OS TIMBIRAS - CANTO TERCEIRO (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)
OS TIMBIRAS
CANTO TERCEIRO
Gonçalves Dias
Era a hora em que a flor balança o cálix
Aos doces beijos da serena brisa,
Quando a ema soberba alteia o colo,
Roçando apenas o matiz relvoso;
Quando o sol em doirando os altos montes,
E as ledas aves à porfia trinam,.
E a verde coma dos frondosos cerros
Quando a corrente meio oculta soa
De sob o denso véu da parda névoa;
Quando nos panos das mais brancas nuvens
Desenha a aurora melindrosos quadros
Gentis orlados com listões de fogo;
Quando o vivo carmim do esbelto cáctus
Refulge a mêdo abrilhantado esmalte,
Doce poeira da aljofradas gotas,
Ou pó sutil de pérolas desfeitas.
Era a hora gentil, filha de amores,
Era o nascer do sol, libando as meigas,
Risonhas faces da luzente aurora!
Era o canto e o perfume, a luz e a vida,
Uma só coisa e muitas, – melhor face
Da sempre vária e bela natureza:
Um quadro antigo, que já vimos todos,
Que todos com prazer vemos de novo.
Ama o filho do bosque contemplar-te,
Risonha aurora, – ama acordar contigo;
Ama espreitar nos céus a luz que nasce,
Ou rósea ou branca, já carmim, já fogo,
Já tímidos reflexos, já torrentes
De luz, que fere oblíqua os altos cimos.
Amavam contemplar-te os de Itajubá
Impávidos guerreiros, quando as tabas
Imensas, que Jaguar fundou primeiro
Cresciam, como crescem gigantescos
Cedros nas matas, prolongando a sombra
Longes nos vales, – e na copa excelsa
Do sol estivo os abrasados raios
Parando em vasto leito de esmeraldas.
As três formosas tabas de Itajubá
Já foram como os cedros gigantescos
Da corrente impedrada: hoje acamados
Fósseis que dormem sob a térrea crusta,
Que os homens e as nações por fim sepultam
No bojo imenso! – Chame-lhe progresso
Quem do extermínio secular se ufana:
Eu modesto cantor do povo exinto
Chorarei nos vastíssimos sepulcros,
Que vão do mar ao Andes, e do Prata
Ao largo e doce mar das Amazonas.
Ali me sentarei meditabundo
Em sítio, onde não oiçam meus ouvidos
Os sons freqüentes d’europeus machados
Por mãos de escravos Afros manejados:
Nem veja as matas arrasar, e os troncos,
Donde chorando a preciosa goma,
Resina virtuosa e grato incenso
A nossa incúria grande eterno asselam:
Em sítio onde os meus olhos não descubram
Triste arremedo de longínquas terras.
Aos crimes das nações Deus não perdoa:
Do pai aos filhos e do filho aos netos,
Por que um deles de todo apague a culpa,
Virá correndo a maldição – contínua,
Como fuzis de uma cadeia eterna.
Virão nas nossas festas mais solenes
Miríade de sombras miserandas,
Escarnecendo, secar o nosso orgulho
De nação; mas nação que tem por base
Os frios ossos da nação senhora,
E por cimento a cinza profanada
Dos mortos, amassada aos pés de escravos.
Não me deslumbra a luz da velha Europa;
Há-de apagar-se mas que a inunde agora;
E nós?... sucamos leite mau na infância,
Foi corrompido o ar que respiramos,
Havemos de acabar talvez primeiro.
América infeliz! – que bem sabia,
Quem te criou tão bela e tão sozinha,
Dos teus destinos maus! Grande e sublime
Corres de pólo a pólo entre os sois mares
Máximos de globo: anos da infância
Contavas tu por séculos! que vida
Não fora a tua na sazão das flores!
Que majestosos frutos, na velhice,
Não deras tu, filha melhor do Eterno?!
Velho tutor e avaro cubiçou-te,
Desvalida pupila, a herança pingue
Cedeste, fraca; e entrelaçaste os anos
Da mocidade em flor – às cãs e à vida
Do velho, que já pende e já declina
Do leito conjugal imerecido
À campa, onde talvez cuida encontrar-te!
Tu, filho de Jaguar, guerreiro ilustre,
E os teus, de que então vós ocupáveis,
Quando nos vossos mares alinhadas
As naus de Holanda, os galeões de Espanha,
As fragatas de França, e as caravelas
E portuguesas naus se abalroavam,
Retalhado entre si vosso domínio,
Qual se vosso não fora? Ardia o prélio,
Fervia o mar em fogo a meia-noite,
Nuvem de espesso fumo condensado
Toldava astros e céus; e o mar e os montes
Acordavam rugindo aos sons troantes
Da insólita peleja! – Vós, guerreiros,
Vós, que fazíeis, quando a espavorida
Fera bravia procurava asilo
Nas fundas matas, e na praia o monstro
Marinho, a quem o mar, já não seguro
Reparo contra a fôrça e indústria humana,
Lançava alheio e pávido na areia?
Agudas setas, válidos tacapes
Fabricavam talvez!... ai não... capelas,
Capelas enastravam para ornato
Do vencedor; – grinaldas penduravam
Dos alindados tetos, por que vissem
Os forasteiros, que os paternos ossos
Deixando atrás, sem manitôs vagavam,
Os filhos de Tupã como os hospedam
Na terra, a que Tupã não dera ferros!
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Rompia a fresca aurora, rutilando
Sinais de um lia límpido e sereno.
Então vinham saindo os de Itajubá
Fortes guerreiros a contar os sonhos
Com que Tupã amigo os bafejara,
Quando as estrelas pálidas tombavam,
Já de clarão maior esmorecidas.
Vinham ledos ou tristes na aparência,
Timoratos ou cheios de hardimento,
Como o futuro evento se espelhava
Nos sonhos, bons ou maus; mas acordá-los
Disparatados, e o melhor de tantos
Coligir, era missão mais alta.
Não fosse o piaga intérprete divino,
Nem os seus olhos penetrantes vissem
O porvir, ao través do véu do tempo,
Como ao través do corpo a mente enxergam;
Não fosse, quem há que se afoutasse
Em campo de batalha a expor a vida,
A vida nossa tão querida, e tanto
Da flor a vida breve semilhando:
Roaz inseto a vai traçando em giro,
Nem mais revive uma só vez cortada!
Mande porém Tupã seus gratos filhos,
Rogados sonhos, que os decifra o piaga:
E Tupã, de benigno os influi sempre
Em vesp’ras de batalha, como as chuvas
Descem, quando a terra humores pede,
Ou como, em sazão própria, brotam flores.
Postam-se em forma de crescente os bravos:
Ávida turba mulheril no entanto
O rito sacro impaciente aguarde.
Brincam na relva os folgazões meninos,
Em quanto os mais crescidos, contemplando
O aparato elétrico das armas,
Enlevam-se; e, mordidos pela inveja,
Discorrem lá consigo: – Quando havemos,
Nós outros, d’empunhar daqueles arcos,
E quando levaremos de vencida
As hostes vis do pérfido Gamela!
Vem por fim Itajubá. O piaga austero,
Volvendo o maracá nas mãos mirradas,
Pergunta: – “Foi o espírito convosco,
O espírito da fôrça, e os ledos sonhos,
Ministros de Tupã, núncios da glória?"
– Sim, foram, lhe respondem, ledos sonhos,
Correios de Tupã; mas o mais claro
É duro nó que o piaga só desata.
“Dizei-os pois, que vos escuta o piaga”
Disse, e maneja o maracá: das bocas
Do mistério divino, em puros flocos
De neve, o fumo em borbotões golfeja.
Diz um qu, divagando em matas virgens,
Sentira a luz fugir-lhe de repente
Dos olhos, – se não foi que a natureza,
Por mágico feitiço transtornada,
Vestia por si mesma novas galas
E aspectos novos, – nem as elegantes,
Viçosas trepadeiras, nem as rêdes
Agrestes do cipó já divisava.
Em lugar da floresta, uma clareira
Relvosa descobria, em vez da árvores
Tão altas, de que havia pouco o bosque
Parecia ufanar-se, – um tronco apenas,
Mas tronco tal que os resumia a todos.
Ali sozinho o tronco agigantado
Luxuriava em folhas verde-negras,
Em flores cor de sangue, e na abundância
Sos frutos, como nunca os viu nas matas;
Tão alvos como a flor do mamãozeiro,
De macia penugem debruados.
“Extático de os ver ali tão belos
Tais frutos, que eu algures nunca vira,
O bárbaro dizia, fui colhendo
O melhor, por que o visse de mais perto.
Pesar de não saber se era salubre,
Ansiava gosta-lo, e em fura lida
Lutava o meu desejo co’a prudência.
Venceu aquêle! ai não vencesse nunca!
Nunca, ludibrio não dos meus desejos,
Mordessem-no meus lábios ressequidos.
Conta-lo me arrepia! – Mal o toco,
Força-me a rejeita-lo um quê oculto,
Que os nervos me estremece: a causa inquiro..
Eis que uma cobra, uma coral, de dentro
Desdobra o corpo lúbrico, e em três voltas,
Mas grata armila, me circunda o braço.
Da vista e do contato horrorizado,
Sacudo o estranho ornato; e vão me agito:
Com quanto mais afã tento livrar-me,
Mais apertado o sinto. – Nisto acordo,
Úmido o corpo e fatigado, e a mente
Molesta ainda do combate inglório.
O que é, não sei; tu sabes tudo, ó Piaga
Há e talvez razão que eu não alcanço,
Que certo isto não é sonhar batalhas.”
– “Haja sentido oculto no teu sonho,
(Diz ao guerreiro o piaga) eu, que levanto
O véu do tempo, e aos mortais o mostro.
Dir-to-ei por certo; mas eu creio e tenho
Que algum gênio turbou-te a fantasia,
Talvez angüera de traidor Gamela;
Que os Gamelas são pérfidos em morte,
Como em vida.” – Assim é, diz Itajubá.
Outro sonhou caçadas abundantes,
Temíveis caitetus, pacas ligeiras,
Coatis e jabotins, – te onça e tigres,
Tudo em rimas, em feixes: outro em sonhos
Nada disto enxergou: porém cardumes
De peixes vários, que o timbó prestante
Trazia quase à mão, se não fechados
Em mondes espaçosos! – gáudio imenso!
De os ver ali raivando na estacada
Tão grandes serubins, trauíras tantas,
Ou boiando sem tino à flor da aguas!
Outros não viram nem mondes, nem peixes,
Nem aves, nem quadrúpedes: mas grandes
Samotins transbordando argêntea espuma
Do fervente cauim; e por três noites
Girar em roda a taça do banquete,
Em quanto cada qual memora em cantos
Os feitos próprios: reina o guau, que passa
Destes àqueles com cadencia alterna.
“O piaga exulta! Eu vos auguro, ó bravos
Do herói Timbira (clama entusiasta)
Leda vitória! Nunca em nossas tabas
Haverá de correr melhor folgançã,
Nem ganhareis jamais honra tamanha.
Bem sabeis como é de uso entre os que vencem
Festejar o triunfo: o canto e a dança
Marcham de par, – banquetes se preparam,
E a glória da nação mais alta brilha!
Oh! nunca sobre as tabas de Itajubá
Haverá de nascer mais grata aurora!”
Soam festivos gritos, e as pocemas
Dos guerreiros, que sôfregos escutam
Do piaga os ditos, e o feliz augúrio
Da próxima vitória. Não dissera
Quem quer que fosse estranho aos usos deles
Senão que por aquela densa pinha
De vulgo, se espalhara a fausta nova
De gloriosa ação já consumada,
Que os seus, validos da vitória, obraram.
Entanto Japeguá, posto de parte,
Em quanto lavra em todos o contágio
Da glória e do prazer, – bem claro mostra
No rosto descontente o que medita.
“Prazer que em altos gritos se propala,
Discorre lá consigo o Americano,
“É como a chama rápida correndo
Nas folhas da pindoba: é falso e breve!”
Atenta nele o chefe dos Timbiras,
Como que interno, igual pressentimento
Rejeita, seu mau grado, a voz do piaga.
“Que pensa Japeguá? Acaso em sonhos
Tremendo e torvo se lhe antolha o êxito
Da batalha? ou seja, ou não conosco,
Que tarda em nos dizer seu pensamento?”
“Eu, vi" Japeguá ( e assim dizendo,
Sacode vezes três a fronte adusta,
Onde gravara da prudência o sêlo
Contínuo meditar). “Vi altos combros
De mortos já polutos, – via lagoas
Brutas de sangue impuro e negrejante;
Vi setas e carcaz espedaçados,
Tacapes adentados, ou partidos
Ou já sem fio! – vi...” Eis Catucaba
Mal sofrido intervém, interronpendo
A narração do sonhador de males.
Bravo e hardido como é, nunca a prudência
Lhe foi virtude, nem por tal a aceita.
Nunca o membi guerreiro em seus ouvidos
Troou medonho, inóspito combate,
Que às armas não corresse o valeroso,
Intrépido soldado; mais que tudo
Amava a luta, o sangue, vascas, transes,
Convulsos arrepios, altos gritos
Do vencedor, imprecações sumidas
Do que, vencido, jaz no pó sem glória.
Sim, ama e que o tráfego das armas
Talvez melhor que a si; nem mais risonha
Imagem se lhe antolha, nem há cousa
Que tenha em mais apreço ou mais cubice.
O p’rigo que aventasse era feitiço,
Que em delírio de febre o transtornava.
Fanático de si, ébrio de glória,
Lá se arrojava intrépido e brioso,
Onde pior, onde mais negro o via.
Não eram dois na esquadra de Itajubá
De gênios em mais pontos encontrados:
Por isso em luta sempre. Catucaba,
Fragueiro, inquieto, sempre aventuroso,
Em cata de mais glória e mais renome,
Sempre à mira de encontros arriscados,
Sempre o arco na mão, sempre embebida
Na corda tesa e frecha equilibrada.
Ninguém mais solto em vozes, mais galhardo
No guerreiro desplante, ou que mostrasse
Atrevido e soberbo e forte em campo
Quer pujança maior, que mais orgulho.
Japeguá, corajoso, mas prudente,
Evitava o conflito, via o risco,
Media o seu poder e as posses dele
E o azar da luta e descansava em ócio.
Sua própria indolência revelava
Ânimo grande e não vulgar coragem.
Se fosse lá nos paramos da Líbia,
Deitado à sombra da árvore gigante,
O leão da Numídia bem poderá
Trilhar por junto dele os movediços
Combros da areia, – amedrontando os ares
Com aquele bramir agreste e rudo,
Que as feras sem terror ouvir não sabem.
O índio ouvira impávido o rugido,
Sem que o terror lhe distingisse as faces;
E ao rei dos animais voltando o rosto,
Somente porque mais à jeito o visse,
Viras ambos, sombrios, majestosos,
Contemplarem-se á espaço, destemidos;
D’estranheza o leão os seus rugidos
Na gorja sufocar, e a nobre cauda,
Entre medos e assomos de hardimento,
Mover de leve e irresoluto aos ventos!
Um – era a luz fugaz fácil prendida
Nas plumas do algodão: luz que deslumbra
E que em breve amortece: outro – faísca,
Que surda, pouco a pouco vai lavrando
Não vista e não sentida te que surge
Dum jato só, tornada incêndio e fumo.
“Que viste? diz-lhe o êmulo brioso,
“Só coalheiras de sangue inficionado,
Só tacapes e setas bipartidas,
E corpos já corruptos?! Eia, ó fraco,
Embora em ócio ignavo aqui descanses,
E nos misteres feminis te adestres!
Ninguém te cama à vida dos combates,
Não te almeja ninguém por companheiro,
Nem há-de o sonho teu acobardar-nos.
É certo que haverá mortos sem conto,
Mas não seremos nós; – setas partidas,,
As nossas, não; tacapes amolgados...
Mas os nossos verás mais bem talhantes,
Quando houverem partido imigos crânios.
“Herói, não em façanhas, mas nos ditos
Lidador que a vileza d’alma encobres
Com frases descorteses, – já te viram,
Pendentes braço e armas, contemplando
Os feitos meus, pesar que sou cobarde.
Essa infame tarefa que me incumbes
É minha, sim; mas por diverso modo:
Não ministro cauim às vossas festas;
Mas na refrega o meu trabalho é vosso.
Da batalha no campo achais defuntos,
Vossa glória e brasão, corpos sem conto,
Cujas feridas largas e profundas,
De largas e profundas, denunciam
A mão que as sói fazer com tanto efeito.
Não tenho espaço, onde recolha os ossos,
Não tenho cinto, onde pendure os crânios,
Nem colar onde caibam tantos dentes,
De quantos venci já; por isso inteiros
Lá vo-los deixo, heróis; e vós lá ides,
Em que me não queirais por companheiro,
Rivais dos urubus, fortes guerreiros,
Fácil triunfo conquistar nas trevas,
Aos vorazes tatus roubando a presa.”
Calou-se... e o vulgo rosna em tôrno d’ambos,
Deste ou daquele herói tomando as partes.
Pois quê?... há-de ficar tamanha afronta
Impune, e não haveis levar das armas,
Por que o sangue a desbote e apague inteira?”
Diziam, – e a tais ditos mais fermente
A raiva em ambos; fazem-lhes terreiro,
Já verga o arco, já se entesa a corda,
Já batem pés no solo pulvurento:
Correra o sangue de um, talvez o de ambos,
Que sobre os dois a morte, abrira as asas!
Silêncio! brada o chefe dos Timbiras,
Interposto severo em meio da ambos;
De um lado e outro a turba circunfusa
Emudece, – divide-as largo espaço,
De cujo centro gira os torvos olhos
O herói, e só de olhar lhe estende as raias.
Assim de altivo píncaro descamba
Enorme rocha, obstruindo o leito
De um rio caudaloso: as fundas águas
Latindo envão na rocha volumosa
Separam-se, cavando novos leitos,
Em quanto o antigo se resseca e abras.
Silêncio!disse; e em torno os olhos gira,
Fúlgidos, negros: orgulhosas frontes,
Que aos golpes do tacape não se dobram
Em torno sobre o peito vão caindo
Uma após outra: altivo um só apenas
Rebelde arrosta o olhar! – rápido golpe,
Rápido e forte, como o raio, o prostra
Na arena em sangue! Mosqueado tigre,
Se cai no meio de preás medrosos,
Talvez no primo impulso algum aferra;
Vulgacho imbele! – ao mísero que prende
E torce ainda nas compridas garras,
Longe, sem vida, desdenhoso o arroja.
Assim o herói. Por longo trato mudo
Soberdo e grande alfim mostrando o rio,
Quedou sem mais dizer; o rio ao longe
As águas, como sempre, majestosas
Na gorja das montanhas derramava,
Caudal, imenso. Trás daqueles montes,
Diz Itajubá, não sabeis quem seja?
Afronta e nome vil haja o guerreiro,
Que ousa lutas ferir, travar discórdias,
Quando o imigo boré tão perto soa.”
Acorre o piaga em meio do conflito:
“Prudência, ó filho de Jaguar, exclama;
Nem mais sangue timbira se derrame,
Que já não basta por pagar-nos deste,
Que derramaste, quando houver nas veias
Dos pérfidos Gamelas. O que ouviste,
Que o forte Japeguá diz ter sonhado,
Assela o que tupã me está dizendo
Cá dentro em mim nos decifrados sonhos,
Depois que os funestou propínquo sangue.”
“Devoto piaga (Mojacá prossegue)
Que vida austera e penitente vives
Dos rochedos na Iapa venerada,
Tu, dos gênios do Ibaque bem fadado,
Tu face a face com Tupã praticas
E ves nos sonos meus melhor qu’eu mesmo.
Escuta, e dize, ó venerando piaga
(Benévolo Tupã teus ditos oiça)
Angüera mau turbou-te a fantasia,
Aflito Mojacá, teu sonho mente.”
Palavras tais no índio circunspecto,
Cujos lábios envão nunca se abriram;
Guerreiro, cujos sonhos nunca foram,
Nem mesmo em risco estreito, pavorosos;
No vulgo frio horror vão trescalando,
Que entre a crença do piaga, e a deferência
Devida a tanto herói flutua incerta.
“Eu vi, diz ele, vi em baba imiga
Guerreiro, como vós, comado e hirsuto!
A corda estreita do cruento rito
Os rins lhe aperta? a dura tangapema
Sobre-está-lhe fatal; – cantos se entoam
E a tuba dançatriz em torno gira.
Sono não foi, que o vi, como vos vejo;
Mas não vos direi já quem fosse o triste!
Se vísseis, como eu vi, a fronte altiva,
O olhar soberbo, – aquela força grande,
Aquele riso desdenhoso e fundo...
Talvez um só, nenhum talvez se encontre,
eu seja para estar no passo horrendo
Tão seguro de si, tão descansado!”
Acaso um tronco volumoso e tôsco
De escamas fortes entre si travadas
Ali perto jazia. Ogib, o velho,
Pai do errante Jatir, ali sentou-se.
Ali triste pensava, até que o sonho
Do aflito Mojacá veio acorda-lo.
“Tupã! que mal te fiz, que assim me colha
Do teu furor a seta envenenada?
Com voz choroza e trêmula clamava.
“Escuto os gabos que só cabem nele,
Vejo e conheço o costumado ornato
Do filho meu querido! isto que fora,
A quem tão infeliz como eu não fosse,
Ventura grande, me constringe o peito!
Conheço o filho meu no que disseste,
Guerreiro, como a flor pelo perfume,
Como o esposo conhece a grata esposa
Pelas usadas plumas da araçóia,
Que entre as folhas do bosque a espaços brilha,
Ai! nunca brilhe a flor, se hão de roê-la
Insetos; nunca vague a linda esposa
No bosque, se há de as feras devora-la!”
A dor que mostra o velho em todo o aspecto,
Nas vozes por soluços atalhadas,
Nas lágrimas que chora, os move a todos
A triste compaixão; mas mais àquele,
Que, antes do pobre pai, já todo angústias,
Da própria narração se enternecia.
Às querelas de Ogib volta o rosto
O fatal sonhador, – que, seu mau grado,
As setas da aflição tendo cravado
Nas entranhas de um pai, quer logo o suco,
Fresco e saudável, do louvor, na chaga
Verter-lhe, donde o sangue em jorros salta.
“Tal era, tão impávido (prossegue,
Fitando o velho Ogib o seu desplante,
Qual foi o de Jatir naquele dia,
Quando, novel nas artes do guerreiro,
Circundado se viu à nossa vista
D’imiga multidão: todos o vimos;
Todos da clara estirpe deslembrados,
Clamamos tristes, pávidos: “É morto!”
Ele porém que o arco usar não pode,
O válido tacape desprendendo,
Sacode-o, vibra-o: fere, prostra e mata
A êste, àquele; e em volumosos feixes
Acerva a turba vil, lucrando um nome.
Tapir, caudilho seu, que não suporta
Que um homem só e quase inerme, o cubra
De tamanho labéu, altivo brada:
“Cede-me, estulto, cede ao meu tacape
Que nunca ameaçou ninguém debalde.”
E assim dizendo vibra crebros golpes,
Co a bruta folha retalhando os ares!
Um coiro de tapir, em vez de escudo,
Rijo e piloso lhe guardava os membros.
Jatir, do arco seu curvando as pontas,
Sacode a seta fina e sibilante,
Que vara o couro e o corpo surge for.
Tomba de chofre o índio, e o som da queda
Remata o som que a voz não rematara.
Vista a pel’ do tapir, que o resguardava,
Japi, mesmo Japi lhe inveja o tiro.”
Todo o campo se aflige, todos clamam:
“Jatir! Jatir! o forte entre os mais fortes.”
Ordem não há; mulheres e meninos
Baralham-se em tropel: o pranto, os gritos
Confundem-se: do velho Ogib entanto
Mal se percebe a voz “Jatir” gritando.
Itajubá por fim silêncio impondo
À turba mulheril, e à dos guerreiros
Nesta batalha: “Consultemos, disse,
Consultemos o piaga: às vezes pode
O santo velho, serenando o ibaque,
Amigo bom tornar o Deus malquisto.”
Mas ora não! – responde o piaga iroso.
“Só quando ruge a negra tempestade,
“Só quando a fúria d’Anhangá fuzila
Raios do escuro céu na terra aflita
Do piaga vos lembrais?Tanta lembrança,
Tarda e fatal, guerreiros! Quantas vezes
Não fui, em mesmo, nos terreiros vossos
Fincar o santo maracá? Debalde,
Debalde o fui, que à noite o achava sempre
Sem oferta, que aos Deuses tanto prazem!
Nu e despido o vi, como ora o vedes.
(E assim dizendo mostra o sacrossanto
Mistério, que de irado pareceu-lhes
Soltar mais rouco som no seu rugido)
Quem de vós se lembrou que o santo Piaga
Na lapa dos rochedos se mirrava
Apura míngua? Só Tupã, que ao velho
Deu não sentir os dentes aguçados
Da fome, que por dentro o remordia,
E mais cruel, passada entre os seus filhos!”
Cegou-nos Anhangá, diz Itajubá,
Fincando o maracá nos meus terreiros,
Cegou-nos certo! – nunca o vi sem honras!
Que o vira, bom piaga... oh!não se diga
Que um homem só, dos meus, perece à mingua,
(Quem quer que seja, quanto mais um Piaga_
Quando campeam tantos homens d’arco
Nas tabas de Itajubá, – tantas donas
Na cultura dos campos adestradas.
hoje mesmo farei que ao antro escuro
Caminhem tantos dons, tantas ofertas,
Que o teu santo mistério há de por força,
Quer queiras, quer não, dormir sobre elas!
“Talvez a rica of’renda aplaca os Deuses,
E saudável conselho a noite inspira!”
Disse e sem ais dizer se acolhe à gruta.
À caça, ó meus guerreiros, brada o chefe;
Ledas donzelas ao cauim se apliquem,
Os meninos à pesca, à roça as donas,
Eia!” – Ferve o labor, reina o tumulto,
Que quase tanto val como a alegria,
Ou antes, só prazer que o povo gosta.
Já deslembrados do que ausente choram
Favor das turbas que tão leve passas!
Ledos no peito, ledos na aparência
Todos se incumbem da tarefa usada.
Trabalho no prazer, prazer que moras
Dentro de tanto afã! festa que nasces
Sob auspícios tão maus, possa algum gênio,
Possa Tupã sorrir-te carinhoso,
E das alturas condoer-se amigo
Do triste, órfão de amor, e pai sem filho!