VINTE ANOS DE MAGISTRATURA: O CONCURSO (CRÔNICA DE MARCOS MAIRTON, COLUNISTA DO ALMANAQUE RAIMUNDO FLORIANO)
À esquerda, a sede do Tribunal Regional Federal da 5ª Região, no Recife-PE
A posse ocorreu no dia 25 de abril de 2001. Mas as primeiras recordações que me vêm são de quase dois anos antes, em meados de 1999, quando eu ainda era Procurador do Banco Central, em Fortaleza.
No começo da tarde, um colega chegou à Procuradoria com a notícia:
– Saiu o edital pra juiz federal da 5ª Região!
Embalado que vinha por concursos anteriores, com bons resultados nos certames do próprio Banco Central (dois anos antes) e da Advocacia-Geral da União (embora o resultado final ainda não houvesse sido publicado), fiz uma brincadeira que hoje me soa um tanto arrogante:
– Opa! Vamos lá! Se a primeira prova for daqui a mais de 90 dias, é bom vocês prepararem minha festa de despedida!
Os colegas riram. Acho que não me levaram a mal pelo excesso de confiança. O certo é que o edital realmente marcava a prova para cerca de 90 dias depois, talvez um pouco mais. Isso acabou me servindo como estímulo, pela vontade de cumprir a otimista previsão.
Os dias que se seguiram passaram voando. Em meados de setembro (lembrando sempre que estávamos em 1999) eu já estava fazendo a primeira prova, de questões objetivas, na sala de aula de uma escola, em Fortaleza.
Eu e uma multidão de gente. É muito estranha essa história de fazer concurso. Você vê todas aquelas pessoas chegando para fazer a prova e pensa: “Tanta gente para tão poucas vagas… Quantos dos que estão aqui hoje serão aprovados? Talvez nenhum”.
No caso, eram, salvo engano, dezessete vagas; ou vinte e uma; já não lembro com precisão.
Lembro que o resultado dessa primeira prova saiu muito rápido. Coisa de uns trinta dias depois.
Sem saber que a correção das provas já havia ocorrido, acabara de chegar à Justiça Federal, na Rua João Carvalho, em Fortaleza, para ver uns processos do Banco Central, quando me deparei com um grupo de pessoas aglomeradas, olhando umas folhas impressas por computador, fixadas em um flanelógrafo:
– O que é isso? – perguntei a um dos guardas do prédio.
– É o resultado do concurso pra juiz.
Aproximei-me devagar, ocupando o espaço deixado por cada pessoa que se afastava. Não era uma lista muito grande. Corri os olhos, do topo ao fim da lista, e rapidamente avistei o meu nome. Um dos últimos. Era preciso tirar nota 6,0 para passar à fase seguinte. Eu havia feito 6,1. Estava aprovado na primeira fase.
Dei alguns passos para trás e fui em direção ao guarda com quem havia falado antes. Estendendo-lhe a mão, falei, sorrindo:
– Pode me dar os parabéns. Tô dentro!
Aparentando certa surpresa, ele apertou minha mão com força:
– Parabéns, doutor!
Mais tarde, quando retornei à Procuradoria do Banco Central, os colegas procuradores já sabiam da minha aprovação. Fizeram festa. Foram generosos nos abraços. Mas aí eu já estava pensando nas provas subjetivas, que estavam marcadas para aproximadamente trinta dias depois.
Foram duas as provas subjetivas.
Na primeira, duas questões para discorrer e uma dissertação sobre um assunto jurídico. O tema da questão era de matéria penal: “O consentimento do ofendido na Teoria do Delito”.
Uma curiosidade a respeito dessas provas dissertativas é que eu memorizava frases genéricas de autores importantes e acabava encontrando um jeito de as encaixar nas minhas respostas, fazendo referência inclusive ao capítulo da obra que servira de fonte. Não sei se isso me ajudou de alguma maneira, mas eu imaginava que seria positivo para o candidato o examinador encontrar em seus textos citações de Hans Kelsen, Karl Engisch, Miguel Reale ou Paulo Bonavides.
Na segunda prova, mais duas questões, e a grande destruidora de candidatos: a elaboração de uma sentença judicial.
O leitor que chegou até aqui pode estar curioso quanto à matéria discutida na sentença, então, não custa relembrar: cabia ao candidato julgar um caso de embargos a execução fiscal, envolvendo matéria tributária. Mais precisamente, imposto de renda de pessoa jurídica tributada com base no lucro real.
Claro que havia uma série de questões processuais a resolver, antes de se chegar ao mérito.
A prova mais difícil da minha vida. Um inferno. O lado bom daquele dia foi que o alívio por ter terminado a prova foi tão grande que nem pensei mais se passaria ou seria reprovado.
Alea jacta est! A sorte está lançada!
Segundo a Wikipedia, a expressão “alea jacta est” significa, ao pé da letra, “os dados foram lançados”. E, nesse caso, os dados devem ter sido lançados com força, porque rolaram um bocado. O resultado das tais provas subjetivas, inclusive a sentença, só seria conhecido meses depois, entre maio e junho do ano 2000, se bem me lembro.
Na época, eu já havia deixado a Procuradoria do Banco Central, e havia assumido o cargo de Advogado da União, em Natal.
A Procuradoria da União na capital potiguar ficava na Av. Deodoro da Fonseca, quase em frente à Catedral Metropolitana de Natal. Certo dia, ao sair do trabalho, olhei para o templo cristão e pensei: “Se passar nesse concurso pra juiz federal, vou dar dez voltas correndo em torno da catedral”.
Catedral Metropolitana de Natal-RN
Cumpri a promessa poucos dias depois da publicação do resultado das provas subjetivas, mas a jornada até a magistratura federal estava longe de acabar. Depois de recursos de candidatos serem julgados, questões judiciais serem superadas, e apresentarmos a documentação referente aos chamados títulos (aprovações em concursos anteriores, artigos publicados, etc), a última fase do concurso somente aconteceria no começo de 2001: a temida prova oral.
Por esse tempo, eu continuava advogado da União, mas já havia deixado a cidade de Natal, depois de conseguir ser removido para Fortaleza.
Àquela altura do campeonato não havia mais concorrência entre nós, candidatos. Cada um lutava apenas consigo mesmo, para fazer a pontuação mínima exigida no edital, já que o número de sobreviventes era menor que a quantidade de vagas disponíveis. Isso mesmo: das centenas – talvez milhares – que se inscreveram, éramos agora menos de vinte guerreiros.
Preciso dizer algumas palavras sobre uma coisa chamada prova oral.
Não sei se hoje o sistema continua o mesmo, nem se há variações nos concursos para outros cargos ou outros tribunais, mas estou certo que a tensão que envolve o ato continua grande.
Em nosso concurso, o procedimento era o seguinte: durante alguns dias, os membros da comissão fariam perguntas a cada candidato, separadamente; para isso, todos nos reunimos em Recife naqueles dias, e foi determinada uma ordem pela qual os candidatos seriam chamados; assim, a cada dia alguns candidatos eram inquiridos.
Vinte e quatro horas antes da prova, a banca examinadora sorteava o que se chama de “ponto”, no qual constavam os tópicos do programa do concurso sobre os quais deveriam versar as perguntas a serem feitas na prova. Ou seja, cada candidato só ficava sabendo os temas das perguntas na véspera da prova.
Um detalhe importante, que quem não vive ou não viveu o mundo dos concursos talvez não saiba: cada ponto era formado por tópicos de cada uma das disciplinas; assim, um ponto reunia temas de Direito Civil, Penal, Constitucional, Administrativo, Tributário, Previdenciário, Internacional, etc.
Dito isto, indago ao leitor: quem dormiria naquelas 24 horas?
Não sei os outros, mas eu devo ter dormido no máximo umas duas horas, entre o fim da madrugada e o começo da manhã. O restante do tempo foi vivido em um quarto de hotel, na companhia de outros colegas, que também fariam prova no dia seguinte, revendo tudo o que era possível. A alimentação ficava por conta de sanduíches solicitados pelo serviço de quarto.
Alternávamos períodos de leitura e anotações com momentos nos quais fazíamos perguntas uns aos outros, para estimular nossa capacidade de elaborar respostas imediatas. Não me era possível perceber nenhum clima de disputa por posições na classificação. Ao contrário, cooperávamos o quanto possível. Nasciam ali amizades que certamente nos acompanharão por toda a vida.
No fim desse processo, cheguei para a prova quase em transe. Sentei-me diante de cada um dos membros da comissão e fui respondendo o que me perguntavam como se estivesse em “modo automático”. Como se minha mente seguisse um algoritmo que buscava dispositivos legais, doutrinários e jurisprudenciais a partir de palavras chave contidas nas perguntas.
Talvez por isso eu não me lembre mais de nenhuma das perguntas que me foram feitas. Lembro apenas que o último examinador foi o doutor Ivan Lira de Carvalho, juiz federal em Natal, que participava da banca examinadora na condição de professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Estava encarregado de formular perguntas sobre Direito Penal, e havia recebido dos candidatos que me antecederam a carinhosa alcunha de “Ivan, o terrível”, em alusão ao czar russo, dado o grau de dificuldade das perguntas que fazia.
Ivan Lira já era meu conhecido, da época em que fui advogado da União e atuei em alguns processos sob a sua jurisdição, em Natal. O que eu não esperava era que ele fosse lembrar disso na hora da minha prova. Mas lembrou.
Sentei-me, cumprimentei-o, e ele, antes de iniciar a inquirição, disse uma frase que jamais esqueci. Falou pausadamente, quase sorrindo:
– Doutor Marcos Mairton… era advogado da União em Natal, mas, na primeira oportunidade, desprezou o Rio Grande do Norte e se mandou para o Ceará. O mundo dá voltas, né doutor?
Não me recordo se respondi alguma coisa. Lembro apenas que tentei convencer a mim mesmo de que o introito havia sido uma tentativa de me deixar menos tenso. Que não funcionou. Talvez tenha tido efeito contrário. Enquanto eu recuperava a concentração, ele prosseguiu:
– Vou fazer só uma pergunta, doutor. É tudo ou nada. O senhor responde “sim” ou “não” e “porquê”.
E fez uma pergunta sobre a possibilidade da tentativa nos crimes culposos.
À medida que ele formulava a pergunta, meu coração se enchia de alegria. Naquele dia, eu seria capaz de falar trinta minutos sobre aquele assunto, sem precisar parar sequer para beber água. Senti que vencia a última batalha.
Tivemos conhecimento do resultado final do concurso no fim da tarde daquele mesmo dia.
No dia seguinte, ao chegar à casa dos meus pais, em Fortaleza, havia música tocando, cerveja gelada e churrasco à vontade. Para amigos e parentes, a festa já estava em pleno andamento.
A vizinhança toda veio dar parabéns ao filho caçula do Seu Mansueto e da Dona Ivonete. Todos já admiravam o fato de o filho mais velho ser professor da Universidade Federal do Ceará e capitão-dentista da Polícia Militar; agora, o mais novo seria Juiz Federal.
Não é meu propósito aqui falar de desigualdades sociais, mas não posso deixar de mencionar o fato de que aquela comemoração acontecia em uma casa simples, no meu querido bairro do Pirambu, em Fortaleza. Os convidados eram donas de casa, comerciárias, motoristas de ônibus, taxistas, mecânicos, pedreiros e outros profissionais que sequer haviam concluído o ensino médio. Gente honesta e trabalhadora, mas sem muito estudo.
O orgulho dos meus pais em meio a tudo aquilo era plenamente justificável, porque, em um lugar onde praticamente ninguém tinha curso superior, meu irmão já havia concluído seu doutorado em Odontologia, enquanto eu era mestre em Direito.
E era muito bom sentir que não apenas meus pais estavam orgulhosos e felizes. Cada uma das pessoas que ali estava demonstrava uma alegria verdadeira. Talvez por se sentirem parte da história do menino estudioso que eles viram crescer, e que, pelo estudo, chegava a um cargo público de grande importância.
Eu também estava feliz. Mas sabia que a jornada estava apenas começando.
Minha posse como juiz federal ocorreu dias depois daquela festa, no Plenário do Tribunal Regional Federal da 5ª Região, ao lado dos meus colegas de concurso, que se tornaram amigos para a vida toda, e por quem tenho profunda admiração: George, André, Gledison, Niliane, Francisco, Leonardo, Jailsom, Joana Carolina, Maximiliano, Raimundo e César.
Na cerimônia, sentimos falta do amigo também querido Fernando Braga, que havia sido aprovado e nomeado junto conosco, mas à época já era Procurador da República, e preferiu permanecer no Ministério Público Federal. Tornar-se-ia membro do TRF da 5ª Região apenas anos depois, como Desembargador Federal, na vaga do quinto constitucional Tribunal destinada ao Ministério Público.
Naquela noite de quarta-feira, no dia 25 de abril de 2001, fechava-se um ciclo em minha vida. Iniciava-se outro, que já dura vinte anos.
No ciclo em curso, é incrível perceber que tanta coisa aconteceu e, ao mesmo tempo, como tudo passou tão rápido.