunde-se com o mito criado em seu entorno, tornando-a uma figura emblemática na História do Brasil. Porém conta com dados obtidos em registros cartoriais e arquivos históricos que asseguram certa veracidade. Foi citada por Guimarães Rosa, numa passagem do romance Grande Sertão: veredas:  “Mas, dali por diante, eu queria encostar direto com as ordens de Titão Passos -Ele é meu amigo... Diadorim no meu ouvido falou- Ele é bisneto de Pedro Cardoso, transneto de Maria da Cruz”. Os primeiros dados biográficos encontram-se no livro História média de Minas Gerais, escrito em 1918 por Diogo de Vasconcelos e publicado pela Imprensa Oficial, apresentando-a como uma mulher independente, culta, corajosa e benemérita junto aos seus criados.

 

Tais dados são confrontados com outras histórias apresentando-a como “Maria da Cruz da Perversidade”, dado o rigor no trato com seus empregados e escravos. Estes dois retratos receberam um tratamento histórico mais apurado com a pesquisa realizada pelas historiadoras Angela Vianna Botelho e Carla Anastasia, que resultou no livro D. Maria da Cruz e a sedição de 1736, publicado em 2012 pela Editora Autêntica. Assim, é possível traçar um esboço biográfico mais condizente com a realidade. Na época Portugal intensificou os impostos cobrados dos garimpeiros nas “minas gerais”. Já havia imposto o “quinto dos infernos”, 20% da riqueza obtida na região e que resultou na “Revolta de Vila Rica”, comandada por Felipe dos Santos, em 1720.

 

Tal imposto não se aplicava ao sertão, que cobrava apenas 10% da produção local. Em 1735, a coroa portuguesa decidiu amentar os impostos no sertão, mas encontrou resistência na disposição de Maria da Cruz, que não admitiu a cobrança e liderou a “Sedição de 1736”.  O primeiro motim eclodiu em março no Arraial de Capela das Almas. O segundo se deu em maio no sítio de Montes Claros. Em agosto deu-se a batalha final com 900 homens, a pé e a cavalo, e 500 índios cativos armados com arco e flecha, que entraram no Arraial de São Romão, onde se deu o embate. Após 4 meses de lutas e muitas mortes, foi presa junto com o filho Pedro Cardoso, um dos líderes da revolta. Foram levados para Vila Rica e pouco depois para uma fortaleza no Rio de Janeiro, devido a importância dos presos e da revolta causada.

 

Aí ficaram presos mais de um ano e foram transferidos para uma fortaleza mais segura em Salvador, em 1738. Mãe e filho foram julgados pelo Tribunal da Relação da Bahia. Todos os bens da família foram confiscados e a penalidade do filho foi o degredo para a África, em Moçambique, onde reconstruiu a vida como rico minerador e tornou-se capitão-mor do Zimbábue. A mãe foi condenada a pagar uma multa de 100 mil réis e 6 anos de desterro na África. No entanto, pelo fato de ser mulher, viúva e já ter sofrido a perda dos bens, além das prisões em Vila Rica, Rio de Janeiro e Salvador, foi realizado um movimento em sua defesa com uma carta de clemência enviada ao Rei Dom João V. A pena foi comutada e  ela pode retornar ao povoado em 1739.

 

Mas o perdão real não impediu que seus bens permanecessem confiscados. No entanto, devido talvez à sua origem nobre e a intercessão de amigos e parentes distantes, a carta de perdão citava a possibilidade de reaver suas posses, assinalando que na "restituição às suas fazendas, use dos meios ordinários". Assim, anos depois, foi contemplada com uma “carta de sesmaria”, em 1745, medindo “três léguas e meia em quadra”. Ou seja, se uma légua equivale a 6 km., sua propriedade passou a conter “apenas”  21 km². Naquela época ainda era um sítio de bom tamanho e aí passou a viver com os 6 filhos restantes: 4 homens e duas mulheres, até 23/6/1760, quando veio a falecer.   

 

No livro de Diogo de Vasconcelos, ela é descrita como uma mulher bonita, alta e corajosa.  Em sua descrição, o autor caprichou na letra e criou uma obra literária cativante: “O tranquilo esquecimento apagou seu nome conservado apenas no velho e obscuro arraial, à beira do grande rio”. Ao descrever a pessoa, também não deixou por menos: “têmpera varonil não lhe tirava a natural doçura, e as maneiras de seu trato, realçadas pela posição, atraíam-lhe o afeto dos parentes e o respeito de todos”. Ao descrever o ato da prisão, produziu um texto comovente. Saiu de casa ao som do "alarido e pranto das mulheres, e da consternação de todos, imperturbável, com passo firme, contendo a dor que a enlouquecia, dirigiu-se ao porto pela mão do filho e saltou a barca... jamais traiu a própria dignidade, recolheu-se, porém, ao baldaquim, cerrou as cortinas e só aí se desfez em pranto".

 

Está visto que o autor, entre fatos colhidos e o mito criado, fez um retrato literário de dona Maria da Cruz, em 1918. Já o citado livro publicado em 2012, restabeleceu alguns pontos nebulosos da história clareando os fatos. Certamente este livro teve como fonte relevante a dissertação de mestrado, realizada por Alexandre Rodrigues de Souza, em 2011: “A dona do sertão: mulher, rebelião e discurso político em Minas Gerais no século XVIII”, apresentada na UFF-Universidade Federal Fluminense. A dissertação foi transformada em artigo - A rebelde do sertão. Maria da Cruz e o motim de 1736-, publicado na revista “Varia História”, vol. 29, nº 50, de agosto de 2013, e pode ser consultado no link https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-87752013000200005


José Domingos Brito - Memorial domingo, 06 de junho de 2021

OS BRASILEIROS: FERNANDO DE AZEVEDO

 

 

OS BRASILEIROS: Fernando de Azevedo

Seus pais –Francisco Eugênio de Azevedo e Sara Lemos de Almeida- propiciaram-lhe ro

busta formação escolar. Estudou no Colégio Anchieta, em Nova Friburgo, RJ, e recebeu aulas nas áreas de letras clássicas, língua e literatura grega e latina, além de poética e retórica. Em seguida mudou-se para São Paulo e ingressou na Faculdade de Direito. Nunca exerceu a advocacia e dedicou-se, desde os 22 anos, integralmente à educação como professor de latim e psicologia no Ginásio do Estado, em Belo Horizonte; de latim e literatura na Escola Normal de São Paulo; de sociologia educacional no Instituto de Educação da USP; de sociologia e antropologia na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP e professor emérito desta faculdade.

Paralelo ao exercício do magistério, atuou na direção de diversos órgãos e serviços educacionais: Diretor geral da Instrução Pública do Distrito Federal (1926-30) e do Estado de São Paulo (1933), Presidente da Associação Brasileira de Educação (1938), Diretor da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de São Paulo (1941-42), Secretário de Educação e Saúde do Estado de São Paulo (1947), Diretor do Centro Regional de Pesquisas Educacionais (1956-61) Secretário Municipal de Educação e Cultura de São Paulo (1961) e fundou e dirigiu a Sociedade Brasileira de Sociologia (1935-60). Uma pessoa pode ter ocupado tantos cargos na vida pública cumprindo apenas uma função burocrática. Não é o seu caso, uma vez que projetou alguns destes órgãos na administração pública e na estrutura social.

Em 1931 fundou e dirigiu, por uns 15 anos, na Companhia Editora Nacional a “Biblioteca Pedagógica Brasileira”, incluindo a série “Iniciação Científica” e a “Coleção Brasiliana”, que deu novo impulso à Editora. Acredita-se que seu crescimento se deu em paralelo ao desenvolvimento do ensino secundário a partir da década de 1940 com a ampliação da rede de ginásios e intensificado na década de 1950 com a criação novas escolas. Não por acaso, a Editora foi adquirida pelo IBEP-Instituto Brasileiro de Edições Pedagógicas, em 1980, constituindo-se num dos maiores grupos editoriais do País. Como jornalista atuou no “O Estado de São Paulo” com artigos abordando a educação pública e temas fundamentais do ensino em todos os níveis, iniciando uma campanha por uma nova política de educação e criação de universidades no Brasil. Em 1933, enquanto Diretor Geral da Instrução Pública em São Paulo, promoveu reformas fundamentais, consubstanciadas no Código de Educação.

Junto com Anísio Teixeira, defendia com fervor que a formação do professor escolar tinha que ser feita em nível universitário. Quando a USP foi criada, em 1934, ele incluiu o Instituto de Educação, que ficava na Praça da República, como uma das unidades daquela universidade. Acreditava que só assim podia-se falar numa ciência pedagógica adaptada ao Brasil. Foi pioneiro ao disseminar o dito “Educação é um direito do povo e um dever do Estado”. Em 1970, aos 76 anos fez a doação de sua biblioteca e arquivo ao IEB-Instituto de Estudos Brasileiros, localizado na USP, com mais de 16 mil itens entre livros, fotos, correspondência, recortes e documentos em geral. Em junho de 2019, foi realizado o evento “Educação no IEB: Interfaces possíveis com o acervo Fernando de Azevedo”, reunindo especialistas de diversas universidades do País. Além desse encontro, foi realizada a exposição “Em Defesa da Educação Pública: Fernando de Azevedo no IEB (1927-1968)”, que permaneceu aberta ao público por 4 meses.

Publicou 26 livros, com destaque para: Páginas latinas (1927), A reconstrução educacional do Brasil (1932), Novos caminhos e novos fins (1934), A cultura brasileira, (em 3 volumes 1943), A educação e seus problemas (1952), Sociologia educacional (1959), Figuras do meu convívio (1961) e A cidade e o campo na civilização industrial e outros ensaios (1962). Tais obras lhe garantiram uma cadeira na ABL-Academia Brasileira de Letras, em 1967. Seu legado garantiu também algumas homenagens e condecorações: Prêmio Machado de Assis, da ABL (1943), Cruz de Oficial da Legião de Honra, da França (1947), Prêmio Visconde de Porto Seguro (1964) e Prêmio Moinho Santista em Ciências Sociais (1971).

Em 2010 teve seu nome incluído na “Coleção Educadores”, do MEC-Ministério da Educação e Cultura, numa obra publicada por Maria Luiza Penna, regatando sua trajetória e relevantes aspectos de seu trabalho. Em termos biográficos mais precisos, ressalta-se o artigo – Fernando de Azevedo: o sociólogo -, publicado por Maria Isaura Pereira de Queiroz, na Revista do IEB-Instituto de Estudos Brasileiros, nº 37, de 1994. Os interessados em conhecê-lo através dele mesmo, podem recorrer às suas memórias: História da minha vida, publicada em 1971, três anos antes de seu falecimento em 18/9/1974.

 

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Clique na imagem abaixo para assistir ao vídeo “A importancia da Fernando de Azevedo para a educação, por Antônio Cândido”

 

 

 


José Domingos Brito - Memorial segunda, 15 de março de 2021

OS BRASILEIROS: MADAME SATÂ (JOSÉ DOMINGOS BRITO É COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

 

OS BRASILEIROS: Madame Satã

João Francisco dos Santos nasceu em 25/2/1900, em Gloria do Goitá, PE. Cozinheiro, segurança, artista transformista e personagem da vida noturna e marginal da Lapa carioca em meados do século passado. Foi considerado o “homossexual mais macho” do Brasil, casado com mulher e pai de 6 filhos adotivos, que brigava com a polícia e defendia os mais fracos e prostitutas na rua. O apelido “Satã” surgiu no carnaval de 1938 e foi premiado num concurso de fantasia, promovido pelo bloco “Caçadoresde Veado”, no Teatro República.

Criado numa família humilde de 18 filhos, perdeu o pai aos 7 anos, deixando a mãe numa situação precária. Para ajudar na manutenção da família, o garoto foi trocado por uma égua com um criador de cavalos, que lhe prometeu casa e estudo. Não cumpriu o prometido e empregou o garoto em sua fazenda. No ano seguinte, numa viagem até Itabaiana, PB, o garoto conheceu Dona Felicidade, que incentivou-o a fugir da fazenda e ir morar com ela no Rio de Janeiro, onde montou a pensão “Hotel Itabaiano”. Ai passou a trabalhar na condição de semiescravidão. Insatisfeito com essa vida, fugiu de novo em 1913 e passou a viver na Lapa. Vivendo na rua, pensões, bares etc., conseguiu emprego de vendedor ambulante de pratos e panelas, bem como serviços de cozinha, Foi também segurança, garçom, cozinheiro e capoeirista.

Nesse ambiente fez amizade com “Sete Coroas”, o maior malandro e “cafetão” da época. Em 1922 decidiu ser artista, influenciado pela companhia francesa “Ba-ta-clan”, que passou pelo Rio apresentando seu teatro de revista. Em 1923, com falecimento do malandro, Satã assumiu seu “posto” na Lapa e deu início a prodigiosa carreira de malandro e uma incipiente carreira de artista transformista nas boates e bares do bairro. Por esta época foi cozinheiro na “Pensão do Catete”, onde conheceu a atriz Sara Nobre, que o apresentou ao mundo do teatro. Trabalhou por algum tempo no espetáculo “Loucos em Copacabana”, interpretando a “Mulata do Balacochê”. Sua primeira briga deu-se com um vigilante chamando-o de “veado”, em 1928. O vigilante morreu ao cair e bater a cabeça no meio-fio da rua. Foi preso e passou mais de 2 anos na Ilha Grande. Absolvido, alegando legítima defesa, pretendeu mudar de vida e casou com Maria Faissal, em 1934, com quem teve 6 filhos adotados.

Mais tarde, um policial irmão do vigilante morto na briga, impediu-o de entrar na boate Pigalle, que resultou numa briga. O policial levou uma surra e Satã foi preso em flagrante, amargando mais 2 anos de prisão. Pouco depois de sair da prisão, foi tomar um aperitivo no Bar Canaã e encontrou um sargento do Exército, que forçou uma troca de copos: cada um deveria tomar a bebida do outro. Como Satã não gostava de militar, recusou a troca e o sargento não suportou a desfeita. Entraram em luta e o sargento disparou-lhe 6 tiros. Nenhum acertou-o e o sargento fugiu. Satã perseguiu-o e cortou-lhe a bunda com uma navalha. Por esta agressão pegou mais 4 anos de prisão. Ao ser libertado decidiu montar família; adotou uma filha e abriu uma lavanderia. Na ocasião um homossexual foi morto nas redondezas e ele foi preso como suspeito. Foi torturado por 3 dias para confessar um crime que não praticou e ficou 2 dias preso. Fechou a lavanderia e abriu uma pensão, onde abrigava prostitutas e foi se firmando no negócio. Logo, chamou a atenção da polícia alegando que ele estava praticando lenocínio.

Chamado a depor na Delegacia, foi interrogado e levou um tapa do delegado. Satã revidou; levou uma grande surra dos policiais presentes e ficou preso por um ano e meio. Em seguida houve mais uma briga com a polícia. Conta-se que o delegado Frota Aguiar o perseguia constantemente. Satã ligou para ele negando as acusações que lhe eram imputadas. O delegado reagiu dizendo que ia dar-lhe uma surra e prendê-lo. Enfurecido, Satã disse-lhe: “Tá bem, eu vou aí. Mas saiba que eu vou quebrar-lhe a cara”. Cumpriu a ameaça; quase morreu de tanto apanhar dos policias e foi preso de novo. Virou freguês da prisão em Ilha Grande e mantinha bom relacionamento com outros presos e a administração do presídio. Aí trabalhava na cozinha desde sua primeira passagem. Em 1943 resolveu fugir, atirando-se no mar e nadando até a praia do Leblon. Exausto, acabou sendo preso e voltou ao presídio, de onde saiu em 1946. No mesmo ano teve que enfrentar 12 soldados da Aeronáutica, a pedido de sua amiga Nilsa. Os soldados não queriam pagar pelo “serviço”. A briga se prolongou até a Taberna da Glória com golpes de capoeira e a navalha atemorizou os soldados. Na delegacia, o inspetor foi rude no inquérito e acabou levando uns socos, resultando em mais uma prisão de 19 meses.

Em princípios dos anos 50 passou a viver numa rotina mais tranquila e voltou a trabalhar em shows imitando Carmen Miranda. Mas em seguida foi acusado de receptação e pegou mais 4 anos de cadeia. Esta prisão foi emendada com outras acusações e falhas no sistema carcerário, prolongando a prisão. Em 1955 deu-se a famosa briga com o sambista Geraldo Pereira. Conta Satã que foi ofendido e chamado para a briga. Com apenas um soco e uma queda o sambista veio a falecer. Laudos médicos inocentaram Satã da morte do sambista, alegando que a causa foi um derrame cerebral. Mas a lenda –que ele havia matado um cara com apenas um soco- se espalhou rápido e ampliou ainda mais sua fama de valente. Esta foi, talvez, sua última prisão, que durou até 1965, quando decidiu largar de vez a “vida bandida”, abandonar a Lapa e passou a viver com a família num lugar conhecido: a Ilha Grande, na Vila do Abraão. Ao longo da vida Satã passou quase 28 anos (intercalados) na prisão. Passou por 29 processos e foram lhe atribuídos cerca de 100 assassinatos e mais de 3 mil brigas.

Já envelhecido, voltou a fazer o que sabia: cozinhar para fora a pedido dos clientes, fazer faxina na casa de ex-policiais e funcionários do presídio etc. Tempos depois, em 5/5/1971, foi entrevistado em sua casa pela turma do “Pasquim”: Millôr Fernandes, Paulo Francis, Sergio Cabral, Jaguar, Fortuna, Chico Júnior e Paulo Garcez. Os interessados na entrevista podem acessá-la clicando aqui. A longa entrevista “ressuscitou” sua fama e recolocou-o no “palco”, vindo a fazer parte de algumas peças de teatro e shows. Na esteira da entrevista, foi lançado em 1972 o livro Memórias de Madame Satã, escrito por Sylvan Paezzo e, em 1974, o filme “Rainha Diaba”, dirigido por Antonio Carlos Fontoura, com Milton Gonçalves no papel-título. Outro filme, -“Madame Satã”-, abordando sua vida antes de receber o famoso apelido, foi lançado em 2002 dirigido por Karin Aïnouz, com Lázaro Ramos no papel-título. Em 2015 este filme entrou na lista, da Associação Brasileira de Críticos de Cinema, dos 100 melhores filmes brasileiros.

O epílogo de sua vida se deu princípios de 1976, quando foi encontrado num hospital de Angra dos Reis, internado como indigente. Ao saber do fato, Jaguar resgatou-o e levou para um hospital em Ipanema, mas veio a falecer em 12/4/1976, devido a um câncer pulmonar. Porém, Jaguar disse em entrevista que ao encontrá-lo “ele estava com 47 quilos, metade de seu peso normal. Naquele tempo, em 76, não se falava ainda disso, mas tenho certeza de que ele morreu foi de Aids”. Em 1985 foi lançada sua biografia Madame Satã: com o diabo no corpo, escrita por Rogério Durst. O autor conta que este livro caiu nas mãos de Chico Buarque, que anos depois lançou sua “Opera do Malandro”. Em 1990, a Escola de Samba Lins Imperial desfilou com samba-enredo “Madame Satã”.

 


José Domingos Brito - Memorial segunda, 08 de março de 2021

AS BRASILEIRAS: DONA BEJA (JOSÉ DOMINGOS BRITO É COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

 

AS BRASILEIRAS: Dona Beja

Ana Jacinta de São José nasceu em 2/1/1800, em Formiga, MG. Personalidade histórica criada em Araxá e famosa pela beleza, conquistas e fortuna amealhada em sua vivência com homens da Corte Imperial. Era uma “cortesã”, como se dizia de modo educado e antigo. Recebeu o apelido “Beja” de seu avô, comparando-a com a doçura e beleza da flor “beijo”. Filha de Maria Bernarda dos Santos e pai ignorado, chegou na cidade de Araxá em 1805 em companhia da mãe e avô, onde passou a viver, encantar os homens e causar ciúmes e inveja nas mulheres.

Ainda jovem, apaixonou-se pelo fazendeiro Manoel Fernando Sampaio, que deu em noivado, mas não chegou ao casamento. Em 1815 foi raptada pelo ouvidor do rei, Joaquim Inácio Silveira da Motta, com quem passou a viver como amante por 2 anos em Paracatu. Ao tentar evitar o rapto, seu avô foi morto no embate. Viveu com o ouvidor até 1817, quando D. João VI solicitou seu retorno ao Rio de Janeiro. De volta à Araxá, não foi tratada como vítima e sim como sedutora de comportamento duvidoso. Com alguma riqueza amealhada neste período, passou a exercer fascínio entre os homens e tornar-se conhecida personalidade na região, porém indesejada e marginalizada pela sociedade.

Construiu 2 casas: uma na cidade, que não atendia clientes em busca de sexo e outra nos arredores da cidade, um luxuoso bordel, que ficou conhecido como a “Chácara do Jatobá”. O local passou a atrair homens de outras regiões, que lhe cobriam de dinheiro, joias e pedras preciosas. Sua fama chegou ao ponto em que ela podia escolher seus parceiros. Porém, caso não pudesse evitar a recusa, criou um artificio junto com seu amigo Fortunato, o boticário local, chamado “remédio do sim e do não”. Quando não queria transar com um homem, mas não podia recusar devido a sua riqueza, colocava em sua bebida a poção do “não”. Isto fazia com que o homem brochasse, o ocorrido ficava apenas entre o casal e ela recebia o pagamento como se o fato tivesse sido consumado. No caso do uso da poção do “sim”, dava-se o oposto.

Conta a lenda que ela tomava banho diariamente na “Fonte da Jumenta”, com uma água milagrosa que proporcionava saúde e beleza, além de estar associada às virtudes afrodisíacas. Independente da lenda, o fato é que Araxá ressurgiu no século XX como cidade associada às águas locais, atraindo turistas à região. Conta-se, também, que certa vez seu antigo noivo Manoel apareceu na Chácara e tiveram um breve namoro. Engravidou e deu à luz uma menina, mas ela não aceitou viver com o antigo noivo e por isso sofreu uma emboscada de dois negros. Levou uma surra e ficou bastante machucada. Ao saber que a emboscada foi contratada pelo pai de sua filha, ordenou que o matassem.

O crime levou-a à prisão, mas logo foi libertada com a ajuda de amigos e importantes clientes. O episódio trouxe-lhe algum desconforto na cidade levando-a a pensar em mudar do local. Enquanto isso surge uma segunda filha, impulsionando o desejo de mudar de vida. Aos 53 anos, providenciou uma mudança de vida e local para morar. Montou um cortejo formado por carroças cheias de móveis, louças, tralhas etc. e partiu junto com as filhas para um vilarejo chamado Bagagem, onde se dava uma corrida pelos diamantes. O vilarejo hoje é cidade de Estrela do Sul, nome dado em homenagem ao diamante “estrela do sul”, que era farto na região.

Lá montou um grande casarão com senzala nos fundos e passou a levar uma vida pacata, dedicada à religião e à caridade. Tornou-se uma pessoa destacada no local; bem recebida no vilarejo; mandou construir uma ponte, que leva seu nome, e financiou a virada do rio Bagagem afim de colher o cascalho de diamante. Ficou mais rica ainda no ramo do garimpo e veio a falecer em 20/12/1873, devido a uma nefrite. Sua vida inspirou vários romances: Dona Beja, a feiticeira de Araxá (1957), de Thomas Leonardos; Vida em Flor de Dona Beja (1957), de Agripa Vasconcelos; O Solar de Dona Beja, de Maria Santos Teixeira (1965), Dona Beja, a flor do pecado, de Ângelo D’Ávila (1992)

Os dois primeiros romances citados serviram de roteiro para a produção da famosa telenovela Dona Beja, em 1986, exibida pela Rede Manchete de Televisão, tendo Maitê Proença como protagonista. Inspirou também uma biografia, destinada a esmiuçar sua vida e contextualizar sua trajetória no quadro da história. A pesquisa resultou no livro escrito por Rosa Maria Spinoso Montandon – Dona Beja: desvendando o mito -, publicado pela Edufu-Editora da Universidade Federal de Urbelândia, em 2004.

 


José Domingos Brito - Memorial segunda, 01 de março de 2021

OS BRASILEIROS: VILANOVA ARTIGAS (CRÔNICA DE JOSÉ DOMINGOS BRITO, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

 

OS BRASILEIROS: Vilanova Artigas

João Batista Vilanova Artigas nasceu 23/6/1915, em Curitiba, PR. Engenheiro, Arquiteto, urbanista, professor e líder da “Escola Paulista”, de importância fundamental na formação de uma geração de arquitetos brasileiros. Foi um dos fundadores da FAU-Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e autor do projeto de reforma curricular, na década de 1960, dando novos rumos à profissão, com a inclusão do desenho industrial e programação visual no exercício da arquitetura.

Ainda estudante universitário, frequentou o curso de desenho artístico da Escola de Belas-Artes, travando contato com artistas do “Grupo Santa Helena”, como Alfredo Volpi, Francisco Rebolo e Aldo Bonadei. Tal convivência influenciou seu trabalho como arquiteto. Formou-se engenheiro-arquiteto pela Escola Politécnica da USP em 1937, onde o ensino da arquitetura se dá a partir da engenharia e não das belas artes, como ocorreu no Rio de Janeiro. Foi estagiário na Construtora Bratke e Botti e pouco depois, junto com Duilio Marrone, abriu sua empresa de projeto e construção, a “Artigas & Marone Engenheiros”. Em 1944 montou seu próprio escritório de arquitetura, tendo como parceiro o calculista Carlos Cascaldi. Enquanto desenvolve os projetos, tornou-se professor da Escola Politécnica e engajou-se no processo de regulamentação da profissão de arquiteto.

Junto com outros colegas, criou em 1943 a representação do IAB-Instituto dos Arquitetos do Brasil, em São Paulo. A partir daí dá-se o envolvimento com a política e no ano seguinte filiou-se ao PCB-Partido Comunista Brasileiro. Em 1946 ganhou bolsa de estudos da Fundação Guggenheim e passa 13 meses estudando e viajando pelos EUA. De volta ao Brasil, em 1948, liderou um grupo de arquitetos na criação da FAU/USP, onde passou a lecionar. Entenda-se “criação” no sentido literal, pois é de sua autoria o projeto da nova sede da FAU, que hoje leva seu nome. No pós-guerra e na medida em que a Guerra Fria avança, seu discurso ideológico vai se acentuando nos textos que escreve para a revista “Fundamentos”, ligada ao PCB: “Le Corbusier e o imperialismo” (1951), e “Os caminhos da arquitetura moderna” (1952).

Pouco depois, foi conhecer a União Soviética e ficou desencantado com a arte e arquitetura do “Realismo Socialista”. Passou por uma crise profissional que durou até 1950, e inicia projetos residênciais, tais como as casas de Olga Baeta, Rubem de Mendonça e Taques Bittencourt. Em seguida realiza projetos escolares para o governo de São Paulo, na administração Carvalho Pinto, dando início às relações entre arquitetura moderna e o poder público, pouco comum na época. Nos anos 1950-1952 realizou os projetos da Rodoviária de Londrina (atual Museu de Arte) e do Estádio do Morumbi, do São Paulo Futebol Clube, na época o maior estádio do mundo. Em 1961 realizou alguns projetos, que vieram definir as linhas mestras da chamada “Escola Paulista”: Anhembi Tênis Clube, Garagem de Barcos do Iate Clube Santa Paula e prédio da FAU/USP, sua obra mais acabada e definidora de uma nova arquitetura. No ano seguinte passou a se dedicar ao ensino da arquitetura e propõe inovações marcantes na reforma do currículo, que foram adotadas noutras escolas de arquitetura.

Com o golpe militar de 1964, foi preso por alguns dias e ficou exilado por um ano no Uruguai. Na volta ao Brasil passou a viver na clandestinidade até 1967. Voltou a trabalhar no ano seguinte em projetos públicos, junto com Paulo Mendes da Rocha e Fábio Penteado, na construção do Parque Cecap, em Guarulhos, um enorme conjunto habitacional. Em 1968, com o Ato Institucional nº 5, foi afastado mais um vez da FAU e ficou impedido de atuar plenamente por 10 anos. Nesta etapa difícil da vida profissional foi consolado pela UIA-Union International des Architects com o Prêmio Jean Tschumi, em 1972, por sua contribuição ao ensino da arquitetura. Em 1979, quando se dá a anistia, voltou a lecionar na FAU na condição de professor-assistente.

Por uma ironia do destino ou “advertência”, neste período foi professor de “Estudos de Problemas Brasileiros”, uma disciplina imposta pela ditadura às faculdades como instrumento de incentivo ao nacionalismo. Ele aproveitou a “advertência” e levou à FAU, para dar palestras, alguns intelectuais de esquerda, como o ator Juca de Oliveira, o pintor Aldemir Martins e o cardeal-arcebispo Dom Paulo Evaristo Arns. Em 1984 retomou o que lhe era de direto: o posto de professor-titular. No concurso, na forma de arguição, para ocupar o cargo, definiu a essência de sua arquitetura: “Quanto a mim, confesso-lhes que procuro o valor da força da gravidade, não pelos processos de fazer coisas fininhas, uma atrás das outras, de modo que o leve seja leve por ser leve. O que me encanta é usar formas pesadas e chegar perto da terra e, dialeticamente, negá-las.”

Seu retorno às aulas de arquitetura na FAU foi festejado pelos alunos e comunidade acadêmica, mas infelizmente não durou muito, faleceu no ano seguinte, em 12/1/1985. O Brasil perdeu um dos maiores incentivadores do ensino na arquitetura e um dos seus melhores arquitetos. Em quase 50 anos de profissão, deixou cerca de 700 projetos de obras públicas e residências. No mesmo ano a UIA-Union Internationale des Architects, concedeu-lhe mais uma homenagem: o Prêmio Auguste Perret 1985, pelo conjunto da obra. Expressiva parte dessa obra ficou registrada no seu livro Caminhos da arquitetura, publicado numa bela edição da editora Cosac Naify, em 2004, e na sua “Casa Vilanova Artigas”, em Curitiba, aberta ao público.

Informa a crítica que sua arquitetura é derivada da engenharia e não das belas-artes, sintetizada em sua frase “Arquitetura é construção e arte”. Melhor dito, está “expressa na criação de grandes vãos e no amplo emprego do concreto armado e aparente, ressaltando o perfil das estruturas e os esforços a que está submetida”. Revela-se aqui certa influência do arquiteto Oscar Niemayer, que utilizando-se também do concreto armado, enfatizava mais o lado artístico, a beleza plástica em suas obras. Em 2015, ano do centenário de seu nascimento, diversas atividades foram realizadas em sua memória: filme Documentário Vilanova Artigas: o arquiteto e a luz, dirigido por Laura Artigas e Pedro Gorski; lançamento do livro Vilanova Artigas, de Rosa e Marco Artigas e uma exposição –Ocupação Vilanova Artigas – no Itaú Cultural.

 

 

 


José Domingos Brito - Memorial segunda, 22 de fevereiro de 2021

AS BRASILEIRAS: NIÉDE GUIDON (ARTIGO DE JOSÉ DOMINGOS BRITO, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

AS BRASILEIRAS: Niéde Guidon

Niéde Guidon nasceu em Jaú, SP, em 12/3/1933. Arqueóloga criadora do Parque Nacional Serra da Capivara, no Piauí, em 1979 e transformado em Patrimônio da Humanidade pela UNESCO. Neste Parque criou também o “Museu do Homem Americano” e o “Museu da Natureza”, em 2018, abertos a visitação pública. Mas seus feitos maiores não foram apenas estes. Sua maior façanha foi ter alargado em mais de 40 mil anos a história da humanidade em solo americano, no Brasil. Trata-se de uma descoberta científica que alguns arqueólogos americanos e europeus vêm relutando aceitar, mas que encontra cientistas dispostos a aceitar suas teses arqueológicas.

Seus primeiros estudos se deram na cidade natal e em Pirajuí, para onde se mudou quando perdeu a mãe aos 6 anos, e em Campinas, onde concluiu o curso colegial. Em 1954 entrou na USP-Universidade de São Paulo e concluiu o curso de História Natural. Foi trabalhar no Museu Paulista, dirigido por Herbert Baldus, que a colocou no Departamento de Arqueologia. Querendo se aprofundar na área e não havendo curso de arqueologia por aqui, foi estudar em Paris. Retornou ao Brasil em 1963 e continuou a trabalhar no Museu Paulista e na USP. No mesmo ano organizou uma exposição de pinturas rupestres e recebeu a visita de um senhor que lhe disse: “Na minha terra tem muitas ‘pinturas de índio’ parecidas com estas”. Ela ficou curiosa e anotou o nome do lugar, São Raimundo Nonato, um lugarejo perdido no sertão do Piauí. Junto com umas amigas foi até lá numa longa viagem de fusca, mas não conseguiram chegar devido a queda de uma ponte.

Em 1964, com o Golpe Militar, perdeu o emprego sem nunca ter se metido em política. Alguém de olho no seu cargo dedurou-a como sendo do Partido Comunista. Voltou à Paris, passou a trabalhar como pesquisadora, fez curso de pós-graduação na Sorbonne; foi professora na École des Hautes Études en Sciences Sociales e desenvolveu uma importante carreira acadêmica em arqueologia. Obteve os maiores títulos da universidade francesa, mas não esqueceu a história dos “desenhos de índios” do Piauí. Em 1973 pode visitar o local junto com seus alunos franceses e ficou deslumbrada com a descoberta da maior concentração de sítios arqueológicos com pinturas rupestres do mundo. Constatou que as pinturas eram mais narrativas, com uma grande quantidade de figuras humanas representadas de modo e gestos diferentes e animais também diferenciados. Segundo ela, “parecia uma história em quadrinhos”.

De volta à Paris entrou em contato com o CNRS-Centre National de la Recherche Scientifique, mostrou fotos do local e ressaltou que era uma região sem nenhuma pesquisa. Assim, conseguiu verba dos franceses para mais uma viagem. Arregimentou colegas da USP para ajudar na empreitada e criou a missão franco-brasileira, dando inicio a exploração cientifica do local. A partir de recursos obtidos junto ao BID-Banco Interamericano de Desenvolvimento, o trabalho resultou na criação do Parque Nacional Serra da Capivara (decreto nº 83.548, de 5/6/1979), com a finalidade de proteger o mais importante patrimônio pré-histórico do País. Mais tarde o Parque foi ampliado (decreto nº 99.143, de 12/3/1990) com a criação de áreas de preservação permanentes de 35 mil hectares. Desde a época em que trabalhou na USP já era amiga do casal Ruth e Fernando Henrique Cardoso, que mais tarde foram grandes apoiadores de benfeitorias no Parque.

Toda essa estrutura tem um sentido maior e deve-se aos estudos arqueológicos iniciados por Niéde, que pretende reescrever a história da povoação das Américas. A teoria mais aceita reza que o homem chegou ao continente pelo estreito de Bering, vindo da Ásia, há 15 mil anos. No entanto, ela achou vestígios no local que datam de mais de 50 mil anos. Os papas da Arqueologia não estão ainda inteiramente convencidos, mas o acúmulo de evidências arqueológicas fortalece cada vez mais suas hipóteses. Pesquisas desenvolvidas no Chile, México e EUA corroboram sua tese. Em 2006 foram divulgadas as pesquisas de Eric Boeda, da Université de Paris, e Emílio Fogaça, da Universidade Católica de Goiás, afirmando que os artefatos encontrados no Parque foram realmente feitos por seres humanos, e possuem idade entre 33 mil e 58 mil anos, contrariando os adversários de sua teoria. Ela acredita que o Homo Sapiens chegou na América, vindo da África atravessando o Atlântico. Conforme explicou: “o mar estava então 140 metros abaixo do nível de hoje, a distância entre a África e a América era muito menor e havia muito mais ilhas”.

O Parque conta com 1.354 sítios arqueológicos cadastrados, dos quais 204 estão abertos à visitação pública. Tais evidências justificaram a criação da FUMDHAM-Fundação Museu do Homem Americano, em 1986, cujo objetivo é buscar a “compreensão do bioma da região, a reconstituição do passado humano e sua adaptação ao meio, nas diferentes realidades ambientais pelas quais passou a região, desde a primeira ocupação.” Desde 1991, o parque integra a lista de patrimônios culturais mundiais da Unesco e em 2003 foi considerado pela ONU como Unidade de Conservação com melhor infraestrutura da América Latina. O Museu do Homem Americano vem acumulando uma quantidade razoável de peças desde meados de 1970, e durante esse tempo tem recolhido também muitos objetos, fósseis e peças referentes a natureza. São animais pré-históricos, como a preguiça e o tatu gigantes, que necessitavam de um ambiente exclusivo. Assim, em 2002 foi projetado o Museu da Natureza, localizado a 30 km. da sede da FUMDHAM.

Trata-se de um moderno museu instalado no sertão. Na inauguração, em 18/12/2018, a revista “Veja” dedicou-lhe extensa reportagem com o título: “O óvni no meio da caatinga”, dado sua aparência arquitetônica, uma estrutura de aço e vidro de quatro mil metros quadrados em forma de mandala high-tech. O que se pretende é que o museu seja autossustentável, e para isso é preciso que os governos estimulem o turismo na região. Na opinião de sua criadora, a preservação de todo o Parque só será possível com a exploração turística do local. No momento faltam condições de acesso e infraestrutura adequadas.

Desde 1992 vive em São Raimundo Nonato cuidando do Parque e aos 88 anos, com dificuldades de locomoção, tem anunciado que vai se aposentar. Com quase 60 anos de dedicação exclusiva ao Parque Nacional, museus arqueológicos e expressiva contribuição científica, foi homenageada em diversas ocasiões, não obstante continuar sendo uma ilustre desconhecida pela maior parte do povo de seu País: “Mulher do Ano 1997”, pela revista Claudia, da Editora Abril; “Prêmio Faz Diferença” (2005) pelo jornal O Globo; “Prêmio Tejucopapo”, pela revista Nordeste 21; “Medalha Comemorativa dos 60 anos da Unesco”, (2010); “Medalha de Ouro” na premiação para a cultura ‘Herity Italia” (2010); “Prêmio da Fundação Conrado Wessel” (2013); “Prêmio Itaú Cultural 30 Anos” (2017). De todos estes prêmios, o que ela gostaria mais é ver o Parque sendo visitado pelos turistas de todo o mundo. Ela tem convicção e conhecimento de causa e efeito para achar que a “melhor forma de preservar é trazer turistas e desenvolver a região”.

 

 

 


José Domingos Brito - Memorial segunda, 15 de fevereiro de 2021

OS BRASILEIROS: GARRINCHA (ARTIGO DE JOSÉ DOMINGOS BRITO, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

OS BRASILEIROS: Garrincha

Manoel Francisco dos Santos nasceu em Magé, RJ, em 28/10/1933. Futebolista, conhecido como o melhor driblador da história do futebol. Se a graça do futebol está no drible, Garrincha é o maior jogador. Mesmo na Seleção Brasileira, voltava a driblar o jogador no mesmo lance só pela brincadeira em si. Ficou famoso por seu notável controle de bola, imaginação, habilidade de drible e “finta”. No drible, o jogador realiza um movimento no qual ele passa com a bola e consegue fazer o passe. Na “finta” é quando o jogador realiza um movimento indicando uma ação e atua noutra. Geralmente o adversário fica desestabilizado e pode até cair.

Deste caráter “brincalhão” foi extraída uma pérola do escritor Eduardo Galeano: “Em toda a história do futebol, ninguém deixou mais pessoas felizes. Quando ele estava lá, o campo era um picadeiro de circo; a bola, um bicho amestrado; a partida, um convite à festa. Garrincha não deixava que lhe tomassem a bola, menino defendendo sua mascote – a bola – e ela e ele faziam diabruras que matavam as pessoas de riso: ele saltava sobre ela, ela pulava sobre ele, ela se escondia, ele escapava, ela o expulsava, ela o perseguia. No caminho, os adversários trombavam entre si, enredavam nas próprias pernas, mareavam, caíam sentados”. Com sua literatura, Galeano fez um documentário sobre Garrincha. Não por acaso, foi ele o criador do “olé” no futebol. João Saldanha conta que em 1957, no México, num amistoso contra o River Plate, ele fez “gato e sapato” do jogador Vairo: “toda vez que Mané parava na frente de Vairo, os espectadores mantinham-se no mais profundo silêncio. Quando Mané dava aquele seu famoso drible (a “finta”) e deixava Vairo no chão, um coro de cem mil pessoas exclamavam ‘Ôôô-lé!’ Foi ali naquele dia que surgiu a gíria do ‘olé’. As agências telegráficas enviaram longas mensagens sobre o acontecimento e deram grande destaque ao ‘olé’”.

Era o 16º filho de uma família humilde e o apelido –nome de um passarinho- foi dado pela irmã. Uma poliomielite na infância deixou-lhe com as pernas tortas e parecia incapacitado para o futebol, mas aos 14 anos começou a jogar como amador no Esporte Clube Pau Grande. Sem chance de continuar no time, entrou para o Serrano Football Club da cidade vizinha. Vendo-o jogar, um “olheiro” ex-jogador do Botafogo levou-o para um teste. Após uns dribles em Nilton Santos, o craque da época, foi contratado em 1953 e permaneceu até 1965. Na estreia contra o Bonsucesso, no Campeonato Carioca, o Botafogo venceu por 6×3, quando ele fez 3 gols. O Botafogo foi campeão em 1957, sendo que em 26 jogos, ele marcou 20 gols. Era criticado por driblar demais; porém sua atuação no clássico contra o Fluminense em fins de 1957 deixou claro que ele não poderia ficar fora da Seleção Brasileira na Copa do Mundo, em 1958.

Sua vida pessoal sempre foi atabalhoada. Separou-se da mulher em 1963, com quem teve 7 filhos, e assumiu o namoro com a cantora Elza Soares, com que se casou em 1966. O tumultuado casamento durou até 1982, quando deu-se a separação devido a ciúmes, traição e brigas decorrentes do alcoolismo crônico que o perturbava. Teve mais um filho com Elza; outro com uma namorada e mais um na Suécia: Ulf Lindberg, numa transa extraconjugal com uma jovem na cidade de Umea durante uma excursão do Botafogo em 1959. Ao todo, calcula-se que teve uns 14 filhos.

Na Copa de 1958 foi um dos principais jogadores, mas só foi escolhido na 3ª partida do torneio. Pouco antes do inicio da Copa havia marcado um de seus gols mais famosos, contra a Fiorentina na Itália. Driblou quatro defensores e o goleiro, antes de parar na linha de gol. Mesmo com o gol aberto, em vez de chutar para o gol, ele ainda driblou o zagueiro Enzo Robotti antes de marcar o gol. A comissão técnica da Seleção ficou aborrecida com a jogada irresponsável e isso provavelmente levou-o a não ser escolhido nas duas primeiras partidas. Logo no inicio da 3ª partida foi decidido um ataque direto do pontapé inicial. Ele recebeu a bola, driblou 3 jogadores e chutou na trave. Em menos de um minuto de jogo, pegou de novo a bola e criou uma chance para Pelé, que também chutou na trave. O jogo foi tão impressionante que ficou marcado na imprensa internacional como “os três minutos mais incríveis do futebol de todos os tempos”. Este foi o cartão de visitas de Garrincha à Copa do Mundo de 1958. O Brasil venceu a partida por 2×0.

Na Copa Mundial de 1962, ao substituir Pelé, tornou-se ídolo nacional. Dos 14 gols do Brasil, 6 passaram pelos seus pés: marcou 4 e encaminhou 2. Na Copa ganhou a “Bola de Ouro” (melhor jogador do torneio), a “Chuteira de Ouro” (artilheiro) e o troféu da Copa do Mundo. Por isto, a Copa de 1962 ficou conhecida aqui, como a “Copa do Garrincha”. O jornalista Sandro Moreyra descreveu seu desempenho: “De repente parou de brincar, virou sério, compenetrado de que a conquista da Copa dependia dele. Quase sozinho, ganhou a Copa. Fez o que nunca tinha feito. Gols de cabeça, pé esquerdo, folha-seca. E driblou como um endiabrado, endoidando os adversários”. No jogo contra a Inglaterra ele roubou a bola de Didi, fez uma pausa, e, de fora da área, acertou um chute folha-seca no ângulo, fazendo o 3º gol. A imprensa britânica disse que “Garrincha era Stanley Matthews, Tom Finney e um encantador de serpentes, todos juntos”. Na semi-final, contra o Chile, foi decisivo, marcando dois dos 4 gols da vitória por 4×2. Seu primeiro gol foi um chutaço de fora da área com o pé esquerdo; o segundo, de cabeça. Uma manchete do jornal “El Mercurio” perguntava: “De que planeta veio Garrincha?”.

A Copa do Mundo de 1966 mostrou Garrincha visivelmente abatido e fora de forma. Uma lesão no joelho atrapalhava seus movimentos. Além disso, os europeus estavam dispostos a não deixar o Brasil vencer a Copa pela 3ª vez consecutiva e usaram a tática de parar o jogo sempre que possível na porrada. Mesmo assim, ele fez um gol na 1ª partida, conta a Bulgária, e Pelé fez o segundo, vencendo por 2×0. No jogo seguinte, o Brasil perdeu por 3×1 para a Hungria. Foi seu último jogo internacional e única vez em perdeu uma partida com a seleção brasileira. Contam-se histórias engraçadas a seu respeito: no jogo contra Rússia, em 1958, os jornalistas souberam que ele era desprovido de educação formal e um deles quis testar seus conhecimentos. Perguntou-lhe se ele sabia o que significava a sigla CCCP na camisa soviética. A resposta foi imediata: “Cuidado com o crioulo Pelé!”. Noutra ocasião, na Alemanha, ele gostou de um rádio de pilha e quis comprá-lo. Mas foi advertido por um colega gozador: “Mas você entende a língua alemã? Esse rádio não vai transmitir em português no Brasil!”.

O fim da carreira começou em 1963 com o agravamento dos problemas contínuos da osteoartrite, causando inflamação cartilagem e inchaço do joelho. A cirurgia, diversas vezes recomendada, finalmente foi realizada em 27/9/1964. Mas via-se que já não era o mesmo jogador. Em 1966 ainda passou alguns meses jogando no Corinthians; outros no Flamengo e no Olaria enquanto vai decaindo como jogador e o álcool vai lhe derrubando como pessoa. Em São Paulo, o Jornal da Tarde de 26/10/1966 deu a manchete: “Mané veio para ser a alegria do Corinthians, não foi. É um homem triste que só vê a bola em treino no Parque São Jorge”. Seu último gol se deu no jogo do Olaria com o Comercial em Ribeirão Preto, em 23/3/1972, encerrando a carreira profissional. A partir daí realizou alguns jogos de exibição até 1982 e faleceu em 20/1/1983, aos 49 anos, vitimado por uma cirrose hepática.

Milhares de pessoas foram às ruas seguir a procissão fúnebre, em uma linha desde o Maracanã até o cemitério. No seu epitáfio lê-se: “Aqui descansa em paz aquele que era a alegria do povo”. No dia seguinte o poeta Carlos Drummond de Andrade deixou registrado sua façanha na crônica publicada no Jornal do Brasil: “Se há um Deus que regula o futebol, esse Deus é sobretudo irônico, farsante, e Garrincha foi um de seus delegados incumbidos de zombar de tudo e de todos nos estádios. Mas, como é também um Deus cruel, tirou do estonteante Garrincha a faculdade de perceber sua condição de agente divino. Foi um pobre e pequeno mortal que ajudou um país inteiro a sublimar suas tristezas. O pior é que as tristezas voltam e não há outro Garrincha disponível. Precisa-se de um novo que nos alimente o sonho”.

Considerado um dos maiores jogadores de todos os tempos, foi votado na Seleção de Futebol do Século XX por 250 dos escritores e jornalistas de futebol mais respeitados do mundo e incluído na Seleção do Todos os Tempos, da FIFA, em 1998. Foi homenageado com seu nome no Museu do Estádio do Maracanã e no Estádio Mané Garrincha, em Brasília. Em 2010, torcedores do Botafogo custearam uma estátua de 4 metros e meio, esculpida pelo artista plástico Edgar Duvivier, localizada frente ao Estádio Olímpico Nilton Santos, no Rio de Janeiro. Conta ainda com uma filmografia: Garrinha, alegria do povo (1962), documentário de Joaquim Pedro de Andrade; Mané Garrincha (1978), documentário de Fábio Barreto; Pelé e Garrincha: Deuses do Brasil (2002), documentário da BBC; Garrincha: estrela solitária (2005), filme baseado na biografia escrita por Ruy Castro, em 1995, uma biografia de fôlego considerada a mais completa até o momento, baseada em muita documentação e 500 entrevistas. Em 2016 foi apresentado o espetáculo musical “Garrincha: uma ópera das ruas”, dirigido por Bob Wilson, reapresentado pela TV Sesc, em dezembro de 2020.

 

 

 


José Domingos Brito - Memorial segunda, 08 de fevereiro de 2021

AS BRASILEIRAS : YVONNE PEREIRA (CRÔNICA DE JOSÉ DOMINGO BRITO, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

AS BRASILEIRAS: Yvonne Pereira

Yvonne do Amaral Pereira nasceu em Rio das Flores, RJ, em 24/12/1900. Costureira e uma das mais respeitadas médiuns brasileiras, autora de livros psicografados e atuante no mundo espiritual até o presente com um magnífico trabalho glorificando a vida e dirigido aos necessitados de alento e disposição. Na reencarnação anterior veio ao mundo como Leila Vilares Montalban Guzman, uma espanhola que suicidou-se aos 20 e poucos anos, atirando-se no Rio Tejo.

Certamente Yvonne Pereira reencarnou com este propósito: alertar, jogar luz neste desatino humano: suicídio. Não se pode interromper o curso da vida, incluindo a sua própria. Muita gente acha que morrendo todos os problemas se acabam. Sua obra prima Memórias de um suicida (1955) mostra o que sucede após o desesperado gesto. O livro teve uma segunda edição em 1957 e até o momento já teve mais de 30 edições. Trata-se de uma obra cultuada no meio espírita e respeitada na área da saúde mental, conforme relatado no artigo Suicídio na literatura religiosa: o kardecismo como fonte bibliográfica privilegiada, publicado na revista RECIIS: Revista Eletrônica de Comunicação, Informação & Inovação em Saúde, v.4, n.3, set. 2010.

Nascida numa família espírita humilde, com apenas 29 dias foi sufocada por um acesso de tosse e ficou em estado de catalepsia por 6 horas. O médico atestou o óbito e o corpo foi preparado para o velório. Pouco depois, após a despedida dos pais, o bebê acordou chorando. Não obstante os poucos recursos, sua família tinha o hábito de abrigar pessoas carentes em casa, que segundo Yvonne, ficou marcado em sua vida. Ainda criança, aos 4 anos, passou a ver e ouvir “espíritos”, que ela considerava pessoas normais. Entre as aparições, ela distinguia pessoas que seriam seus parentes numa encarnação anterior. Tais visões vinham junto com uma grande saudade desta vivência na Espanha em meados do séc. XIX

Assim, estranhava o pai e irmãos, bem como a casa e cidade onde vivia. Às vezes, após o banho, exigia o vestido bonito e reclamava pela carruagem que deveria levá-la a passeio. Tais fatos geraram conflitos e ela teve que passar boa parte do tempo na casa da avó paterna até os 10 anos. Um novo ataque de catalepsia ocorreu aos 8 anos. Enquanto dormia, seu espírito foi levado até uma imagem do “Senhor dos Passos”, na igreja que frequentava. Sofria muito e pedia socorro. A imagem dirigiu-lhe a palavra: “Vem comigo, minha filha, será o único recurso que terás para suportar os sofrimentos que te esperam”. Aceitou a mão estendida, subiu os degraus e a partir daí não se lembra de mais nada. Esta visão ficou-lhe marcada por toda a vida. Aos 12 anos ganhou de seu pai 2 livros: O Evangelho segundo o Espiritismo e Livro dos Espíritos e no ano seguinte passou a frequentar um centro espírita, vindo a compreender melhor a Doutrina. Em termos de estudo formal, concluiu apenas o antigo curso primário, devido a dificuldades financeiras.

No entanto já escrevia fluentemente sobre literatura, e de forma tão rápida que, mais tarde, veio a identificar como fenômenos de psicografia. Por essa época auxiliava no sustento da família com trabalhos de costura, bordado, artesanato de flores etc. Uma vez aprimorada nestes trabalhos, passou a dar aulas de costura e bordados às moças da favela próxima de sua casa. Aos 16 anos era uma leitora assídua de José de Alencar, Bernardo Guimarães, Alexandre Herculano, Arthur Conan Doyle entre outros. Em seguida passou a se interessar pela linguagem Esperanto e manteve correspondência com outros esperantistas espíritas no Brasil e no exterior. A mediunidade tornou-se um fenômeno comum e ela passou a receber informes, crônicas e contos de espíritos enquanto dormia.

Sua faculdade era diversificada, tendo se dedicado à psicografia, ao receituário homeopático, à psicofonia e, ocasionalmente, aos efeitos físicos de materialização. Com frequência dedicava-se a prática de desobsessão. Tinha uma afeição especial pelos suicidas. Procurava nos jornais e anotava num livro de preces os nomes das pessoas que se mataram e, sabedora dos males que lhe afligiam, orava por eles. Fazia isto como forma de reparação ao seu suicídio na encarnação anterior. Depois de algum tempo, alguns deles vinham agradecer-lhe as preces com abraços e passeios pelo casarão onde morava.

Assim, foi contemplada com amizades no mundo espiritual, incluindo o escritor português Camilo Castelo Branco, que lhe franqueou a psicografia de suas “Memórias de um suicida”. Começou a psicografar desde 1926, mas decidiu publicar somente em meados da década de 1950, segundo ela “após muita insistência dos mentores espirituais”. Deixou mais de 20 obras publicadas e 10 livros infanto-juvenis ainda não publicados. Numa entrevista, em 1972, disse “A formação do meu caráter foi feita pelo Dr. Bezerra de Menezes. Segui sempre os conselhos dele. Mas, houve outros espíritos que me guiaram, como Bittencourt Sampaio e Eurípedes Barsanulpho, com quem trabalhei muito, principalmente em curas de paralíticos”. Pouco depois sofreu um acidente vascular cerebral; ficou impossibilitada de trabalhar e veio a falecer em 9/3/1984, vitimada por uma trombose.

Atualmente é considerada uma das maiores médiuns sob todos os aspectos, dotada de valiosas faculdades sempre postas a serviço dos necessitados. Era uma pessoa exigente e desconfiada quando o fato se relacionava com o mundo espiritual, nunca aceitando nada à primeira vista, sem um exame dentro dos preceitos recomendados pela Doutrina Espirita. Sua vida e legado podem ser melhor conhecidos nas biografias: Yvonne Pereira: uma heroína silenciosa (2003), de Pedro Camilo e Yvonne, a médium iluminada (2007), de Gerson Setini.

Clique aqui e assista a um vídeo com uma entrevista histórica de Yvonne Pereira.


José Domingos Brito - Memorial segunda, 01 de fevereiro de 2021

OS BRASILEIROS: MARCOLINO GOMES CANDAU (ARTIGO DE JOSÉ DOMINGOS BRITO, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

OS BRASILEIROS: Marcolino Gomes Candau

Marcolino Gomes Candau nasceu em Niterói, RJ, em 30/5/1911. Médico, administrador, meio diplomata e um dos pioneiros da saúde pública no Brasil e no Mundo como diretor-geral da OMS-Organização Mundial da Saúde em seus primórdios (1953 a 1973). Nesse interim foi Ministro da Saúde do Brasil, no Governo João Goulart por 68 dias em 1962.

Diplomado pela Faculdade Fluminense de Medicina, em 1933, e hábil administrador, exerceu cargos de chefia em serviços de saúde em algumas cidades do interior. Em 1938 já ocupava um alto cargo na Secretaria de Saúde, ao mesmo tempo em que ministrava aulas na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Na ocasião pediu ao seu amigo Fred Soper, diretor da Fundação Rockfeller no Brasil, que lhe arrumasse uma bolsa de estudos na Universidade Johns Hopkins, nos EUA, mantida pela Fundação. Foi atendido e partiu junto com a esposa, em 1940, para fazer mestrado na área de saúde pública. Pouco depois os EUA entram na II Guerra Mundial e ele retorna ao Brasil para trabalhar no Serviço Especial de Mobilização de Trabalhadores, na Amazônia, cuidando dos “soldados da borracha”.

Sua competência no serviço levou-o à Superintendência do recém criado SESP-Serviço Especial de Saúde Pública, em 1947, uma agência bilateral (Brasil e EUA), para promover o saneamento da Amazônia e do Vale do Rio Doce, que produziam borracha, minério de ferro e mica, necessários à indústria bélica. Por essa época, a revista “Time” publicou uma reportagem onde aparece seu nome e elogios ao seu trabalho no SESP. Pouco antes, em 1945, ocorreu a Conferência de São Francisco, na Califórnia, que deu origem a criação da ONU-Organização das Nações Unidas. O Brasil e a China foram os únicos países a enviarem médicos para a Conferência, e o fato veio a causar uma mudança radical na saúde do Mundo. Numa conversa informal os médicos Geraldo de Paula Souza e Szeming Sze articularam a criação de uma organização mundial para cuidar da saúde, subordinada a ONU. A proposta foi submetida ao plenário e 3 anos depois estava criada a OMS-Organização Mundial da Saúde. Por essa época, Fred Soper deixa a representação da Fundação Rockfeller, no Rio de Janeiro, para dirigir a OPAS-Organização Pan-Americana da Saúde, em 1947, e mais tarde volta a se encontrar com Candau em Washington para lhe proporcionar novo salto em sua carreira profissional.

Enquanto comandava o SESP, presidiu o Congresso Brasileiro de Higiene; criou a Escola de Enfermagem de Manaus e passou a lecionar no Instituto Oswaldo Cruz, que foi integrado à Fundação Oswaldo Cruz. Em 1950 ingressou na OMS, por indicação de Geraldo de Paula Souza, onde veio assumir a diretoria da Divisão de Organização dos Serviços de Saúde. Após dois anos foi trabalhar com seu amigo Soper na OPAS, em Washington. Com sua habitual diplomacia, ficou encarregado de aprimorar as relações entre a OMS e OPAS. O objetivo era que a OPAS se tornasse uma representação da OMS nas Américas, sem perder sua autonomia.

Ficou 14 meses costurando esta aliança e, em março de 1953, voltou para Genebra para ocupar a diretoria-geral da OMS, numa eleição que contou o apoio de seu antecessor, o psiquiatra canadense Brock Crisholm. Na cerimônia de posse homenageou Geraldo de Paula Souza e contou com a presença do recém-eleito secretário-geral da ONU, o sueco Dag Hammarksjöld, de quem se tornou amigo. Os dois estiveram juntos na África, em 1960, na reestruturação do Congo, que se tornou independente da Bélgica. A OMS ainda engatinhava como organismo da ONU com a finalidade de promover a saúde nos países em desenvolvimento. Contava com um Comitê Executivo composto por 18 países, onde os EUA eram representados por Fred Soper, velho amigo de Candau.

Seus primeiros desafios foram enormes: combater a varíola, a malária e o uso do agrotóxico DDT na agricultura. Para combater a varíola, convidou Donald Henderson, do CDC-Centro de Controle e Prevenção de Doenças, dos EUA, para chefiar o programa, que foi um sucesso. Enquanto esteve à frente da OMS, ampliou de 81 países-membros, 1.500 funcionários e um orçamento de U$ 9 milhões para 138 países-membros, 4 mil funcionários e um orçamento de U$ 106 milhões. Hoje a OMS conta com mais de 7 mil funcionários atuando em 150 países. Candau conseguiu, também, que as diretorias regionais fossem designadas pelos países da região e não mais pela diretoria-geral. Outras conquistas foram alcançadas: definição de protocolos globais de tratamento e vacinação; controle de qualidade de medicamentos, planejamento familiar, cuidados com o uso da energia atômica etc., além da inauguração da nova sede em 1966.

Por um breve período, foi Ministro da Saúde a convite do governo João Goulart, em 1962. Permaneceu no cargo apenas 68 dias, até a queda do regime parlamentarista e retornou á diretoria-geral da OMS. Deixou o cargo em 1973 e alguns países queriam-no para um 5º mandato, mas ele recusou. “Estou velho e preciso dar lugar a uma outra geração”. No mesmo ano a 26ª Assembleia Mundial da Saúde prestou-lhe homenagem reconhecendo-o formalmente Diretor-Geral Emérito da OMS. Em seguida casou-se com Sita Reelfs, uma suíça-holandesa funcionária da OMS, com quem viveu mais 10 anos entre Genebra e Rio de Janeiro até 24/1/1983, quando veio a falecer vitimado por um câncer no pulmão. Como é o costume no Brasil relegar a memória de sua gente a um segundo plano, parece que Candau ficou num plano ainda mais distante, não obstante sua projeção internacional e sua contribuição à saúde no Mundo. Mesmo na Wikipedia consta apenas breve verbete traduzido do inglês.

Sua memória foi salva recentemente com um belo perfil biográfico, escrito por Paulo Lyra e publicado na revista Piauí, nº 171, de dezembro de 2020, de onde foram extraídas parte das informações para esta biografia concisa. O autor conclui o perfil escrevendo: “Em contraste com a sua projeção internacional, a informação sobre Candau no Brasil é quase inacessível”. Tal afirmação estaria mais correta se afirmasse que “é quase inexistente”. Um verbete mais completo sobre legado, em inglês, encontra-se no site do Royal College of Phisicians, que inicia dizendo tratar-se de uma das grandes figuras na medicina no século 20. Clique aqui para ler.

 


José Domingos Brito - Memorial segunda, 25 de janeiro de 2021

OS BRASILEIROS: PAULA SOUZA (ARTIGO DE JOSÉ DOMINGOS BRITO, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

MEMORIAL DOS BRASILEIROS: Paula Souza

Geraldo Horácio de Paula Souza nasceu 5/7/1889, em Itu, SP. Médico sanitarista, professor e pioneiro da saúde pública no Brasil e um dos fundadores da OMS-Organização Mundial da Saúde. Criado numa das mais tradicionais famílias paulistas, os “Paula Souza” se destacam na história desde o séc. XIX com políticos, engenheiros e médicos renomados. Seu pai – Antônio Francisco de Paula Souza – foi um dos fundadores e diretor da Escola Politécnica de São Paulo.

 

Ainda adolescente ingressou no curso universitário e graduou-se aos 19 anos pela Escola de Farmácia de São Paulo. Em seguida foi estudar na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro e tomou gosto pela saúde publica. Enquanto aluno, aproveitou as férias e viajou pela Europa, onde realizou estágios em laboratórios de química e institutos médicos de Berlim, Zurique, Genebra e Paris. Após formado médico, em 1915, trabalhou no Laboratório de Química da Santa Casa, em São Paulo. Em 1918 foi indicado como professor-assistente de higiene da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, dado o interesse na área de higiene e saúde pública.

Visando aprofundar os estudos, foi indicado pelo diretor da Faculdade de Medicina, Arnaldo Vieira de Carvalho, para receber uma bolsa para estudar nos EUA, na Escola de Higiene da Johns Hopkins University, onde foi diplomado doutor na área. Trabalhou no Nutrition Laboratory, em Boston e visitou instituições ligadas a área sanitária, solidificando os conhecimentos que seriam aplicados no Brasil. De volta ao Brasil, em 1914, tornou-se professor-assistente de química médica e, em 1922, tornou-se professor catedrático da Faculdade de Medicina de São Paulo e instalou o Serviço Sanitário de São Paulo. Em 1927 este serviço foi transformado no Instituto de Higiene, com atribuições mais amplas. Organizou serviços especializados de alimentação, de fiscalização do exercício da medicina e da inspetoria da lepra.

Assim, pode-se dizer que foi pioneiro, também, na criação do CFM-Conselho Federal de Medicina e dos conselhos regionais, em 1945. Seu trabalho junto a direção do Instituto de Higiene, após 20 anos de intensa atividade, chegou onde queria: a criação da Faculdade de Saúde Pública, em 1945. Em se tratando de pioneirismo, vale lembrar que esta Faculdade foi pioneira em diversas áreas: Entomologia Médica, Demografia Sanitária, Saúde do Trabalhador entre outras, além de fornecer pessoal especializado para as reformas sanitárias de São Paulo e do Brasil. Um de seus primeiros trabalhos no Instituto foi a criação de um Centro de Saúde Modelo, Dizia que o “centro de saúde” era preciso para acompanhar e prever as doenças na comunidade e não apenas um local que se procura quando já se está com algum sintoma. O “Centro de Saúde Escola Geraldo de Paula Souza” segue funcionando há quase 100 anos. Inovou em diversas atividades sanitárias, como adicionar cloro na água de abastecimento pela primeira vez no Brasil. Tal procedimento resultou numa notável redução de doenças infecciosas, como a febre tifoide, em São Paulo.

Atuou com afinco na educação sanitária nas escolas, promovendo técnicas básicas de higiene, como lavagem das mãos e a importância do banho. Sua crença era que as crianças levariam tais informações para suas famílias. Em 1925, elaborou a reforma do Código Sanitário criando a “Inspetoria de Educação Sanitária” e “Centros de Saúde”, que foi copiado em outros estados. Teve destacada atuação, também, fora da área acadêmica. Participou da criação da SOBRAHSP – Sociedade Brasileira de Higiene e Saúde Publica, fundada em 1923, tornando-se seu presidente no período 1947-1951. Em meados da década de 1940, através das conexões políticas de sua família, tornou-se representante diplomático do Brasil em questões relacionadas à saúde e, assim, viajou pelo mundo. Foi um dos primeiros brasileiro a escrever artigos sobre a medicina do Japão e da China, que permanecem importantes até hoje.

Tinha grande interesse pelos hábitos alimentares dos lugares que visitava e guardou uma coleção de menus de restaurantes de todo o mundo. Seu fascínio pela comida levou-o apoiar e ajudar a fundar o curso de nutrição na Faculdade de Saúde Pública, um dos mais importantes do País. Foi representante do Brasil na Liga das Nações, futura ONU-Organização das Nações Unidas. Numa das reuniões diplomáticas, em 1945, em conversa com o diplomata chinês Szeming Sze, propôs a ideia de criar uma agência voltada à saúde internacional. No ano seguinte, participou da reunião que esboçou a entidade, fundada em 1948, OMS-Organização Mundial da Saúde. Foi um de seus membros, mas não houve tempo para ver o progresso de sua inciativa. Faleceu de infarto fulminante em 2/5/1951, quando a OMS dava seus passos iniciais.

Atualmente pouco se fala de sua pessoa ou de seus feitos, mas existe a convicção no meio médico que ele representa para o Instituto de Higiene de São Paulo o que Arnaldo Vieira de Carvalho foi para a Faculdade de Medicina de São Paulo e Oswaldo Cruz para o “Instituto de Manguinhos”, a Fundação Oswaldo Cruz. O artigo A casa de Geraldo de Paula Souza: texto e imagem sobre um sanitarista paulista, de Lina Faria, publicado na revista “História, Ciência, Saúde – Manguinhos”, v. 12, nº 3, de dez. 2005, resgata sua história e preenche uma lacuna na história da ciência brasileira. Publicou um grande número de trabalhos sobre saúde pública e de temas correlatos, como a profilaxia das doenças endêmicas; os serviços de saneamento ambiental; os centros de saúde; a formação de pessoal especializado; políticas públicas sobre saúde, muitos deles também apresentados em congressos.

Tais publicações foram essenciais para a institucionalização da saúde pública no País. O artigo acima citado conta com informações sobre o legado de Paula Souza, mas não deixa de ser intrigante o fato de não haver uma biografia especifica dedicada ao reconhecimento de seu trabalho. É o patrono das cadeiras nº 101 da Academia Paulista de Medicina e nº 30 da Academia Paulista de Psicologia. Em São Paulo temos a Rua Paula Souza e o “Centro Paula Souza”, que administra as escolas técnicas, mas homenageiam o pai de Geraldo. O que temos sobre ele são artigos publicados em revistas científicas sobre sua vida e legado, como o escrito por N.M.F. Candeias – Memória histórica da Faculdade de Saúde Pública da USP: 1918-1945 -, publicado em nº especial da “Revista de Saúde Pública”, nº 18, 1984, ou o texto de Cristina Campos – Geraldo Horácio de Paula Souza: atuação de um higienista na cidade de São Paulo: 1925-1945, publicado na revista “História & Ensino, v.6, de out. 2000.

 


José Domingos Brito - Memorial segunda, 18 de janeiro de 2021

OS BRASILEIROS: MANOEL DE ABREU (ARTIGO DE JOSÉ DOMINGOS BRITO, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

OS BRASILEIROS: Manoel de Abreu

Manoel Dias de Abreu nasceu em São Paulo, SP, em 4/1/1891. Médico, cientista, poeta e inventor da “abreugrafia”, pequenas radiografias que permitem o diagnóstico precoce da tuberculose pulmonar. Em outros países o exame recebeu nomes como: “schermografia” (Itália), fotofluorografia (França), roentgenfotografia (Alemanha) e microrradiografia (Portugal). No período 1951-1953 recebeu 6 indicações para o Prêmio Nobel de Medicina.

 

Formou-se na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, em 1914, com a apresentação do trabalho “Natureza pobre”, referente à influência do clima tropical sobre a civilização. No mesmo ano, junto com a família, viajou para Lisboa e tem inicio a I Guerra Mundial. Não podendo voltar ao Brasil, mudou-se para Paris, onde passa a morar por 8 anos. Lá manteve contatos com escritores e cientistas, como Baudelaire, Antero de Quental, Nietzche e Darwin, quando decide aprofundar os estudos na medicina. O primeiro emprego se deu no Nouvel Hôpital de la Pitiê, encarregado de fotografar peças cirúrgicas. Dedicado e engenhoso, descobriu um dispositivo especial para obter fotografias da mucosa gástrica. Em 1916 foi trabalhar no Hôtel-Dieu, a Santa Casa francesa, e foi despertado para o estudo da recente especialidade criada pelo físico Wilhelm Conrad Roentgen, em 1895, a Radiologia.

No exame de um caso de tuberculose, realizado junto com seu chefe, Dr. Gilbert, nada foi encontrado de anormal, nenhuma afecção pulmonar ou pleural, conforme as normas de propedêutica clínica, através da percussão e da auscultação. O chefe pediu-lhe para levar o paciente ao laboratório de Radiologia para um exame do tórax, cuja chapa confirmaria o exame clínico. Feita a chapa, o médico ficou surpreso ao constatar uma tuberculose avançada. Conforme Dr. Adauto Barbosa Lima, ex-diretor da Faculdade de Medicina da USP, “aquela contradição entre o achado clínico e o achado radiológico era resultante dos experimentos e conhecimentos médicos na ocasião… A radiologia ensaiava seus primeiros passos”. Em seguida, o Dr. Gilbert confiou-lhe a chefia do Laboratório Central de Radiologia do Hôtel-Dieu, dando inicio a próspera carreira do cientista brasileiro.

Em 1918 foi trabalhar no Hospital Laennec, como assistente do prof. Maingot. Aí aperfeiçoou-se na radiologia pulmonar e desenvolveu a “densimetria”, mensuração de diferentes densidades. Visualizou na fotografia do “écran” fluorescente um meio de fazer o exame do tórax – em massa e a baixo custo – a fim de detectar a tuberculose pulmonar precoce. Tais conhecimentos levaram-no a publicar o livro Radiodiagnostic dans la tuberculose pleuro-pulmonaire, (Editora Masson, Paris), em 1921, obra pioneira sobre a interpretação radiológica das lesões pulmonares. No ano seguinte, retornou ao Brasil e passou a chefiar o Departamento de Raios X da Inspetoria de Profilaxia da Tuberculose, no Rio de Janeiro. Encontrou a cidade assolada por uma epidemia de tuberculose e ficou impressionado: “Havia óbitos, não havia doentes, os quais ocultavam seu diagnóstico na espessa massa da população; os poucos doentes que havia, procuravam o dispensário na fase final da doença, quando o tratamento, o isolamento e as várias medidas profiláticas já eram inúteis”.

Por esta época, intensificou as pesquisas de radiografias do tórax, mas os resultados são pífios. Apenas em 1935, com o aprimoramento dos aparelhos radiográficos, retomou as experiências no antigo Hospital Alemão do Rio de Janeiro. Nesse período concebeu um método rápido e barato de tomar pequenas chapas radiográficas dos pulmões para maior facilidade de diagnóstico, tratamento e profilaxia da tuberculose e do câncer de pulmão. Deu-se a invenção da “abreugrafia”, nome dado em sua homenagem e reconhecido em 1936 pela Sociedade de Medicina e Cirurgia do Rio de Janeiro, seguido de sua adoção em nível mundial.

No mesmo ano foi convidado pelo prefeito do Rio, o médico Pedro Ernesto, a assumir a chefia do Serviço de Radiologia do Hospital Jesus. Logo depois, foram instalados 3 serviços de recenseamento torácico em São Paulo, noutras cidades do Brasil, Am. do Sul, EUA e Europa. Em 1939 o termo “abreugrafia” foi referendado no I Congresso Nacional de Tuberculose, seguido da aprovação pela União Internacional contra a Tuberculose. Em 1958, o prefeito de São Paulo, Ademar de Barros, determinou que as repartições públicas deveriam adotar o nome e instituiu o dia 4 de janeiro, dia do nascimento do cientista, como o “Dia da Abreugrafia”. Estava apenas imitando o gesto do presidente Juscelino Kubitschek em âmbito nacional.

Em 1957 foi criada a Sociedade Brasileira de Abreugrafia, seguida pela publicação da Revista Brasileira d Abreugrafia. Tal método de diagnóstico de massas de baixo custo e fácil execução popularizou-se rapidamente. Foram criados equipamentos móveis, percorrendo fábricas, escolas e locais mais inacessíveis, fazendo exames e produzindo diagnósticos precoces. Com a diminuição dos casos e custos com outros equipamentos, a abreugrafia foi abandonada. O que não podemos é abandonar a memória de seu inventor, atualmente no limbo da história. Hoje, quando o diagnóstico médico por imagem está no centro das atenções, precisamos lembrar que o Brasil já deu significativa contribuição nesta área.

Manoel de Abreu foi um humanista que abriu mão da patente que lhe renderia bons lucros. Seu desejo era que o aparelho estivesse disponível à todos: “Eu vejo no horizonte a única porta aberta para o futuro, a da ciência (…) A ciência é de algum modo a única forma de ternura (…) As grandes descobertas da medicina foram realizadas por seres sonhadores, sublimes, inspirados pelo amor”.

A importância de seu invento rendeu-lhe algumas homenagens, além das indicações para o Prêmio Nobel: Cavaleiro da Legião de Honra da França; Medalha de Ouro e Médico do Ano em 1950, do Colégio Americano de Médicos do Tórax, entre outras. Sua contribuição à medicina conta com relevantes obras publicadas: Idéias gerais sobre o radiodiagnóstico na tuberculose; Estudos sobre o pulmão e o mediastino; Nova radiologia vascular e Radiologia do coração. Foi também poeta e publicou os livros Substâncias, ilustrado por Di Cavalcanti; Meditações, ilustrado por Portinari e Poemas sem realidade, que ele mesmo ilustrou. Faleceu em 30/1/1962, por ironia do destino, de câncer no pulmão, talvez causado pelo cigarro, hábito mantido desde longa data. Seu legado ficou registrado na biografia escrita por Itazil Benicio dos Santos: Vida e obra de Manoel de Abreu, o criador da abreugrafia, publicada por Irmãos Pongetti Editores, em 1963. Em 2012, no cinquentenário de sua morte, foi lançada, pela SPR-Sociedade Paulista de Radiologia, nova biografia: O Mestre das Sombras – Um Raio X Histórico de Manoel de Abreu, do jornalista e historiador Oldair de Oliveira.

 

 


José Domingos Brito - Memorial segunda, 11 de janeiro de 2021

AS BRASILEIRAS : EDWIGES DE SÁ RODRIGUES (CRÔNICA DE JOSÉ DOMINGOS BRITO, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

 

AS BRASILEIRAS: Edwiges de Sá Pereira

Edwiges de Sá Pereira nasceu em 25/10/1884, em Barreiros, PE. Poeta, jornalista, professora e precursora do movimento feminista no Brasil. Filha do advogado José Bonifácio de Sá Pereira e Maria Amélia Gonçalves da Rocha de Sá Pereira, tradicional família pernambucana. Irmã do renomado jurista Virgílio de Sá Pereira e do conhecido médico Cosme de Sá Pereira, que distribuía remédios em sua residência, dando o nome à avenida “Estrada dos Remédios”, no Recife.

 

Foi a primeira mulher a entrar para uma Academia de Letras no mundo. Foi também uma das primeiras jornalistas do Brasil e ativista social na luta pelos direitos humanos. Estudou no Colégio Eucarístico e foi professora de Educação Fundamental de História e Português, além de superintendente de ensino em várias escolas do Recife, até o cargo de professora catedrática da Escola Normal. Aos poucos foi estendendo sua atuação para a conquista da emancipação feminina e participou do I Congresso Internacional Feminista, em 1922 e colaborou na fundação da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino.

No II Congresso Internacional Feminista, realizado em 1931 no Rio de Janeiro, proferiu discurso “Pela mulher, para a mulher”, onde classifica a condição da mulher brasileira em 3 categorias: 1) a que não precisa trabalhar; 2) a que precisa e sabe trabalhar e 3) a que precisa e não sabe trabalhar. Evidentemente estava se referindo ao trabalho externo, fora do lar. Sua atuação dirigia-se a mudar a situação destas últimas. Em 1920 ingressou na Academia Pernambucana de Letras, tornando-se a primeira mulher brasileira a participar de uma agremiação acadêmica, onde chegou a ocupar o cargo de vice-presidente. Pouco depois ingressou na Associação de Imprensa de Pernambuco, repetindo seu pioneirismo como mulher participante de uma entidade jornalística.

Publicou diversas obras nas áreas de poesia, ficção e jornalísticas: Campesinas, Horas inúteis, Joia turca, Um passado que não morre, Eva Militante e A influência da mulher na educação pacifista do após-guerra. Como jornalista, atuou em diversos órgãos da imprensa pernambucana e de outros estados: “Jornal Pequeno”, “A Província”, “Jornal do Commercio”, “O Lyrio” e “Escrínio”, no Rio Grande do Sul. E também revistas como “Vida Feminina”, “Revista do Instituto da Sociedade de Letras de Pernambuco” e “A Nota”.

Sua atuação, tanto nas instituições como na imprensa, ficou marcada pela luta em defesa da cidadania e dos direitos humanos; pela conquista da emancipação feminina e conquista do voto da mulher, participando de campanhas sufragistas. Um direito que foi ratificado na Revolução de 1930. Com a conquista do direito de votar e ser votada, candidatou-se a Deputada da Assembleia Nacional Constituinte, em 1934. Foi também precursora pelo direito ao divórcio e propagava nos jornais que “nenhuma mulher era obrigada a viver ao lado de um homem com que não se entendesse muito bem”.

Como professora, sua atuação na imprensa insistia na necessidade da educação da mulher como único caminho para a libertação. Faleceu em 14/8/1958 e seu acervo documental encontra-se à disposição para consultas no Centro de Documentação da Fundação Joaquim Nabuco, no Recife.

 


José Domingos Brito - Memorial segunda, 04 de janeiro de 2021

OS BRASILEIROS: CÂMARA CASCUDO (CRÔNICA DE JOSÉ DOMINGOS BRITO, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

 

OS BRASILEIROS: Câmara Cascudo

Luís da Câmara Cascudo nasceu em Natal, RN, em 30/12/1898. Historiador, antropólogo, advogado, tradutor, jornalista, folclorista e um dos mais destacados pesquisadores das raízes étnicas do Brasil. Seus primeiros estudos se deram no Atheneu Norte Rio-Grandense, onde se tornou professor de história e diretor. Cursou medicina até o 4º ano, mas sem vocação para isso e interessado em folclore, formou-se em Etnografia, na Faculdade de Filosofia do Rio Grande do Norte e em Direito, na Faculdade do Recife, em 1928.

 

No ano seguinte, casou-se com Dhália Freire, com quem teve dois filhos. Começou como jornalista e teve seu primeiro trabalho publicado, em 1918, no jornal “A Imprensa”, de seu pai, o coronel Francisco Cascudo: uma crônica intitulada “O tempo e eu”. Colaborou com diversos jornais de Natal e manteve seções diárias nos jornais “República” e “Diário de Natal”, numa coluna chamada “Bric-a-Brac” (bagunça, geringonça, desmantelo) até 1960. Aos 23 anos teve seu primeiro livro – Alma patrícia – publicado, um estudo crítico e biobibliográfico de 18 escritores. Teve alguma participação na Semana de Arte Moderna de 1922 e foi amigo de Mário e Oswald de Andrade, a quem chamava de “doido-mor”.

Foi professor de Direito Internacional Público, na Faculdade de Direito do Recife e de Etnografia Geral, na Faculdade de Filosofia, em Natal. Mas na época o folclore não era prestigiado como estudo acadêmico e ele quase foi demitido do cargo por estudar figuras como o lobisomem. Na política, foi monarquista no inicio e combateu a crescente influência marxista no Brasil, quando Natal foi palco da Intentona Comunista de 1935. Aderiu ao integralismo e foi chefe regional do movimento da “Ação Integralista Brasileira”, movimento nacionalista liderado por Plínio Salgado. Pouco depois, desencantou-se com essa doutrina política e já durante a II Guerra Mundial ficou com os “Aliados”, demonstrando sua repulsa aos fascistas italianos e nazistas alemães. Manteve-se, porém, aliado ao anticomunismo e não se opôs ao Golpe Militar de 1964. No entanto, ajudou diversos conterrâneos perseguidos pelos militares.

Em 1941 fundou a Sociedade Brasileira de Folclore e 2 anos depois foi convidado por Augusto Meyer, diretor do INL-Instituto Nacional do Livro, para redigir o Dicionário do Folclore Brasileiro, lançado em 1954. Em viagens pela África, em 1963, coletou diversas informações, com as quais publicou duas obras básicas sobre as origens da alimentação no Brasil: A cozinha africana no Brasil (1967) e História da alimentação no Brasil (1968). Para ele “nenhuma ciência possui maior espaço de pesquisa e de aproximação humana que o folclore”. Seu interesse pelo folclore deveu-se ao fato de “querer saber a história de todas as coisas do campo e da cidade. Convivência dos humildes, sábios, analfabetos, sabedores dos segredos do Mar das Estrelas, dos morros silenciosos. Assombrações. Mistérios. Jamais abandonei o caminho que leva ao encantamento do passado. Pesquisas. Indagações. Confidências que hoje não têm preço.”

Sua produção bibliográfica é extensa, com cerca 170 livros e opúsculos, muitos dos quais reeditados até hoje, incluindo obras básicas, como Antologia do folclore brasileiro (1943) Geografia dos mitos brasileiros (1947), Ensaios de etnografia brasileira (1971), e livros clássicos, como Rede de dormir (1959), Vaqueiros e cantadores (1959), Preludio da cachaça (1967) entre outros. Num de seus últimos livros –Tradição, ciência do povo (1971) -, explora conceitos-chave de seu ofício e método de trabalho. Considera que são 3 as fases do trabalho folclórico e etnográfico: “colheita, confronto e pesquisa de origem”, ou seja, a escuta atenta dos informantes, o registro rigoroso das diferentes versões e a busca das origens entendidas. A Editora Global mantém em seu catálogo 45 títulos de sua autoria.

Passou toda a vida em Natal, onde é mantido o “Ludovicus: Instituto Câmara Cascudo”, na casa onde viveu, na avenida que leva seu nome e faleceu em 30/7/1986. Ludovicus é Luis em latim, idioma que ele dominava com perfeição. Não é o local da brincadeira, como pode parecer, mas não deixa de ser apropriado devido ao caráter de suas pesquisas. Foi agraciado com dezenas de prêmios e horarias, tendo seu nome em diversos logradouros de todo o País. Em 1991, a Casa da Moeda emitiu a cédula de 50 mil cruzeiros com sua efígie, que ficou em circulação por três anos. Sua vida foi esmiuçada em algumas biografias, com destaque para Viagem ao universo de Câmara Cascudo (1969), de Américo de Oliveira Costa e Luis da Câmara Cascudo: 50 anos de vida intelectual, (1970) de Zila Mamede. Faleceu em 30/7/1986

 


José Domingos Brito - Memorial segunda, 28 de dezembro de 2020

OS BRASILEIROS: BEZERRA DE MENEZES (CRÔNICA DE JOSÉ DOMINGOS BRITO, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

 

OS BRASILEIROS: Bezerra de Menezes

Adolfo Bezerra de Menezes Cavalcanti nasceu em Riacho do Sangue, atual Solonópole, CE, em 29/8/1831. Médico, escritor, jornalista, militar, político, filantropo e expoente da Doutrina Espírita, conhecido como “o médico dos pobres” e “Kardec brasileiro”. Divide com Chico Xavier a condição de espírita mais conhecido e venerado do Brasil.

Descendente de uma antiga família cigana, posteriormente ligada à politica e ao exército, filho do tenente-coronel da Guarda Nacional Antônio Bezerra de Menezes e Fabiana de Jesus Maria Bezerra. Concluiu a educação elementar em 10 meses; aos 11 anos aprendeu latim; aos 13 substituía o professor no ensino dessa língua; aos 15 mudou-se para Fortaleza e concluiu o curso secundário no Liceu do Ceará. Aos 20 anos, com o falecimento do pai, mudou-se para o Rio de Janeiro e ingressou na Faculdade de Medicina. Para prover os estudos dava aulas particulares de filosofia e matemática. Aos 25 graduou-se médico com a tese “Diagnóstico do Cancro” e foi trabalhar como assistente de seu professor no Corpo de Saúde do Exército Brasileiro.

Aos 26 anos ingressou na Academia Imperial de Medicina e logo candidatou-se ao cargo de professor-assistente de cirurgia na Faculdade de Medicina. No mesmo ano foi empossado como Cirurgião-Tenente do Corpo de Saúde do Exército. Aos 27 anos, bem estabelecido, casou-se com Maria Cândida de Lacerda e tiveram 2 filhos. Aos 32 deu-se uma tragédia: sua esposa veio a falecer de mal súbito, deixando-lhe um filho de 3 anos e outro de 1. Por essa época exercia, além da medicina, o cargo de redator dos “Anais Brasilienses de Medicina” da Academia Imperial de Medicina. A irmã –Cândida Augusta de Lacerda- de sua falecida esposa ajudou a criar os filhos. Esta convivência resultou em casamento com a cunhada em 1865, com quem teve mais 7 filhos. No exercício profissional era um médico caridoso atendendo necessitados que não podiam pagar. Assim, passou a ficar conhecido como o “medico dos pobres”. Chegou a dar seu anel de formatura à uma pobre mulher para que comprasse remédios para o filho.

Com este perfil voltado às pessoas carentes adquiriu popularidade e foi indicado por amigos à Câmara Municipal. Com alguma insistência aceitou a indicação e foi eleito em 1861. Tem início a carreira politica, que se estende até 1885 acumulando mandatos de vereador e deputado provincial, exercendo a presidência da Câmara em algumas ocasiões. Como político teve iniciativas pioneiras, como regulamentação do trabalho doméstico, denuncia dos perigos da poluição e propostas de combate, um problema que já naquela época afetava a população do Rio. Batalhou pela extinção dos artigos nºs 157 e 158 do Código Pena de 1890, que proibiam “praticar o Espiritismo” e promover curas de moléstias curáveis ou incuráveis, que afetavam diretamente as atividades dos centros espíritas.

Um aspecto pouco conhecido é sua vida como empresário. Foi sócio fundador da Companhia Estrada de Ferro Macaé-Campos (1870) e empenhou-se na construção da Estrada de Ferro Santo Antonio de Pádua (1872). Foi um dos diretores da Companhia Arquitetônica de Vila Isabel (1873) e presidente da Companhia Ferro-Carril de São Cristovão (1875), levando os trilhos até os bairros do Caju e da Tijuca. Vale destacar, também, sua atividade política, sem mandato, como intelectual. Participou da campanha abolicionista com a publicação do livreto A escravidão no Brasil e as medidas que convém tomar para extingui-la sem dano para a Nação (1869), distribuído gratuitamente à população. Dizia-se um “liberal” e propunha imitar os ingleses com a abolição da escravidão. Na grande seca do Nordeste em 1877, publicou o ensaio Breves considerações sobre as secas do Norte. Como médico, lançou novo enfoque sobre as doenças mentais com o ensaio A loucura sob novo prisma: estudo psíquico-fisiológico. Como jornalista, foi redator dos jornais “A Reforma” e “Sentinela da Liberdade”. Como romancista publicou alguns livros de caráter espírita e traduziu as Obras Póstumas de Allan Kardec, em 1892.

Seu primeiro contato com o Espiritismo se deu por acaso. Em 1875 ganhou de presente um exemplar d’O Livro dos Espíritos de seu tradutor e amigo Dr. Joaquim Carlos Travassos. Na volta para casa na Tijuca, distante uma hora de viagem de bonde, foi se entretendo na leitura e deu-se conta que “já tinha lido ou ouvido tudo o que se achava n’O Livro dos Espíritos. Preocupei-me seriamente com este fato maravilhoso e a mim mesmo dizia: parece que eu era espírita inconsciente, ou, mesmo como se diz vulgarmente, de nascença”. A partir daí seu envolvimento com a doutrina foi crescendo. Teve contato as “curas” espirituais pelo médium João Gonçalves do Nascimento, em 1882; passou a contribuir com artigos na revista “O Reformador”, em 1883 e pouco depois decidiu se “converter”, em grande estilo. Aos 55 anos, em 16/8/1886, deu uma palestra no salão da “Guarda Velha”, explicitando sua adesão ao Espiritismo para mais de mil pessoas.

No ano seguinte, a pedido do Centro da União Espírita do Brasil, iniciou a publicação de artigos na seção “Spiritismo – Estudos Philosóficos”, publicados aos domingos, em “O Paiz”, assinados sob o pseudônimo Max, no período 1887-1893. Por essa época, os adeptos da Doutrina Espirita estavam divididos entre os filósofos/cientistas e religiosos. Bezerra de Menezes encontrava-se entre estes últimos, mas transitava bem entre as duas correntes. Assim, foi convocado para superar a divisão e promover a união através da FEB-Federação Espírita Brasileira, em 1889. Iniciou o estudo sistemático de O Livro dos Espíritos em reuniões públicas semanais; passou a redigir o “Reformador”; doutrinar espíritos obsessores; realizou o Congresso Espírita Nacional, reunindo 34 delegações e assumiu a presidência do Centro da União Espírita do Brasil, em 1890. Nos anos seguintes, atuou como vice-presidente da FEB e enfrentou algumas divergências internas e ataques externos ao movimento. Tais divergências fizeram-no afastar-se da diretoria, por um período, sem deixar de frequentar as reuniões e sua coluna no jornal “O Paiz”.

As divergências no movimento espírita chegaram até a direção da FEB, em 1895, e ele foi convidado a reassumir a presidência para apaziguar os ânimos. Iniciou o estudo semanal d’O Evangelho segundo o Espiritismo em reuniões públicas semanais; criou a primeira livraria espírita no País e o departamento de “Assistência aos Necessitados”. Empenhou-se na institucionalização da FEB até 11/4/1900, quando sofreu um acidente vascular cerebral e veio a falecer. A primeira página do jornal “O Paíz”, dirigido por Quintino Bocaiuva, dedicou um longo necrológio ao “eminente brasileiro”. No plano espiritual continua trabalhando em obras e mensagens psicografadas através de diversos médiuns: Chico Xavier, Divaldo Franco. Francisco Assis Perioto, Yvone Pereira, Waldo Viera entre outros, contabilizando mais de 20 livros. É considerado o patrono de centenas de centros espíritas em todo o mundo.

São muitas as biografias retratando sua vida: Legado de Bezerra de Menezes (2008), de Aziz Cury; Bezerra de Menezes: o médico dos pobres (3a. ed. 1979) e o estudo realizado por Canuto Abreu, publicado pela FEESP-Federação Espírita de São Paulo: Bezerra de Menezes: subsídios para a História do Espiritismo no Brasil até o ano de 1895. Tais biografias foram úteis na transposição de sua vida para o cinema, no filme “Bezerra de Menezes: o diário de um espírito”, em 2008, dirigido por Glauber Santos Paiva Filho com Carlos Vereza no papel.

Mensagem de Bezerra de Menezes em 23/5/2020:

 


José Domingos Brito - Memorial segunda, 21 de dezembro de 2020

OS BRASILEIROS: CARLOS GOMES (ARTIGO DE JOSÉ DOMINGOS BRITO, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

OS BRASILEIROS: Carlos Gomes

Antônio Carlos Gomes nasceu em Campinas, SP, em 11/7/1836. Músico, maestro, compositor de ópera e o primeiro brasileiro reconhecido internacionalmente nesta área. De origem humilde, filho de Manuel José Gomes (conhecido como “Maneco músico) e Fabiana Jaguari Gomes. O pai com dificuldades em manter 26 filhos, formou uma banda musical. O irmão ajudou na formação do garoto, que naturalmente revelava uma atração pela música. É considerado o maior compositor lírico das américas.

Em 1854, aos 18 anos, fez a apresentação de sua primeira “missa”, com emoção e voz embargada, comovendo a plateia. 5 anos depois já era um concertista e professor de piano e canto, com predileção pelas óperas de Verdi. Em 1859, foi convidado pelos acadêmicos da Faculdade de Direito para fazer um concerto em São Paulo, e recebeu efusivos estímulos para que fosse se aperfeiçoar na Côrte. Era um sonho alimentado pelo rapaz, mas sem condições de realizar, devido a falta de recursos. Alojado numa “república” de estudantes, compôs o “Hino Acadêmico”, com letra de Bittencourt Rodrigues, que logo se tornou a “Marselhesa da Mocidade” substituindo antigos cantos dos estudantes. O hino foi o pontapé inicial em sua prodigiosa carreira artística e, certamente, a insistencia dos estudantes para que fosse ao Rio pesou decisivamente na viagem que realizou nas condições precárias em que foi realizada. No mesmo ano falou com o pai que voltaria à São Paulo para novos concertos, o que não era verdade. Mas confessou ao irmão, José Pedro, que planejava uma fuga. Viajaria de burro até Santos e de lá embarcaria de qualquer modo para o Rio de Janeiro. O irmão não acreditou e disse-lhe que voltaria de Santos mesmo; não teria coragem para tal aventura. O decidido rapaz retrucou: “Só voltarei coroado de glórias ou só voltarão meus ossos”.

Partiu de Santos no navio Piratininga, em 1859, sob aclamação dos estudantes e amigos rumo à Côrte. Levava consigo uma carta de recomendações a D. Pedro II e pedido de alojamento junto a familia de um amigo estudante em São Paulo. Logo que chegou escreveu ao pai, pedindo-lhe perdão pela fuga e revelando seus planos. O pai não só o pedoou como garantiu-lhe uma mesada mensal. Foi apresentado ao Imperador pela Condessa Barral e encaminhado a Francisco Manuel da Silva, diretor do Conservatório de Música e teve como primeiro mestre o famoso músico italiano Joaquim Giannini. Em 1860, na festa de encerramento do curso, foi programada sua apresentação. Não pode comparecer devido a um ataque de febre amarela. Pouco antes do maestro dar inicio à “cantata”, ele surge com a febre estampada no rosto e pede a batuta para dirigir sua peça. O resultado foi uma apoteose, toda a plateia em pé apludindo efusivamente. Ele não resistiu e caiu desmaiado. Ao saber do ocorrido, D.Pedro II condecorou-o com uma medalha de ouro.

Em 4/9/1861 foi executada sua primeira ópera – Noite no Castelo – no Teatro da Ópera Nacional. Dá-se nova apoteose e o Imperador, de novo, condecorou-o com a comenda “Imperial Ordem das Rosas”. Dois anos depois surge outro sucesso com a segunda ópera: Joana de Flandres, encenada em 1863. Em seguida foi agraciado com uma viagem à Europa, concedida pela Empresa de Ópera Lírica e o Governo Imperial. O Imperador queria que ele fosse para a Alemanha para estar com o grande Wagner, mas a Imperatriz D. Teresa Cristina, sugeriu-lhe a Itália. Embarcou em 8/11/1863, levando uma recomendação de D. Pedro II para o rei Fernando, de Portugal, que o apresentasse ao diretor do Conservatório de Milão, Lauro Rossi.

Encantado com o talento do rapaz, Rossi tornou-se seu tutor e passa a recomendá-lo no métier musical da cidade. Em 1866 recebeu o diploma de mestre e compositor. Passou a compor óperas: “Se sa minga”, em dialeto milanês, estreada no Teatro Forssetti e “Nella luna”, no Teatro Carcano, ambas com livreto de Antonio Scalvini, prolongando sua permanência em Milão, onde casou-se com Adelina Péri. O sucesso foi se consolidando e no ano seguinte, flanando pela Praça del Duomo, encontrou um garoto vendendo um folheto e apregoando: “Il Guarani! Il Guarani! Storia interessante dei selvaggi del Brasile!”. Era uma tradução do romance de José de Alencar, que serviu de base para compor a famosa ópera “O Guarani”.

Procurou Scalvini, que ficou fascinado pela história, e pouco depois concluíram a obra. Segundo os críticos não é sua maior ou melhor obra, mas foi a que o tornou conhecido em todo o mundo. A estreia se deu em 19/3/1870, seguida de apresentações na Europa e EUA. Consta que na noite da apresentação, Giuseppe Verdi estava presente e comentou: “Este jovem começa de onde eu termino!”. Em 2/12/1870, aniversário de D. Pedro II, a ópera estreou no Rio de Janeiro. Outras apresentações ocorreram nos dias seguintes, quando conheceu André Rebouças. Tornam-se amigos e viajam para a Europa no ano seguinte. Neste período viveu alguns anos na Itália, quando a saúde começou a dar sinais de alerta. Sofria de um câncer na boca. O desejo de retornar ao seu país ficou mais acentuado e esteve por aqui em algumas ocasiões.

Seu desejo era ser nomeado para o cargo de diretor do Conservatório de Música. Na época foi proclamada a República, em 1889, e seu amigo e protetor D. Pedro II foi exilado, causando-lhe grande mágoa. Nesta época compôs o poema sinfônico Colombo, incompreendido pelo grande público. Após tantos perrengues, foi aliviado com um convite de Lauro Sodré, governador do Pará, para organizar e dirigir o conservatório do Estado. Antes, porém, voltou à Itália para mais uma temporada e despedida dos filhos. Retornou ao Brasil, passando por Lisboa e teve sua primeira intervenção cirúrgica na língua, em abril de 1895, sem resultados animadores. Em maio foi recebido pelo povo paraense em festa, mas com a saúde agravada. Sua condição econômica também sofreu um abalo e o governo de São Paulo providenciou uma pensão mensal de 2 contos de réis (2 mil cruzeiros), que garantiu a manutenção do tratamento até 16/9/1896, quando veio a falecer.

No ano anterior foi criado o Conservatório Carlos Gomes, posteriormente denominado Instituto Estadual Carlos Gomes, mantido pelo Governo Paraense. Em 1986 o Instituto passou a ser mantido pela Fundação Carlos Gomes, cuja missão é difundir a educação musical como instrumento de socialização e inclusão social e promover o estudo da música no Estado do Pará. Logo após o falecimento e exéquias, durante 3 dias, O governo paulista solicitou ao governo paraense o translado de seu corpo, que foi sepultado no monumento-túmulo, na Praça Antônio Pompeu, em Campinas. Em 1936, O centenário de seu nascimento, foi comemorado em grandes solenidades em todo o País e 20 anos depois foi criado o Museu Carlos Gomes, em Campinas, reunindo documentos e seus pertences, afim de manter a memória do grande compositor e maestro. Em 2017 seu nome foi inscrito no “Livros dos Heróis e Heroínas da Pátria”.

Dentre as diversas biografias do músico, consta o romance biográfico, publicado por Rubem Fonseca em 1994, O selvagem da ópera, que veio a se tornar novela dirigida por Maria Adelaide Amaral e produzida pela Rede Globo.

 

 

 


José Domingos Brito - Memorial segunda, 14 de dezembro de 2020

OS BRASILEIROS: JOSÉ VICENTE DE AZEVEDO (CRÔNICA DE JOSÉ DOMINGOS BRITO, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

OS BRASILEIROS: José Vicente de Azevedo

José Vicente de Azevedo nasceu em Lorena, SP, em 7/7/1859. Advogado, professor, político, conde romano e um dos grandes filantropos paulista. Tem o mesmo nome do avô comendador (1798-1864) e do pai coronel (1834-1869), prósperos cafeicultores do Vale do Paraíba, ambos assassinados por motivos políticos. Deu continuidade a saga familiar, porém de modo diferenciado: doou a fazenda da família à Igreja para a fundação de uma escola agrícola para órfãos e menores filhos de ex-escravos como forma de “reparação” pela exploração do trabalho escravo.

Em 1868, aos 9 anos, ficou órfão de pai e 10 anos depois mudou-se para São Paulo para estudar na Faculdade de Direito, formando-se em 1882. Casou-se no ano seguinte com Candida Bueno Lopes de Oliveira e, tal como o avô e pai, segue carreira política e foi eleito Deputado Provincial, em 1884, onde se manteve até 1889. Com a proclamação da República, manteve-se afastado da política, retornou em 1898 e foi eleito 6 vezes para a Câmara do Congresso Legislativo do Estado de São Paulo até 1918. Foi também senador estadual no período 1925-1927. Como deputado obteve aprovação dos projetos autorizando as construções do Viaduto do Chá e da nova Sé, a Catedral de São Paulo.

Católico atuante, compôs o famoso “Hino à Gloriosa Padroeira do Brasil”, que ficou conhecido como o “Viva a Mãe de Deus e nossa”, oficializado em 11/5/1951, pelo Cardeal Motta, arcebispo de São Paulo. Mas não foi aí que sua atuação ficou marcada na Igreja. Em 1889 foi eleito Provedor da Irmandade do Santíssimo Sacramento da Catedral de São Paulo e adquiriu extenso lote de terras devolutas, chácaras e lotes particulares na região do Ipiranga. Tinha a intenção de transformar o local numa “cidade do Vaticano”, que seria uma “colina de caridade cristã”. No ano seguinte doou um terreno para a construção do Liceu São José, transformado depois no Orfanato masculino Cristovão Colombo.

Junto a carreira de político, foi professor de Geografia no Ginásio do Estado durante toda a vida, sem abdicar de sua atuação caritativa na Igreja. Em 1903 empreendeu a vinda da Irmã Paulina (canonizada em 2002) e outras irmãs para integrarem o Asilo Sagrada Família. Conforme relatado por sua filha, ele tinha em mente ajudar as crianças negras, exploradas depois da Lei do Ventre Livre (1871) e os velhos, inválidos para o trabalho, descartados pela Lei dos Sexagenários (1885). Segundo Darcy Ribeiro, estas duas leis foram promulgadas para dispensar os donos de escravos de manter as crianças a partir daquela data, bem como os velhos inválidos para o trabalho.

Além da fazenda doada para a construção da escola agrícola, fez outra obra para os negros, em Lorena: doou terreno e tijolos para a construção do Asilo e Casa dos Pobres de São José, conhecido hoje como Lar São José.

Em São Paulo, particularmente no bairro do Ipiranga, consta as seguintes doações: terreno e edifício para a instalação do “Instituto de Cegos Padre Chico” (1928); terrenos para a construção do “Colégio Católico Japonês São Francisco Xavier” (1929); “Seminário Central do Ipiranga” (1934); Hospital Dom Antônio de Alvarenga, a Clínica Infantil do Ipiranga (1938), hoje Associação Beneficente Nossa Senhora de Nazaré-ABENSENA e doação de bens para a constituição da atual Fundação Nossa Senhora Auxiliadora do Ipiranga-FUNSAI

Seu empenho na realização de obras e instituições de caridade era tamanho que causou ciúmes no clero. Em 1911, o bispo Dom Duarte determinou que a Irmandade do Santíssimo Sacramento, da qual era provedor desde 1890, se limitasse a cuidar das cerimonias do culto. Obviamente, a medida retirava da irmandade a administração e uso de recursos das obras do Ipiranga e de outras iniciativas suas. A cúpula da Igreja percebeu que seu trabalho se afastava da igreja católica romanizada (trabalho com as elites, pela organização clerical de pequeno envolvimento com camponeses e operários) e ia de encontro às necessidades dos ex-escravos e seus descendentes. Mesmo assim, ele foi condecorado pelo Papa Pio XI com o título de Conde Romano, em 1935.

Tinha uma clara visão empresarial e viu na rápida urbanização do bairro Ipiranga boas oportunidades de lucro imobiliário. Assim, ganhou dinheiro com a venda de uma parte dos lotes, enquanto outra parte era doada para a criação de instituições de caridade. Com seus próprios recursos comprou 2 locomotivas, em 1890, e instalou-as numa linha de bondes de 14 km. ligando o bairro ao Parque Dom Pedro II, no centro da cidade. Sua família é ciente de sua importância na história da cidade de São Paulo e nos primórdios do bairro do Ipiranga. A filha Maria Angelina V.A. Franceschini escreveu sua biografia – Conde José Vicente de Azevedo: sua vida e sua obra -, publicada em 1996. Seu legado pode, também, ser visto na página Museu Vicente de Azevedo, aberto ao público e instalado num belo casarão do século XIX, projetado pelo arquiteto Ramos de Azevedo, no bairro do Ipiranga.

 


José Domingos Brito - Memorial segunda, 07 de dezembro de 2020

OS BRASILEIROS: HENRIQUE DIAS (CRÔNICA DE JOSÉ DOMINGOS BRITO, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

OS BRASILEIROS: Henrique Dias

Henrique Dias nasceu no Recife, PE, em princípios do século XVII. Negro liberto, mestre-de-campo, revolucionário, cavaleiro da Ordem de Cristo e um dos fundadores do Exército Brasileiro. Há pouca documentação sobre sua origem e as informações confiáveis aparecem somente em 1633, quando se apresentou ao general Matias de Albuquerque, como voluntário, para combater a “invasão holandesa” no Recife. Assim, tornou-se o capitão de uma tropa e recebeu a patente de governador dos negros e mulatos do Brasil.

 

 

Também não há retrato seu autêntico, conhecido. Os que aparecem nos compêndios de história e livros eruditos são pura fantasia. Segundo Osvaldo de Camargo, em seu livro O Negro Escrito (1987), é o primeiro negro que escreveu um texto no Brasil e, por conseguinte, “o primeiro afro-brasileiro letrado”. Combateu os holandeses em Pernambuco, Bahia, Alagoas e Rio Grande do Norte, não perdendo sequer uma batalha. Tomou parte, entre outras, nas batalhas das Tabocas, de Casa Forte, de Cunhaú e dos Guararapes. Sua primeira ação militar foi a defesa do Engenho São Sebastião, quando contou com a ajuda de vinte negros e de outros capitães, onde recebeu o primeiro dos seus 8 ferimentos lutando contra os holandeses. Num desses ferimentos perdeu a mão esquerda na batalha e continuou lutando com a direita.

Estabeleceu-se num local do Recife (atual bairro de Santo Antônio) próximo dos inimigos. Ficava tão perto dos holandeses que, às vezes, o duelo não era na bala e sim com palavras de desafio e injúria. De seu local realizou várias investidas importantes contra os batavos. Em 1635, quando os holandeses tomaram o Forte Bom Jesus, ele foi visto como escravo e não ficou entre os prisioneiros mais bem guardados. Fugiu e se reuniu às tropas pernambucanas que recuavam para o sul. Atuou na Bahia como capitão-do-mato e combateu quilombos. Passou a comandar um regimento de 500 negros; recebeu o título de fidalgo e o hábito da Ordem Militar de Cristo e recebia um soldo compatível com o posto de comandante. Enquanto isso, Maurício de Nassau consolidava a vitória em Pernambuco e governou por oito anos o “Brasil Holandês”.

Seu retorno à Holanda em 1644, precipitou a insurreição pernambucana. Os portugueses enviaram as tropas acantonadas na Bahia, incluindo a comandada por Henrique Dias. Seu batalhão, conhecido como “Terço da Gente Preta”, era composto de 500 negros escravos de origem africana e permaneceu em atividade como parte das tropas regulares de Pernambuco até meados do século XVIII. Em fevereiro de 1649, o coronel Van Den Brinck e seus 3500 homens receberam uma artilharia e a ordem para desalojar os pernambucanos dos montes Guararapes. Dias demonstrou excepcional bravura e o batalhão negro perseguiu os holandeses até os portões da cidade. O comandante português, Menezes, mal pode acreditar na vitória. Em dado momento da trégua de Portugal com a Holanda, D. João IV determinou que os insurreitos pernambucanos se encaminhassem à Bahia.

Antes que os holandeses comemorassem a retirada, receberam de Henrique Dias uma carta dizendo o seguinte: “Meus senhores holandeses, saibam Vossas Mercês que Pernambuco é minha Pátria, e que já não podemos sofrer tanta ausência dela. Aqui haveremos de perder as vidas, ou havemos de deitar a Vossas Mercês fora dela. E ainda que o Governador e Sua Majestade nos mandem retirar para a Bahia, primeiro que o façamos havemos de responder-lhes, e dar-lhes as razões que temos para não desistir desta guerra”. Com a expulsão dos holandeses, em 1654, Henrique Dias, ao contrário de outros militares combatentes, não recebeu as recompensas que lhe eram devidas, tendo que viajar a Portugal para requerer a remuneração atrasada dos seus serviços e foi recebido pelo rei Dom João IV. Na ocasião, pediu que seu regimento de negros fosse perpetuado. O rei concordou e mandou construir a cidade de Estância, perto de Recife, para os soldados.

Recebeu o título de governador dos crioulos, pretos e mulatos do Brasil, além da comenda dos Moinhos de Soure, da Ordem de Cristo. Passou seus últimos anos em Pernambuco em extrema pobreza e morreu em 8/6/1662, no Recife. Sua memória ficou registrada com o nome adotado pelos batalhões de Pretos que surgiram em várias capitanias após sua morte. Um século depois ainda estavam ativos dois corpos militares de homens de cor em Pernambuco. O de Pardos possuía 31 companhias e contava com 1.401 pessoas e o de Henrique Dias, exclusivamente formado por Pretos, que contava com 17 companhias formadas por 1.549 homens. Pela sua bravura, dedicação e liderança, foi escolhido, em 1992, patrono do então 28º Batalhão de Infantaria Blindada (28º BIB), atualmente, 28º Batalhão de Infantaria Leve (28º BIL) localizado em Campinas, São Paulo.

A Lei nº 12.701, de 6/8/2012, incluiu seu nome no Livro de Heróis da Pátria, depositado no Panteão da Pátria, em Brasília. Não obstante o esquecimento a que foi relegado, mesmo no “movimento negro”, seu nome ainda denomina uma porção de logradouros e instituições no Brasil e, particularmente, em Pernambuco, como o “Grupo Escolar Henrique Dias”, em Garanhuns, onde conclui o curso primário.

 


José Domingos Brito - Memorial segunda, 30 de novembro de 2020

OS BRASILEIROS: GREGÓRIO BEZERRA (CRÔNICA DE JOSÉ DOMINGOS BRITO, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

OS BRASILEIROS: Gregório Bezerra

Gregório Lourenço Bezerra nasceu em Panelas, PE, em 13/03/1900. Político e revolucionário. Trabalhou na agricultura ainda criança e ficou órfão do pai aos 7 anos, e da mãe aos 9. Foi morar no Recife junto a família dos fazendeiros que empregavam seus pais, mas não ficou muito tempo. A promessa de estudar não progrediu e permaneceu analfabeto até os 25 anos. Passou boa parte da adolescência dormindo na rua e entre as catacumbas do cemitério de Santo Amaro. Nessa época trabalhou como carregador de malas na estação ferroviária, ajudante de pedreiro, jornaleiro etc.

Como vendedor ambulante de jornas, começou a se interessar pela política, através da leitura que os colegas faziam para ele. Em 1917 foi preso pela primeira vez, quando participava de uma passeata no Recife, reivindicando direitos trabalhistas e em apoio à Revolução Bolchevique, na Rússia. Passou 5 anos preso na Casa de Detenção do Recife, atual Casa de Cultura, onde conheceu o cangaceiro Antônio Silvino, do quem se tornou amigo. Ao sair da prisão, em 1922, e com dificuldades de arrumar emprego, alistou-se no Exército. Aí certificou-se da necessidade de alguma disciplina para aprender a ler e escrever e dedicou-se, como autodidata, à sua própria alfabetização.

Animou-se com a carreira militar e entrou na Escola de Sargentos de Infantaria, no Rio de Janeiro, em 1924, permaneceu por 2 anos e logo foi promovido a instrutor da Companhia de Metralhadoras Pesadas, devido a sua disciplina e determinação. Em 1929, foi transferido para Recife já como sargento. Motivado pelos amigos e diante da enorme desigualdade social, filiou-se ao PCB-Partido Comunista Brasileiro sem se desligar do Exército. No mesmo ano transferiu-se para o Rio de Janeiro, por ter conseguido matricula na Escola de Educação Física do Exército. Disciplinado, logo foi designado instrutor de educação física do Colégio Militar de Fortaleza, em 1932. Por sua própria conta, criou uma célula do PCB em Fortaleza, contrariando a orientação do partido.

Em 1935 participou da “Intentona Comunista”, movimento político promovido pela ALN–Aliança Libertadora Nacional, na condição de líder dos militares. Na tentativa de conseguir armamentos do CPOR, foi preso acusado pela morte de um tenente e ferimento de outro. Foi submetido a severas torturas e recebeu uma condenação de 28 anos, primeiro em Fernando de Noronha, seguida por outra temporada no Rio de Janeiro, no Presídio Frei Caneca. Nesta ocasião, dividiu a cela com o secretário-geral do PCB, Luís Carlos Prestes. Foi aí que aprimorou seus conhecimentos sobre as condições econômicas e políticas do Brasil, bem como sobre o movimento comunista internacional.

Com o fim do Estado Novo e a legalização do PCB em 1945, foi anistiado e designado como o principal candidato do partido à Assembleia Nacional Constituinte. Elegeu-se deputado federal por Pernambuco, em dezembro de 1947, com a maior votação do estado. Em janeiro de 1948 foi cassado junto com todos os parlamentares comunistas e passou a viver na clandestinidade por 9 anos. Neste período viajou para Goiás e Paraná, organizando núcleos sindicais. A terceira prisão veio em 1964, com o Golpe Militar. Foi preso enquanto organizava a resistência armada dos camponeses ao golpe em apoio ao governo de João Goulart (federal) e Miguel Arraes (estadual). Levado para o Recife, sofreu as mais terríveis torturas e humilhações públicas. Teve os pés imersos em ácido de bateria e foi obrigado a andar sobre britas. Em seguida foi amarrado em um jipe e arrastado pelas ruas de Casa Forte, enquanto o tenente-coronel Darcy Viana Vilock incitava a população a linchá-lo. O povo, consternado pela cena, não atendeu a incitação do coronel. Estas cenas foram transmitidas ao vivo pela televisão.

Em 1967 foi condenado a 19 anos de prisão, e foi libertado em 1969 junto com outros 14 presos políticos, em troca da libertação do embaixador dos Estados Unidos, Charles Burke Elbrick, sequestrado pelos guerrilheiros. Passou a viver na Rússia, México e Cuba, só retornando ao Brasil em 1979, com a promulgação da anistia. Em seguida começou a divergir do PCB e desligou-se de seus quadros. No mesmo ano publicou sua autobiografia “Memórias”, relançada em 2011 pela Boitempo Editorial. Pouco depois, filou-se ao PMDB, partido de oposição ao Governo, e candidatou-se a Deputado Federal, em 1982, aos 82 anos. Perdeu a eleição, mas ganhou a suplência. No ano seguinte, com a saúde abalada, declarou: “Gostaria de ser lembrado como o homem que foi amigo das crianças, dos pobres e excluídos; amado e respeitado pelo povo, pelas massas exploradas e sofridas; odiado e temido pelos capitalistas, sendo considerado o inimigo número um das ditaduras fascistas”. Faleceu em 21/10/1983. Em sua homenagem, o poeta Ferreira Gullar compôs o poema-cordel intitulado “História de um valente”.

Valentes, conheci muitos,
e valentões, muito mais.
Uns só valente no nome
uns outros só de cartaz,
uns valentes pela fome,
outros por comer demais,
sem falar dos que são homem
só com capangas atrás.
Mas existe nessa terra
muito homem de valor
que é bravo sem matar gente
mas não teme matador,
que gosta da sua gente
e que luta a seu favor,
como Gregório Bezerra,
feito de ferro e de flor.

Em 2004 foi realizado o documentário “Gregório Bezerra, feito de ferro e de flor”, dirigido por Anna Paula Novaes, Raquel Barros e Rosevanya Albuquerque. O filme ganhou os prêmios de Destaque e Menção Honrosa no Festival Brasileiro de Cinema Universitário.

 


José Domingos Brito - Memorial segunda, 23 de novembro de 2020

AS BRASILEIRAS: DELFINA BENIGNA (CRÔNICA DE JOSÉ DOMINGOS BRITO, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

 

AS BRASILEIRAS: Delfina Benigna

Delfina Benigna da Cunha nasceu em 17/6/1791, em São José do Norte, RS, na Estância do Pontal. Poeta destacada como uma das fundadoras da literatura gaúcha. Filha do capitão-mor Joaquim Fernandes da Cunha, responsável pela guarda do Litoral, e Maria Francisca de Paula e Cunha. Sua poesia é fundada unicamente na inspiração e espontaneidade, sem artifícios nem preocupação alguma com os processos estéticos.

 

Devido a uma epidemia de varíola, ficou completamente cega aos 20 meses de vida. Recebeu da família uma sólida formação cultural e aos 12 anos já ditava seus poemas para os irmãos escreverem. Em 1834 publicou o livro “Poesias oferecidas às senhoras rio-grandenses”, impresso na Typographia de Fonseca & Cia., de Porto Alegre. Foi uma das primeiras obras impressas no Rio Grande do Sul.

Seu pai faleceu em 1825 e ela passou por alguns perrengues com dificuldades econômicas em se manter. Escreveu um soneto-apelo dirigido ao Imperador Dom Pedro I pedindo auxílio e foi contemplada com uma pensão vitalícia, em reconhecimento aos serviços prestados pelo pai como capitão-mor. O fato reforçou sua adesão à Monarquia. Conforme registra o Dicionário de Mulheres, de Hilda Hubner Flores, ela odiava os liberais “Farroupilhas”, e escrevia versos ferinos contra o líder Bento Gonçalves. Como decorrência dessa intriga política, ela teve que exilar-se no Rio de Janeiro, em 1838, onde seu livro foi reeditado pela Livraria Garnier.

Não chegou a se casar, mas dizem que mantinha uma paixão secreta pelo Major Manuel Marques de Souza, o futuro Conde de Porto Alegre, que retomou a capital gaúcha das mãos dos Farroupilhas, em 15/6/1836. Há quem diga que seu amor sublimado tenha sido o motivo do desencanto gravado em seus versos. Há também quem diga que isso é bobagem e que a cegueira já seria suficiente para provocar um desencanto e melancolia com a vida, conforme se vê no soneto:

Em versos não cadentes, oh! leitores,
Vereis os males meus, vereis meus danos:
Da Primavera a gala e os verdores
Nem foram para os meus primeiros anos.

Mesmo na infância experimentei rigores
De meus fados cruéis sempre inumanos,
Que só me destinaram dissabores
Mil males revolvendo em seus Arcanos.

Sem auxílio da luz, que Apolo envia,
Versos dignos de vos tecer não posso;]
Desculpai minha ousada fantasia.

Com estes cantos meus, mortais, adoço
A mágoa que meu estro só resfria:
Se mérito lhe dais, é todo vosso.

Faleceu em 13/4/1857 e sua última obra – Coleção de várias Poesias dedicadas à Imperatriz Viúva – foi lançada em 1846 pela Tipografia Laemmert. O primeiro registro de seu nome na bibliografia brasileira se encontra no livro Mulheres Ilustres do Brasil (1899), de Ignez Sabino, onde são enaltecidos os sentimentos e a qualidade de sua poesia. Consta também um verbete incluído no livro Vozes Femininas da Poesia Brasileira, publicado pelo Conselho Estaudal de Cultura de São Paulo, em 1959, ressaltando seu pionierismo na Literatura. Foi homenageada como patrona da cadeira nº 1 da Academia Literária Feminina do Rio Grande do Sul, e tem seu nome estampado numa rua do bairro Camaquã, em Porto Alegre.

Na falta de uma biografia exclusiva, temos o romance histórico O romanceiro de Delfina, de Stella Leonardo, publicado, em 1994, pelo Instituto Estadual do Livro (RS), contando a saga da poeta. Em 2011, Suzete Maria Santin apresentou na Faculdade de Letras da UFRGS, a tese de doutorado “Delfina Benigna da Cunha: recuperação crítica, obra poétca e fixação do texto”, esmiuçando a obra da poeta e apresentando vasta documentação da época. A tese em 2 volumes se propõe a fazer uma reletura da obra da poeta, “visando a uma abordagem com base na concepção de poesia lírica de Georg Wilhem Friedrich Hegel e de estilo, de Michael Riffaterre”. Recurpera a fortuna crítica sobre a obra e tem sua análise centrada no “amor em uma combinação tensa com a poesia da existência”.

 

 

 


José Domingos Brito - Memorial segunda, 16 de novembro de 2020

OS BRASILEIROS: PONTES DE MIRANDA (CRÔNICA DE JOSÉ DOMINGOS BRITO, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

 

OS BRASILEIROS: Pontes de Miranda

Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda nasceu em 23/4/1892, em Maceió, AL Jurista, filósofo, sociólogo e diplomata, distinguido na área do Direito. Criança precoce, aos 7 anos lia em francês e português. Aos 16 anos ganhou do pai uma passagem para estudar matemática e física na Universidade de Oxford, mas preferiu seguir o conselho da tia: estudar na Faculdade de Direito do Recife. A escolha não o impediu de destacar a importância da matemática em suas obras.

No 2º ano da faculdade publicou seu primeiro livro – À Margem do Direito -, elogiado por Ruy Barbosa. Diplomado em 1911, publicou o Ensaio de Psicologia Jurídica, novamente elogiado pelo jurista baiano. Começou a escrever o Tratado de Direito Privado em 1914, buscando livros da Rússia, Índia e de outros países, consultando mais de 3 mil monografias, tratados de direito civil, direito criminal e direito antigo. Lançou o 1º volume somente em 1954. Uma obra monumental em 60 volumes, que foi concluída em 1970. Numa entrevista de 13/3/1978, disse que apesar de considerarem esta a sua melhor obra, preferia seu Tratado das Ações, em 10 volumes.

Foi um escritor prolífico não apenas no número de volumes. De sua lavra saíram 88 títulos de livros dedicados ao Direito e outras áreas. Seus primeiros textos foram elogiados por juristas literatos, como Clóvis Beviláqua e Ruy Barbosa, e pelo crítico José Veríssimo. O livro A sabedoria dos instintos, recebeu, em 1921, o prêmio da Academia Brasileira de Letras-ABL. Em 1925 a ABL voltou a premiá-lo pelo livro Introdução à sociologia geral. Sua predileção pela Matemática, herdada do avô, levou-o mais tarde a lançar mão de célebres equações – desde então identificadas como “equações pontianas” – para expressar seu pensamento.

Na área da Física, fez algumas restrições à teoria de Einstein sobre sua afirmação do encurvamento do espaço. Entrou em contato com o ilustre físico, do qual recebeu a sugestão que ele escrevesse uma tese sobre a representação do espaço e a enviasse para o Congresso Internacional de Filosofia, que se reuniria em Viena, em 1924. Não acatou o conselho de Einstein, pois esta não era sua praia. Sua curiosidade científica não chegou a tanto. A ciência levou-o naturalmente ao agnosticismo, mas isso não impediu de ser amigo do Papa João XXIII. Antes de encontrá-lo, mandou dizer-lhe que não era católico, mas o Papa respondeu que existem muitos católicos no inferno e que o considerava um verdadeiro franciscano. Mais tarde, em 1975, converteu-se ao catolicismo.

Escritor compulsivo e influenciado pela filosofia alemã, através dos colegas da “Escola do Recife”, introduziu novos métodos e concepções em diversas áreas do Direito brasileiro. Ingressou na magistratura em 1924, como juiz de órfãos e em seguida como desembargador do antigo Tribunal de Apelação do Distrito Federal (RJ). Na mesma época, representou o Brasil em duas conferências internacionais: Santiago do Chile e Haia, que levaram-no para a carreira diplomática em 1939, quando foi embaixador na Colômbia. No entanto, convidado para ser embaixador da Alemanha, declinou do cargo, por ser contra governos ditatoriais.

Permaneceu representando o País em conferências internacionais até 1943, quando passou a se dedicar às atividades de parecerista e escritor. É considerado o parecerista mais citado na jurisprudência brasileira. Não obstante ser mais conhecido na área do Direito, foi um pensador, poeta e romancista. A produção bibliográfica na área literária levou-o à Academia Brasileira de Letras em 1979, onde foi recebido por Miguel Reale. Por ironia do destino, veio a falecer em 22/11/1979, no ano em que foi “imortalizado” na ABL. Pouco depois, foi agraciado a título póstumo com a Grã-Cruz da Ordem da Instrução Pública de Portugal, em 10/2/1981. São muitos os títulos e homenagens que lhe foram prestadas em vida e pós-morte. Foi professor honoris causa de 6 universidades brasileiras.

Em 1994 foi criado o “Memorial Pontes de Miranda” da Justiça do Trabalho em Alagoas, instituído pelo Tribunal Regional do Trabalho da 19ª Região, com o objetivo de preservar e divulgar sua obra, bem como a história da Justiça do Trabalho em Alagoas. O museu ocupa o 3º andar do edifício do Tribunal Regional do Trabalho, conserva um conjunto de objetos pessoais, incluindo sua máscara mortuária, documentos, fotografias, insígnias, móveis e outros itens. Em 1999, foi eleito “Jurista do Século”, através de uma enquete em âmbito nacional, realizada pela revista “Istoé”.

 

 

 


José Domingos Brito - Memorial segunda, 09 de novembro de 2020

OS BRASILEIROS: O PEDRO ERNESTO (ARTIGO DE JOSÉ DOMINGOS BRITO, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

 

OS BRASILEIROS: Pedro Ernesto

Pedro Ernesto do Rego Baptista nasceu no Recife, PE, em 25/9/1884. Médico, político, prefeito do Rio de Janeiro em 2 mandatos na década de 1930. Foi um dos primeiros políticos brasileiro na implementação de uma legislação trabalhista e o primeiro a destacar a educação e apoiar financeiramente o carnaval, prestigiando as escolas de samba. Sua meta era transformar o Rio de Janeiro numa potência turística. Se não conseguiu, ajudou bastante.

Filho de Maria Adelina Siqueira e Modesto do Rego Batista, pequeno comerciante e líder maçônico, que exerceu forte influência em sua formação. Após concluir os primeiros estudos no Recife, mudou-se para Salvador, onde iniciou o curso de medicina e conclui-o no Rio de Janeiro, em 1908. Casou-se com Maria Evangelina Duarte Batista; montou sua clínica (Policlínica de Botafogo) e alcançou grande reputação como cirurgião. Era membro da Academia Nacional de Medicina, do Colégio Americano dos Cirurgiões e da Academia Francesa de Medicina. Na década de 1920 mantinha uma das melhores casas de saúde da cidade, com salas de cirurgia, serviço de raio-x, radioterapia etc. Embora civil, foi membro atuante do “Movimento Tenentista”, de oposição ao governo federal. Não participou diretamente do levante do Forte de Copacabana, em 1922, mas atuou nos bastidores e colocou à disposição sua casa de saúde como refúgio e ponto de encontro dos rebelados. Era conhecido como a “mãe dos tenentes.

O movimento constituiu-se numa das forças que ajudaram Getúlio Vargas na Revolução de 1930, com a deposição de Washington Luís. Na ocasião, tornou-se médico da família Vargas; desfrutava de prestígio junto ao novo governo; participava com frequência das reuniões no Palácio do Catete e foi nomeado diretor do Departamento Nacional de Assistência Hospitalar. Em 1931 fundou o “Clube 3 de Outubro”, afim de dar maior coesão à atuação dos revolucionários históricos. Seus integrantes defendiam que o prolongamento do Governo Provisório deveria durar somente até a eleição de uma assembleia constituinte, que substituiria a Constituição de 1891. Seu prestígio era tamanho que levou o presidente Vargas a nomeá-lo como interventor na prefeitura do Rio de Janeiro, em 1931.

Nesta condição, presidiu o I Congresso Revolucionário reunindo os adeptos e organizações alinhadas com a Revolução de 1930, onde foi deliberado a criação do PSB-Partido Socialista Brasileiro, que nunca se consolidou de modo efetivo. Dois anos após, participou da fundação do Partido Autonomista do Distrito Federal, cujo objetivo era lutar pela autonomia política da cidade do Rio de Janeiro. Sob sua liderança, o partido foi eleito para a Assembleia Nacional Constituinte e suas teses foram aprovadas. No ano seguinte, o partido obteria também uma ampla vitória nas eleições para a Câmara Municipal, elegendo a maior bancada. Assim, tornou-se o primeiro governante eleito da história da cidade, ainda que de forma indireta.

Tanto como interventor como prefeito, seu governo deu especial atenção aos trabalhadores com diversas leis e prioridade nas áreas da saúde pública e educação. Na saúde criou 8 grandes hospitais em regiões mais carentes, e na educação contava com Anísio Teixeira como secretário durante 3 anos. Neste período foram construídas 28 escolas e contratados 800 professores. Pela primeira vez foi criada uma escola pública numa favela – Morro da Mangueira -, em 1935. Vale destacar que até 1930 cerca de 80% das escolas funcionavam em prédios alugados, muitos dos quais com fornecimento precário de água e luz. Outro destaque é que até a década de 1920, os prefeitos cariocas concentravam os investimentos apenas no Centro e na Zona Sul. Sua administração procurou integrar a Zona Oeste, além de ampliar a oferta de serviços públicos na Zona Norte, onde viviam os trabalhadores assalariados.

Com tal programa político, incluindo a ajuda financeira e promoção das escolas de samba, conquistou enorme popularidade, chegando a ser cotado para a Presidência da República. Sua popularidade assustou os grupos de direita e de esquerda, especialmente o presidente Vargas, que viu ali um forte concorrente à causar-lhe problemas em seus planos de governo. Em 1935 aproximou-se da ANL-Aliança Libertadora Nacional, que reunia comunistas, socialistas e tenentes de esquerda. Em julho denunciou a articulação de um golpe dos conservadores e protestou contra o fechamento da ANL pelo governo. Em novembro foi acusado de participar da “Intentona Comunista”, com levantes armados, promovidos pelo PCB-Partido Comunista Brasileiro, em Natal, Recife e Rio de Janeiro. Realmente, ele foi convidado por Luís Carlos Prestes para o levante, mas sua participação não foi comprovada.

Em abril de 1936 foi preso e ficou encarcerado mais de um ano. Ao sair da prisão em setembro de 1937, foi aclamado em manifestações populares; fez discursos contra Vargas e apoiou a candidatura do governador paulista Armando Sales de Oliveira à presidência da República, marcadas para janeiro de 1938. Mas o golpe de estado decretando o Estado Novo, em novembro de 1937, enterrou sua carreira política. Foi novamente preso e libertado 3 meses depois. Nos anos seguintes, marcados por uma grande desarticulação política da oposição, ele ficou alijado das atividades políticas. Em 1941 viajou aos EUA para uma intervenção cirúrgica e ao voltar, em fevereiro de 1942, divulgou um manifesto de apoio ao governo por romper relações diplomáticas com o Eixo. Passou a defender a união nacional, a pacificação politica e a anistia geral. Retomou as atividades em sua casa de saúde e veio a falecer em 10/8/1942.

Hoje quase não se fala no prefeito carnavalesco, saído do frevo do Recife para levantar o carnaval do Rio. Porém, seu nome foi dado ao prédio da Câmara Municipal do Rio de Janeiro, ao Hospital Universitário, uma escola na Lagoa e uma rua no bairro da Gamboa. Em 2009, foi lembrado no samba-enredo da Escola de Samba Unidos de Cosmos. Consta também um relato de sua vida política, escrito por Thiago Cavaliere – O trabalhismo de Pedro Ernesto: limites e possibilidades no Rio de Janeiro dos anos 1930, publicado pela Editora Juruá, em 2010. Seu arquivo pessoal encontra-se à disposição para consulta no Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (Cpdoc) da Fundação Getúlio Vargas.

 


José Domingos Brito - Memorial segunda, 02 de novembro de 2020

OS BRASILEIROS: DARCY RIBEIRO - II (CRÔNICA DE JOSÉ DOMINGOS BRITO, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

OS BRASILEIROS: Darcy Ribeiro II

Foi autorizado pelo Governo a entrar no Brasil para extrair um pulmão, não para morar. Assim, foi recebido pelas autoridades no aeroporto; foi escoltado até a residência onde ficou e passou a ser vigiado pelo DOPS o tempo todo, onde quer que fosse. Pouco depois da cirurgia, o escritor João Antônio, na condição de repórter, foi entrevistá-lo e quase acabou sendo entrevistado. A matéria, publicada no jornal “Ex”, (nº 15, de out./1975), mostrou Darcy recuperado, exultante e perambulando pelo Rio sempre vigiado de perto por dois policiais à paisana. Passou 6 meses nessa rotina já acostumado com os vigias, mas sofrendo pressões políticas. O Governo Militar deixou que fosse operado aqui, achando que ele ia morrer. Como ficou mais vivo ainda, as pressões aumentaram e ele teve que voltar ao Peru para completar seu 3º exílio.

 

 

Ao chegar em Lima, em 1975, encontrou o presidente Alvarado enfermo, vitimado por um aneurisma e sem poder governar. Todo seu trabalho estava sendo desmontado e todos seus amigos e equipe de auxiliares haviam sido trocados. Passou uns meses vendo o que fazer, desmontou o Centro de Estudos da Participação Popular e retornou ao Brasil no ano seguinte. Mas, permaneceu pouco por aqui, ficou viajando pelo mundo “consertando” ou planejando universidades: México, Argélia, Costa Rica etc. e tornou-se romancista com o lançamento de Maíra (1976), seu primeiro romance, traduzido em diversos idiomas. Em 1977 participou da 29ª Reunião da SBPC, em São Paulo, e proferiu uma de suas melhores palestras: “Sobre o óbvio”, tratando do ensino público e que abre seu livro Ensaios insólitos, publicado em 1979. Entre as viagens realizadas, foi ao México, em 1978, a convite da UNAM-Universidad Autónoma de México, para gravar um disco “Voz Viva de América Latina”, Trata-se de um projeto de memória e fixação da voz de grandes personalidades da região. O disco nunca foi divulgado no Brasil, mas o Parlamento Latino-Americano conseguiu uma transcrição do depoimento, traduziu e publicou no livreto “Darcy Ribeiro: América Latina Nação”, em 1998. Na época eu trabalhava lá e tive o prazer coordenar a edição do livreto.

Decretada a Anistia, em 1979, foi reintegrado ao Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ e participou do “Tribunal Bertrand Russel”, em 1980 na Holanda, sobre crimes cometidos contra os índios na América Latina. Passando por Paris, recebeu o título de “doutor honoris causa” da Universidade de Sorbonne. Em seguida, uniu-se a Brizola na organização do PDT-Partido Democrático Trabalhista (PDT) e foi eleito vice-governador do Rio de Janeiro, em 1982. Acumulou o cargo com o de secretário de Ciência e Cultura e ficou encarregado de coordenar o Programa Especial de Educação, cujo objetivo era implantar 500 Centros Integrados de Educação Pública (CIEPs), uma escola em período integral para crianças e adolescentes e foi copiado em outros estados. Para isso, criou uma “Fábrica de Escolas” pré-montadas e ao final de 4 anos conseguiu implantar “apenas” 127 CIEPs. Em sua gestão foram criadas a Biblioteca Pública Estadual, Casa de Cultura Laura Alvim, Centro Infantil de Cultura de Ipanema. e o “Sambódromo”, a passarela das escolas de samba, que hoje leva seu nome, e abriga escolas de 1º e 2º grau.

Nas eleições de 1986 foi candidato à sucessão de Brizola no governo do Rio. Mas foi vencido por Moreira Franco numa ampla coligação partidária. Na ocasião o PDT foi acusado de ser conivente com o “jogo do bicho” e, por tabela com o crime organizado. A polarização esquerda x direita foi acirrada, culminando com sua derrota. Em seguida (maio de 1987) foi convidado pelo governador de Minas Gerais, Newton Cardoso (PMDB), para assumir a Secretaria de Desenvolvimento Social, com a promessa de criar mil CIEPs em todo o Estado. Porém, abandonou o cargo em setembro quando viu que o governador não levava a sério seu projeto. No ano seguinte retomou um sonho antigo: criar em Brasília o Memorial dos Povos Indígenas. Seu amigo Oscar Niemeyer projetou o edifício e o museu-centro cultural e de pesquisa da cultura indígena foi inaugurado no eixo monumental. Com se vê, Darcy foi também um grande museólogo em suas “horas vagas”. Ainda em 1987 foi convidado pelo governador de São Paulo, Orestes Quércia (PMDB), para ajudar Oscar Niemeyer na parte cultural do Memorial da América Latina, inaugurado em 1989. Mais um museu foi criado: O “Pavilhão da Criatividade” lá instalado leva seu nome.

Na primeira eleição presidencial por via direta, em 1989, após o Golpe de 1964, Brizola foi candidato e Darcy percorreu o Pais organizando grupos de intelectuais, sindicalistas e professores para elaborar o programa de governo. Novamente deu-se uma acirrada polarização ideológica entre Lula (PT) e Collor (PRN) e Brizola apoiou o PT no 2º turno das eleições. O bom senso eleitoral não prevaleceu e Collor foi eleito presidente. Nas eleições de 1990 Brizola foi reconduzido ao governo do Rio e Darcy ao senado federal, seu primeiro e único mandato legislativo. No senado priorizou a educação e conseguiu aprovar a nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB, lei 9394/96). A nova concede autonomia escolar em todos os níveis e diploma universitário para todos os professores, incluindo os do curso primário. Entre seus tantos projetos de lei, consta uma que se fosse aprovada, estaria resolvido o problema da falta de órgãos para transplantes nos hospitais. A Lei tornava possível usar os órgãos dos mortos para salvar os vivos. A pessoa que não quisesse doar seus órgãos deveria deixar esse desejo manifesto por escrito. Outra proposta defendia uma lei de trânsito mais favorável aos pedestres contra a selvageria dos motoristas. Preocupado com o ambiente e a memória, conseguiu o tombamento de 98 km. de belas praias e encostas, além de mais de mil casas e sobrados do Rio antigo.

Em setembro de 1991 licenciou-se do mandato para assumir a Secretaria Extraordinária de Programas Especiais do Rio de Janeiro, com a finalidade de retomar a implantação dos CIEPS e coordenar a criação da UENF-Universidade Estadual do Norte Fluminense, em Campos, concebida como um centro gerador de tecnologia avançada. Retornou ao Senado em 1992 e no ano seguinte foi conduzido à Academia Brasileira de Letras. Vaidoso assumido, discursou: “Estou certo de que alguém, neste resto de século, falará de mim, lendo uma página, página e meia. Os seguintes menos e menos. Só espero que nenhum falte ao sacro dever de enunciar meu nome. Nisto consistirá minha imortalidade”. Nas eleições presidenciais de 1994, o PDT lançou novamente a candidatura de Brizola, tendo Darcy como vice. Foi combinado entre os dois, caso vencessem as eleições, que Darcy assumiria o Ministério da Educação para implantar os CIEPs em todo o País. A disputa presidencial se deu entre Fernando Henrique Cardoso (PSDB) e Lula (PT), onde o primeiro venceu já no 1º turno. Em dezembro do mesmo ano, foi surpreendido com outro câncer na próstata e ficou internado por um mês no Hospital Samaritano, no Rio. Novos e mais graves perrengues lhe atormentam e planeja uma fuga do hospital com ajuda de um amigo. Foi para sua casa em Maricá e justificou a fuga pela necessidade de concluir seu livro O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil (1995), encerrando a série “Estudos de Antropologia da Civilização”. Trata-se de seu livro mais conhecido e visto como sua obra prima.

Em 1995, ao fazer 73 anos, foi surpreendido com uma grande festa num casarão do Jardim Botânico, promovida por 60 mulheres “ex-esposas, ex-namoradas, ex-amantes e amigas”. O aniversariante ficou à vontade: “Foi a festa mais bonita da minha vida. Foi uma beijação só!”. As ex-esposas Berta Ribeiro e Claudia Zarvos ficaram mais próximas. “As outras todas ficaram ao redor, mas sem ciúme. Foi uma coisa linda!”. Depois foi agraciado com uma desejada comenda: o “Prêmio Anísio Teixeira”, concedida pela Presidência da República à pessoas destacadas na área educacional. Premiações e homenagens foram constantes nessa época. No mesmo ano recebeu o “Prêmio Interamericano de Educação Andrés Bello, concedido pela OEA-Organização dos Estados Americanos. Em seguida recebeu da Biblioteca Nacional o “Prêmio Sergio Buarque de Holanda” pela publicação do livro Diários índios (1996). Em janeiro de 1997 recebeu a comenda “Homem de Ideias”, concedida pelo Jornal do Brasil. Esta foi sua última homenagem em vida, cujo título define o agraciado: um homem de ideias e ideais, falecido no mês seguinte, em 17/2/1997. Conforme seu pedido, o corpo foi encomendado pelo teólogo Leonardo Boff, padre proscrito pelo Vaticano, devido a ligações com a “Teologia da Libertação”, e seu amigo pessoal.

Darcy conviveu quase 30 anos com a morte iminente. Conforme atestam os amigos, passou desde então a viver intensamente e com urgência todos seus trabalhos, além de uma pulsão autobiográfica expressa nos livros Migo (1988), Testemunho (1990) e Confissões (1997), que escreveu “com medo-pânico de morrer antes de dizer a que vim”, confessou no prólogo e não chegou a vê-lo publicado. Esta pulsão levou-o a criar a FUNDAR-Fundação Darcy Ribeiro. “Tanta gente por aí com fundação, eu também quero uma”. Com recursos próprios, biblioteca e arquivos dele e Berta Ribeiro, foi criada no bairro de Santa Teresa, no Rio de Janeiro, em 1996. Em seguida foi concebido o Memorial Darcy Ribeiro em parceria com o Ministério da Cultura e a UnB, abrigando a biblioteca (30 mil livros) e arquivos do casal. Trata-se de uma bela edificação, “mistura de oca e disco voador”, aterrissando na praça maior da UnB, inaugurada em 2010. Como foi o criador do “sambódromo”, deu o nome de “beijódromo” ao local, para espairecer a rapaziada. Trata-se de uma “fábrica-escola” com auditório, salas de aula, gabinetes de pesquisa, galeria para exposição, cineclube, centro de documentação, café e livraria e uma representação da FUNDAR.

Darcy vem sendo lembrado em todo o País, com seu nome estampado em logradouros públicos e instituições. Em 1998, a Câmara dos Deputados instituiu o “Prêmio Darcy Ribeiro”, uma comenda anual com diploma e medalha concedida a 3 personalidades destacadas na defesa e promoção da educação brasileira. No Carnaval de 2020, foi tema-enredo da Escola de Samba Império da Uva: “Darcy Ribeiro – O Homem muito além do seu tempo!”. Biografias e ensaios biográficos transbordam na Internet, além de suas autobiografias. Mas, como vaidoso assumido, é suspeito para falar de si mesmo. Os interessados em conhecê-lo melhor podem recorrer à outras fontes, como a biografia realizada por Helena Bomeny – Darcy Ribeiro: um sociólogo indisciplinado – publicada em 2001 pela Editora da UFMG, em 2001, ou a de Toninho Vaz – Darcy Ribeiro: nomes que honram o Senado – publicada em 2005 pela Editora do Senado. Foi um dos brasileiros que mais contribuíram na busca de uma identidade nacional e latino-americana do Brasil.

Leia a primeira parte clicando aqui


José Domingos Brito - Memorial segunda, 26 de outubro de 2020

OS BRASILEIROS: DARCY RIBEIRO - I

 

OS BRASILEIROS: Darcy Ribeiro I

Darcy Ribeiro da Silveira nasceu em Montes Claros, MG, em 26/10/1922. Antropólogo, sociólogo, museólogo, educador. administrador, político e escritor. Foi um dos mais brilhantes pensadores (e fazedores) brasileiros destacado em diversas áreas. Passou a vida repensando o Brasil e suas mazelas; sua riqueza natural e cultural a partir da miscigenação entre brancos, negros e índios. Sua trajetória de vida daria belo documentário da história do Brasil durante a segunda metade do século XX.

 

Filho de “Dona Fininha” (Josefina Augusta da Silveira), professora que nomeia uma avenida da cidade, e Reginaldo Ribeiro dos Santos, falecido quando ele tinha 3 anos. Sem pai, virou moleque traquino e curioso. Na farmácia do tio, ouviu falar que a quantidade de “azul de metileno” que lá havia daria para pintar o oceano Atlântico. Ficou intrigado com a informação e despejou um pacote na caixa d’água da cidade. A água azul saiu em todas as torneiras, causando pânico na cidade. Aos 17 aos foi estudar medicina em Belo Horizonte, mas sem vocação para isso largou o curso no 4º ano. Em contato com o sociólogo Donald Pierson, diretor da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, ganhou uma bolsa de estudos e aí foi estudar, em 1944, graduando-se em antropologia, em 1946. No ano seguinte foi trabalhar no SPI-Serviço de Proteção ao Índio e conheceu Rondon e os irmãos Villas-Boas. A partir daí passou a viver 10 anos, alternadamente, entre os índios e no Rio de Janeiro. Seu primeiro livro –Religião da mitologia Kaiwéu – foi publicado em 1950, e lhe valeu o Prêmio Fábio Prado. Em 1953 criou o Museu do Índio. Mas, logo os irmãos Villas-Boas viram que, além do museu, os índios precisavam de um local para viver seguramente e idealizaram o Parque Indígena do Xingu, cujo projeto foi realizado por Darcy e inaugurado em 1961. Por essa época era um antropólogo completo: organizou o 1º curso de pós-graduação em antropologia (1955) e presidiu a Associação Brasileira de Antropologia (1959)

O Parque é a maior reserva indígena do mundo, onde vivem hoje cerca de 5.500 índios de 14 etnias. Afirma-se que sua criação evitou um grande genocídio no Brasil. Sua dedicação à estes povos, levou-o a elaborar para a Unesco um estudo sobre o impacto da civilização sobre os índios e, em 1954, trabalhou na OIT-Organização Internacional do Trabalho na edição de um manual sobre os povos aborígenes de todo o mundo. No ano seguinte, com a eleição de Juscelino Kubitschek, foi convidado a participar da elaboração do plano educacional do novo governo, junto com Anísio Teixeira, seu chefe e “guru”. Anísio, vendo que o rapaz prometia, entregou-lhe a Divisão de Estudos Sociais do CBPE-Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais. O “cabra” tornou-se um educador obstinado e produtivo. Em seguida, JK pede à Darcy e Anísio para planejarem a Universidade de Brasília-UnB, em 1959. Reuniram um seleto grupo de professores nacionais e alguns estrangeiros e a UnB foi inaugurada em 1962, com Darcy na Reitoria, tendo Anísio como vice. Pouco depois foi conduzido ao MEC-Ministério da Educação e deixou a reitoria com Anísio. O País passa por transformações profundas na Política com o governo de João Goulart e seu envolvimento vai se alargando. Em 1963 convidado pelo presidente para exercer a “eminência parda” do governo e assume a chefia da Casa Civil. Neste cargo, passou a coordenar as reformas estruturais à serem implantadas no Pais.

Com o Golpe Militar de 1964, articulou uma resistência armada, mas não encontrou apoio suficiente e foi obrigado a fugir em direção ao exilio no Uruguai. Em 4 de abril o deputado Rubens Paiva conseguiu um pequeno avião Cessna e um acordo com o pessoal da torre de controle do aeroporto de Brasília. Levou Darcy e Waldir Pires até a cabeceira da pista e ficaram agachados num capinzal aguardando a chegada do avião. O piloto não sabia quem eram e foi orientado apenas a recolher os dois passageiros e levantar voo. Alguém na torre percebeu o rápido embarque e passou uma ordem pelo radio para retornar. O piloto quis obedecer, mas uma contra ordem incisiva de Darcy fez com que o voo prosseguisse até uma fazenda de Mato Grosso, e daí noutro voo até Montevideo.

No Uruguai foi bem recebido e logo foi nomeado professor de antropologia da Universidad de la Republica. Ficou, também, encarregado de presidir um seminário de reformas na universidade, com base no trabalho feito na UnB. Aí tem inicio sua função de “sapateiro remendão” de universidades na Am. Latina, como ele mesmo definia. Com passaporte uruguaio pode viajar pela Europa, Rússia e Cuba, onde manteve encontros com Fidel Casto e Che Guevara em longas conversas. “Sempre me lembrarei dessa conversa com Che. Ele suave e duro como ninguém. Eu me desmanchando, palavroso, em argumentações”, disse mais tarde em suas Confissões (1997). Por essa época começou a escrever seus “Estudos de antropologia da civilização em 5 volumes: O processo civilizatório (1968), As américas e a civilização (1970), O dilema da América Latina (1978), Os brasileiros (1972), Os índios e a civilização (1970). Publicou também A universidade necessária (1970), sintetizando sua experiência em reformas universitárias e, para “espairecer”, fez o primeiro esboço do romance Maíra (1976), com o qual se fez romancista.

Em Montevideo participou da vida cultural junto com Angel Rama e Eduardo Galeano entre outros; escreveu artigos para a revista “Marcha” e participou da edição da Enciclopedia de la Cultura Uruguaia, vendida em capítulos em bancas de jornal. Em meados de 1968, os processos que lhe eram movidos foram anulados pelo STF-Supremo Tribunal Federal. Após 4 anos de exílio e sabendo da “Marcha dos Cem Mil” (26/6/1968) no Rio de Janeiro, se animou a voltar achando que a anulação dos processos lhe favorecia. Mesmo advertido por Jango e Brizola, pediu ao seu advogado Wilson Mirza que avisasse o governo brasileiro que estaria voltando em tal avião, dia tal, no aeroporto do Galeão. Ao chegar foi avisado, ainda no aeroporto, que deveria se apresentar no DOPS-Departamento da Ordem Política e Social. Lá respondeu um longo questionário e foi liberado. Como era o primeiro cassado e exilado que voltava, a imprensa não deu sossego. Passou 3 meses se esbaldando em jantares com os amigos e falando, “pelos cotovelos”, bem do governo deposto e mal da ditadura em diversas entrevistas. Foi advertido pelos amigos: “Isso não se faz na ditadura, Darcy. Ninguém fez isso aqui”. Não demorou para que a polícia batesse na sua porta; mas não o levaram com a promessa de se apresentar ao Superior Tribunal Militar. A ordem era para prender, mas seu advogado apelou para o STF e continuou livre, porém vigiado de perto pelos agentes do DOPS. Até que em 13/12/1968 veio o AI-5 e foi aconselhado a fugir. Mas não admitiu “voltar com minhas próprias pernas para o exílio”. Foi preso no dia seguinte e levado para o batalhão blindado do Rio, numa cadeia que logo ficou lotada de “subversivos”. A prisão durou 9 meses.

Ali passou 3 dias e foi levado para o clube dos cabos. A acomodação melhorou bastante, tanto que deu para fazer a 2ª versão de Maíra. Depois levaram-no para a Fortaleza de Santa Cruz, onde havia muitos estudantes presos e podia conversar com eles no “banho de sol”. Mas isso durou pouco, um oficial do dia proibiu a conversa. Às vezes a proibição não era cumprida e foi advertido: “Se o senhor continuar a falar com os presos, eu tiro o banho de sol deles”. Em seguida foi transferido para a Ilha das Cobras, sob os cuidados da Marinha. Ao chegar foi avisado que devido ao fato de ter sido agraciado com a ordem do mérito naval em grau de grã-cavalheiro, teria direito a prisão de almirante. Aí ficou alguns meses bem melhor instalado. Na Marinha, o pessoal era mais educado e com o tempo passaram a respeitá-lo pelo fato de ter convivido com os índios e ser discípulo de Rondon, herói das forças armadas. Assim, passou a receber visitas semanais de sua esposa Berta e de alguns amigos. Foi convencido pela esposa e amigos a escrever uma carta ao presidente Costa e Silva, pedindo-lhe um passaporte para deixar o País, quando saísse da cadeia, pois havia um convite da Universidade de Columbia, para dar aulas como professor visitante. Concluiu a carta com “Saudações republicanas” e recebeu o passaporte.

Em 1969 foi julgado por um tribunal de oficiais da Marinha e foi absolvido. Em liberdade, ficou alojado na casa de seu advogado e no outro dia, soube que o Exército, em desacordo com a sentença da Marinha, ordenara sua volta à prisão. Desesperado, correu para a Embaixada Americana para conseguir um visto de entrada nos EUA. Teve uma conversa ríspida com o Cônsul, que relutava em lhe dar o visto. “Não estou convencido. Não o vejo como mero professor visitante”. Vendo que não conseguiria o visto, retrucou: “Claro. Sou um eminente antropólogo. Fui honrado com um convite para lecionar na Columbia, coisa que nunca sucederia ao senhor”. A troca de farpas se prolongou com o cônsul dizendo que ele estivera em Cuba em conversas com Fidel e Che. “Tenho aqui uma foto sua em viagem para lá. Aliás, seu arquivo é um dos maiores que temos”. Darcy encerrou a a conversa: “Cuide bem dele. Vai ser útil para meus biógrafos”. Na ocasião, seu amigo José Augustin Michelena, sociólogo venezuelano de passagem pelo Rio, foi acionado para lhe conseguir um visto consular para entrar em Caracas. Junto com Berta, foram para o Aeroporto e deixaram um amigo na fila de embarque, enquanto ficaram dispersos entre as pessoas até a chamada do voo.

Em Caracas foi contratado pela UCV-Universidad Central de Venezuela como professor de antropologia, orientador de teses e a direção de um seminário de renovação da UCV. Posteriormente deu aulas também na Universidade de Mérida. Durante um ano conviveu com a intelectualidade local e viajou pelo Caribe. Se deu bem em Caracas, inclusive com uma namorada de 22 anos, filha de um ricaço. O único problema que teve foi com um adido militar do Brasil, que, na condição de amigo do Ministro da Justiça, impedia que lhe dessem o visto permanente. Foi obrigado a obter visto de turista em Curaçao. Na terceira vez que foi renovar o visto, se aborreceu e reclamou numa entrevista de programa de TV. A apresentadora passou a reclamar que o presidente Caldera estava expulsando da Venezuela um dos maiores intelectuais da Am. Latina, professor contratado pela UCV, devido à pressões da ditadura brasileira. A bronca deu certo e o visto permanente saiu no dia seguinte. Tudo ia muito bem, até a vitória de Allende no Chile, em 1970, seu amigo quando vivia em Montevideo.

Em contatos com o Instituto de Estudos Internacionais da Universidade do Chile, mudou-se para Santiago, em 1971, procurou Allende e se colocou à seu serviço. Na condição de assessor especial redigia os discursos do presidente. Foram 2 anos de trabalho em conduzir o país pela via do socialismo em liberdade, com democracia e desenvolvimento da economia nacional. O único país aliado era Cuba, cuja longa presença de Fidel no país acirrava a esquerda radical, desagradava a elite e alimentava o complô que se armava nos EUA. A situação chegou num ponto em que a esquerda declarou: “A economia deu tudo o que podia dar. Cabe agora à ação política abrir caminhos”. O MIR-Movimiento de Izquerda Revolucionária ganhou força e passou a conspirar querendo dar o golpe para “cubanizar” o processo chileno. A elite passou a conspirar; a classe média perdia o emprego; o povo passou a sofrer com filas até para comprar pão. Faltava alimentos em todos os mercados e alguns itens de consumo diário passaram a ser controlados. O caos se instalou a partir de 1973. Nesta ocasião, Luis Echeverria, presidente do México, achando que Darcy corria risco de vida naquela situação diante de um golpe, designou o escritor Juan Rulfo para ir até Santiago, procurá-lo, levá-lo até a Embaixada e trazê-lo para o México. Rulfo passou alguns dias procurando-o e não encontrou. Outro presidente –Velasco Alvarado, do Peru- havia se antecipado, enviando à Santiago Carlos Delgado com um convite à Darcy para “ajudar a pensar revolução peruana”. Diante da situação chilena, o convite foi aceito de imediato.

No Peru trabalhou junto ao gabinete da Presidência na construção do Centro de Estudos da Participação Popular, com ajuda de Oscar Varsavsky, matemático argentino, inventor da simulação computacional. O Centro resultava de uma parceria com o PNUD-Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento e contava com ajuda da OIT-Organização Internacional do Trabalho. A partir de uma grande base de dados projetou-se um sistema de informações para implementar políticas sociais, que Darcy chamou de “socialismo cibernético”, pois “não se fundava em nenhuma ideologia, mas num jogo de números dentro do computador”. Suas ideias combinavam a implantação de uma modernidade tecnológica com o renascimento da cultura incaica. Porém encontrou resistências entre a intelectualidade peruana, que relutava em admitir um estrangeiro na formulação do novo Peru. Percebeu também que não havia interesse da área acadêmica em estudar o quéchua como uma língua nacional, uma de suas propostas. Mesmo assim, conseguiu a edição de um dicionário geral da língua nativa.

Neste ambiente apreensivo, aproveitou para tirar férias e viajou para Portugal. Lá manteve encontros com amigos lusitanos e o ex-deputado Marcio Moreira Alves, proferindo palestras em Coimbra e Porto. Certa noite acordou mal com muita tosse e expelindo sangue. Ficou assustado; procurou o médico; fizeram exames e pela cara do médico viu que era câncer, mas o médico negou. Encaminhou-o à um oncologista, que também negou: “trata-se de uma tuberculose antiga que voltou”. Darcy não acreditou e Marcio levou-o à Paris para fazer exames no “Cretuil”, o melhor hospital de câncer da Europa. Era um câncer pulmonar. “O senhor tem uma bomba no peito, pode explodir a qualquer momento”, disse-lhe o médico. A cirurgia tinha que ser marcada para os próximos dias. Foi um abalo e tanto; passou por uns perrengues revisando a vida passada e refletindo sobre o que fazer diante do pouco tempo de vida que restava. “Envelheci mais nesses últimos dois meses do que nas últimas duas décadas”, confessou. Recebeu uma oferta para fazer a cirurgia nos EUA e recusou. Para espanto dos médicos franceses, recusou também fazê-la em Paris, dizendo que ia fazê-la no Rio de Janeiro. Fez do câncer seu “cavalo de Tróia” para poder voltar ao Brasil em dezembro de 1974. (Continua)

* * *

No próximo domingo concluiremos a biografia concisa de Darcy Ribeiro com sua volta ao Brasil; seu retorno à política como vice-governador do Rio de Janeiro; como senador; sua luta contra o câncer e seu papel na configuração de uma identidade nacional e latino-americana do Brasil.

 


José Domingos Brito - Memorial segunda, 19 de outubro de 2020

OS BRASILEIROS: ANÍSIO TEIXEIRA (CRÔNICA DE JOSÉ DOMINGOS BRITO, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)

 

OS BRASILEIROS: Anísio Teixeira

Anísio Spínola Teixeira nasceu em Caetité, Bahia, em 12/7/1900. Advogado, escritor e essencialmente educador, foi pioneiro na implantação da escola pública no Brasil. Filho do médico Deocleciano Pires Teixeira, líder político de Caetité. Os primeiros estudos se deram em colégios jesuítas. Cogitou entrar para essa Ordem Religiosa, mas foi dissuadido pelo pai, que já havia projetado uma carreira política para o garoto. Dotado de inteligência excepcional, aos 17 anos foi convidado por Teodoro Sampaio à proferir palestra no Instituto Histórico e Geográfico da Bahia.

Em 1918 mudou-se para o Rio de Janeiro, onde concluiu o curso de Direito e retornou à Salvador. Foi convidado pelo governador Góes Calmon a assumir o cargo de Inspetor Geral do Ensino, em 1924, e enfrentou com determinação o problema da educação. No ano seguinte partiu para a Europa com a finalidade de conhecer o sistema educacional de alguns países e na volta implementou várias reformas no ensino. Assim, deu início a uma profícua carreira de pedagogo e administrador público. Em 1927 foi conhecer o ensino público nos EUA e tomou contato com as ideias do filósofo e pedagogo John Dewey. De volta à Salvador quis fazer algumas mudanças no sistema de ensino, mas foi impedido pelo novo governador. Pediu demissão do cargo e viajou de novo para os EUA, onde fez curso de pós-graduação, na Universidade de Columbia, com John Dewey, em 1928, que exerceu uma influência decisiva em sua carreira de educador. Sua ideia fundamental era ampliar o sistema educacional, privilegiando a formação do professor.

Tornou-se discípulo do filósofo americano e traduziu para o português dois dos seus livros. Publicou seu primeiro livro, “Aspectos americanos de educação”, em 1928. Três anos depois mudou-se para o Rio de Janeiro e ocupou o cargo de diretor da Instrução Pública do Distrito Federal, com a missão de reorganizar o ensino público. Neste cargo instituiu a integração da “Rede Municipal de Educação”, abrangendo desde o ensino fundamental até a universidade. No mesmo ano acumulou o cargo de presidente da ABE-Associação Brasileira de Ensino e junto com Fernando de Azevedo, Lourenço Filho entre outros, elaborou o “Manifesto dos Pioneiros da Escola Nova”, em 1932, um documento propondo uma escola gratuita, laica e obrigatória, e que sofreu forte oposição da Igreja Católica. Os pressupostos da “Escola Nova” tinham como princípio a ênfase no desenvolvimento do intelecto e na capacidade de julgamento no lugar da memorização. Em seguida assumiu a Secretaria de Educação e Cultura da Prefeitura do Rio de Janeiro. Na condição de amigo íntimo do prefeito Pedro Ernesto Batista, foi apoiado na criação de novos estabelecimentos de ensino e criou a UDF-Universidade do Distrito Federal, em 1935.

Em termos políticos não aderiu formalmente a ALN-Aliança Libertadora Nacional, uma frente que reunia diversos setores de esquerda. Porém, publicava artigos polêmicos no jornal “A Manhã”, órgão oficioso da ALN. Devido a este envolvimento foi demitido da Prefeitura em novembro de 1935, sob acusação de participar da “Intentona Comunista”. Durante o “Estado Novo”, foi perseguido pelo governo de Getúlio Vargas e voltou a residir em Salvador. Passou a lidar com a mineração, atividade de alguns parentes e a curtir mais os amigos, como Monteiro Lobato, com quem publicou mais um livro: “Educação para a democracia” e fazer traduções. Depois, foi morar em Paris por um breve período e foi nomeado conselheiro da Unesco, em 1946. No ano seguinte, de volta ao Brasil, foi convidado pelo governador Otávio Mangabeira para assumir a Secretaria de Educação e Saúde da Bahia. Dentre outras realizações, construiu na Liberdade, o mais populoso e pobre bairro de Salvador, o “Centro Educacional Carneiro Ribeiro”, mais conhecido por “Escola Parque”, pioneiro ao implantar a educação em tempo integral, e que serviu de modelo para os futuros CIEPs (Centros Integrados de Educação Pública), criados por Darcy Ribeiro no Rio Janeiro .

Em 1951 criou e dirigiu a Campanha Nacional de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (atual CAPES, que deixou de ser uma campanha para virar uma coordenação), com a finalidade de “assegurar pessoal especializado em quantidade e qualidade para atender às necessidades dos empreendimentos públicos e privados que visam ao desenvolvimento do país”. No ano seguinte, dirigiu o INEP-Instituto de Estudos Pedagógico e criou o CBPE-Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais. Em meados da década de 1950 tornou-se uma personalidade conhecida em âmbito nacional com seu livro “A educação e a crise brasileira”, publicado em 1956. Foi presidente da SBPC-Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência em duas gestões: 1955-57 e 1958-59. No final da década, participou ativamente dos debates para a implantação da Lei Nacional de Diretrizes e Bases, promulgada em 1961. Logo que Juscelino Kubitschek assumiu o compromisso de fundar Brasília, convidou-o para organizar o plano educacional da nova capital, enquanto Darcy Ribeiro, Ministro da Educação e Cultura, foi designado para criar a UnB-Universidade de Brasília. O jovem Darcy logo tornou-se seu discípulo e deixou-o como reitor da UnB quando assumiu a chefia da Casa Civil, em junho de 1963. Em abril de 1964, com o Golpe Militar, foi obrigado a deixar o País e foi morar nos EUA.

No inicio foi contratado como professor visitante da Universidade de Columbia, em 1964. No ano seguinte passou a lecionar na Universidade de Nova Iorque e depois na Universidade da Califórnia. De volta ao Brasil, em 1966, trabalhou na Fundação Getúlio Vargas, colaborando na criação do Instituto de Estudos Avançados em Educação, centrado na formação de pessoal em nível de pós-graduação. Era um visionário apaixonado pela educação, que planejava a longo prazo. Em princípios da década de 1970, foi incentivado por amigos a entrar para a Academia Brasileira de Letras e passou a visitar alguns amigos acadêmicos na busca de votos. Após a visita ao amigo Aurélio Buarque de Holanda, Anísio desapareceu. A família passou a procurá-lo e foi informada pelos militares que ele se encontrava detido. Na ditadura do governo Médici era comum o desaparecimento de desafetos políticos e o discurso de Anísio era um incômodo: “Só existirá democracia no Brasil no dia em que se montar no país a máquina que prepara as democracias. Essa máquina é a da escola pública”

Após longa busca pelos quartéis, seu corpo foi encontrado no fosso de elevador do prédio onde residia Aurélio Buarque de Holanda. Não havia sinas de queda, nem hematomas. A versão oficial foi de que sofreu um acidente em 11/3/1971. Apesar do laudo de morte acidental, há suspeitas de que tenha sido vítima das forças de repressão do governo Médici. 41 anos depois, o professor João Augusto de Lima, numa palestra na UnB, declarou: “Em dezembro de 1988, Luiz Viana Filho me confessou que Anísio Teixeira foi preso no dia que desapareceu e levado para o quartel da Aeronáutica, numa operação que teve como mentor o brigadeiro João Paulo Burnier, figura conhecida do regime militar e que tinha o plano de matar todos os intelectuais mais importantes do Brasil na época”. Dois meses antes, o deputado Rubens Paiva também havia “desaparecido” e sua morte pelas forças da repressão só foi confirmada mais de 40 anos depois. A “Comissão Nacional da Verdade” criou em 2012 a Comissão Anísio Teixeira de Memória e Verdade e investigou o caso até 2015. Até agora não se chegou a confirmação de assassinato.

Desde o fim da ditadura militar, sua memória e legado vêm sendo resgatados. Começou em grande estilo com sua estampa impressa na cédula de mil Cruzeiros Reais, em 1/10/1993. Em 1998 foi criada, em Caetité, a Fundação Anísio Teixeira, na casa onde nasceu, cujo objetivo, é preservar e divulgar seu pensamento e obra, além de promover o desenvolvimento regional do ponto de vista da educação e da cultura. A entidade abriga Centro de Memória, Biblioteca Pública, Cine-Teatro, Oficina de Arte-Educação, Sala de Cultura Digital e um pátio externo para eventos culturais e educativos. A fundação é presidida por sua filha Anna Cristina Teixeira Monteiro de Barros e o dia de seu nascimento, 12 de julho, é feriado municipal. A CAPES concede anualmente o “Prêmio Anísio Teixeira” à quem contribuiu para o desenvolvimento da pesquisa e formação de recursos humanos no Brasil e é considerado uma das mais importantes condecorações na área de educação.

Em termos bibliográficos, deixou um legado precioso, que até hoje vem sendo consultado: Pequena introdução à filosofia da educação: a escola progressiva ou a transformação da escola (1968); Educação no Brasil (1969), Educação e o mundo (1977), publicados pela Cia. Editora Nacional; Ensino superior no Brasil: análise e interpretação de sua evolução até 1969 (1989), publicado pela Editora da FGV e Educação não é privilégio. 5ª ed. (1994), Educação para a democracia: introdução à administração educacional. 2ª ed. (1997), Educação é um direito. 2ª ed. (1996) e Educação e universidade (1998), publicados pela Editora da UFRJ. A Universidade Federal da Bahia mantém a Biblioteca Virtual Anísio Teixeira à disposição do publico na Internet. Clique aqui para acessar.

Atualmente seu nome denomina duas instituições dedicadas à educação e à formação de professores: INEP-Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Brasília) e IAT-Instituto Anísio Teixeira (Salvador).

 


José Domingos Brito - Memorial segunda, 12 de outubro de 2020

OS BRASILEIROS: PADRE ANCHIETA

 

OS BRASILEIROS: Pe. Anchieta

José de Anchieta nasceu em 19/3/1534, nas Ilhas Canárias, Espanha. Padre jesuíta, gramático, dramaturgo, poeta, historiador e patrono da cadeira nº 1 da Academia Brasileira de Música. Reconhecido como o Apóstolo do Brasil e um dos fundadores das cidades de São Paulo e Rio de Janeiro, foi declarado co-padroeiro do Brasil, em 2015, na 53ª Assembleia Geral da CNBB-Conferência Nacional dos Bispos do Brasil e canonizado em 2014, após um processo que durou 417 anos, contando as interrupções.

Criado numa rica família basca, seu pai fazia oposição ao imperador Carlos V e por isto teve que se refugiar nas Ilhas Canárias. Aos 14 anos ingressou no curso de filosofia, na Universidade de Coimbra, e entrou na Companhia de Jesus em 1551. Foi enviado para o Brasil, em 1553, pelo próprio (santo) Inácio de Loyola, o fundador da Companhia. Aportou em Salvador e 3 meses depois foi para a capitania de São Vicente encontrar-se com o Pe. Manoel da Nóbrega. Juntos chegaram ao planalto de Piratininga em 24/1/1554 e no dia seguinte celebraram a primeira missa no povoado, que contava com apenas 130 pessoas. Assim deu-se a fundação de São Paulo na data comemorativa da conversão deste Apóstolo.

Aí foi criado o primeiro colégio dos jesuítas na América, onde passou a viver e trabalhar bastante na catequização dos índios. Ensinou-lhes a língua portuguesa e aprendeu linguagem tupi-guarani; compôs uma gramática própria; escreveu um catecismo e várias peças de teatro e hinos. Consciente da forte impressão que a música produzia nos índios, utilizava-se de canções para a catequese. Escrevia nos idiomas português, latim e tupi-guarani e sua primeira obra Arte da gramática da língua mais falada na costa do Brasil, foi publicada em Coimbra, em 1595. Em 1563, junto com o Pe. Nóbrega negociou a paz entre portugueses e os índios tamoios, que invadiram a colônia de São Vicente. Como prova de seu desejo de paz, entregou-se como refém aos índios e ficou alguns meses entre eles, enquanto a paz era negociada pelo Pe. Nóbrega com a Confederação dos Tamoios. Foi nesse período que escreveu seu famoso Poema à Virgem Maria nas areias da praia, em Ubatuba.

Conseguida a “Paz de Iperoig” com os índios, retomou às missões, sempre atento à educação e saúde dos índios e colonos. Ele mesmo padecia de tuberculose óssea, que lhe causou uma escoliose, agravada durante o noviciado. Além da atividade religiosa, teve participação política na luta contra os franceses que invadiram a baía da Guanabara. Em 1566 foi à Salvador convencer o governador Mem de Sá a enviar tropas para o Rio de Janeiro. Sobre este embate, escreveu “De gestis Mendi de Saa” (Os feitos de Mem de Sá), livro publicado em Coimbra, em 1563. Na ocasião foi ordenado sacerdote na Catedral de Salvador, aos 32 anos. No ano seguinte, partiu com o Pe. Nóbrega para o Rio de Janeiro para fundar mais um colégio, do qual foi reitor no período 1570-1573.

Em seguida retornou à São Vicente para catequisar os índios tapuias. Nesse meio tempo redigiu longos relatórios aos superiores sobre sua atividades, repletos de informações sobre os costumes indígenas, a flora, a fauna, o clima e a geografia brasileira. Tais escritos levaram-no a ser considerado um dos primeiros antropólogos e naturalistas do Brasil. Sua vasta obra só foi totalmente publicada no Brasil em meados do século XX. Em 1997, nas comemorações do IV Centenário do seu falecimento, foi publicado o catálogo “Anchieta: obras na Biblioteca Nacional”, onde constam as referências bibliográficas de 42 títulos de sua autoria, 88 títulos de ensaios e biografias e 190 artigos de periódicos sobre ele, excluindo as obras raras e musicais.

Em 1577 foi nomeado superior provincial da Companhia de Jesus no Brasil, onde permaneceu até 1588, e empreendeu diversas viagens pelo País, desde Cananeia até o Recife, para acompanhar as várias missões já instaladas. Tais missões se estenderam até o Paraguai e Argentina. Na época havia 140 missionários da Companhia no Brasil, os quais Anchieta visitava duas vezes por ano enquanto ia criando escolas e casas de caridade, como a Santa Casa de Misericórdia no Rio de Janeiro, fundada em 1582, para dar assistência aos doentes e às vítimas das frequentes epidemias. Após deixar o cargo de superior provincial, foi reitor do Colégio dos Jesuítas de Vitória até 1595. Com a saúde abalada, pediu dispensa de suas funções e foi viver em Reritiba (atual Anchieta), onde veio a falecer em 9/6/1597 e sepultado em Vitória.

Durante as solenidades do funeral foi reconhecido como o “Apóstolo do Brasil” e iniciado o processo de canonização, interrompido em 1634, quando foi decretado a espera de 50 anos para tal. Em 1647 o processo é retomado e 5 anos após foi declarado “Servo de Deus” pelo papa Inocêncio X. Novas interrupções surgem até 1736, quando suas “Virtudes Heróicas” foram declaradas pelo papa Clemente. Em 1773 a Companhia de Jesus é suspensa por 100 anos, devido a perseguição do Marquês de Pombal. O processo só foi reaberto no século seguinte e, finalmente, foi beatificado em 1980 pelo papa João Paulo II e canonizado em 2014 pelo papa Francisco, através de uma “canonização equivalente”. Isto se dá quando o Papa reconhece e ordena culto público universal a um Servo de Deus, sem passar pelo processo regular de canonização formal, porque a veneração ao santo já vem sendo feita desde os tempos antigos e continuamente pela Igreja.

Na homilia, o papa Francisco disse: “ele, juntamente com Nóbrega, é o primeiro jesuíta que Inácio de Loyola envia para a América. Um jovem de 19 anos… Era tão grande a alegria que ele sentia, era tão grande o seu júbilo, que fundou uma Nação: lançou os fundamentos culturais de uma Nação em Jesus Cristo”. O Santo Pe. Anchieta conta com 2 santuários: um na cidade onde nasceu, em San Cristóbal de La Laguna, Ilhas Canárias e outro na cidade de Anchieta, no estado do Espírito Santo, fundada por ele. Em 2015 o local, formado pela Igreja Nossa Senhora da Assunção e pelo Museu Nacional São José de Anchieta, foi declarado “Santuário Nacional”.

 

 

 


José Domingos Brito - Memorial segunda, 05 de outubro de 2020

AS BRASILEIRAS: SANTA PAULINA

 

 

AS BRASLEIRAS: Santa Paulina

Amabile Lúcia Visintainer nasceu em Vigolo Vattaro, Trento, Itália, em 16/12/1865. Religiosa fundadora da Congregação das Irmãzinhas da Imaculada Conceição, canonizada em 2002. Veio para o Brasil aos 10 anos e tornou-se a primeira santa brasileira, recebendo o nome de Santa Paulina do Coração Agonizante de Jesus.

Criada numa família humilde de 14 filhos, que em 1875 emigrou para o sul do Brasil e passou a viver na região de Santa Catarina no vilarejo de Vigolo, atual cidade de Nova Trento, onde ficaram todos os tiroleses. Desde jovem dedicou-se aos serviços religiosos de sua paróquia, sempre junto a sua amiga Virginia Rosa Nicolodi e fizeram a primeira comunhão em 1877. As duas amigas atraíram a atenção do padre jesuíta Augusto Servanzi, pela dedicação à paróquia e presteza no atendimento aos mais necessitados. Logo passaram a lecionar o catecismo às crianças, ajudar os doentes e na manutenção da capela. Em pouco tempo Amabile e Virginia passaram a ficar conhecidas de todos os tiroleses da região. Aos 14 anos, numa conversa com o Padre Servanzi, foi-lhe perguntado se gostaria de ser irmã. A resposta foi objetiva: “é a minha mais ardente aspiração”.

O padre se comprometeu a ajudá-la em seu empenho e tornou-se seu guia vocacional. Sua amiga Virginia logo foi envolvida no sonho de se dedicarem ao ideal religioso e se influenciaram mutuamente. Em pouco tempo as duas tornaram-se catequistas, sacristãs e enfermeiras, na condição de “freiras-leigas” no período 1880-1890. Em 1887, com o falecimento da mãe, sua jornada de trabalho foi redobrada com o serviço caseiro, sem abrir mão do serviço assistencial. No ano seguinte teve um sonho, onde a Virgem Maria lhe apareceu e ordenou que fizesse uma obra, na qual “trabalharás pela salvação de minhas filhas”. O sonho ocorreu mais duas vezes e ela se comprometeu com Nossa Senhora em “se esforçar o máximo que eu puder”. Em seguida, conversou com seu pai sobre os sonhos, envolveu o pároco na empreitada e construíram um barracão ao lado da capela, onde improvisaram um “hospital” e as duas amigas passaram a cuidar de doentes desamparados e da instrução de crianças carentes.

Logo surgiu uma mulher com câncer, em estado terminal, que foi amparada pelas amigas em 12/7/1890. A data marcou a fundação do “Ospedaletto di San Vigilio” (Hospitalzinho de São Virgilio), que viria a se tornar a primeira congregação religiosa feminina do Brasil. Em 1894, o “hospitalzinho” foi transferido para a cidade de Nova Trento, num terreno doado pelos benfeitores João Valle e Francisco Sgrott e a obra prossegue em bases mais sólidas ampliando o número de atendimentos. Em seguida as amigas fizeram um retiro espiritual de 8 dias, uma espécie de estágio seguindo instruções de Santo Ignácio de Loyola, antes de se dedicar à vida religiosa. Em 1895 a entidade foi reconhecida como instituição religiosa, social e assistencial pelo bispo de Curitiba e no mesmo ano juntou-se outra jovem –Teresa Maule-, que juntas fizeram os votos religiosos. Na ocasião Amabile adotou o nome de irmã Paulina do Coração Agonizante de Jesus e foi nomeada superiora da instituição. O trabalho e a dedicação destas jovens atraíram outras para o trabalho assistencial, que evoluiu para um orfanato e uma pequena indústria de seda como forma de sobrevivência e manutenção das obras de caridade.

A congregação logo passou a ser reconhecida na região e foi se espraiando. Pouco depois, o padre Luigi Maria Rossi, pároco de Nova Trento e amigo das irmãs, foi transferido para São Paulo e passou a envidar esforços para trazer madre Paulina e suas irmãs afim de dar continuidade a incipiente congregação. Para isso, fez contatos com o bispo de São Paulo e figuras da sociedade paulista, tal como José Vicente de Azevedo, que tinha planos de criar uma instituição de auxílio às crianças descendentes de negros e idosos inválidos ex-escravos. Contatou também as irmãs da Congregação de Nossa Senhora da Caridade do Bom Pastor. Em 1903 as irmãs chegaram em São Paulo e foram instaladas no bairro do Ipiranga para estabelecer a congregação. Logo iniciaram a obra com o “Asilo Sagrada Família”, abrigando ex-escravos e suas famílias jogadas nas ruas após a abolição, em 1888. A obra progrediu bastante e rápido, dado o crescente número de famílias desamparadas. O progresso da Congregação foi se consolidando com a chegada de mais jovens religiosas.

Em meados da primeira década de 1900 entra em cena uma importante senhora da sociedade paulista, viúva, rica e disposta a se tornar benemérita da Instituição Sagrada Família, que mantém o Asilo. Trata-se de Ana Brotero de Barros, que passa a ajudar a instituição com recursos próprios e do governo, onde mantinha contatos políticos. Além disso, contribuiu para inserir a recente congregação no seio da sociedade paulistana. Com apoio do bispo Dom Duarte Leopoldo e Silva e do padre Rossi, mentor das irmãs da congregação, tornou-se presidente da Instituição Sagrada Família, em 1908, A partir daí surgiram divergências entre a madre-superiora da congregação (Madre Paulina) e a presidente da instituição, que estava mais interessada em ampliar as instalações físicas da entidade. Tais divergências levaram ao exilio da Madre Paulina, em 1909, pelo bispo de São Paulo, Dom Duarte, que a mandou para Bragança Paulista, onde foi atuar na Irmandade Santa Casa de Misericórdia e lá ficou por 9 anos.

No entanto não se desligou da congregação por completo, e passou a ajudar a substituta no cargo de madre superiora, sua amiga Irmã Vicenza. Claro que tal ajuda se fazia de modo informal, por cartas, sem que o bispo de São Paulo soubesse. Pois sua determinação era firme em manter a congregação independente de sua pessoa, como ficou confirmado numa destas cartas: “Só tenho a dizer isto: Estou contentíssima de que os outros consigam fazer o que eu, por justos planos divinos, não pude conseguir, sejam louvadas e eu fique à sombra e seja esquecida”. Após 9 anos de “exílio”, foi criado o Colégio Sagrada Família, junto a congregação como forma de subvencionar a instituição, em 1918. Nesta época a Sra. Ana Brotero não estava mais em cena; a congregação encontrava-se noutro patamar e exigindo uma administração mais condizente com seus objetivos. Neste instante, o mesmo bispo que a exilou, chama-a de volta à comandar os destinos da congregação.

Enquanto isso, sua doença (diabetes) progride até 1938, quando tem inicio um período de grandes sofrimentos físicos. Seu braço direito teve que ser amputado, seguido de outras amputações até ficar cega. Foram 4 anos de sofrimentos e de testemunho de fé. Ela permaneceu firme, louvando ao Senhor por tudo e sendo cada vez mais admirada pelas irmãzinhas. Por fim, veio a falecer em 9/7/1942. O papa João Paulo II celebrou sua beatificação em 8/10/1991, em visita a Florianópolis. A canonização se deu em 19/5/2002 pelo mesmo Papa. O Santuário Santa Paulina, em Nova Trento, foi idealizado logo após a beatificação. A construção numa área de 9 mil m² iniciou em 2003 e foi inaugurado em 22/1/2006, com um templo de 6.740 m². com capacidade para 3 mil pessoas sentadas e 3 mil em pé. Uma boa hagiografia da santa foi escrita pela Irmã Célia B. Cadorin: Ser para os outros: perfil biográfico de Madre Paulina do Coração Agonizante de Jesus (Amábile Visintainer) 1865-1942, publicada pelas Edições Loyola, em 2001.

 

 


José Domingos Brito - Memorial segunda, 28 de setembro de 2020

OS BRASILEIROS: FREI GALVÃO

 

MEMORIAL DOS BRASILEIROS: Frei Galvão

Antônio de Sant’Ana Galvão nasceu em Guaratinguetá, SP, em 10/5/1739. Frade e primeiro santo brasileiro, conhecido pelo seu poder de cura, é o padroeiro dos engenheiros, arquitetos e construtores. Sua canonização, em 11/5/2007, foi postulada pela Irmã Célia Cadorin, da Congregação das Irmãzinhas da Imaculada Conceição, com apoio do Cardeal-Arcebispo de São Paulo Dom Paulo Evaristo Arns. Além de religioso, foi pioneiro como acadêmico ao integrar a “Academia dos Felizes”, a primeira academia de letras do Brasil, em São Paulo, em 1770.

Criado numa família da aristocracia colonial portuguesa, seu pai – Antonio Galvão de França- era Capitão-Mor e comerciante. A mãe – Isabel Leite de Barros – era filha de fazendeiros, descendente do bandeirante Fernão Dais Paes. Passou a infância em Guaratinguetá e, aos 13 anos, foi estudar no Colégio de Belém (jesuíta) em Cachoeira (BA), onde já estudava seu irmão. Aí ficou até 1756 e queria ser padre jesuíta, mas a perseguição do Marquês de Pombal contra esta Ordem, acabou levando-o ao Convento Franciscano de Taubaté. Abdicou de um futuro promissor, tendo em vista a influência política e econômica da família, e entrou no Convento de São Boaventura de Macacu, em Itaboraí, RJ.

Aluno brilhante durante o noviciado, fez sua profissão de fé em 16/4/1761 e defendeu o título de “Imaculada” da Virgem Maria, na época um tema polêmico. Ordenou-se sacerdote no ano seguinte e mudou-se para São Paulo, onde continuou os estudos de teologia e filosofia no Convento de São Francisco. Na viagem, fez uma parada em Guaratinguetá e celebrou sua primeira missa na Matriz de Santo Antônio, onde foi batizado. Em 1768 foi nomeado professor e porteiro do Convento, importante cargo. Era também respeitado pela Câmara Municipal e admirado pelo governador da Capitania Dom Luis Antônio de Sousa Botelho e Mourão.

Em 1770, o governador querendo copiar as academias literárias que iniciavam na Europa, fundou a “Academia dos Felizes”, nossa primeira instituição dedicada às letras. Frei Galvão foi um dos primeiros convidados a integrá-la, onde declamou, em latim, 16 peças, 2 hinos, 1 ode e 12 epigramas de sua autoria louvando Santa Ana e o governador da Capitania de São Paulo. Tal participação foi registrada no artigo de Enio Aloisio Fonda – Academia dos Felizes (1770) e a poesia latina de Frei Antônio de Sant’Ana Galvão, religioso franciscano -, publicado na Revista de Estudos Brasileiros, nº 13, 1972. Como se vê, Frei Galvão também tinha seus dotes literários.

Por essa época, atuou como confessor no “Recolhimento de Santa Teresa”, onde conheceu a freira Irmã Helena Maria do Espirito Santo, que afirmava ter visões onde Jesus lhe pedia para fundar um novo “Recolhimento” Frei Galvão estudou as mensagens, consultou outros religiosos e concluíram como validas tais visões. A partir daí, contando com seus amigos no governo da província, projetou e deu inicio a construção do novo Recolhimento, chamado “Nossa Senhora da Luz”, fundado em 2/2/1774. Era um lar para meninas que queriam levar uma vida sem fazer votos. No ano seguinte tornou-se diretor e líder espiritual das irmãs. Pouco depois o governo da Província foi substituído, provocando o fechamento do convento. Mas as freiras se recusaram a abandonar o local e, devido à pressão popular e da igreja, o convento foi reaberto. Com a reabertura recebeu crescente número de novas irmãs, obrigando o Frei a fazer uma ampliação, incluindo a construção de uma igreja, inaugurada em 1802. Tal conjunto resultou no “Mosteiro da Luz”, que hoje abriga o Museu de Arte Sacra, uma das maiores coleções do País.

Tempos depois o filho do Capitão-mor da Província foi ofendido por um soldado, que foi condenado a morte. O Frei saiu em sua defesa e por isso foi expulso da cidade. Mais uma vez, a pressão popular revogou a ordem e trouxe o Frei de volta ao Mosteiro. Em 1781, foi nomeado mestre dos noviços em Macacu (RJ). Mas, o bispo de São Paulo, Manuel da Ressurreição, escreveu ao superior provincial: “nenhum dos habitantes desta cidade será capaz de suportar a ausência deste religioso por um único momento”. Assim, ele foi mandado de volta para São Paulo. Em seguida foi nomeado guardião do Convento de São Francisco (1798), sendo reeleito em 1801. Em princípios do século XIX esteve em Sorocaba numa reunião com os religiosos da cidade e foi constatado o progresso da cidade com seus tropeiros. Na ocasião foi lhe solicitado a erguer ali mais um convento e em 1811 fundou o Convento de Santa Clara, onde passou quase um ano.

De volta ao Convento de São Francisco, já idoso, pediu permissão ao bispo Mateus de Abreu Pereira e ao seu tutor para ficar no Mosteiro que ajudou a criar. Veio a falecer em 23/12/1822 e foi sepultado na igreja do Mosteiro, onde seu túmulo até hoje é visitado pelos fiéis favorecidos pela sua intercessão. Na época, a fama de santo já havia se espalhado por todo o País. As pessoas que foram ao seu velório, na ânsia de obter uma relíquia, foram cortando pedaços de seu hábito, que ficou reduzido até a altura dos joelhos. A primeira lápide do túmulo teve o mesmo destino, sendo aos poucos levada pelos devotos. As pedras da lápide eram colocadas em copos d’água para tratar os enfermos.

Alguns fenômenos místicos lhe são atribuídos, como telepatia, premonição, levitação e bilocação. Consta que ele se fazia presente em dois lugares diferentes ao mesmo tempo para cuidar de enfermos que pediam sua ajuda. Certa vez escreveu num pedaço de papel uma frase em latim do Ofício de Nossa Senhora (“Após o parto, permaneceste virgem: Ó Mãe de Deus, intercedei por nós”). Enrolou o papel no formato de uma pílula e deu-o a uma jovem com fortes dores renais. Logo após tomar a “pílula”, a jovem expeliu certa quantidade de cálculo renal e a dor cessou Imediatamente. Noutra ocasião deu outra “pílula” de papel à uma mulher que passava por um parto difícil e a criança nasceu sem maiores complicações. As “pílulas do Frei Galvão” ficaram famosas e ele ensinou as irmãs do Mosteiro a fabricá-las para distribuição gratuita, o que é feito até hoje no Mosteiro. Mas o local de peregrinação do fieis fica em Guaratinguetá, no Santuário Frei Galvão, inaugurado em 12/10/1983.

 


José Domingos Brito - Memorial segunda, 21 de setembro de 2020

OS BRASILEIROS: MATTA E SILVA

 

 

OS BRASILEIROS: Matta e Silva

Woodrow Wilson da Matta e Silva nasceu em 18/7/’1916, em Garanhuns, PE. Médium umbandista e fundador da primeira “Escola Iniciática de Umbanda Esotérica” do Brasil. Considerado codificador da religião, escreveu alguns tratados mediúnicos com o objetivo de esclarecer e unificar a doutrina religiosa. O adjetivo “esotérica” busca se diferenciar das ramificações existentes na umbanda, sem confrontá-las, realizando um estudo de seus componentes e estrutura.

Seu pai, admirador do presidente dos EUA na época, deu-lhe o nome que ninguém sabia pronunciar. Aos 5 anos a família mudou-se para o Rio de Janeiro e aos 9 a mediunidade começa a se manifestar através de visões de entidades. Nada compreendia do que via e/ou sentia, pois até ali nunca teve formação religiosa; os pais não seguiam religião alguma. Ao 15 anos, morando no centro do Rio e trabalhando como auxiliar de serviço num jornal carioca, teve as primeiras manifestações do Preto-velho “Pai Cândido”. Pouco depois, as incorporações foram regularizadas e passou a atender as pessoas com conselhos e orientações. Pouco depois, já familiarizado com as “visitas” semanais de “Pai Cândido”, os fenômenos e visões desapareceram.

Em 1933, aos 17 anos, foi orientado a encontrar um local para desenvolvimento de sua mediunidade. Passou a visitar diversas “Tendas Espíritas” já existentes na época. Porém, seu mentor espiritual dizia-lhe que deveria ter sua própria casa de auxílio espírita. Em seu 7º livro – Umbanda e o poder da mediunidade – relata que “sempre tive uma tendência irrefreável, desde muito jovem, 16, 17 anos de idade, que me impulsionava a ver as chamadas ‘macumbas cariocas’. Claro está que não estava ainda conscientizado do “por que” de semelhantes impulsos”. Em 1937 mudou-se para o bairro Pavuna, montou um pequeno “Terreiro” e tornou-se “Pai-de-Santo”, com o nome de “Mestre Yapacani”. A partir de 1954, a entidade “Pai Guiné” passou direcionar sua vida mediúnica. Recebeu deste Preto-velho a mensagem “7 Lágrimas de Pai Preto”, que viria a se tornar um dos marcos da renovação da Doutrina Umbandista. Trata-se de uma oração mostrando a realidade do dia-a-dia de um Terreiro e as diferentes pessoas que o procuram em busca de auxílio espiritual. Pouco depois passou a escrever para o “Jornal de Umbanda”, artigos como “A lei dentro da umbanda”, “A magia da umbanda”, “A ponta do véu”, Aos aparelhos umbandistas: Alerta!”, Invocação de umbanda” etc.

Tais artigos preparavam, sem que ele tivesse uma clara consciência do que estava por vir: a obra que viria transformar todo o entendimento que se tinha até então sobre a umbanda. Por essa época teve visões mediúnicas, onde via um “Velho Payé” folheando um grande livro, junto a um colegiado de mentores espirituais, indicando que o momento de escrever obras doutrinárias se aproximava. Assim, em 1956 foi publicada a obra Umbanda de todos nós (A lei revelada), numa edição bancada por ele mesmo. O livro sacudiu o meio umbandista e teve a 1ª edição de 3.500 exemplares esgotada em pouco tempo. A 2ª edição saiu por uma editora conceituada, a Livraria Freitas Bastos. Até aí Seu Matta ainda não sabia que estava iniciando sua missão como escritor codificador da Umbanda.

No ano seguinte publicou Umbanda: sua eterna doutrina, trazendo complexos mapas explicativos e conceitos esotéricos nunca divulgados. A obra é uma continuidade, um aprofundamento da anterior. “Seu Matta” era um pai-de-santo incomum naquele ambiente: tinha convicções firmes, opiniões contundentes e era um crítico severo de alguns rituais praticados na Umbanda. Combatia os rituais de matança de animais, uso de bebidas alcoólicas em excesso nos terreiros e as vaidades fetichistas. Em 1958 “recebeu” um preto-velho, chamado “Pai Guiné de Angola”, que veio para auxiliar seu guia espiritual “Pai Cândido”. Na ocasião foi riscado o ponto com as “Ordens e Direitos de Trabalho”

O 3º livro – Lições de Umbanda (e Quimbanda) na palavra de um preto-velho – veio em 1961 e foi mais bem sucedido junto ao público que os anteriores. Apresenta o diálogo entre um discípulo chamado Cícero com o Preto-Velho. O estilo do livro na forma de diálogo certamente ficou mais compreensível para o público e ocasionou a necessidade de mais esclarecimentos. Desse modo, Seu Matta continuou sua missão com o 4º livro, publicado em 1963: Mistérios e Práticas da Lei de Umbanda, aprofundando os conceitos referentes a magia, mediunidade e oferendas numa linguagem mais acessível. No ano seguinte veio a 5ª obra: Segredos da Magia de Umbanda e Quimbanda (1964), onde apresenta uma abordagem prática de alguns rituais da magia de umbanda. No mesmo ano lançou a 6ª obra: Umbanda e o poder da mediunidade, explicando a necessidade de restauração da umbanda no Brasil e mostrando suas verdadeiras origens.

Após breve período de descanso, retornou em 1966 com outra obra sob orientação de uma corrente astral liderada por uma entidade que se identificou como “Caboclo Velho Payé”. A complexidade da obra levou mais de um ano para ser melhor explicada pelos mentores com imagens, quadros, diagramas e informações por via intuitiva. Em 1967 saiu a edição da Doutrina Secreta da Umbanda, complementando e ampliando conceitos tratados no livro Umbanda: sua eterna doutrina, publicado em 1957. Em seguida adquiriu um terreno contíguo a sua casa, em Itacuruçá, e instalou a “Tenda de Umbanda Oriental (TUO)”, onde seus “filhos-de-fé” passaram a frequentar por mais de 20 anos. Alguns destes filhos tornaram-se conhecidos em todo o País e um deles deu continuidade ao seu trabalho de aprofundar os estudos e procurar a unificação da umbanda como religião. Trata-se do paulista Francisco Rivas Neto, que também publicou alguns tratados e fundou a Faculdade de Teologia Umbandista-FTU, em São Paulo, em 2003, mantida pela Ordem Iniciática Cruzeiro do Sul.

Em 1969 veio à tona mais uma obra, segundo ele mesmo “de fôlego”: Umbanda no Brasil. São 368 páginas sintetizando os 7 livros anteriores. Em pouco tempo, o livro esgotou e Seu Matta se consolida como um dos autores mediúnicos mais respeitados no Brasil. Em 1970 publicou seu último livro: Macumbas e Condomblés na Umbanda, trazendo muitas fotos e o registro de vivências místicas e ritualísticas dos cultos afro-brasileiros. Mudou-se para Volta Redonda e passou a dar consultas e palestras na TUO 2 vezes por semana. Em 1977 foi convidado pelo cineasta Rogério Sganzerla para participar do documentário “Ritos Populares: Umbanda no Brasil”, exibido no 23º Festival de Cinema de Turim – Tribute to Rogério Sganzerla, (2005), na Mostra Cinema do Caos CCBB, no Rio de Janeiro (2005) e na “Ocupação Rogério Sganzerla” no Itau Cultural, em São Paulo (2010).

Não tão idoso, mas com a saúde abalada, decidiu voltar a morar em Itacuruçá, em 1984, junto a sua Tenda (TUO) e veio a falecer em 17/4/1988, aos 72 anos. Seus livros e sua trajetória mediúnica redefiniram a Umbanda e deram à religião fundamentos, normas e um sistema de ordenação lógico e racional, sedimentando o conhecimento dos devotos e fiéis que nela expressam sua fé. Além dos devotos, muitos umbandistas e Chefes de Terreiro de várias partes do Brasil procuravam sua Tenda em busca de ajuda ou de uma filiação espiritual que legitimasse a sua própria Entidade.

 

 

 


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