Outro dia, estava eu a refletir sobre a quantidade de mentiras que se espalham pelo mundo. Fazia isso sentado em uma cadeira de balanço, na varanda de minha casa, quando Shayeubad(*) apareceu no portão.
Convidei-o a entrar, e nos pusemos a conversar sobre o assunto.
Até que, a certa altura da conversa, ele me fez um convite inusitado:
— Se você deixar seu corpo dormindo aí, posso lhe levar para ver a dança das versões. É uma performance bem interessante sobre essas suas reflexões.
Mesmo sem entender direito o que ele quis dizer com “deixar meu corpo dormindo”, minha sempre aguçada curiosidade levou-me a concordar imediatamente.
Shayeubad pediu que eu fechasse os olhos. Fechei e o ouvi a contar regressivamente de três a um.
No instante seguinte, estávamos em um grande salão, onde um tablado oval, de uns 100 metros quadrados, era contornado por cadeiras confortáveis. A maioria delas estava ocupada por pessoas que aparentemente esperavam o início de uma apresentação.
Shayeubad me orientou a ocupar um dos lugares disponíveis e esperar também.
Ficamos ali, aguardando, em silêncio.
Minutos depois, começou a tocar uma música instrumental, um tanto épica.
Em seguida, surgiu, no meio do tablado, uma espécie de luz, em formato feminino. Mais precisamente, a imagem de uma bela mulher, feita de luz violeta.
Mas aquela figura luminosa esteve diante dos nossos olhos apenas por alguns instantes.
Um ou dois segundos depois, surgiram magicamente, em volta dela, de quatro a seis mulheres. Eram em tudo semelhantes ao ser de luz. Na cor, na forma e nos movimentos. Mas, aparentemente, eram feitas de matéria consistente como a de nossos corpos humanos.
Dançavam de um modo a seduzir os olhares dos presentes, enquanto o ser de luz desaparecia por trás de seus corpos.
No momento seguinte, brotaram do chão outras dançarinas.
Estavam em maior quantidade, e não eram tão parecidas com o ser de luz, como as primeiras, apesar de algumas serem também muito belas. Outras, nem tanto.
Percebi então que havia entre todas aquelas dançarinas uma espécie de disputa pela atenção do público. À medida que desenvolviam suas performances, se alguma se destacava, as pessoas aplaudiam seus movimentos.
Enquanto isso, aquelas que obtinham menos destaque aos poucos esmaeciam e sumiam, diante dos nossos olhos.
Depois de alguns minutos, restou no salão apenas uma das dançarinas do primeiro grupo — uma daquelas quatro ou seis que haviam surgido em torno da figura luminosa.
O público a aplaudiu calorosamente. Ela agradeceu e deixou o tablado.
Era possível ouvir o rumor das pessoas comentando o desempenho das dançarinas. Alguns dos presentes pareciam não concordar com o resultado final. Esperavam que outra dentre elas houvesse chegado ao final.
Passados alguns minutos, novo espetáculo começou, semelhante ao primeiro.
Dessa vez, a figura feminina que surgiu no meio do tablado era feita de uma luz amarela, brilhante como ouro.
Rapidamente, sua luminosidade projetou-se para fora do corpo, dando forma a quatro dançarinas vestidas de amarelo, parecidíssimas com ela. Sua pele aparentava estar coberta por tinta dourada.
Dançavam freneticamente em torno do ser de luz, enquanto este desaparecia.
Não tardou a brotarem do chão as outras dançarinas. Estavam em número bem maior que na apresentação anterior. Em sua disputa por atenção, às vezes duas ou três juntavam seus corpos e punham-se à frente de alguma das performistas que haviam surgido primeiro, impedindo que o público as visse.
Aos poucos, porém, cada uma das moças foi desaparecendo — como da primeira vez — restando somente uma dançarina de amarelo.
Novos aplausos do público. Desta vez, de pé.
Não sei quanto tempo ficamos ali, mas foi o suficiente para assistirmos a várias daquelas apresentações, que se sucediam após breves intervalos.
Ao sairmos do salão, agradeci a Shayeubad por me levar a ver tão belo espetáculo. Mas, percebendo que ele esperava de mim algum comentário mais detalhado, acrescentei:
— Notei que na maioria das vezes, a dançarina que ficava por último era uma das primeiras a surgir no tablado. Apesar do esforço das moças que brotavam do chão, poucas delas conseguiram se manter até o final.
— É assim mesmo — respondeu Shayeubad sorrindo. — Lembra de quando lhe falei que o espetáculo se chama “Dança das Versões”?
— Lembro.
— É isso. O ser de luz que surge no início de cada ato é a verdade. O brilho da verdade dá origem a algumas figuras semelhantes a ela: as versões. Mas logo surgem as mentiras, chamando para si a atenção. O resto você já entendeu.
— Sim, entendi. E embora me conforte saber que na maioria das vezes as mentiras se dissolvam, lamento que a verdade, em sua forma original, seja uma luz que brilha apenas por poucos instantes. Depois, o que resta são versões. Mesmo que versões verdadeiras, versões.
— Não lamente. Para o público, uma boa versão da verdade é suficiente. Nem sei se estamos prontos para um mundo onde a verdadeira verdade prevaleça. Você está pronto? Eu estou?
— Não sei.
— Então feche os olhos e conte até três. Vamos voltar.
Obedeci, e, ao abrir os olhos novamente, estava na varanda da minha casa, em minha cadeira de balanço.
Shayeubad havia sumido.
(*) Shayeubad é um amigo que costuma aparecer para conversar comigo desde que eu era criança. No começo, minha mãe dizia que ele era meu amigo imaginário, e que desapareceria quando eu chegasse à adolescência. Ao escrever este conto, tenho 53 anos de idade, e Shayeubad continua compartilhando comigo as mais variadas reflexões.