Almanaque Raimundo Floriano
Fundado em 24.09.2016
(Cultural, sem fins comerciais, lucrativos ou financeiros)


Raimundo Floriano de Albuquerque e Silva, Editor deste Almanaque, também conhecido como Velho Fulô, Palhaço Seu Mundinho e Mundico Trazendowski, nascido em Balsas , Maranhão, a 3 de julho de 1936, Católico Apostólico Romano, Contador, Oficial da Reserva do Exército Brasileiro, Funcionário Público aposentado da Câmara dos Deputados, Titular da Cadeira nº 10 da Academia Passa Disco da Música Nordestina, cuja patrona é a cantora Elba Ramalho, Mestre e Fundador da Banda da Capital Federal, Pesquisador da MPB, especializado em Velha Guarda, Música Militar, Carnaval e Forró, Cardeal Fundador da Igreja Sertaneja, Pioneiro de Brasília, Xerife nos Mares do Caribe, Cordelista e Glosador, Amigo do Rio das Balsas, Inventor da Descida de Boia, em julho de 1952, Amigo da Fanfarra do 1° RCG, autor dos livros O Acordo PDS/PTB, coletânea de charges, Sinais de Revisão e Regras de Pontuação, normativo, Do Jumento ao Parlamento, com episódios da vida real, De Balsas para o Mundo, centrado na navegação fluvial Balsas/Oceano Atlântico, Pétalas do Rosa, saga da Família Albuquerque e Silva, Memorial Balsense, dedicado à história de sua terra natal, e Caindo na Gandaia, humorístico apimentado, é casado, tem quatro filhos, uma nora, dois genros e dois netos e reside em Brasília, Distrito Federal, desde dezembro de 1960.

Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 05 de maio de 2024

ORGULHOSA (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)

 

Antônio Gonçalves Dias, nasceu em Aldeias Altas, Caxias (MA), a 10 de agosto de 1823, e faleceu em Guimarães (MA), a 3 de novembro de 1864).

 

Foi poetaadvogadojornalistaetnógrafo e teatrólogo brasileiro. Um grande expoente do romantismo brasileiro e da tradição literária conhecida como "indianismo", é famoso por ter escrito o poema "Canção do Exílio", o curto poema épico I-Juca-Pirama e muitos outros poemas nacionalistas e patrióticos, além de seu segundo mais conhecido poema chamado: Canções de Exílio, que viriam a dar-lhe o título de poeta nacional do Brasil. Foi um ávido pesquisador das línguas indígenas e do folclore brasileiro.

É o patrono da cadeira 15 da Academia Brasileira de Letras.

 

Aos 20 anos de idade, estudava em Lisboa, Porugal e, num baile, convidou certa garota para dançar, ao que ela respondeu:

 

- Não danço plebeu, não danço com pobre!

 

Ao que ele respondeu com poesia abaixo, de improviso.

 

ORGULHOSA

Gonçalves Dias

 

Deixa-te disso, criança

Deixa de orgulho, sossega

Olha que a vida é um oceano

Por onde o acaso navega.

 

Hoje tu ostentas nas salas

As tuas pompas e galas

Os teus brasões de rainha

Amanhã, talvez, quem sabe?

Todo esse orgulho se acabe

Sendo-te a sorte mesquinha.

 

Deixa-te disso, olha bem

A sorte dá nega e vira

Sangue azul, em vós, fidalgos

Já neste século é mentira

 

Todos nós somos iguais

Os grandes, os imortais

Foram plebeus como sou

E ouve mais esta lição

Grande foi Napoleão

Grande foi Victor Hugo

 

Que valem nobres famílias

Linhagens puras de avós

Se o sangue dos reis é o mesmo

É o mesmo que corre em nós?

 

O que é belo, e sempre novo

É ver um filho do povo

Saber lutar e subir

De braços dados com a glória

Para o panteão da história

E as gerações do porvir.

 

De que te vale o que tens

Se não me podes comprar

Ainda que possuísses

Todas as pérolas do mar?

 

És fidalga, eu sou poeta!

Tens dinheiro? Eu, a completa

Riqueza no coração

Não troco uma estrofe minha

Por um colar de rainha

Ou troféus de latão.

 

Ainda há pouco, pedi-te

Para comigo valsar

Disseste és plebeu, és pobre

Não me quiseste aceitar.

 

E, no entanto, ignoras

Que aquele a quem mais adoras

Que te conquista e seduz

Embora seja da nata

Em mera figura chata

És fósforo que não dá luz.

 

Agora, sim, já é tempo

De dizer-te quem sou eu

Um jovem de vinte anos

Que se orgulha em ser plebeu.

Um lutador que não cansa

E que ainda tem esperança

De ser mais do que hoje é

Que luta pelo direito

Pra esmagar o preconceito

Da fidalguia sem fé.

 

Por isso, guardo me olhas

Com desdém e insensatez

Rio-me tanto de ti

Chego a chorar muita vez.

 

Chorar, sim, porque calculo

Nada pode haver mais nulo

Mais degradante e sem sal

Que uma mulher presumida

Toda, vaidosa, atrevida

Soberba, inculta e banal.

 


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 25 de dezembro de 2022

AO ANIVERSÁRIO DE UM CASAMENTO (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)

 

AO ANIVERSÁRIO DE UM CASAMENTO

Gonçalves Dias

 

 

 

 

A MRS. A. N. DA G.

 

 

A filha d’Albion bem vinda seja

 Ao solo brasileiro!

Bem vinda seja às margens florescentes

 Do rio hospitaleiro!

 

Qu’importa que te acene a Pátria ao longe,

 Que vejas incessante

As memória, os templos, os palácios

 Da Cidade gigante?

 

A pátria é conde quer que a vida temos

 Sem penar e sem dor;

Onde rostos amigos nos rodeiam,

 Onde temos amor:

 

Onde vozes amigas nos consolam

 Na nossa desventura,

Onde alguns olhos chorarão doridos

 Na erma sepultura;

 

A pátria é onde a vida temos presa:

 Aqui tão bem há sol!

Tão bem a brisa corre fresca e leve

 Da manhã no arrebol!

 

Aqui tão bem a terra produz flores,

 Tão bem os céus têm cor;

Tão bem murmura o rio, e corre a fonte,

 E os astros tem fulgor!

 

Aqui tão bem se arrelva o prado, o monte,

 De mimoso tapiz;

Nas asas do silêncio desce a noite

 Tão bem sobre o infeliz!

 

A filha d’Albion bem vinda seja

 Ao solo brasileiro;

Bem vinda seja às margens florescentes

 Do Rio hospitaleiro!

 

Compridos anos e folgados viva

 Neste ditoso clima,

E veja à par dos filhos seus queridos

 Crescer do esposo a estima!

 

Possa eu tão bem do seu feliz consórcio

 De novo em cada ano

Soltar um hino de amizade estreme,

 Um canto mais que humano!


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 18 de dezembro de 2022

QUEIXUMES (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)

 

QUEIXUMES

Gonçalves Dias

 

 

 I

 

Onde estás, meu senhor, meus amores?

A que terras – tão longes! – fugiste?

Onde agora teus dias se escoam?

Por que foi que de mim te partiste?

 

   II

 

Não te lembras! Quando eu te rogava

Não te fosses de mim tão asinha,

Prometeste-me breve ser minha

Tua vida, que o mar me roubava.

 

   III

 

Tão amigo do mar foste sempre,

Por que amigos talvez não achaste!

Nem carinhos, nem prantos te ameigam?

Nem por mim, que te amava, o deixaste?

 

   IV

 

Vejo além o lugar onde estava

Tua esbelta fragata ancorada,

Mal sofrida jogando afagada

Do galerno que amigo a chamava.

 

   V

 

Da partida era o fúnebre instante,

Breve instante de aflitos terrores,

Quando o mar traiçoeiro, inconstante,

Me roubava meus puros amores!

 

   VI

 

Inda choro essa noite medonha,

Longa noite de má despedida!

Teu amor me deixaste nos braços,

Nos teus braços levaste-me a vida!

 

   VII

 

Oh! Cruel, que então foste comigo,

Que te hei feito que punes-me assim?

Teu navio que tantos levava,

Não podia levar mais a mim?

 

   VIII

 

Mas a mim! – que importava que eu fosse?

Não me ouvira a tormenta chorar,

E morrer me seria mais doce

Junto a ti, -  que o meu triste penar!

 

   IX

 

Junto a ti me era a vida bem cara,

Oh! Bem cara! – se ledo sorrias,

Se pensavas sozinho e profundo,

Se agras dores contigo curtias;

 

   X

 

Eu te amava, senhor! – Nem podia,

Dentro em mim, convencer-me que fosse

Outra vida melhor, nem mais doce,

Nem que o amor se acabasse algum dia!

 

   XI

 

Mas o mar tem lindezas que encantam,

Tem lindezas, que o nauta namora,

Tão bem dizem que vozes descantam

No silêncio pacato desta hora!

 

   XII

 

São de ninfas os mares pejados,

Tão bem dizem que sabem magia,

Que suscitam cruel calmaria,

Só d’em torno dos seus namorados!

 

   XIII

 

Alta noite, bem perto, aparece,

Como leiva juncada de flores,

Ilha fértil em fáceis amores,

Onde o nauta da vida se esquece!

 

   XIV

 

Não te esqueças de mim! – Por Sevilha

 Quando o peito de branco marfim

Perceberes na preta mantilha,

Sombreado por leve carmim;

 

   XV

 

Quando vires passar a Andaluza

Pelos montes, com ar majestoso,

Decantando nas modas de que usa

As loucuras do Cid amoroso;

 

   XVI

 

Quando vires a mole Odalisca

De beleza e de extremos fadada,

Respirando perfumes da Arábia,

Em sericos tapizes deitada;

 

   XVII

 

Quando a vires co’a fronte bem cheia

De riquezas, de graças ornada,

Pelo andar do elefante embalada,

Que alta escolta de eunucos rodeia;

 

   XVIII

 

Quando vires a Grega vagando

Pelas Ilhas de Cós ou Megara,

Em sua língua, tão doce, cantando

Seus amores que o Turco roubara;

 

   XIX

 

Quando a vires no Carro de Homero,

Bela e grave e sisuda lavrando,

Pelos montes melífluos do Himeto

A parelha de bois aguilhando;

 

   XX

 

Não te esqueçam meus duros pesares,

Não te esqueças por elas de mim,

Não te esqueças de mim pelos mares,

Não me esqueças na terra por fim!

 

   XXI

 

Se eu fosse homem, tão bem desejara

Percorrer estes campos de prata,

E este mundo, na tua fragata,

Co’uma esteira cingir d’onda amara.

 

   XXII

 

Qu’ria ver a andorinha coitada

Nos meus mastros fugida pousar,

E achar no convés abrigada,

Quando o vento começa a reinar!

 

   XXIII

 

Ver o mar de toninhas coberto,

Ver milhares de peixes brincar,

Ver a vida nesse amplo deserto

Mais valente, mais forte pular!

 

   _______________

 

Oh! Que o homem fosse eu, mulher tu fosses,

Ou fosse tempestade ou calmaria,

Ou fosse mar ou terra, Espanha o Grécia,

Só de ti, só de ti me lembraria!

 

O mar suas ondas inconstante volve,

Sem que o seu curso o mesmo rumo leve,

Assim dos homens a paixão se move,

Falaz e vária, assim no peito ferve!

 

Meditados enganos sempre encobre

O mesmo que ao princípio ardente amava;

Oxalá não diga eu que me enganava,

Que teu peito julguei constante e nobre!

 

Oh! Que o homem fosse eu, mulher tu fosses,

Ou fosse tempestade ou calmaria,

Ou fosse mar ou terra, Espanha o Grécia,

Só de ti, só de ti me lembraria!

 


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 04 de dezembro de 2022

PALINÓDIA (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)

 

PALINÓDIA

Gonçalves Dias

 

 

Se só por vós, Senhora, corpo e alma,
Apesar da aversão que tenho ao crime,
Inteiro me embucei nos seus andrajos,
Em tremedal de vícios;

Se só por vós descri do que era nobre,
Porque envolto em torpeza imunda e feia,
As vestes da virtude imaculada
Rebolquei-as no lodo;

Se só por vós persegue-me o remorso,
Que os dias da existência me consome,
E entre angústias cruéis minha alma anseia,
— Ludíbrio dos meus erros:

Consenti que a moral os seus direitos
Reivindique uma vez, e que a minha alma
Das lições que bebeu na pura infância
Uma hora se recorde!

Agora, agro censor, hão de os meus lábios,
Duras verdades trovejando em verso,
Fazer de vós, o que a razão não pôde,
— Mulher ou estátua!

Mentistes quando amor tínheis nos lábios.
Mentistes a compor meigos sorrisos,
Mentistes no olhar, na voz, no gesto...
Fostes bem falsa!...

Falsa, como a mulher que em bruta orgia
Finge extremos de amor que ela não sente,
E o rosto of’rece a ósculos vendidos,
Ao sigilo de infâmia.

Quantas vezes, Senhora, não caístes
Humilhada, a meus pés, desfeita em pranto,
Chorando — e que choráveis? — a jurar-me...
— Que juráveis então?

Se pois sentisses compaixão amiga
A cair gota a gota dos meus lábios
No que eu supunha cicatriz recente,
e que era úlcera funda;

Se me vistes os olhos incendidos,
Sangrar-me o coração no peito aflito
Ao fel das vossas dores, que azedáveis
Co'o pranto refalsado:

Ouvi! — não éreis bela, — nem minha alma
Vos amou, que um modelo de virtudes,
— Um sublime ideal — amou somente;
Vós o não fostes nunca.

Que uma alma como a vossa, já manchada,
Aos negros vícios mais que muito afeita,
Já feia, já corrupta, já sem brilho...
Amá-la eu, Senhora!

Deitar-me sob a copa traiçoeira,
Que ao longe espalha a sombra, o engano, a morte;
Recostar-me no seio onde outros dormem,
Que por ninguém palpita!

Beijar faces sem vida, onde se enxerga
Visgo nojento d'ósculos comprados;
Crer no que dizem olhos mentirosos,
Em prantos de loureira!

Antes curvar o colo envilecido
Ao jugo vil da escravidão nefanda;
Beijar humilde a mão que nos ofende,
Que nos cobre de opróbio!

Antes, possesso d'imprudência estúpida,
Brincando remexer no açafate,
Onde por baixo de mimosas flores,
O áspide se esconde!

Mas eu, nos meus acessos de delírio,
Voz importuna de contínuo ouvia,
Cá dentro em mim, a repr'ender-me sempre
De vos amar... tão pouco!

Assim o cego idólatra se culpa,
Nos espasmos d'ascética virtude,
De não amar assaz o vão fantasma,
De suas mãos feitura.

Porém se luz melhor de cima o aclara,
Cospe afronte e desdém, e à chama entrega
O cepo vil, que não merece altares,
Nem d'ofrendas é digno!

Releva-se a imprudência feminina,
Inda um erro, uma culpa se perdoa,
Se a desvaira a paixão, se amor a cega
No mar de escolhos cheio.

O Deus, que mais perdoa a quem mais ama,
Talvez da vida a negra mancha apaga
A quem as asas de algum anjo orvalha
De lágrimas contritas.

Mas não àquela, em cesto peito mora
Torpeza só, — onde o amor se cobre
De vícios — a nutrir-se d'impurezas,
Como vermes de lodo.

Se porém te aproveita o meu conselho,
A quem, mais do que a mim, tens ofendido,
Que entre os risos do mundo, vê tua alma
E lê teus pensamentos;

Se não crês noutra vida além da morte,
Roga sequer a Deus, que te rompa
A luz do sol divino da Justiça
A máscara d'enganos!

Que a rainha da terra inamolgável,
— A dura opinião — te não entregue,
Sozinha, e nua, e d'irrisão coberta,
À popular vindita!


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 27 de novembro de 2022

SOLIDÃO (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS) - VÍDEO

Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 20 de novembro de 2022

AS DUAS AMIGAS (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)

AS DUAS AMIGAS

Gonçalves Dias

 

 

Já vistes sobre a flor de manso lago

Duas aves brincando solitárias,

Já pousadas na lisa superfície,

 Já levantando vôo?

 

Já vistes duas nuvens no horizonte,

Brancas, orladas com listões de fogo,

A deslumbrante alvura cambiando

 Ao pôr de sol estivo?

 

Já vistes duas lindas mariposas,

Abrindo ao romper d’alva as longas asas,

Onde reflete o sol, como em um prisma,

 Belas, garridas cores?

 

Nem as pombas que vagam solitárias,

Nem as nuvens do ocaso, nem as vagas

Borboletas gentis que adejam livres

 Em vale ajardinado:

 

Tanto não prazem, como doces virgens,

Airosas, belas, com sorrir singelo,

Da vida negra e má duros abrolhos

 Impróvidas calcando.

 

Quanto há no mundo d’ilusões fagueiras,

De perfume e de amor, guardam no peito,

Quanto há de luz no céu mostram nos olhos,

 Quanto há de belo – n’alma.

 

Como um jardim seu coração se mostra,

Seus olhos como um lago transparente,

Sua alma como uma harpa harmoniosa,

 Seu peito como um templo!

 

Mas um fraco arruído espanta as aves,

Uma brisa ligeira as nuvens rasga,

E uma gota de orvalho ensopa as asas

 Das leves mariposas.

 

Desgarrdas voando as aves fogem,

Dos castelos dos céus perdem-se as nuvens,

Nem mais adejam borboletas vagas

 Sobre o esmalte das flores.

 

Pois quem resiste ao perpassar do tempo?

Depois que derramou grato perfume

Sobre as asas dos ventos que a bafejam,

 A flor também definha.

 

Mas um nobre sentir que se enraíza

No peito da mulher, que menos ame,

É como essência preciosa e grata,

 Que se lacrou num vaso.

 

Repassa-o: depois embora o esgotem,

Leves emanações, gratos eflúvios

Há de eterno verter da mesma essência,

 Talvez porém mais doces.


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 13 de novembro de 2022

MIMOSA E BELA (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)

 

MIMOSA E BELA

Gonçalves Dias

 

   I

 

Tão bela és, tão mimosa,

 Qual viçosa

 Fresca rosa,

Que em serena madrugada

 Despontada,

 Rorejada

Foi pelo orvalho do céu;

E a aurora que tudo esmalta,

Brilha reflexos de prata

No orvalho que ali prendeu.

 

   II

 

Quando um penar aflitivo,

 Sem motivo,

 D’improviso

Tua alma ocupa e entristece,

 Que padece,

 Que esmorece

Com aquele imaginar;

Aumenta a tua beleza

Lânguido véu de tristeza,

Palor de quem sabe amar.

 

   III

 

Assim murcha a sensitiva,

 Sempre viva,

 Sempre esquiva;

Assim perde o colorido

Por um toque irrefletido

 Mal sentido:

Assim vai o nenúfar,

Como que sofre e tem mágoas,

Esconder-se em fundas águas,

Te que o sol torne a brilhar.

 

   IV

 

Mas também a flor brincada,

 Perfumada,

 Debruçada

Sobre a tranqüila corrente,

 Logo sente

 Vir a enchente

Longe, longe a rouquejar,

Que a pobrezinha desfolha,

Sem lhe deixar uma folha,

Sem deixa-la em seu lugar.

 

   V

 

Não consintas pois que as mágoas,

 Como as águas,

 Que das fragas

Furiosas vêm tombando,

 Vão tomando,

 Vão levando

A flor do teu coração!

Há na vida u’amor somente,

Um só amor inocente,

Uma só firme paixão.

 

   VI

 

Sê antes flor, bem-fadada,

 Suspirada,

 Bafejada

Pela brisa que a namora,

Pela frescura da aurora,

 Que a colora:

À luz do sol se recreia.

E de noite se retrata

Da fonte na lisa prata,

Quando o céu de luz se arreia.


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 06 de novembro de 2022

SEMPRE ELA (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)

 

SEMPRE ELA

Gonçalves Dias


Eu amo a doce virgem pensativa,
Em cujo rosto a palidez se pinta,
Como nos céus a matutina estrela!
A dor lhe há desbotado a cor das faces,
E o sorriso que lhe roça os lábios
Murcha ledo sorrir nos lábios doutrem.

Tem um timbre de voz que n'alma ecoa,
Tem expressões d'angélica doçura,
E a mente do que as ouve, se perfuma
De amor profundo e de piedade santa,
E exala eflúvios dum odor suave
De aloés, de mirra ou de mais grato incenso.

E nessas horas, quando a mente aflita,
De dor oculta remordida, anseia
Desabrochar-se em confidência amiga,
"Neste mundo o que sou? — triste clamava;
"Pérsica envolta em pó, entre ruínas,
"Erma e sozinha a resolver-me em pranto!

"Flor desbotada em hástea já roída,
"De cujo tronco as outras amarelas
"Já rojam sobre o pó, já murchas pendem!
"É sentir e sofrer a minha vida!"
Merencória dizia, erguendo os olhos
Aos céus dum claro azul, que lhes sorriam.

Nada o mudo alcion por sobre os mares,
E próximo a seu fim desata o canto;
A rosa do Sarão lá se despenha
Nas águas do Jordão: e como a rosa,
Como o cisne, do mar entre os perfumes,
Aos sons duma Harpa interna ela morria!

E como o partor que avista a linda rosa
Nas águas da corrente, e como o nauta
Que vê, que escuta o cisne ir-se embalado
Sobre as águas do mar, cantando a morte;
Eu também a segui — a rosa, o cisne,
Que lá se foi sumir por clima estranho.

E depois que os meus olhos a perderam,
Como se perde a estrela em céus infindos,
Errei por sobre as ondas do oceano,
Sentei-me à sombra das florestas virgens,
Procurando apagar a imagem dela,
Que tão inteira me ficara n'alma!

Embalde aos céus erguendo os olhos turvos
Meu astro procurei entre os mais astros,
Qu'outrora amiga sina me fadara!
Com brilho embaciado e lua incerta
Nos ares se perdeu antes do ocaso,
Deixando-me sem norte em mar d'angústias.


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 30 de outubro de 2022

O AMOR (POEMA DO MARANHENSE GOÇALVES DIAS)

O AMOR

Gonçalves Dias

 

Amor! enlevo d'alma, arroubo, encanto
Desta existência mísera, onde existes?
Fino sentir ou mágico transporte,
(O quer que seja que nos leva a extremos,
Aos quais não basta a natureza humana;)
Simpática atração d'almas sinceras
Que unidas pelo amor, no amor se apuram,
Por quem suspiro, serás nome apenas?

A inútil chama ressecou meus lábios,
Mirrou-me o coração da vida em meio,
E à terra fez baixar a mente errada
Que entre nuvens, amor, por ti bradava!
Não te pude encontrar! — em vão meus anos
No louco intento esperdicei; gelados,
Uns após outros a cair precípites
Na urna do passado os vi; eu triste,
Amor, por ti clamava; — e o meu deserto
Aos meus acentos reboava embalde.

Em vão meu coração por ti se fina,
Em vão minha alma te compreende e busca,
Em vão meus lábios sôfregos cobiçam
Libar a taça que aos mortais of’reces!
Dizem-na funda, inesgotável, meiga;
Enquanto a vejo rasa, amarga e dura!
Dizem-na bálsamo, eu veneno a sorvo:
Prazer, doçura, — eu dor e fel encontro!

Dobrei-me às duras leis que me impuseste,
Curvei ao jugo teu meu colo humilde,
Feri-me aos teus ardentes passadores,
Prendi-me aos teus grilhões, rojei por terra...
E o lucro?... foram lágrimas perdidas,
Foi roxa cicatriz qu'inda conservo,
Desbotada a ilusão e a vida exausta!

Celeste emanação, gratos eflúvios
Das roseiras do céu; bater macio
Das asas auribrancas dalgum anjo,
Que roça em noite amiga a nossa esfera,
Centelha e luz do sol que nunca morre;
És tudo, e mais qu'isto: — és luz e vida,
Perfume, e vôo d'anjo mal sentido,
Peregrinas essências trescalando!...
Também passas veloz, — breve te apagas,
Como duma ave a sombra fugitiva,
Desgarrada voando à flor de um lago!


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 23 de outubro de 2022

ROSA DO MAR (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)

 

ROSA DO MAR

Gonçalves Dias

 


Por uma praia arenosa,
Vagarosa
Divagava uma Donzela;
Dá largas ao pensamento.
Brinca o vento
Nos soltos cabelos dela.

Leve ruga no semblante 
Vem num instante,
Que noutro instante se alisa; 
Mais veloz que a sua idéia 
Não volteia,
Não gira, não foge a brisa.

No virginal devaneio
Arfa o seio,
Pranto ao riso se mistura; 
Doce rir dos céus encanto,
Leve pranto,
Que amargo não é, nem dura.

Nesse lugar solitário, 
— Seu fadário. —
De ver o mar se recreia;
De o ver, à tarde, dormente,
Docemente
Suspirar na branca areia.

Agora, qual sempre usava,
Divagava
Em seu pensar embebida;
Tinha no seio uma rosa
Melindrosa,
De verde musgo vestida.

Ia a virgem descuidosa,
Quando a rosa
Do seio no chão lhe cai: 
Vem um'onda bonançosa,
Qu’impiedosa
A flor consigo retrai.

A meiga flor sobrenada;
De agastada,
A virge' a não quer deixar! 
Bóia a flor; a virgem bela,
Vai trás ela,
Rente, rente — à beira-mar.

Vem a onda bonançosa,
Vem a rosa;
Foge a onda, a flor também. 
Se a onda foge, a donzela 
Vai sobre ela!
Mas foge, se a onda vem.

Muitas vezes enganada,
De enfadada
Não quer deixar de insistir;
Das vagas menos se espanta,
Nem com tanta
Presteza lhes quer fugir.

Nisto o mar que se encapela
A virgem bela
Recolhe e leva consigo;
Tão falaz em calmaria,
Como a fria
Polidez de um falso amigo.

Nas águas alguns instantes,
Flutuantes
Nadaram brancos vestidos:
Logo o mar todo bonança,
A praia cansa
Com monótonos latidos.

Um doce nome querido
Foi ouvido,
Ia a noite em mais de meia:
Toda a praia perlustraram,
Nem acharam
Mais que a flor na branca areia.

Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 16 de outubro de 2022

A CONCHA E A VIRGEM (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)

 

A CONCHA E A VIRGEM

Gonçalves Dias

 

Linda concha que passava,
Boiando por sobre o mar,
Junto a uma rocha, onde estava
Triste donzela a pensar,

Perguntou-lhe: — "Virgem bela,
Que fazes no teu cismar?"
— "E tu", pergunta a donzela,
"Que fazes no teu vagar?"

Responde a concha: — "Formada
Por estas águas do mar,
Sou pelas águas levada,
Nem sei onde vou parar!"

Responde a virgem sentida,
Que estava triste a pensar:
— "Eu também vago na vida,
Como tu vagas no mar!

"Vais duma a outra das vagas,
Eu dum a outro cismar;
Tu indolente divagas,
Eu sofro triste a cantar.

"Vais aonde te leva a sorte,
Eu, aonde me leva Deus:
Buscas a vida, — eu a morte;
Buscas a terra, — eu os céus!


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 09 de outubro de 2022

AGORA E SEMPRE (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS) VÍDEO
 

Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 02 de outubro de 2022

LIRA (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)

 

LIRA

Gonçalves Dias

 

Se me queres a teus pés ajoelhado,
Ufano de me ver por ti rendido,
Ou já em mudas lágrimas banhado;
Volve, impiedosa,
Volve-me os olhos;
Basta uma vez!

Se me queres de rojo sobre a terra,
Beijando a fímbria dos vestidos teus,
Calando as queixas que meu peito encerra,
Dize-me, ingrata,
Dize-me: eu quero!
Basta uma vez!

Mas se antes folgas de me ouvir na lira
Louvor singelo dos amores meus,
Por que minha alma há tanto em vão suspira;
Dize-me, ó bela
Dize-me: eu te amo!
Basta uma vez!


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 25 de setembro de 2022

CANÇÃO (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)

 

 

CANÇÃO

Gonçalves Dias

 


Tenho uma harpa religiosa,
Toda inteira fabricada
De madeira preciosa
Sobre o Líbano cortada.
Foi o Senhor quem me deu,
De santas palmas coberta,
Que as notas suas concerta
Aos sons do saltério hebreu!

Tenho alaúde polido
Em que antigos Trovadores,
Em tom de guerra atrevido,
Cantavam trovas de amores.
Mas chegando a Santa Cruz,
De volta do meu desterro,
Cortei-lhe as cordas de ferro,
Cordas de prata lhe pus.

Tenho também uma lira
De festões engrinaldada,
Onde minha alma afinada
Melindres d'amor suspira.
Nas grinaldas, nos festões,
Nas rosas com que s'enflora,
Goteja o orvalho da aurora
Dictamo dos corações.

Eis o que tenho, ó Donzela,
Só harpa, alaúde e lira;
Nem vejo sorte mais bela,
Nem coisa que lhe eu prefira.
Votei assim ao meu Deus
A minha harpa religiosa,
A ti a lira mimosa,
O grave alaúde aos meus!


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 18 de setembro de 2022

CONSOLAÇÃO NAS LÁGRIMAS (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)

 

CONSOLAÇÃO NAS LÁGRIMAS

Gonçalves Dias

 

 

Como é belo à meia noite
O azul do céu transparente,
Quando a esfera d’alva lua
Vagueia mui docemente,
Quando a terra não ruidosa
Toda se cala dormente,
Quando o mar tranquilo e brando
Na areia chora fremente!

Como é belo este silêncio
Da terra todo harmonia,
Que aos céus a mente arrebata
Cheia de meiga poesia!
Como é bela a luz que brilha
Do mar na viva ardentia!
Este pranto como é doce,
Que entorna a melancolia!

Esta aragem como é branda
Que enruga a face do mar,
Que na terra passa e morre
Sem nas folhas sussurrar!
Os sons d’aéreo instrumento
Quisera agora escutar,
Quisera mágoas pungentes
Neste silêncio olvidar!

O azul do céu, nem da lua
A doce luz refletida,
Nem o mar beijando a praia,
Nem a terra adormecida,
Nem meigos sons, nem perfumes,
Nem a brisa mal sentida,
Nem quanto agrada e deleita,
Nem quanto embeleza a vida;

Nada é melhor que este pranto
Em silêncio gotejado,
Meigo e doce, e pouco e pouco
Do coração despegado;
Não soro de fel, mas santo
Frescor em peito chagado;
Não espremido entre dores,
Mas quase em prazer coado!


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 11 de setembro de 2022

SOFRIMENTO (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)

 

SOFRIMENTO

Gonçalves Dias

 

Meu Deus, Senhor meu Deus, o que há no mundo
Que não seja sofrer?
O homem nasce, e vive um só instante,
E sofre até morrer!

A flor ao menos, nesse breve espaço
Do seu doce viver,
Encanta os ares com celeste aroma,
Querida até morrer.

É breve o romper d'alva, mas ao menos
Traz consigo prazer;
E o homem nasce e vive um só instante:
E sofre até morrer!

Meu peito de gemer já está cansado,
Meus olhos de chorar;
E eu sofro ainda, e já não posso alivio
Sequer no pranto achar!

Já farto de viver, em meia vida,
Quebrado pela dor,
Meus anos hei passado, uns após outros,
Sem paz e sem amor.

O amor que eu tanto amava do imo peito,
Que nunca pude achar,
Que embalde procurei, na flor, na planta,
No prado, e terra, e mar!

E agora o que sou eu? — Pálido espectro,
Que da campa fugiu;
Flor ceifada em botão; imagem triste
De um ente que existiu...

Não escutes, meu Deus, esta blasfêmia;
Perdão, Senhor, perdão!
Minha alma sinto ainda, — sinto, escuto
Bater-me o coração.

Quando roja meu corpo sobre a terra,
Quando me aflige a dor,
Minha alma aos céus se eleva, como o incenso,
Como o aroma da flor.

E eu bendigo o teu nome eterno e santo,
Bendigo a minha dor,
Que vai além da terra aos céus infindos
Prender-me ao criador.

Bendigo o nome teu, que uma outra vida
Me fez descortinar,
Uma outra vida, onde não há só trevas,
E nem há só penar.


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 04 de setembro de 2022

EPICÉDIO (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)

 

EPICÉDIO

Gonçalves Dias

 

Seu rosto pálido e belo
Já não tem vida nem cor!
Sobre ele a morte descansa,
Envolta em baço palor.

Cerraram-se olhos tão puros,
Que tinham tanto fulgor;
Coração que tanto amava
Já hoje não sente amor;

Que o anjo belo da morte
A par desse anjo baixou!
Trocaram brandas palavras,
Que Deus somente escutou.

Ventura, prazer, ledice
Duma outra vida contou;
E o anjo puro da terra
Prazer da terra enjeitou.

Depois co'as asas candentes
O formoso anjo do céu
Roçou-lhe a face mimosa,
Cobriu-lhe o rosto co'um véu.

Depois o corpo engraçado
Deixou à terra sem vida,
De tênue palor coberto,
- Verniz de estátua esquecida.

E bela assim, como um lírio
Murcho da sesta ao ardor,
Teve a inocência dos anjos,
Tendo o viver duma flor.

Foi breve! - mas a desgraça
A testa não lhe enrugou,
E aos pés do Deus que a crIara
Alma inda virgem levou.

Sai da larva a borboleta,
Sai da rocha o diamante,
De um cadáver mudo e frio
Sai uma alma radiante.

Não choremos essa morte,
Não choremos casos tais;
Quando a terra perde um justo,
Conta um anjo o céu de mais.


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 28 de agosto de 2022

DELÍRIO (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)

 

DELÍRIO

Gonçalves Dias

 

 

A noite quando durmo, esclarecendo
As trevas do meu sono,
Uma etérea visão vem assentar-se
Junto ao meu leito aflito!
Anjo ou mulher? não sei. - Ah! se não fosse
Um qual véu transparente,
Como que a alma pura ali se pinta
Ao través do semblante,
Eu a crera mulher... - E tentas, louco,
Recordar o passado,
Transformando o prazer, que desfrutaste,
Em lentas agonias?!

Visão, fatal visão, por que derramas
Sobre o meu rosto pálido
A luz de um longo olhar, que amor exprime
E pede compaixão?
Por que teu coração exala uns fundos,
Magoados suspiros,
Que eu não escuto, mas que vejo e sinto
Nos teus lábios morrer?
Por que esse gesto e mórbida postura
De macerado espírito,
Que vive entre aflições, que já nem sabe
Desfrutar um prazer?

Tu falas! tu que dizes? este acento,
Esta voz melindrosa,
Noutros tempos ouvi, porém mais leda;
Era um hino d'amor.
A voz, que escuto, é magoada e triste,
- Harmonia celeste,
Que à noite vem nas asas do silêncio
Umedecer as faces
Do que enxerga outra vida além das nuvens.
Esta voz não é sua;
É acorde talvez d'harpa celeste,
Caído sobre a terra!

Balbucias uns sons, que eu mal percebo,
Doridos, compassados,
Fracos, mais fracos; - lágrimas despontam
Nos teus olhos brilhantes...
Choras! tu choras!... Para mim teus braços
Por força irresistível
Estendem-se, procuram-me; procuro-te
Em delírio afanoso.
Fatídico poder entre nós ambos
Ergueu alta barreira;
Ele te enlaça e prende... mal resistes...
Cedes enfim. . . acordo!

Acordo do meu sonho tormentoso,
E choro o meu sonhar!
E fecho os olhos, e de novo intento
O sonho reatar.
Embalde! porque a vida me tem preso;
E eu sou escravo seu!
Acordado ou dormindo, é triste a vida
Dês que o amor se perdeu.
Há contudo prazer em nos lembrarmos
Da passada ventura,
Como o que educa flores vicejantes
Em triste sepultura.


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 21 de agosto de 2022

AMOR! DELÍRIO – ENGANO... (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)
AMOR! DELÍRIO – ENGANO...

Gonçalves Dias

 

 

Amor! delirio — engano... Sobre a terra
Amor tão bem fruí; a vida inteira
Concentrei n’um só ponto — ama-la, e sempre.
Amei! — dedicação, ternura, extremos
Scismou meo coração, scismou minha alma,
— Minha alma que na taça da ventura
Vida breve d’amor sorveo gostosa.
Eu e ella, ambos nós, na terra ingrata
Oásis, paraiso, eden ou templo
Habitámos uma hora; e logo o tempo
Com a foice roaz quebrou-lhe o encanto,
Doce encanto que o amor nos fabricára.

E eu sempre a via!.. quer nas nuvens d’oiro,
Quando ia o sol nas vagas sepultar-se,
Ou quer na branca nuvem que velava
O circulo da lua, — quer no manto
D’alvacenta neblina que baixava
Sobre as folhas do bosque, muda e grave,
Da tarde no cahir; nos céos, na terra,
A ella, a ella só, vião meos olhos.

Seo nome, sua voz — ouvia eu sempre;
Ouvia-os no gemer da parda rola,
No trepido correr da veia argentea,
No respirar da brisa, no susurro.
Do arvoredo frondoso, na harmonia
Dos astros ineffavel; — o seo nome!
Nos fugitivos sons de alguma frauta,
Que da noite o silencio realçavão,
Os ares e a amplidão divinisando,
Ouvião meos ouvidos; e de ouvil-o
Arfava de prazer meo peito ardente.

 

Ah! quantas vezes, quantas; junto d’ella
Não senti sua mão tremer na minha;
Não lhe escutei um languido suspiro,
Que vinha lá do peito á flor dos labios
Deslisar-se e morrer?! Dos seos cabellos
A magica fragrancia respirando,
Escutando-lhe a voz doce e pausada,
Mil venturas colhi dos labios d’ella,
Que instantes de prazer me futuravão.
Cada sorriso seo era uma esp’rança,
E cada esp’rança enlouquecer de amores.
E eu amei tanto! — Oh! não! não hão de os homens
Saber que amor, á ingrata, havia eu dado;
Que affectos melindrosos, que em meo peito
Tinha eu guardado para ornar-lhe a fronte!
Oh! não, — morra commigo o meo segredo;
Rebelde o coração murmure embora.

Que de vezes, pensando a sós commigo,
Não disse eu entre mim: — Anjo formoso,
Da minha vida que farei, se acaso
Faltar-me o teo amor um só instante;
— Eu que só vivo por te amar, que apenas
O que sinto por ti a custo exprimo?
No mundo que farei, como estrangeiro
Pelas vagas crueis â praia inhóspita
Exanime arrojado? — Eu, que isto disse,
Existo e penso — e não morri, — não morro
Do que outr’ora senti, do que ora sinto,
De pensar nella, de a revêr em sonhos,
Do que fui, do que sou e ser podia!

Existo; e ella de mim jaz esquecida!
Esquecida talvez de amor tamanho,
Derramando talvez n’outros ouvidos
Frases doces de amor, que dos seos labios
Tantas vezes ouvi, — que tantas vezes
Em extasis divino aos céos me alçárão,

— Que dando á terra ingrata o que era terra
Minha alma além das nuvens transportárão.
Existo! como outr’ora, no meo peito
Férvido o coração pular sentindo,
Todo o fogo da vida derramando
Em queixas mulheris, em molles versos.
E ella!... ella talvez nos braços d’outrem
Com sua vida alimenta uma outra vida,
Com o seo coração o de outro amante,
Que mais feliz do que eu, inferno! a goza.
Ella, que eu respeitei, que eu venerava
Como a reliquia sancta! — a quem meus olhos,
Receiando offendel-a, tantas vezes
De castos e de humildes se abaixárão!
Ella, perante quem sentia eu presa
A voz nos labios e a paixão no peito!
Ella, idolo meo, a quem o orgulho,
A força d’homem, o sentir, vontade
Propria e minha dediquei, — sugeita
Á voz de alguem que não sou eu, — desperta,
Talvez no instante em que de mim se lembra,
Por um osculo frio, por caricias
Devidas d’um esposo!...
                     Oh! não poder-te,
Abutre roedor, cruel ciume,
Tua funda raiz e a imagem d’ella
No peito em sangue espedaçar raivoso!

Mas tu, cruel, que es meo rival, n’uma hora,
Em que ella só julgar-se, has de escutar-lhe
Um quebrado suspiro do imo peito,
Que d’éras ja passadas se recorda.
Has de escutal-o, e ver-lhe a côr do rosto
Enrubecer-se ao deparar comtigo!
Preza serás tambem d’atros cuidados,
Terás ciume, e soffrerás qual soffro:
Nem menor que o meo mal quero a vingança.


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 14 de agosto de 2022

O TROVADOR (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)
O TROVADOR

Gonçalves Dias

 

 

Numa terra antigamente
Existia um Trovador;
Na Lira sua inocente
Só cantava o seu amor.

Nenhum sarau se acabava
Sem a Lira de marfim,
Pois cantar tão alto e doce
Nunca alguém ouvira assim.

E quer donzela, quer dona,
Que sentira comoção
Pular-lhe n'alma, escutando
Do Trovador a canção;

De jasmins e de açucenas
A fronte sua adornou;
Mas só a rosa da amada
Na Lira amante poisou.

E o Trovador conheceu
Que era traído - por fim;
Pôs-se a andar, e só se ouvia
Nos seus lábios: ai de mim!

Enlutou de negro fumo
A rosa de seu amor,
Que meia oculta se via
Na gorra do Trovador;

Como virgem bela, morta
Da idade na linda flor,
Que parece, o dó trajando,
Inda sorrir-se de amor.

No meio do seu caminho
Gentil donzela encontrou:
Canta - disse; e as cordas d'oiro
Vibrando, o triste cantou.

"Teu rosto engraçado e belo
"Tem a lindeza da flor;
"Mas é risonho o teu rosto:.
"Não tens de sentir amor!

"Mas tão bem por esse dia
"Que viverás, como a flor,
"Mimosa, engraçada e bela,
"Não tens de sentir amor!

"Oh! não queiras, por Deus, homem que tenha
"Tingida a larga testa de palor;
"Sente fundo a paixão, - e tu no mundo
"Não tens de sentir amor!

"Sorriso jovial te enfeita os lábios,
"Nas faces de jasmim tens rósea cor;
"Fundo amor não se ri, não é corado...
"Não tens de sentir amor;

"Mas se queres amar, eu te aconselho,
"Que não guerreiro, escolhe um trovador,
"Que não tem um punhal, quando é traído,
"Que vingue o seu amor."

Do Trovador pelo rosto
Torva raiva se espalhou,
E a Lira sua, tremendo,
Sem cordas d'oiro ficou.

Mais além no seu caminho
Donzel garboso encontrou:
Canta - disse: e argênteas cordas
Pulsando, o triste cantou.

"Aos homens da mulher enganam sempre
"O sorriso, o amor;
"É este breve, como é breve aquele
"Sorriso enganador.

"Teu peito por amor, Donzel, suspira,
"Que é de jovens amar a formosura;
"Mas sabe que a mulher, que amor te jura,
"Dos lindos lábios seus cospe a mentira!

"Já frenético amor cantei na lira,
"Delícias já sorvi num seu sorriso,
"Já venturas fruí do paraíso,
"Em terna voz de amor, que era mentira!

"O amor é como a aragem que murmura
"Da tarde no cair - pela folhagem;
"Não volta o mesmo amor à formosura
"Bem como nunca volta a mesma - aragem.

"Não queiras amar, não; pois que a'sperança
"Se arroja além do amor por largo espaço.
"Tens, brilhando ao sol, a forte lança,
"Tens longa espada cintilante d'aço.

"Tens a fina armadura de Milão,
"Tens luzente e brilhante capacete,
"Tens adaga e punhal e bracelete
"E, qual lúcido espelho, o morrião.
"Tens fogoso corcel todo arreiado,
"Que mais veloz que os ventos sorve a terra;
"Tens duelos, tens justas, tens torneios,
"Que os fracos corações de medo cerro;
"'tens pajens, tens valetes e escudeiros
"E a marcha afoita, apercebida em guerra
"Do luzido esquadrão de mil guerreiros.
"Oh! não queiras amar! - Como entre a neve
"O gigante vulcão borbulha e ferve
"E sulfúrea chama pelos ares lança,
"Que após o seu cair torna-se fria;
"Assim tu acharás petrificada,
"Bem como a lava ardente do vulcão,
"A lava que teu peito consumia
"No peito da mulher - ou cinza ou nada -
"Não frio, mas gelado o coração!"

E o Trovador despeitoso
De prata as cordas quebrou,
E nas de chumbo seu fado
A lastimar começou.

"Que triste que é neste mundo
"O fado dum Trovador! ,
"Que triste que é! - bem que tenha ,
"Sua Lira e seu amor,

"Quando em festejos descanta,
"Rasgado o peito com dor,
"Mimoso tem de cantar
"Na sua Lira - o amor!

"Como a um servo vil ordena
"Um orgulhoso Senhor,
"Canta, diz-lhe; quero ouvir-te:
"Quero descantes de amor!

"Diz-lhe o guerreiro, que apenas
"Lidou em justas de amor:
"- Minha dama quer ouvir-te,
"Canta, truão trovador! -

"Manda a mulher que nos deixa
"De beijos murchada flor:
"- Canta, truão, quero ouvir-te,
"Um terno canto de amor!

"Mas se a mulher, que ele adora
"Atraiçoa o seu amor;
"Embalde busca a seu lado
"Um punhal - o Trovador!

Se escuta palavras dela, -
"Que a outros juram amor;
"Embalde busca a seu lado
"Um punhal - o Trovador!

"Se vê luzir de alguns lábios
"Um sorriso mofador;
"Embalde busca a seu lado
"Um punhal - o Trovador!

"Que triste que é neste mundo
"O fado dum Trovador!
"Pesar lhe dá sua Lira,
"Dá-lhe pesar seu amor!"

E o Trovador neste ponto
A corda extrema arrancou;
E num marco do caminho
A Lira sua quebrou:
Ninguém mais a voz sentida
Do Trovador escutou!


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 07 de agosto de 2022

TRISTEZA (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)
TRISTEZA

Gonçalves Dias

 

Que leda noite! - Este ar embalsamado,
Este silêncio harmônico da terra
Que sereno prazer n'alma cansada
Não espreme, não filtra, não difunde?
A brisa lá sussurra na folhagem
D'espessas matas, d'árvores robustas,
Que velam sempre e sós, que a Deus elevam
Misterioso coro, que do Bardo
A crença quase morta inda alimenta.
É esta a hora mágica de encantos,
Hora d'inspirações dos céus descidas,
Que em delírio de amor aos céus remontam.

Aqui da vida as lástimas infindas,
Do mirrado egoísmo a voz ruidosa
Não chegam; nem soluços, risos, festas,
- Hilaridade vã de turba incauta,
Néscia de ruim futuro; ou queixa amarga
De decrépito velho, enfermo, exangue,
Nem do mancebo os ais doidos, preso
Ao leito do sofrer na flor da vida.

Aqui reina o silêncio, o religioso,
Morno sossego, que povoa as ruínas,
E o mausoléu soberbo, carcomido,
E o templo majestoso, em cuja nave
Suspira ainda a nota maviosa,
O derradeiro arfar d'órgão solene.

Em puro céu a lua resplandece,
Melancólica e pura, simelhando
Gentil viúva que pranteia o extinto,
O belo esposo amado, e vem de noite,
Vivendo pelo amor, mau grado a morte,
Ferventes orações chorar sobre ele.

Eu amo o céu assim, sem uma estrela,
Azul sem mancha, - a lua equilibrada
Num céu de nuvens, e o frescor da tarde,
E o silêncio da noite adormecida,
Que imagens vagas de prazer desenha.

Amo tudo o que dá no peito e n'alma
Tréguas ao recordar, tréguas ao pranto,
À v'emência da dor, à pertinácia
Tenaz e acerba de cruéis lembranças;
Amo estar só com Deus, porque nos homens
Achar não pude amor, nem pude ao menos
Sinal de compaixão achar entre eles.

Menti - um inda achei; mas este em ócio
Feliz descansa agora, enquanto aos ventos
E ao cru furor das verde-negras ondas
Da minha vida a barca aventureira
Insano confiei; em céu diverso
Luzem com luz diversa estrelas d'ambos.
Ai! triste, que houve tempo em que eu julgava
As duas uma só, - c'o mesmo brilho
Uma e outra nos céus meigas brilhavam!
Hoje cintila a dele, enquanto a minha
Entre nuvens, sem luz, se perde agora.
Meu Deus, foi bom assim! No imenso pego
Mais uma gota d'amargor que importa?
Que importa o fel na taça do absinto,
Ou uma dor de mais onde outras reinam?


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 31 de julho de 2022

RECORDAÇÃO (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)

 

RECORDAÇÃO

Gonçalves Dias

 

 

Quando em meu peito as aflições rebentam
Eivadas de sofrer acerbo e duro;
Quando a desgraça o coração me arrocha
Em círculos de ferro, com tal força,
Que dele o sangue em borbotões golfeja;
Quando minha alma de sofrer cansada,
Bem que afeita a sofrer, sequer não pode
Clamar: Senhor, piedade; — e que os meus olhos
Rebeldes, uma lágrima não vertem
Do mar d'angústias que meu peito oprime:

Volvo aos instantes de ventura, e penso
Que a sós contigo, em prática serena,
Melhor futuro me augurava, as doces
Palavras tuas, sôfregos, atentos
Sorvendo meus ouvidos, — nos teus olhos
Lendo os meus olhos tanto amor, que a vida
Longa, bem longa, não bastara ainda
por que de os ver me saciasse!... O pranto
Então dos olhos meus corre espontâneo,
Que não mais te verei. — Em tal pensando
De martírios calar sinto em meu peito
Tão grande plenitude, que a minha alma
Sente amargo prazer de quanto sofre.


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 24 de julho de 2022

MINHA VIDA E MEUS AMORES (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)
MINHA VIDA E MEUS AMORES

Gonçalves Dias

 

Mon Dieu, fais que je puisse aimer!
S. Beuve


Quando, no albor da vida, fascinado
Com tanta luz e brilho e pompa e galas,
Vi o mundo sorrir-me esperançoso:
— Meu Deus, disse entre mim, oh! quanto é doce,
Quanto é bela esta vida assim vivida! —
Agora, logo, aqui, além, notando
Uma pedra, uma flor, uma líndeza,
Um seixo da corrente, uma conchinha
À beira-mar colhida!


Foi esta a infância minha; a juventude
Falou-me ao coração: — amemos, disse,
Porque amar é viver.
E esta era linda, como é linda a aurora
No fresco da manhã tingindo as nuvens
De rósea cor fagueira;
Aquela tinha um quê de anelos meigos
Artífice sublime;
Feiticeiro sorrir dos lábios dela
Prendeu-me o coração; — julguei-o ao menos.

Aquela outra sorria tristemente,
Como um anjo no exílio, ou como o cálix
De flor pendida e murcha e já sem brilho.
Humilde flor tão bela e tão cheirosa,
No seu deserto perfumando os ventos.
—- Eu morrera feliz, dizia eu d'alma,
Se pudesse enxertar uma esperança
Naquela alma tão pura e tão formosa,
E um alegre sorrir nos lábios dela.


A fugaz borboleta as flores todas
Elege, e liba e uma e outra, e foge
Sempre em novos amores enlevada:
Neste meu paraíso fui com ela,
Inconstante vagando em mar de amores.


O amor sincero e fundo e firme e eterno,
Como o mar em bonança meigo e doce,
Do templo como a luz perene e santo,
Não, nunca o senti; — somente o viço
Tão forte dos meus anos, por amores
Tão fáceis quanto indi'nos fui trocando.
Quanto fui louco, ó Deus! — Em vez do fruto
Sazonado e maduro, que eu podia
Como em jardim colher, mordi no fruto
Pútrido e amargo e rebuçado em cinzas,
Como infante glutão, que se não senta
À mesa de seus pais


Dá, meu Deus, que eu possa amar,
Dá que eu sinta uma paixão,
Toma-me virgem minha alma,
E virgem meu coração.

Um dia, em qu'eu sentei-me junto dela,
Sua voz murmurou nos meus ouvidos,
— Eu te amo! — ó anjo, que não possa eu crer-te!
Ela, certo, não é mulher que vive
Nas fezes da desonra, em cujos lábios
Só mentira e traição eterno habitam.
Tem uma alma inocente, um rosto belo,
E amor nos olhos... — mas não posso crê-la.


Dá, meu Deus, que eu possa amar,
Dá que eu sinta uma paixao;
Torna-me virgem minha alma,
E virgem meu coração.


Outra vez que lá fui, que a vi, que a medo
Terna voz lhe escutei: — Sonhei contigo! —
Inefável prazer banhou meu peito,
Senti delícias; mas a sós comigo
Pensei — talvez! — e já não pude crê-Ia.
Ela tão meiga e tão cheia de encantos,
Ela tão nova, tão pura e tão bela ...
Amar-me! — Eu que sou?
Meus olhos enxergam, enquanto duvida
Minha alma sem crença, de força exaurida,
Já farta da vida,
Que amor não doirou.


Malgrado meu, crer não posso,
Malgrado meu que assim é;
Queres ligar-te comigo
Sem no amor ter crença e fé?

Antes vai colar teu rosto,
Colar teu seio nevado
Contra o rosto mudo e frio,
Contra o seio dum finado.


Ou suplica a Deus comigo
Que me dê uma paixão;
Que me dê crença à minha alma,
E vida ao meu coração.


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 17 de julho de 2022

O DESENGANO (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)
O DESENGANO

Gonçalves Dias

 

Já vigílias  passei namorado,
Doces horas d'insônia passei,
Já meus olhos, d'amor fascinado,
Em ver só meu amor empreguei.

Meu amor era puro, extremoso,
Era amor que meu peito sentia,
Eram lavas de um fogo teimoso,
Eram notas de meiga harmonia.

Harmonia era ouvir sua voz,
Era ver seu sorriso harmonia;
E os seus modos e gestos e ditos
Eram graças, perfume e magia.

E o que era o teu amor, que me embalava
Mais do que meigos sons de meiga lira?
Um dia o decifrou - não mais que um dia
Fingimento e mentira!

Tão belo o nosso amor! - foi só de um dia,
Como uma flor!.
Por que tão cedo o talismã quebraste
Do nosso amor?

Por que num só instante assim partiste
Essa anosa cadeia?
De bom grado a sofreste! essa lembrança
Inda hoje me recreia.

Quão insensato fui! - busquei firmeza.
Qual em ondas de areia movediça,
Na mulher, - não achei!
E da esp'rança, que eu via tão donosa
Sorrir dentro em minha alma, as longas asas
Doido e néscio cortei!

E tu vás caprichosa prosseguindo
Essa esteira de amor, que julgas cheia
De flores bem gentis;
Podes ir, que os meus olhos te não vejam;
Longe, longe de mim, mas que em minha alma
Eu sinta qu'és feliz.

Podes ir, que é desfeito o nosso laço,
Podes ir, que o teu nome nos meus lábios
Nunca mais soará!
Sim, vai; - mas este amor que me atormenta,
Que tão grato me foi, que me é tão duro,
Comigo morrerá!

Tão belo o nosso amor! - foi só de um dia
Como uma flor!
Oh! que bem cedo o talismã quebraste
Do nosso amor!


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 10 de julho de 2022

PEDIDO (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS
PEDIDO

Gonçalves Dias

 

Ontem no baile
Não me atendias!
Não me atendias,
Quando eu falava.

De mim bem longe
Teu pensamento!
Teu pensamento,
Bem longe errava.

Eu vi teus olhos
Sobre outros olhos!
Sobre outros olhos,
Que eu odiava.

Tu lhe sorriste
Com tal sorriso!
Com tal sorriso,
Que apunhalava.

Tu lhe falaste
Com voz tão doce!
Com voz tão doce,
Que me matava.

Oh! não lhe fales,
Não lhe sorrias,
Se então só qu'rias
Exp'rimentar-me.

Oh! não lhe fales,
Não lhe sorrias,
Não lhe sorrias,
Que era matar-me.


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 03 de julho de 2022

INOCÊNCIA (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)

INOCÊNCIA

Gonçalves Dias

 

Ó meu anjo, vem correndo,
Vem tremendo
Lançar-te nos braços meus;
Vem depressa, que a lembrança
Da tardança
Me aviva os rigores teus.

Do teu rosto, qual marfim,
De carmim
Tinge um nada a cor mimosa;
É belo o pudor, mas choro,
E deploro
Que assim sejas medrosa.

Por inocente tens medo
De tão cedo,
De tão cedo ter amor;
Mas sabes que a formosura
Pouco dura,
Pouco dura, como a flor.

Corre a vida pressurosa,
Como a rosa,
Como a rosa na corrente.
Amanhã terás amor?
Como a flor,
Como a flor fenece a gente.

Hoje ainda és tu donzela
Pura e bela,
Cheia de meigo pudor;
Amanhã menos ardente
De repente
Talvez sintas meu amor.


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 26 de junho de 2022

SEUS OLHOS (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)
SEUS OLHOS

Gonçalves Dias

 

 

Seus olhos, tão negros, tão belos, tão puros, 
 de vivo luzir, 
estrelas incertas, que as águas dormentes 
 do mar vão ferir;

seus olhos tão negros, tão belos, tão puros, 
 de meiga expressão 
mais doce que a brisa, — mais doce que a frauta 
 quebrando a soidão.

Seus olhos tão negros, tão belos, tão puros, 
 de vivo luzir, 
são meigos infantes, gentis, engraçados 
 brincando a sorrir.

São meigos infantes, brincando, saltando 
 em jogo infantil, 
inquietos, travessos; - causando tormento, 
com beijos nos pagam a dor de um momento, 
 com modo gentil.

Seus olhos são negros, tão belos, tão puros, 
 assim é que são; 
às vezes luzindo, serenos, tranqüilos, 
 às vezes vulcão!

Às vezes, oh! sim, derramam tão fraco, 
 tão frouxo brilhar, 
que a mim parece que o ar lhes falece 
e os olhos tão meigos, que o pranto umedece, 
 me fazem chorar.

Assim lindo infante, que dorme tranqüilo, 
 desperta a chorar; 
e mudo, sisudo, cismando mil coisas, 
 não pensa — a pensar.

Nas almas tão puras da virgem, do infante, 
 às vezes do céu 
cai doce harmonia duma harpa celeste, 
um vago desejo; e a mente se veste 
 de pranto co'um véu.

Eu amo seus olhos tão negros, tão puros, 
 de vivo fulgor; 
seus olhos que exprimem tão doce harmonia, 
que falam de amores com tanta poesia, 
 com tanto pudor.

Seus olhos tão negros, tão belos, tão puros, 
 assim é que são; 
eu amo esses olhos que falam de amores 
 com tanta paixão.


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 19 de junho de 2022

DESEJO (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)
DESEJO

Gonçalves Dias

 

 

Ah! que eu não morra sem provar, ao menos
Sequer por um instante, nesta vida
Amor igual ao meu!
Dá, Senhor Deus, que eu sobre a terra encontre
Um anjo, uma mulher, uma obra tua,
Que sinta o meu sentir;

Uma alma que me entenda, irmã da minha,
Que escute o meu silêncio, que me siga
Dos ares na amplidão!
Que em laço estreito unidas, juntas, presas,
Deixando a terra e o lodo, aos céus remontem
Num êxtase de amor!


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 12 de junho de 2022

A MINHA MUSA (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)
A MINHA MUSA

Gonçalves Dias

 

Gratia, Musa, tibi; nam tu solattia praebes. 
— Ovídio


Minha Musa não é como ninfa 
Que se eleva das águas — gentil — 
Co′um sorriso nos lábios mimosos, 
Com requebros, com ar senhoril. 

Nem lhe pousa nas faces redondas 
Dos fagueiros anelos a cor; 
Nesta terra não tem uma esp′rança, 
Nesta terra não tem um amor. 

Como fada de meigos encantos, 
Não habita um palácio encantado, 
Quer em meio de matas sombrias, 
Quer à beira do mar levantado. 

Não tem ela uma senda florida, 
De perfumes, de flores bem cheia, 
Onde vague com passos incertos, 
Quando o céu de luzeiros se arreia. 
___________ 

Não é como a de Horácio a minha Musa; 
Nos soberbos alpendres dos Senhores 
Não é que ela reside; 
Ao banquete do grande em lauta mesa, 
Onde gira o falerno em taças d′oiro, 
Não é que ela preside. 

Ela ama a solidão, ama o silêncio, 
Ama o prado florido, a selva umbrosa 
E da rola o carpir. 
Ela ama a viração da tarde amena, 
O sussurro das águas, os acentos 
De profundo sentir. 

D′Anacreonte o gênio prazenteiro, 
Que de flores cingia a fronte calva 
Em brilhante festim, 
Tomando inspirações à doce amada, 
Que leda lh′enflorava a ebúrnea lira; 
De que me serve, a mim? 

Canções que a turba nutre, inspira, exalta 
Nas cordas magoadas me não pousam 
Da lira de marfim. 
Correm meus dias, lacrimosos, tristes, 
Como a noite que estende as negras asas 
Por céu negro e sem fim. 

É triste a minha Musa, como é triste 
O sincero verter d′amargo pranto 
D′órfã singela; 
E triste como o som que a brisa espalha, 
Que cicia nas folhas do arvoredo 
Por noite bela. 

É triste como o som que o sino ao longe 
Vai perder na extensão d′ameno prado 
Da tarde no cair, 
Quando nasce o silêncio involto em trevas, 
Quando os astros derramam sobre a terra 
Merencório luzir. 

Ela então, sem destino, erra por vales, 
Erra por altos montes, onde a enxada 
Fundo e fundo cavou; 
E pára; perto, jovial pastora 
Cantando passa — e ela cisma ainda 
Depois que esta passou. 

Além — da choça humilde s′ergue o fumo 
Que em risonha espiral se eleva às nuvens 
Da noite entre os vapores; 
Muge solto o rebanho; e lento o passo, 
Cantando em voz sonora, porém baixa, 
Vêm andando os pastores. 

Outras vezes também, no cemitério, 
Incerta volve o passo, soletrando 
Recordações da vida; 
Roça o negro cipreste, calca o musgo, 
Que o tempo fez brotar por entre as fendas 
Da pedra carcomida. 

Então corre o meu pranto muito e muito 
Sobre as úmidas cordas da minha Harpa, 
Que não ressoam; 
Não choro os mortos, não; choro os meus dias 
Tão sentidos, tão longos, tão amargos, 
Que em vão se escoam. 

Nesse pobre cemitério 
Quem já me dera um lugar! 
Esta vida mal vivida 
Quem já ma dera acabar! 

Tenho inveja ao pegureiro, 
Da pastora invejo a vida, 
Invejo o sono dos mortos 
Sob a laje carcomida. 

Se qual pegão tormentoso, 
O sopro da desventura 
Vai bater potente à porta 
De sumida sepultura: 

Uma voz não lhe responde, 
Não lhe responde um gemido, 
Não lhe responde urna prece, 
Um ai — do peito sentido. 

Já não têm voz com que falem, 
Já não têm que padecer; 
No passar da vida à morte 
Foi seu extremo sofrer. 

Que lh′importa a desventura? 
Ela passou, qual gemido 
Da brisa em meio da mata 
De verde alecrim florido. 

Quem me dera ser como eles! 
Quem me dera descansar! 
Nesse pobre cemitério 
Quem me dera o meu lugar, 
E co′os sons das Harpas d′anjos 
Da minha Harpa os sons casar! 


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 05 de junho de 2022

A LEVIANA (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)
A LEVIANA

Gonçalves Dias

 

És engraçada e formosa 
Como a rosa, 
Como a rosa em mês d′Abril; 
És como a nuvem doirada 
Deslizada, 
Deslizada em céus d′anil. 

Tu és vária e melindrosa, 
Qual formosa 
Borboleta num jardim, 
Que as flores todas afaga, 
E divaga 
Em devaneio sem fim. 

És pura, como uma estrela 
Doce e bela, 
Que treme incerta no mar: 
Mostras nos olhos tua alma 
Terna e calma, 
Como a luz d′almo luar. 

Tuas formas tão donosas, 
Tão airosas, 
Formas da terra não são; 
Pareces anjo formoso, 
Vaporoso, 
Vindo da etérea mansão. 

Assim, beijar-te receio, 
Contra o seio 
Eu tremo de te apertar: 
Pois me parece que um beijo 
É sobejo 
Para o teu corpo quebrar. 

Mas não digas que és só minha! 
Passa asinha 
A vida, como a ventura; 
Que te não vejam brincando, 
E folgando 
Sobre a minha sepultura. 

Tal os sepulcros colora 
Bela aurora 
De fulgores radiante; 
Tal a vaga mariposa 
Brinca e pousa 
Dum cadáver no semblante. 


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 29 de maio de 2022

O SOLDADO ESPANHOL (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)
 

O SOLDADO ESPANHOL

Gonçalves Dias

 

I

 

O céu era azul, tão meigo e tão brando,

E a terra era a noiva que bem se arreava

Que a mente exultava, mais longe escutando

O mar a quebrar-se na praia arenosa.

O céu era azul, e na cor semelhava

Vestido sem nódoa de pura donzela;

E a terra era a noiva que bem se arreava

De flores, matizes; mas vária, mas bela.

Ela era brilhante,

Qual raio do sol; E ele arrogante,

De sangue espanhol.

E o espanhol muito amava

A virgem mimosa e bela;

Ela amante, ele zeloso

Dos amores da donzela;

Ele tão nobre e folgando

De chamar-se escravo dela!

E ele disse: - Vês o céu? -

E ela disse: - Vejo, sim;

Mais polido que o polido

Do meu véu azul cetim. - Torna-lhe ele... (Oh! Quanto é doce

Passar-se uma noite assim!)

- Por entre os vidros pintados

D'igreja antiga, a luzir

Não vês luz? - Vejo. - E não sentes

De a veres, meigo sentir?

- É doce ver entre as sombras

A luz do templo a luzir!

- E o mar, além, preguiçoso

Não vês tu em calmaria?

- É belo o mar; porém sinto,

Só de o ver, melancolia.

- Que mais o teu rosto enfeita

Que um sorriso de alegria.

- E eu também acho em ser triste

Do que alegre, mais prazer;

Sou triste, quando em ti penso,

Que só me falta morrer;

Mesmo a tua voz saudosa

Vem minha alma entristecer.

- E eu sou feliz, como agora,

Quando me falas assim;

Sou feliz quando se riem

Os lábios teus de carmim;

Quando dizes que me adoras,

Eu sinto o céu dentro em mim.

- És tu só meu Deus, meu tudo.

És tu só meu puro amar,

És tu só que o pranto podes

Dos meus olhos enxugar. -

Com ela repete o amante:

- És tu só meu puro amar! -

E o céu era azul, tão meigo e tão brando

E a terra tão erma, tão só, tão saudosa

Que a mente exultava, mais longe escutando

O mar a quebrar-se na praia arenosa!

 

II

 

E o espanhol viril, nobre e formoso,

No bandolim

Seus amores dizia mavioso,

Cantando assim:

"Já me vou por mar em fora

Daqui longe a mover guerra,

Já me vou, deixando tudo,

Meus amores, minha terra.

"Já me vou lidar em guerras,

Vou-me à índia Ocidental;

Hei de ter novos amores...

De guerras... não temas, ai.

"Não chores, não, tão coitada,

Não chores por t'eu deixar;

Não chores que assim me custa

O pranto meu sofrear.

"Não chores! - Sou como o Cid

Partindo para a campanha;

Não ceifarei tantos louros,

Mas terei pena tamanha."

E a amante que assim o via

Partir-se tão desditoso,

- Vai, mas volta; lhe dizia:

Volta, sim, vitorioso.

"Como o Cid, oh! Crua sorte!

Não me vou nesta campanha

Guerrear contra o crescente,

Porém sim contra os d'Espanha!

"Não me aterram; porém sinto

Cerrar-se o meu coração,

Sinto deixar-te, meu anjo,

Meu prazer, minha afeição.

"Como é doce o romper d'alva,

É-me doce o teu sorrir,

Doce e puro, qual d'estrela

De noite - o meigo luzir.

"Eram meus teus pensamentos,

Teu prazer minha alegria,

Doirada fonte d'encantos,

Fonte da minha poesia.

"Vou-me longe, e o peito levo

Rasgado de acerba dor,

Mas comigo vão teus votos,

Teus encantos, teu amor!

"Já me vou lidar em guerras,

Vou-me à índia Ocidental;

Hei de ter novos amores...

De guerras... não temas, ai."

Esta era a canção que acompanhava

No bandolim,

Tão triste, que triste não chorava

Dizendo assim.

 

III

 

"Quero, pajens, selado o ginete,

Quero em punho nebris e falcão,

Qu'é promessa de grande caçada

Fresca aurora d'amigo verão.

"Quero tudo luzindo, brilhante

- Curta espada e venáb'lo e punhal,

Cães e galgos farejem diante

Leve odor de sanhudo animal.

"E ai do gamo que eu vir na coutada,

Corça, onagro, que eu primo avistar!

Que o venáb'lo nos ares voando

Lhe há de o salto no meio quebrar.

"Eia, avante! – Dizia folgando

O fidalgo mancebo, loução:

– Eia, avante! – E já todos galopam

Trás do moço, soberbo infanção.

E partem, qual do arco arranca e voa

Nos amplos ares, mais veloz que a vista,

A plúmea seta da entesada corda.

Longe o eco reboa; - já mais fraco,

Mais fraco ainda, pelos ares voa.

Dos cães dúbios o latir se escuta apenas,

Dos ginetes tropel, rinchar distante

Que em lufadas o vento traz por vezes.

Já som nenhum se escuta... Quê! – Latido

De cães, incerto, ao longe? Não, foi vento

Na torre castelã batendo acaso,

Nas seteiras acaso sibilando

Do castelo feudal, deserto agora.

 

IV

 

Já o sol se escondeu; cobre a terra

Belo manto de frouxo luar;

E o ginete, que esporas atracam,

Nitre e corre sem nunca parar.

Da coutada nas ínvias ramagens

Vai sozinho o mancebo infanção;

Vai sozinho, afanoso trotando

Sem temores, sem pajens, sem cão.

Companheiros da caça há perdido,

Há perdido no aceso caçar;

Há perdido, e não sente receio

De sozinho, nas sombras trotar.

Corno ebúrneo embocou muitas vezes,

Muitas vezes de si deu sinal;

Bebe atento a resposta, e não ouve

Outro som responder-lhe; – Inda mal!

E o ginete que esporas atracam,

Nitre e corre sem nunca parar;

Já o sol se escondeu, cobre a terra

Belo manto de frouxo luar.

 

V

 

Silêncio grato da noite

Quebram sons duma canção,

Que vai dos lábios de um anjo

Do que escuta ao coração.

Dizia a letra mimosa

Saudades de muito amar;

E o infanção enleado,

Atento, pôs-se a escutar.

Era encantos voz tão doce,

Incentivo essa ternura,

Gerava delícias n'alma

Sonhar d'havê-la a ventura.

Queixosa cantava a esposa

Do guerreiro que partiu,

Largos anos são passados,

Missiva dele não viu...

Parou!... Escutando ao perto

Responder-lhe outra canção!...

Era terna a voz que ouvia,

Lisonjeira – do infanção:

"Tenho castelo soberbo

Num monte, que beija um rio,

De terra tenho no Doiro

Jeiras cem de lavradio;

"Tenho lindas haqueneias,

Tenho pajens e matilha,

Tenho os melhores ginetes

Dos ginetes de Sevilha;

"Tenho punhal, tenho espada

D'alfageme alta feitura,

Tenho lança, tenho adaga,

Tenho completa armadura.

"Tenho fragatas que cingem

Dos mares a linfa clara,

Que vão preando piratas

Pelas rochas de Megara.

"Dou-te o castelo soberbo

E as terras do fértil Doiro,

Dou-te ginetes e pajens

E a espada de pomo d'oiro.

"Dera a completa armadura

E os meus barcos d'alto-mar,

Que nas rochas de Megara

Vão piratas cativar.

"Fala de amores teu canto,

Fala de acesa paixão...

Ah! Senhora, quem tivera

Dos agrados teus condão!

"Eu sou mancebo, sou Nobre,

Sou nobre moço infanção;

Assim pudesse o meu canto

Algemar-te o coração,

Ó Dona, que eu dera tudo

Por vencer-te essa isenção!"

Atenta escutava a esposa

Do guerreiro que partiu,

Largos anos são passados,

Missiva dele não viu;

Mas da letra que escutava

Delícias n'alma sentiu.

 

VI

 

E noutra noite saudosa

Bem junto dela sentado,

Cantava brandas endechas

O gardingo namorado.

"Careço de ti, meu anjo,

Careço do teu amor,

Como da gota d'orvalho

Carece no prado a flor.

"Prazeres que eu nem sonhava

Teu amor me fez gozar;

Ah! Que não queiras, senhora,

Minha dita rematar.

O teu marido é já morto,

Notícia dele não soa;

Pois desta gente guerreira

Bastos ceifa a morte à toa.

"Ventura me fora ver-te

Nos lábios teus um sorriso,

Delícias me fora amar-te,

Gozar-te meu paraíso.

"Sinto aflição, quando choras;

Se te ris, sinto prazer;

Se te ausentas, fico triste,

Que só me falta morrer.

"Careço de ti, meu ardo,

Careço do teu amor,

Como da gota d'orvalho

Carece no prado a flor."

 

VII

 

Era noite hibernal; girava dentro

Da casa do guerreiro o riso, a dança,

E reflexos de luz, e sons, e vozes,

E deleite, e prazer: e fora a chuva,

A escuridão, a tempestade, e o vento,

Rugindo solto, indómito e terrível

Entre o negror do céu e o horror da terra.

Na geral confusão os céus e a terra

Horrenda simpatia alimentavam.

Ferve dentro o prazer, reina o sorriso,

E fora a tiritar, fria, medonha,

Marcha a vingança pressurosa e torva:

Traz na destra o punhal, no peito a raiva,

Nas faces palidez, nos olhos morte.

O infanção extremoso enchia rasa

A taça de licor mimoso e velho,

Da usança ao brinde convidando a todos

Em honra da esposada: – À noiva! Exclama

E a porta range e cede, e franca e livre

Introduz o tufão, e um vulto assoma

Altivo e colossal. - Em honra, brada,

Do esposo deslembrado! – E a taça empunha

Mas antes que o licor chegasse aos lábios,

Desmaiada e por terra jaz a esposa,

E a destra do infanção maneja o ferro,

Por que tão grande afronta lave o sangue,

Pouco, bem pouco para injúria tanta.

Debalde o fez, que lhe golfeja o sangue

D'ampla ferida no sinistro lado,

E ao pé da esposa o assassino surge

Co'o sangrento punhal na destra alçado.

A flor purpúrea que matiza o prado,

Se o vento da manhã lhe entorna o cálix,

Perde aroma talvez; porém mais belo

Colorido lhe vem do sol nos raios,

As fagueiras feições daquele rosto

Assim foram também; não foi do tempo

Fatal o perpassar às faces lindas.

Nota-lhe ele as feições, nota-lhe os lábios,

Os curtos lábios que lhe deram vida,

Longa vida de amor em longos beijos,

Qual jamais não provou; e as iras todas

Dos zelos vingadores descansaram

No peito de sofrer cansado e cheio,

Cheio qual na praia fica a esponja,

Quando a vaga do mar passou sobre ela.

Num relance fugiu, minaz no vulto:

Como o raio que luz um breve instante,

Sobre a terra baixou, deixando a morte.


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 22 de maio de 2022

SEXTILHAS DE FREI ANTÃO - LOA DA PRINCESA SANTA (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)
SEXTILHAS DE FREI ANTÃO

LOA DA PRINCESA SANTA

Gonçalves Dias

 

 

Bom tempo foi o d’outrora
Quando o reino era cristão
Quando nas guerras de mouros [ 1 ]
Era o rei nosso pendão,
Quando as donas consumiam
Seus teres em devação.

Dava o rei uma batalha
Deus lhe acudia do céu;
Quantas terras que ganhava, [ 2 ]
Dava o Senhor que lhas deu,
E só em fazer mosteiros
Gastava muito do seu.

Se havia muitos Ifantes
Torneio não se fazia;
É esse o estilo de Frandres, [ 3 ]
Onde anda muita heregia:
Para os armar cavaleiros
A armada se apercebia.

Chamava el-rei seus vassalos
E em cortes logo os reunia:
Vinha o povo atencioso, [ 4 ]
Vinha muita cleregia,
Vinha a nobreza do reino,
Gente de muita valia.

Quando o rei tinha-los juntos
Começava a discursar:
“Os Ifantes já são homens,
Vou-me às terras de além-mar [ 5 ]
Armá-los lá cavaleiros;
Deus Senhor m’ há de ajudar.”

Não concluía o pujante rei
Rei – de assi lhes propor,
Clamavam todos em grita [ 6 ]
Com vozes de muito ardor:
“Seremos nessa folgança,
Honra de nosso Senhor!”

E logo todos em sembra,
Todos gente mui de bem,
Na armada se agazalhavam, [ 7 ]
Sem se pesar de ninguém;
E os Padres de Sam Domingos
Iam com eles também.

Iam, si, os bentos Padres:
E que assim fosse, é rezão,
Que o santo em guerras d’Igreja [ 8 ]
Foi um bom santo cristão:
Queimou a muitos hereges
No fogo da expiação!

 
REPORT THIS AD
 

Quando depois se tornava
Toda a frota pêra cá,
Primeiro se perguntava, [ 9 ]
“Que terra temos por lá?”
Quem em Deus tanto confia,
Sempre Deus por si terá.

El-rei tornava benino,
Como coisa natural:
“Temos Ceuta, Arzila ou Tângere, [10]
Conquistas de Portugal!”
E todos, a voz em grita,
Clamavam : real! real!

Bom tempo foi o d’outrora
Quando o reino era cristão;
Os moços davão-se à guerra, [11]
As moças à devação:
Aquela terra de mouros
Vivia em muita aflição.

Deu-nos Deus tantas vitórias,
E tanto pêra louvar,
Que os padres de Sam Domingos [12]
Já não sabiam rezar;
Todo-lo tempo era pouco
Pêra louvores cantar!

Sendo tantas as batalhas,
Nem recontro se perdeu!
Aqueles Padres coitados [13]
Não tinham tempo de seu:
Levavam todo cantando
Louvores ao pai do céu.

Louvores ao pai do céu,
Que eu inda possa trovar,
Quando não vejo nos mares [14]
Nossas quinas tremolar;
Mas somente o templo mudo,
Sem guarnimentos o altar!

Vejo os sinos apeados
Dos campanários subtis,
E a prata das sacristias, [15]
Servidas em misteres vis,
E ante os leões de Castela
Dobrada a Lusa cerviz!

Cant’eu, em bem que sou Padre,
Digo que sou Português:
Arço de ver nossas coisas [16]
Irem todas ao revés,
Arço de ver nossa gente
Andar conosco ao envés

Mercê de Deus! Minha vida
É vida de muito dura!
Vivo esquecido dos vivos [17]
Na terra da desventura;
Vivo escrevendo e penando
Num canto de cela escura.

 

Do meu velho breviário
Só deixarei a leitura
Para escrever estes carmes, [18]
Remédio à nossa amargura;
O corpo tenho alquebrado,
Vive minha alma em tristura.

Que armada de tantas velas,
Que armada é essa qu’ i vem?
Vem subindo Tejo acima, [19]
Que fermosura que tem!
Nas praias se apinha o povo,
E as cobre todas porém.

Dão sinais as fortalezas,
Respondem sinais de lá:
Vem el-rei vitorioso [20]
Quem de gáudio se terá?
O mar é todo bonança,
O céu muito sereno está!

Oco bronze fumo e fogo
Já começa a despejar;
Acordam alegres ecos [21]
Os sinos a repicar;
Grita e folgança na terra,
Celeuma e grita no mar!

Vinde embora muito depressa,
Senhores da capital!
Vinde ver Afonso quinto, [22]
Rei, senhor de Portugal;
Vem das terras africanas
Dar-vos festança real.

Nossos reis foram outrora
Fragueiros de condição
Dormiam quase vestidos, [23]
Espada nua na mão;
Nem repoisavam de noite
Sem fazer sua oração.

Empresa não cometiam
Sem primeiro comungar
Sem fazer voto a algum santo [24]
De tenção particular;
Porém vitórias houveram,
Que são muito de espantar!

Os vindouros esquecidos
Da benção divinal,
Conheceram os poderes [25]
Da bênção celestial,
Se contarem os mosteiros
Das Terras de Portugal!

Nossas capelas que temos,
Nossos mosteiros custosos,
São obras santas de Santos, [26]
Obras de rei mui piedosos;
São brados de pedra viva,
Que pregam feitos briosos.

 

Alguns já agora escarnecem
Dos templos edificados;
Dizem que foram mal gastos [27]
Os bens com eles gastados:
Eu creio (Deus me perdoe)
Que são incréus disfarçados!

E mais prasmam dos feitios
De pedra, que Mênfis tem,
Sem ter olhos para Mafra, [28]
Pera Batalha ou Belém!
Oh! Se a estes conheceras,
Meu frei Gil de Santarém!

Naquela vila deserta
Ainda se me afigura
Ver elevar-se nas sombras [29]
Tua válida estatura,
E ouvir a voz que intimava
Ao rei a sentença dura!

E mais a tacha que tinha
Era ser fraco, e não mais!
Tu, meu Santo, que fizeras, [30]
Se ouviras a estes tais,
Que nos assacam motejos
Às nossas obras reais!

Mas vós, quem quer qu’isto lerdes,
Relevai-me esta tardança;
São achaques da velhice: [31]
Vivemos de remembrança
E em longas falas fazemos
De tudo comemorança.”

Já el-rei Affonso quinto
Nas sua terras pojou:
Alegre o povo o recebe, [32]
Alegre el-rei se mostrou;
Abrio-se em alas vistosas,
El-rei entre elas passou.

Vêm os músicos troando
Nos atabales guerreiros,
Tangem outros intromentos [33]
Desses climas forasteiros,
E trás ele vêm marchando,
Passo a passo, os prisioneiros.

São eles mouros gigantes
De bigodes retorcidos,
Caminham a passos lentos, [34]
Com sembrantes atrevidos.
Causa medo vê-los tantos,
Tam membrudos, tam crescidos!

São homens de fero aspeito,
Homens de má condição,
Que vivem na lei nojenta [35]
Do seu nojento alcorão,
Que – vinho? Nem querem vê-lo,
Só por que o bebe um cristão!

 

Vêm as moiras depois deles,
Rostos cobertos com véus;
Bem que filhas d”Agarenos, [36]
São também filhas de Deus;
Se foram cristãs ou freiras,
Seriam anjos dos céus.

Luziam os olhos delas,
Como pedras muito finas;
Deviam ser finas bruxas, [37]
Inda qu’eram bem meninas,
Que essas moiras da mourama
Nascem já bruxas cadinas!

Uma delas que lá vinha
Olhou-me à través do véu!…
Foi aquilo obra do demo, [38]
Quase, quase me rendeu!
Pensei nela muitas vezes,
Valeram-me anjos do céu!

Vi as largas pantalonas,
E o pezinho delicado…
Como pode pensar nisto [39]
Um pobre frade cansado,
Um padre da Observância,
Que sempre come pescado?!

Enfim, dizer quanto vimos
Não cabe neste papel;
Vinham muitas alimárias, [40]
Como achadas a granel;
Vinha o ifante brioso,
Montado no seu corcel.

Vinham pajens e varletes,
Vinham muitos escudeiros,
Vinham do sol abrasados [41]
Nossos robustos guerreiros;
Vinha muita e boa gente,
Muitos e bons cavaleiros!

A Princesa Dona Joana
Saiu dos Paços reais;
Era moça, e muito airosa, [42]
E dona de partes tais,
Que todos lhe qu’riam muito.
Estranhos e naturais!

Foi requerida de muitos
E muito grandes senhores,
Por fama que dela tinham, [43]
E por cópia de pintores,
Que muitos vinham de fora
Ao cheiro de seus louvores.

E diz-se dum rei de França,
Ludovico, creio eu:
Um pobre frade mesquinho [44]
Só trata em coisas do céu;
Sabe ele que muito sabe,
Se a bem morrer aprendeu.

 

Pois diz-se do rei de França,
O onzeno do nome seu,
Que vendo um retrato destes [45]
Pêra si logo entendeu,
Qu’era prodígio na terra
Quem tanto tinha de céu.

E logo sem mais tardança
Caiu, giolhos no chão,
No feltro traz arrelíquias, [46]
Assi usa um rei cristão;
O seu feltro pôs diante,
E fez sua oração!

Saiu a real Princesa,
Saiu dos Paços reais
Nos pulsos ricas pulseiras, [47]
Na fronte finos ramais;
De longe seguem-lhe a trilha
Muitos bons homens segrais.

Traçava um mantéu vistoso
Sôbolas suas espaldas,
E as largas roupas na cinta [48]
Prendia em muitas laçadas;
Seus olhos valiam tanto
Como duas esmeraldas.

Tinha elevada estatura
E meneio concertado,
Solto o cabelo em madeixas, [49]
Pelas costas debruçado:
Cadeixo de fios d’oiro,
Franjas de templo sagrado.

Vinha assi a régia Dona,
Vinha muito para ver:
O povo em si não cabia, [50]
Quando a via, de prazer;
Era ela santa às ocultas
E anjo no parecer!

Debaixo das telas finas
E dos brocados luzidos,
Trazia à raiz das carnes [51]
Duros cilício cosidos
E umas crinas mui agras,
Tudo extremos mui subidos.

Passava noites inteiras
No oratório a rezar,
Dormia despois na pedra [52]
Sem ninguém o suspeitar:
Extremos tais em princesa
Quem nos há de acreditar?

No dia de lava-pés
Ordenava seu Vedor
Trazer-lhe doze mulheres; [53]
E depois, com muita dor,
Chorando os pés lhes lavava,
Honra de nosso Senhor!

 

E depois de os ter lavado,
Não perdia a ocasião,
Despedia a todas juntas [54]
Com sua esmola na mão:
Dizia que era humildade
E obra de devação.

E as mendigas prasmadas
Sabiam de tal saber,
E perguntavam, quem era [55]
Aquela santa mulher?!
Maus pecados que ela tinha
Só pêra assi proceder!

O mesmo Vedor foi quem
Isto despois revelou,
Quando aquela humanidade [56]
E o Senhor descansou;
Dona Joana era já morta,
Ele porém mo contou.

Mas sendo tanto o resguardo
Que guardava em coisas tais,
Sabiam algo os estranhos [57]
Por muitos certos sinais,
Que o ar é todo perfume,
Se a terra é toda rosais.

É coisa de maravilha
Que me faz cismar a mi,
Que as donas d’hoje pareçam [58]
Uns camafeus d’ alfini,
Nas donas de carne e osso;
As donas de outrora – si.

Hoje leigos de nonada
(É-lhes o demo caudel)
Praguejam a mesa escassa [59]
E as arestas do burel;
Querem mimos e regalos,
E jejuns a leite e mel.

Lá caminha Dona Joana,
Regente de Portugal;
Trás sobre si muitas jóias [60]
Do tesouro paternal;
Deus lhe pôs graça divina
Sobre a graça natural.

Acostou-se a comitiva,
Muito senhora de si:
Perante el-rei se agiolha, [61]
Disse-lhe el-rei: não assi!
E ao peito a cinge dizendo:
Não a meus pés, mas aqui!

“Sois um bom pai, Senhor rei.
Tornou-lhe a santa Princesa:
Eu que sou vassala vossa [62]
E filha por natureza,
Peço mercê como aquela,
Como esta peço fineza.”

 

Ficaram logo suspensos,
Todolos os que eram ali,
Ficaram como enleiados, [63]
Enleio tal nunca vi!
Eis que a Princesa medrosa
Começa a propor assi.

El-rei não lhe respondera;
Que lhe havia responder?
Boa filha Deus lhe dera. [64]
Que lhe havia defender?
Sorriu-se, o bom rei quisera
Muito por ela fazer.

A Princesa disse entonces:
“De alguns capitães antigos
Tenho lido, Senhor rei, [65]
Que, vencidos os imigos,
Tornavam, a Deus fazendo
Sacrifícios mui subidos.

“Viam as coisas melhores
Que dos seus reinos haviam,
E logo lhas ofertavam; [66]
E mercês também faziam,
No dia de seu triunfo
A los que justas pediam.

“Deslembrar a usança antiga
Fora de grande estranheza;
Agora sobre maneira, [67]
Perfeita tamanha empresa,
De tanto lustre aos do reino,
De tal honra a vossa Alteza.

“Digo pois a vossa Alteza,
E digo com muita fé,
Deve a oferta ser tamanha [68]
Quamanha foi a mercê,
Não do nobre rei pujante,
Mas do santo rei qual é.

“A oferta que vós fizerdes,
Será mercê paternal:
Se quereis que corresponda [69]
Ao favor celestial,
Deve ser coisa mui alta,
Deve ser coisa real.

“Ao Deus que vence as batalhas
Dai-lhe a filha muito amada;
Dai-lhe a filha só que tendes [70]
Em tantos mimos criada:
Será oferta bem quista
E do Senhor aceitada.

“E eu a quem mais custou
De medos, esta jornada,
Que muitas noites orando [71]
Passei em pranto banhada,
Sou eu, Senhor, quem vos peço
Ser a hóstia a Deus votada.”

 

Que santa que era a Princesa,
Que extremos de devação!
Nos sembrantes dos presentes [72]
Viu-se, e não era razão,
Que a nenhum deles prazia
Deferir tal petição.

Sobr’esteve um pouco mudo,
El-rei por que muito a amava:
Aquele dizer da filha [73]
Todo prazer lhe aguava,
Aquele pedir sem dó
Todo o ser lhe transtornava.

Encostou-se ao ombro dela
O pobre velho cansado,
Chorou o triunfo breve, [74]
E o prazer mal rematado,
Não como rei valeroso,
Mas como pai anojado.

El-rei despois mais tranqüilo
Rompeu o silêncio alfi’;
E entre aflito e satisfeito [75]
Disse à filha: Seja assi!…
Velhos guerreiros vi eu
Choraram também ali.

Cant’eu perdido entre o vulgo
Não sei que tempo gastei,
Nem sei de mim que fizeram, [76]
Nem tam pouco se chorei;
Foi traça da providência:
Nisto comigo assentei.

Foi Jefté corajoso,
O forte rei de Judá;
Volta coberto de loiros, [77]
Quem primeiro encontrará?
Sente a filha, torce o rosto…
Nada ao triste valerá.

Qual destes dois sacrifícios
Soube a Deus mais agradar?
Vai a Hebrea constrangida [78]
Depor o colo no altar,
Vai a cristã jubilosa!
São ambas pera prasmar.

Depois num dia formoso,
Era no mês de janeiro,
Houve uma cena vistosa [79]
Dentro de um pobre mosteiro;
Fundou-o Brites Leitoa,
Dona mui nobre d’Aveiro.

Uma princesa jurada,
Sobrinha d’altos Ifantes,
Filha de reis soberanos, [80]
Senhora das mais pujantes,
Era a primeira figura,
Espantava os circunstantes.

 

Ali humilde e curvada,
Pesar de todos os seus,
Giolhos sobre o ladrilho [81]
E as mãos erguidas aos céus,
Ouvi – exígua mortalha
Pedir polo amor de Deus.

Cantemos todos louvores,
Louvores ao Senhor Deus:
Os anjos digam o seu nome, [82]
Rostos cobertos com véus;
Leiam-no os homens escrito
No liso campo dos céus.

Bom tempo foi o d’outrora
Quando o reino era cristão,
Quando as guerras mouriscas [83]
Era o rei nosso pendão,
Quando as donas consumiam
Seus teres em devação.


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 15 de maio de 2022

OS TIMBIRAS - CANTO QUARTO (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)
 

OS TIMBIRAS

CANTO QUARTO

Gonçalves Dias

 

Bem-vindo seja o fausto mensageiro,

O melífluo Timbira, cujos lábios

Destilam sons mais doces do que os favos

Que errado caçador na brenha inculta

Por ventura topou! Hóspede amigo,

Ledo núcio de paz, que o território

Pisou de imigas hostes, quando a aurora

Despontava nos céus – bem vindo seja!

Não luz mas brando e grato o romper d’alva

Que o teu sereno aspecto; nem mais doce

A fresca brisa da manhã cicia

Pela selvosa encosta, que a mensagem

Que o chefe imigo e fero anseia ouvir-te.

Melífluo Jurecei, bem vindo sejas

Dos Gamelas ao chefe, Gurupema,

Senhor dos arcos, quebrador das setas,

Das selvas rei, filho de Icrá valente.

 

Assim consigo as hostes do Gamela:

Consigo só, que a usada gravidade

Já na garganta, a voz lhes retardava.

Não veio Jurucei? Posto de fronte,

Arco e flecha na mão feito pedaços,

Certo sinal do respeitoso encargo,

Por terra não lançou? – Que pois augura

Tal vinda, a não ser que o audaz Timbira

Melhor conselho toma: e por ventura

De Gurupema receiando as forcas,

Amiga paz lhe of1rece, e em sinal dela

So vencido Gamela o corpo entrega?!

Em bem! que a torva sombra vagarosa

Do outrora chefe seu há-de aplacar-se,

Ouvindo a mesma voz das carpideiras,

E vendo no sarcófago depostas

As armas, que no ibaque hão-de servi-lhe,

E junto ao corpo, que foi seu, as plumas,

Em quanto vivo, insígnias do mando.

Embora ostente o chefe dos Timbiras

O ganhado troféu; embora à cinta

Ufano prenda o gadelhudo crânio,

Aberto em croa, do infeliz Gamela.

Embora; mas porém amigas quedem

Do Timbira e Gamela as grandes tabas;

E largo em roda na floresta imperem,

Que o mundo em peso, unidas , afrontaram!

 

Nascia a aurora: do Gamela s hostes

Em pé, na praia,  mensageiro aguardam

Sisudos, graves, Um caudal regato,

Cujo branco areial a prata imita,

Sereno ali volvia as mansas águas,

Como que triste de as levar ao rio,

Que ao mar conduz a rápida torrente

Por entre a selva umbrosa e brocas penhas.

Esta a praia! – em redor troncos gigantes,

Que a folhagem no rio debruçavam,

Onde beber frescor os galhos vinham,

Cuxuriando em viço! – penduradas

Trepadeiras gentis da coma excelsa,

Estrelando do bosque o verde manto

Aqui, ali, de flores cintilantes,

Meneiavam-se ao vento, como fitas,

De que se enastra a coma a virgem bela.

Era um prado, uma várzea, um tabuleiro

Com mimoso tapiz de várias flores,

Agrestes, sim, mas belas, Gênio amigo

Chegou-lhe só a mágica vergasta!

Ei-las a prumo ao logo da corrente

Com requebros louçãos a enamorá-la!

 

A nós de embira aos troncos amarradas

Quase igaras em conto figuravam

Ousada ponte no correr das águas

Por força mais qu1humana trabalhada.

 

Vê-as e pasma Jureceinotando

imigo  poderio, e seu mau grado

Vai lá consigo mesmo discorrendo:

“Muitos, certo e as nossas tabas forte,

Itajubá invencível; mas da guerra

É sempre incerto o azar e sempre vário!

E... quem sabe? – talvez... mas nunca, oh! nunca!

Itajubá! Itajubá! – onde há no mundo

Posses que valham contrastar seu nome?

Onde a seta que valha derriba-lo,

E a tribo ou povo que os Timbiras vençam?!

 

Entre as hostes que a si tinha fronteiras

Penetra! – tão galhardo era o seu gesto,

Que os Gamelas em si tão bem disseram:

– Missão de paz o traga, que se os outros

São tão feros assim, Tupã nos valha,

Sim, Tupã; que o não pode o rei das selvas!

 

Hospedagem sincera entanto of’recem

A quem talvez não tardará busca-los

Com fina seta no leal combate.

Ás igaras o levam pressurosos,

Servem-lhe o piraquém na guerra usado,

E os loiros sons so colmeal agreste;

Servem-lhe amigos suculento pasto

/em banquete frugal; servem-lhe taças

(A ver se mais que a fome o instiga a sede)

Do espumoso cauim, – taças pesadas

Na funda noz da sapucaia abertas.

Sem temor o timbira vai provando

O mel, o piraquém, as iguarias;

Mas dos vinhos coíbe-se prudente.

 

Em remoto lugar forma conselho

O rei da selvasGurupema, em quanto

Restaura o mensageiro os lassos membros.

Chama primeiro Cab-oçu valente;

As ríspidas melenas corridias

Cortam-lhe o rosto, – Pendem-lhe nas costas,

Hirtas e lesas, como o junco em feixes

Acamados no leito ressequido

D’invernosa corrente, O rosto feio

Aqui, ali negreja manchas negras

Como da bananeira a larga folha,

Colhida ao romper d’alva, qu’uma virgem

Nas mãos lascivas machucou brincando.

 

Valente é Caba-oçu; mas sem piedade!

Como senta fera almeja sangue

E de malvada ação cruel se paga.

Apressou em combate um seu contrário,

Que mais imigo tinha entre os imigos:

Da guerra os duros vínculos lançou-lhe

à terreiro o chamou, como  é de usança

Para o triunfo bélico adornado.

Fizeram-lhe terreiro os mais d’entôrno:

Ele do sacrifício empunha a maça,

Impropérios assaca, vibra o golpe,

E antes que tombe o corpo, aferra os dentes

No crânio fulminado: jorra o sangue

No rosto, e em gorgulhões se expande o cérebro,

Que a fera humana rábida mastiga!

E em quanto limpa à desgrenhada coma

Do sevo pasto o esquálido sobejo,

Bárbaras hostes do Gamela torcem,

À tanto horror, o transtornado rosto.

 

Vem Jepiaba, o forte entre os mais fortes,

TaiatuTaiatingaNupançaba,

Tucura o ágil, Cravatá sombrio,

Andira, o sonhador de agouros tristes,

Que ele é primeiro a desmentir co’as armas,

Pirera que jamais não foi vencido,

Itapeba, rival de Gurupema,

Oquena, que por si vale mil arcos,

Escudo e defensão dos seus que ampara;

E outros, e muitos outros, cuja morte

Não  foi sem glória no cantar dos bardos.

 

Guerreiros! Gurupema assim começa,

“Antes de ouvir o mensageiro estranho,

Consultar-vos me é força; a nós incumbe

Vingar do rei da selva a morte indigna.

Do que morreu, em que lhe seja eu filho,

E a todos nós da gloriosa herança

Compete o desagravo. Se nos busca

O filho de Jaguar, é que nos teme;

A nossa fúria por ventura intenta

Voltar a mais amigo sentimento.

Talvez do vosso chefe o corpo e as armas

Com larga pompa nos envia agora:

Basta-vos isto?

         Guerra! guerraexclamam.

 

Notai porém quanto é pujante o chefe,

Que os Timbiras dirige. Sempre o segue

Fácil vitória, e mesmo antes da luta

As galas triunfais dispõe seguro.

 

Embora, dizem uns; outros murmuram,

Que de tão grande herói, qualquer que seja

A oferta expiatória, em bem, se aceite.

Vacilam no conselho. A injúria é grande,

Bem fundo a sentem, mas bem grande é o risco.

“Se o orgulho desce a ponto no Timbira,

Que pazes nos propõe, diz Itapeba

Com dura voz e cavernoso acento,

Já está vencido! – Alguém pensa o contrário

(E com despeito a Gurupema encara)

Alguém, não eu! Se havemos de barato

Dar-lhe a vitória, humildes aceitando

O triste câmbio (a idéia só me irrita)

De um morto por um arco tão valente,

Aqui as armas vis faço pedaços

Em breve trato, e vou-me a ter com esse,

Que sabe leis ditar, mesmo vencido!

Como tormenta, que rouqueja ao longe

E som confuso espalha em surdos ecos;

Como rápida flecha corta os ares,

Já perto soa, já mais perto brame,

Já sobranceira enfim roncando estala;

Nasce fraco rumor que logo cresce,

Avulta, ruge, horríssono ribomba.

OquenaOquenao herói nunca vencido,

Com voz troante e procelosa exclama,

Dominando o rumor, que longe Esaú:

 

“Fujam tímidas aves aos lampejos

Do raio abrasador, – medrosas fujam!

Mas não será que o herói se acanhe ao vê-los!

Itapeba, só nós somos guerreiros;

Só nos, que a olhos nus fitando o raio,

Da glória a senda estreita à par trilhamos.

Tens em mim quanto sou e quanto valho,

Armas e braço enfim!

 

        Eis rompe a densa

Turba que d’entôrno d’Itapeba

Formidável barreira alevantava.

 

Quadro pasmosoos dois de mãos travadas,

Sereno o aspecto, plácido o semblante,

À fúria popular se apresentavam

De constância e valor somente armados.

Eram escolhos gêmeos, empinados,

Que a fúria de um vulcão ergueu nos mares.

Eterno ali serão co’os pés no abismo,

Com os negros cimos devassando as nuvens,

Se outra força maior os não afunda.

Ruge embalde o tufão, embalde as vagas

Do fundo pego à flor do mar borbulham!

 

Estranha a turba, e pasma o desusado

Arrojo, que jamais assim não viram!

Mas mais que todos Caba-oçu valente

Enleva-se da ação que o maravilha;

E de nobre furor tomado e cheio,

Clama altivo: “Eu também serei convosco,

Eu também, que a só mercê vos peço

De haver às mãos o pérfido Timbira.

Seja, o que mais lhe apraz invulnerável,

Que d’armas não careço por vence-lo.

Aqui o tenho, – aqui comigo o aperto,

Estreitamente o aperto nestes braços,

(E os braços mostra e os peitos musculosos)

Há-de medir a terra já vencido,

E orgulho e vida perderá co’o sangue,

Arrã soprada, que um menino espoca!

 

E bate o chão, e o pé na areia enterra,

Orgulhoso e robusto: o vulgo aplaude,

De prazer  rancor soltando gritos

Tão altos, tais, como se ali  tivera

Aos pés, rendido e morto o herói Timbira.

 

Por entre os alvos dentes que branquejam,

Ri-se o prazer nos lábios do Gamela.

Aos rosto a cor lhe sobe, aos olhos chega

Fugaz clarão da raiva que aos Timbiras

Votou de há muito, e mais que tudo ao chefe,

Que o espolio paternal mostra vaidoso.

 

Com gesto senhoril silêncio impondo

Alegre aos três a mão calosa of’rece,

Rompendo nestas vozes: “Desde quando

Cabe ao soldado pleitear combates

E ao chefe em ócio viver seguro?

Guerreiros sois, que os atos bem no provam;

Mas se vos não apraz ter-me por chefe,

Guerreiro tão bem sou, e onde se ajuntam

Guerreiros, hão-de haver logar os bravos!

Serei convosco, disse. – E aos três se passa.

 

Soam batidos arcos, rompem gritos

Do festivo prazer, sobe de ponto

O ruidoso aplaudir, Só Itapeba,

Que ao seu rival deu azo de triunfo,

Mal satisfeito e quase irado rosna.

 

Um Tapuia, guerreiro adventício,

Filhado acaso à tribo dos Gamelas,

Pede atenção, – prestam-lhe ouvidos todos.

Estranho é certo; porém longa vida

A velhice robusta lhe autoriza.

Muito há visto, sofreu muitos reveses,

Longas terras correu, aprendeu muito;

Mas quem é, donde vem, qual é seu nome?

Ninguém o sabe: ele não o disse nunca.

Que vida teve, a que nação pertence,

Que azar o trouxe à tribo dos Gamelas?

Ignora-se também. Nem mesmo o chefe

Perguntar-lhe se atreve. É forte, é sábio,

È velho e experiente, o mais que importa?

Chamem-lhe o forasteiro, é quanto basta.

Se à caça os aconselha, a caça abunda;

Se à pesca, os rios cobrem-se de peixes;

Se à guerra, ai da nação que ele indigita!

Valem seus ditos mais que valem sonhos,

E acerta mais que os piagas nos conselhos.

 

Mancebo (assim diz ele a Gurupema)

“Já vi o que por vós não será visto,

Imensas tabas, bárbaros imigos,

como nunca os vereis; andei já tanto,

Que o não fareis, andando a vida inteira!

Estranhos casos vi, chefes pujantes!

Tabira, o rei dos bravos Tobajaras,

Alquíndar, que talvez já não exista,

IperuJepipó de Mambucaba,

Coniã, rei dos festins guerreiros;

E outros, e outros mais. Pois eu vos digo,

Ação, que eu saiba, de tão grandes Cabos,

Como a vossa não foi, – nem tal façanha

Fizeram nunca, e sei que foram grandes!

Itapeba entre os seus não encontraras,

Que não pagasse com seu sangue o arrojo

Se tanto as claras por-se-lhes contrário.

Mas quem do humano sangue derramado

Por ventura se peja? – em que logares

A glória da peleja horror infunde?

Ninguém, nenhures, ou somente aonde,

Ou só aquele que já viu infunde

Cruas vagas de sangue; e os turvos rios

Mortos por tributo ao mar volvendo.

Vi-as eu, inda novo; mas tal vista

do humano sangue saciou-me a sede.

Ouvi-me, Gurupema, ouvi-me todos:

Da sua tentativa o rei das selvas

Teve por prêmio o lacrimoso evento:

E era chefe brioso e bom soldado!

Só não pode sofrer que alguém dissesse

Haver outro maior tão perto dele!

A vaidade o cegou! hardida empresa

Cometeu, mas por si: de fora, e longe

Os seus o viram deslindas seu pleito.

Vencido foi... a vossa lei de guerra,

Bárbara, sim, mas lei, – dava ao Timbira

Usar, com ele usou, do seu triunfo.

A que pois fabricar novos combates?

Por que empreende-los nós, quando mais justos

Os Timbiras talvez mover poderam?

Que vos importa a vós vencer batalhas?

Tendes rios piscosos, fundas matas,

Inúmeros guerreiros, tabas fortes;

Que mais vos é mister? Tupã é grande:

De um lado o mar se estende sem limites,

Pingues florestas d’outro lado correm

Sem limites também. Quantas igaras

Quantos arcos houvermos, nas florestas,

No mar, nos rios caberão às largas:

Por que então batalhar? por que insensatos,

Buscando o inútil, necessário aos outros,

Sangue e vida arriscar em néscias lutas?

Se o filho de Jaguar trazer-nos manda

Do chefe desdidoto e frio corpo,

Aceite-se... se não... voltemos sempre,

Ou com ele, ou sem ele, às nossas tabas,

Às nossas tabas mudas, lacrimosas,

Que hão-de certo enlutar nossos guerreiros,

Quer vencedores voltem quer vencidos.”

 

Do forasteiro, que tão solto fala

E tão livre argumenta, Gurupema

Pesa a prudente voz, e alfim responde:

Tupã decidirá,” – Oh! não decide,

(Como consigo diz o forasteiro)

Não decide Tupã humanos casos,

Quando imprudente e cego o homem corre

D’encontro ao fado seu: não valem sonhos,

Nem da prudência meditado aviso

Do atalho infausto a desviar-lhe os passos!

 

O chefe dos Gamelas não responde:

Vai pensativo demandando a praia,

Onde o Timbira mensageiro o aguarda.

 

Reina o silêncio, sentam-se na arena,

JuruceiGurupema e os mais com eles.

Amiga recepção, – ali não viras

Nem pompa oriental, nem galas ricas,

Nem armados salões, nem corte egrégia,

Nem régios passos, nem caçoilas fundas,

Onde a cheirosa goma se derrete.

Era tudo singelo, simples tudo,

Na carência do ornato – o grande, o belo.

Na própria singeleza a majestade

Era a terra o palácio, as nuvens teto,

Colunatas os troncos gigantescos,

Balcões os montes, pavimento a relva,

Candelabros a lua, o sol e os astros.

 

Lá estão na branca areia descansados.

Como  festiva taça num banquete,

O cachimbo de paz, correndo em roda,

Se fumo adelgaçado cobre os ares.

Almejam,sim, ouvir o mensageiro,

E mudos são contudo: não dissera,

Quem quer que os visse ali tão descuidoso,

Que ardor inquieto e fundo os ansiava.

 

O forte Gurupema alfim começa

Após côngruo silêncio, em voz pausada:

Saúde ao núncio do Timbira! disse.

Tornou-lhe Jurucei“Paz aos Gamelas,

Renome e glória ao chefe seu preclaro!

– A que vens pois? Nós te escutamos: fala

“Todos vós, que me ouvis, vistes boiantes,

À mercê da corrente, o arco e as setas

Feitas pedaços, por mim mesmo inúteis.”

 

“E de to  ver folguei; mas quero eu mesmo

Ouvir dos lábios teus quanto imagino.

Acata-me Itajubá, e de medroso

Tenta poupar aos seus tristeza e luto?

A flor das Tabas suas, talvez manda

Trazer-me o corpo e as armas do Gamela,

Vencido, em mal, no desleal combate!

Pois seja, que talvez não queira eu sangue,

E do justo furor quebrando as setas...

Mas dize-o tu primeiro... Nada temas,

È sagrado entre nós guerreiro inerme,

E mais sagrado o mensageiro estranho.”

 

Treme de pasmo e cólera o Timbira,

Ao ouvir tal discurso. – Mais surpreso

Não fica o pescador, que mariscando

Vai na maré vazante, quando avista

Envolto em Iodo um tubarão na praia,

Que reputa sem vida, passa rente,

co’as malas da rede acaso o açoita

E a desleixo; – feroz o monstro acorda

E escancarando as fauces mostra nelas

Em sete filas alinhada a morte!

Tal ficou Jurecei, – não de receio,

Mas de surpresa atônito, – o contrário,

Que de o ver merencório não se agasta,

A que proponha o seu encargo o anima.

 

“Não ignavo temor a voz me embarga,

Emudeço de ver quão mal conheces

Do filho de Jaguar os altos brios!

Esta a mensagem que por mim vos manda:

Três grandes tabas, onde heróis pululam,

Tantos e mais que nós, tanto e mais bravos,

Caídas a seus pés a voz lhe escutam.

Não quer dos vossos derramar mais sangue:

Tigre cevado em carnes palpitante,

Rejeita a fácil presa; nem o tenta

De perjuros haver troféus sem glória.

Em quanto pois a maça não sopesa,

Em quanto no carcaz dormem-lhe as setas

Imóveis – atendei! – cortai no bosque

Troncos robustos e frondosas palmas

novas tabas construí no campo,

Onde o corpo caiu do rei das sevas,

Onde empastado inda enrubece a terra

Sangue daquele herói que vos infama!

Aquela briga enfim de dois, tamanhos,

Sinalai; porque estranho caminheiro

Amigas vendo e juntas nossas tabas

E a fé que usais guardar, sabendo, exclame:

Vejo um povo de heróis, e um grande chefe!

Em quanto escuta o mensageiro estranho,

Gurupema, talvez sem que o sentisse,

Vai pouco e pouco erguendo o corpo inteiro.

A baça cor do rosto é sempre a mesma,

O mesmo o aspecto, – a válida postura

A quem de longe vê, somente indica

Vigor descomunal, e a gravidade

Que os próprios Índios por incrível notam.

Era uma estátua, exceto só nos olhos,

Que por entre as em vão caídas pálpebras

Clarão funéreo derramava entorno.

 

Quero ver que valor mostras nas armas,

(Diz ao Timbira, que a resposta agrada)

Tu que arrogante, em frases descorteses,

Guerra declaras, quando paz of’reces.

Quebraste o arco teu quando chegaste,

O meu te of’reço! O quebrador dos arcos

Nos dons por certo liberal se mostra,

Quando o seu arco of’rece: julga e pasma!

 

Do pejado carcaz tira uma seta,

Na corda a ajeita, – o arco entesa e curva,

Atira, – soa a corda, a flecha voa

Com silvos de serpente. Sobre a copa

Duma arvore frondosa descansava

Há pouco um cenembi, – flechado agora

Despenha-se no rio, sopra iroso,

A cortante serrilha embora erriça,

Co’a dura cauda embora açoita as águas;

A corrente o conduz, e em breve trato

hastil da flecha sobrenada a prumo.

 

Poderá  Jurecei, alçando o braço,

Poupar ação tão baixa àqueles bosques,

Onde os guerreiros de Itajubá imperam.

Imóvel, mudo contemplou o rio

Se chôfre o cenembi cair flechado,

Lutar co’a morte, ensangüentando as águas,

Desaparecer, – a voz por fim levanta:

 

“Ó rei das selvas, Gurupema, escuta:

Tu, que medroso em face d’Itajuba

Não ousaras tocar o p´que o vento

Nas folhas dos seus bosques deposita;

Senhor das selvas, que de longe o insultas,

Por que me vês aqui cozinho e fraco,

Fraco e sem armas, onde armado imperas;

Senhor das selvas (que antes flecha acesa

Sobre os tetos houvesses arrojado,

Onde as mulheres tens e os filhos caros),

Nunca miraste um alvo mais funesto

Nem tiro mais fatal vibraste nunca.

Com lágrimas de sangue hás de chora-lo,

Maldizendo o lugar, o ensejo, o dia,

O braço, a força, o ânimo, o conselho

Do delito infeliz que vai perder-te!

Eu, sozinho entre os teus que me rodeiam,

Sem armas, entre as armas que descubro,

Sem medo, entre os medrosos que me cercam,

Em tanta solidão seguro e ousado,

Rosto a rosto contigo, e no teu campo.

Digo-te, ó Gurupema, , ó rei das selvas,

Que és vil, qu’és fraco!

          Sibilante flecha

Rompe da turva-multa e crava o braço

Do ousado Jureceiqu’inda falava.

 

“É seguro entre vós guerreiro inerme,

E mais seguro o mensageiro estranho!

Disse com riso mofador nos lábios.

Aceito o arco, ó chefe, e a treda flecha,

Que vos hei-de tornar, ultriz da ofensa

Infame, que Aimorés nunca sonharam!

Ide , correi, quem cós impede a marcha?

Vingai esta corrente, não mui longe

Os Timbiras estão! – Voltai da empresa

Com este feito heróico rematado;

Fugi, se vos apraz; fugi, cobarde!

Vida por gota pagareis meu sangue;

Por onde quer que fordes de fugida

Vai o fero Itajubá perseguir-vos

Por água ou terra, ou campos, ou florestas;

Tremei!...

E como o raio em noite escura

Cegou, desapareceu! De timorato

Procura Gurupema o autor do crime,

E autor lhe não descobre; inquire... embalde!

Ninguém foi, ninguém sabe, e todos viram.


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 08 de maio de 2022

OS TIMBIRAS - CANTO TERCEIRO (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)
OS TIMBIRAS

CANTO TERCEIRO

Gonçalves Dias

 

Era a hora em que a flor balança o cálix

Aos doces beijos da serena brisa,

Quando a ema soberba alteia o colo,

Roçando apenas o matiz relvoso;

Quando o sol em doirando os altos montes,

E as ledas aves à porfia trinam,.

E a verde coma dos frondosos cerros

Quando a corrente meio oculta soa

De sob o denso véu da parda névoa;

Quando nos panos das mais brancas nuvens

Desenha a aurora melindrosos quadros

Gentis orlados com listões de fogo;

Quando o vivo carmim do esbelto cáctus

Refulge a mêdo abrilhantado esmalte,

Doce poeira da aljofradas gotas,

Ou pó sutil de pérolas desfeitas.

 

Era a hora gentil, filha de amores,

Era o nascer do sol, libando as meigas,

Risonhas faces da luzente aurora!

Era o canto e o perfume, a luz e a vida,

Uma só coisa e muitas, – melhor face

Da sempre vária  e bela natureza:

Um quadro antigo, que já vimos todos,

Que todos com prazer vemos de novo.

 

Ama o filho do bosque contemplar-te,

Risonha aurora, – ama acordar contigo;

Ama espreitar nos céus a luz que nasce,

Ou rósea ou branca, já carmim, já fogo,

Já tímidos reflexos, já torrentes

De luz, que fere oblíqua os altos cimos.

Amavam contemplar-te os de Itajubá

Impávidos guerreiros, quando as tabas

Imensas, que Jaguar fundou primeiro

Cresciam, como crescem gigantescos

Cedros nas matas, prolongando a sombra

Longes nos vales, – e na copa excelsa

Do sol estivo os abrasados raios

Parando em vasto leito de esmeraldas.

 

As três formosas tabas de Itajubá

Já foram como os cedros gigantescos

Da corrente impedrada: hoje acamados

Fósseis que dormem sob a térrea crusta,

Que os homens e as nações por fim sepultam

No bojo imenso! – Chame-lhe progresso

Quem do extermínio secular se ufana:

Eu modesto cantor do povo exinto

Chorarei nos vastíssimos sepulcros,

Que vão do mar ao Andes, e do Prata

Ao largo e doce mar das Amazonas.

Ali me sentarei meditabundo

Em sítio, onde não oiçam meus ouvidos

Os sons freqüentes d’europeus machados

Por mãos de escravos Afros manejados:

Nem veja as matas arrasar, e os troncos,

Donde chorando a preciosa goma,

Resina virtuosa e grato incenso

A nossa incúria grande eterno asselam:

Em sítio onde os meus olhos não descubram

Triste arremedo de longínquas terras.

Aos crimes das nações Deus não perdoa:

Do pai aos filhos e do filho aos netos,

Por que um deles de todo apague a culpa,

Virá correndo a maldição – contínua,

Como fuzis de uma cadeia eterna.

Virão nas nossas festas mais solenes

Miríade de sombras miserandas,

Escarnecendo, secar o nosso orgulho

De nação; mas nação que tem por base

Os frios ossos da nação senhora,

E por cimento a cinza profanada

Dos mortos, amassada aos pés de escravos.

Não me deslumbra a luz da velha Europa;

Há-de apagar-se mas que a inunde agora;

E nós?... sucamos leite mau na infância,

Foi corrompido o ar que respiramos,

Havemos de acabar talvez primeiro.

 

América infeliz! – que bem sabia,

Quem te criou tão bela e tão sozinha,

Dos teus destinos maus! Grande e sublime

Corres de pólo a pólo entre os sois mares

Máximos de globo: anos da infância

Contavas tu por séculos! que vida

Não fora a tua na sazão das flores!

Que majestosos frutos, na velhice,

Não deras tu, filha melhor do Eterno?!

Velho tutor e avaro cubiçou-te,

Desvalida pupila, a herança pingue

Cedeste, fraca; e entrelaçaste os anos

Da mocidade em flor – às cãs e à vida

Do velho, que já pende e já declina

Do leito conjugal imerecido

À campa, onde talvez cuida encontrar-te!

 

Tu, filho de Jaguar, guerreiro ilustre,

E os teus, de que então vós ocupáveis,

 Quando nos vossos mares alinhadas

As naus de Holanda, os galeões de Espanha,

As fragatas de França, e as caravelas

E portuguesas naus se abalroavam,

Retalhado entre si vosso domínio,

Qual se vosso não fora? Ardia o prélio,

Fervia o mar em fogo a meia-noite,

Nuvem de espesso fumo condensado

Toldava astros e céus; e o mar e os montes

Acordavam rugindo aos sons troantes

Da insólita peleja! – Vós, guerreiros,

Vós, que fazíeis, quando a espavorida

Fera bravia procurava asilo

Nas fundas matas, e na praia o monstro

Marinho, a quem o mar, já não seguro

Reparo contra a fôrça e indústria humana,

Lançava alheio e pávido na areia?

Agudas setas, válidos tacapes

Fabricavam talvez!... ai não... capelas,

Capelas enastravam para ornato

Do vencedor; – grinaldas penduravam

Dos alindados tetos, por que vissem

Os forasteiros, que os paternos ossos

Deixando atrás, sem manitôs vagavam,

Os filhos de Tupã como os hospedam

Na terra, a que Tupã não dera ferros!

 

_______________

 

Rompia a fresca aurora, rutilando

Sinais de um lia límpido e sereno.

Então vinham saindo os de Itajubá

Fortes guerreiros a contar os sonhos

Com que Tupã amigo os bafejara,

Quando as estrelas pálidas tombavam,

Já de clarão maior esmorecidas.

Vinham ledos ou tristes na aparência,

Timoratos ou cheios de hardimento,

Como o futuro evento se espelhava

Nos sonhos, bons ou maus; mas acordá-los

Disparatados, e o melhor de tantos

Coligir, era missão mais alta.

Não fosse o piaga intérprete divino,

Nem os seus olhos penetrantes vissem

O porvir, ao través do véu do tempo,

Como ao través do corpo a mente enxergam;

Não fosse, quem há que se afoutasse

Em campo de batalha a expor a vida,

A vida nossa tão querida, e tanto

Da flor a vida breve semilhando:

Roaz inseto a vai traçando em giro,

Nem mais revive uma só vez cortada!

 

Mande porém Tupã seus gratos filhos,

Rogados sonhos, que os decifra o piaga:

E Tupã, de benigno os influi sempre

Em vespras de batalha, como as chuvas

Descem, quando a terra humores pede,

Ou como, em sazão própria, brotam flores.

 

Postam-se em forma de crescente os bravos:

Ávida turba mulheril no entanto

O rito sacro impaciente aguarde.

Brincam na relva os folgazões meninos,

Em quanto os mais crescidos, contemplando

O aparato elétrico das armas,

Enlevam-se; e, mordidos pela inveja,

Discorrem lá consigo: – Quando havemos,

Nós outros, d’empunhar daqueles arcos,

E quando levaremos de vencida

As hostes vis do pérfido Gamela!

 

Vem por fim Itajubá. O piaga austero,

Volvendo o maracá nas mãos mirradas,

Pergunta: – “Foi o espírito convosco,

O espírito da fôrça, e os ledos sonhos,

Ministros de Tupã, núncios da glória?"

– Sim, foram, lhe respondem, ledos sonhos,

Correios de Tupã;  mas o mais claro

É duro nó que o piaga só desata.

“Dizei-os pois, que vos escuta o piaga

Disse, e maneja o maracá: das bocas

Do mistério divino, em puros flocos

De neve, o fumo em borbotões golfeja.

 

Diz um qu, divagando em matas virgens,

Sentira a luz fugir-lhe de repente

Dos olhos, – se não foi que a natureza,

Por mágico feitiço transtornada,

Vestia por si mesma novas galas

E aspectos novos, – nem as elegantes,

Viçosas trepadeiras, nem as rêdes

Agrestes do cipó já divisava.

Em lugar da floresta, uma clareira

Relvosa descobria, em vez da árvores

Tão altas, de que havia pouco o bosque

Parecia ufanar-se, – um tronco apenas,

Mas tronco tal que os resumia a todos.

 

Ali sozinho o tronco agigantado

Luxuriava em folhas verde-negras,

Em flores cor de sangue, e na abundância

Sos frutos, como  nunca os viu nas matas;

Tão alvos como a flor do mamãozeiro,

De macia penugem debruados.

 

“Extático de os ver ali tão belos

Tais frutos, que eu algures nunca vira,

O bárbaro dizia, fui colhendo

O melhor, por que o visse de mais perto.

Pesar de não saber se era salubre,

Ansiava gosta-lo, e em fura lida

Lutava o meu desejo co’a prudência.

Venceu aquêleai não vencesse nunca!

Nunca, ludibrio não dos meus desejos,

Mordessem-no meus lábios ressequidos.

Conta-lo me arrepia! – Mal o toco,

Força-me rejeita-lo um quê oculto,

Que os nervos me estremece: a causa inquiro..

 

Eis que uma cobra, uma coral, de dentro

Desdobra o corpo lúbrico, e em três voltas,

Mas grata armila, me circunda o braço.

Da vista e do contato horrorizado,

Sacudo o estranho ornato; e vão me agito:

Com quanto mais afã tento livrar-me,

Mais apertado o sinto. – Nisto acordo,

Úmido o corpo e fatigado, e a mente

Molesta ainda do combate inglório.

O que é, não sei; tu sabes tudo, ó Piaga

Há e talvez razão que eu não alcanço,

Que certo isto não é sonhar batalhas.”

 

– “Haja sentido oculto no teu sonho,

(Diz ao guerreiro o piaga) eu, que levanto

O véu do tempo, e aos mortais o mostro.

Dir-to-ei por certo; mas eu creio e tenho

Que algum gênio turbou-te a fantasia,

Talvez angüera de traidor Gamela;

Que os Gamelas são pérfidos em morte,

Como em vida.” – Assim é, diz Itajubá.

 

Outro sonhou caçadas abundantes,

Temíveis caitetus, pacas ligeiras,

Coatis e jabotins, – te onça e tigres,

Tudo em rimas, em feixes: outro em sonhos

Nada disto enxergou: porém cardumes

De peixes vários, que o timbó prestante

Trazia quase à mão, se não fechados

Em mondes espaçosos! – gáudio imenso!

De os ver ali raivando na estacada

Tão grandes serubinstrauíras tantas,

Ou boiando sem tino à flor da aguas!

 

Outros não viram nem mondes, nem peixes,

Nem aves, nem quadrúpedes: mas grandes

Samotins transbordando argêntea espuma

Do fervente cauim; e por três noites

Girar em roda a taça do banquete,

Em quanto cada qual memora em cantos

Os feitos próprios: reina o guau, que passa

Destes àqueles com cadencia alterna.

“O piaga exulta! Eu vos auguro, ó bravos

Do herói Timbira  (clama entusiasta)

Leda vitória! Nunca em nossas tabas

Haverá de correr melhor folgançã,

Nem ganhareis jamais honra tamanha.

Bem sabeis como é de uso entre os que vencem

Festejar o triunfo: o canto e a dança

Marcham de par, – banquetes se preparam,

 

E a glória da nação mais alta brilha!

Oh! nunca sobre as tabas de Itajubá

Haverá de nascer mais grata aurora!

 

Soam festivos gritos, e as pocemas

Dos guerreiros, que sôfregos escutam

Do piaga os ditos, e o feliz augúrio

Da próxima vitória. Não dissera

Quem quer que fosse estranho aos usos deles

Senão que por aquela densa pinha

De vulgo, se espalhara a fausta nova

De gloriosa ação já consumada,

Que os seus, validos da vitória, obraram.

Entanto Japeguá, posto de parte,

Em quanto lavra em todos o contágio

Da glória e do prazer, – bem claro mostra

No rosto descontente o que medita.

“Prazer que em altos gritos se propala,

Discorre lá consigo o Americano,

“É como a chama rápida correndo

Nas folhas da pindoba: é falso e breve!

 

Atenta nele o chefe dos Timbiras,

Como que interno, igual pressentimento

Rejeita, seu mau grado, a voz do piaga.

“Que pensa Japeguá? Acaso em sonhos

Tremendo e torvo se lhe antolha o êxito

Da batalha? ou seja, ou não conosco,

Que tarda em nos dizer seu pensamento?

 

“Eu, vi" Japeguá e assim dizendo,

Sacode vezes três a fronte adusta,

Onde gravara da prudência o sêlo

Contínuo meditar)“Vi altos combros

De mortos já polutos, – via lagoas

Brutas de sangue impuro e negrejante;

Vi setas e carcaz espedaçados,

Tacapes adentados, ou partidos

Ou já sem fio! – vi...” Eis Catucaba

Mal sofrido intervém, interronpendo

A narração do sonhador de males.

Bravo e hardido como é, nunca a prudência

Lhe foi virtude, nem por tal a aceita.

Nunca o membi guerreiro em seus ouvidos

Troou medonho, inóspito combate,

Que às armas não corresse o valeroso,

Intrépido soldado; mais que tudo

Amava a luta, o sangue, vascas, transes,

Convulsos arrepios, altos gritos

Do vencedor, imprecações sumidas

Do que, vencido, jaz no pó sem glória.

Sim, ama e que o tráfego das armas

Talvez melhor que a si; nem mais risonha

Imagem se lhe antolha, nem há cousa

Que tenha em mais apreço ou mais cubice.

O p’rigo que aventasse era feitiço,

Que em delírio de febre o transtornava.

Fanático de si, ébrio de glória,

Lá se arrojava intrépido e brioso,

Onde pior, onde mais negro o via.

 

Não eram dois na esquadra de Itajubá

De gênios em mais pontos encontrados:

Por isso em luta sempre. Catucaba,

Fragueiro, inquieto, sempre aventuroso,

Em cata de mais glória e mais renome,

Sempre à mira de encontros arriscados,

Sempre o arco na mão, sempre embebida

Na corda tesa e frecha equilibrada.

Ninguém mais solto em vozes, mais galhardo

No guerreiro desplante, ou que mostrasse

Atrevido e soberbo e forte em campo

Quer pujança maior, que mais orgulho.

 

Japeguá, corajoso, mas prudente,

Evitava o conflito, via o risco,

Media o seu poder e as posses dele

E o azar da luta e descansava em ócio.

Sua própria indolência revelava

Ânimo grande e não vulgar coragem.

Se fosse lá nos paramos da Líbia,

Deitado à sombra da árvore gigante,

O leão da Numídia bem poderá

Trilhar por junto dele os movediços

Combros da areia, – amedrontando os ares

Com aquele bramir agreste e rudo,

Que as feras sem terror ouvir não sabem.

O índio ouvira impávido o rugido,

Sem que o terror lhe distingisse as faces;

E ao rei dos animais voltando o rosto,

Somente porque mais à jeito o visse,

Viras ambos, sombrios, majestosos,

Contemplarem-se á espaço, destemidos;

D’estranheza o leão os seus rugidos

Na gorja sufocar, e a nobre cauda,

Entre medos e assomos de hardimento,

Mover de leve e irresoluto aos ventos!

 

Um – era a luz fugaz fácil prendida

Nas plumas do algodão: luz que deslumbra

E que em breve amortece: outro – faísca,

Que surda, pouco a pouco vai lavrando

Não vista e não sentida te que surge

Dum jato só, tornada incêndio e fumo.

 

“Que viste? diz-lhe o êmulo brioso,

“Só coalheiras de sangue inficionado,

Só tacapes e setas bipartidas,

E corpos já corruptos?! Eia, ó fraco,

Embora em ócio ignavo aqui descanses,

E nos misteres feminis te adestres!

Ninguém te cama à vida dos combates,

Não te almeja ninguém por companheiro,

Nem há-de o sonho teu acobardar-nos.

É certo que haverá mortos sem conto,

Mas não seremos nós; – setas partidas,,

As nossas, não; tacapes amolgados...

Mas os nossos verás mais bem talhantes,

Quando houverem partido imigos crânios.

 

“Herói, não em façanhas, mas nos ditos

Lidador que a vileza d’alma encobres

Com frases descorteses, – já te viram,

Pendentes braço e armas, contemplando

Os feitos meus, pesar que sou cobarde.

Essa infame tarefa que me incumbes

É minha, sim; mas por diverso modo:

Não ministro cauim às vossas festas;

Mas na refrega o meu trabalho é vosso.

Da batalha no campo achais defuntos,

Vossa glória e brasão,  corpos sem conto,

Cujas feridas largas e profundas,

De largas e profundas, denunciam

A mão que as sói fazer com tanto efeito.

Não tenho espaço, onde recolha os ossos,

Não tenho cinto, onde pendure os crânios,

Nem colar onde caibam tantos dentes,

De quantos venci já; por isso inteiros

Lá vo-los deixo, heróis; e vós lá ides,

Em que me não queirais por companheiro,

Rivais dos urubus, fortes guerreiros,

Fácil triunfo conquistar nas trevas,

Aos vorazes tatus roubando a presa.”

 

Calou-se... e o vulgo rosna em tôrno d’ambos,

Deste ou daquele herói tomando as partes.

Pois quê?... -de ficar tamanha afronta

Impune, e não haveis levar das armas,

Por que o sangue a desbote e apague inteira?

 

Diziam, – e a tais ditos mais fermente

A raiva em ambos; fazem-lhes terreiro,

Já verga o arco, já se entesa a corda,

Já batem pés no solo pulvurento:

Correra o sangue de um, talvez o de ambos,

Que sobre os dois a morte, abrira as asas!

Silêncio! brada o chefe dos Timbiras,

Interposto severo em meio da ambos;

De um lado e outro a turba circunfusa

Emudece, – divide-as largo espaço,

De cujo centro gira os torvos olhos

O herói, e só de olhar lhe estende as raias.

Assim de altivo píncaro descamba

Enorme rocha, obstruindo o leito

De um rio caudaloso: as fundas águas

Latindo envão na rocha volumosa

Separam-se, cavando novos leitos,

Em quanto o antigo se resseca e abras.

 

Silêncio!disse; e em torno os olhos gira,

Fúlgidos, negros: orgulhosas frontes,

Que aos golpes do tacape não se dobram

Em torno sobre o peito vão caindo

Uma após outra: altivo um só apenas

Rebelde arrosta o olhar! – rápido golpe,

Rápido e forte, como o raio, o prostra

Na arena em sangue! Mosqueado tigre,

Se cai no meio de preás medrosos,

Talvez no primo impulso algum aferra;

Vulgacho imbele! – ao mísero que prende

E torce ainda nas compridas garras,

Longe, sem vida, desdenhoso o arroja.

 

Assim o herói. Por longo trato mudo

Soberdo e grande alfim mostrando o rio,

Quedou sem mais dizer; o rio ao longe

As águas, como sempre, majestosas

Na gorja das montanhas derramava,

Caudal, imenso. Trás daqueles montes,

Diz Itajubá, não sabeis quem seja?

Afronta e nome vil haja o guerreiro,

Que ousa lutas ferir, travar discórdias,

Quando o imigo boré tão perto soa.”

 

Acorre o piaga em meio do conflito:

“Prudência, ó filho de Jaguar, exclama;

Nem mais sangue timbira se derrame,

Que já não basta por pagar-nos deste,

Que derramaste, quando houver nas veias

Dos pérfidos Gamelas. O que ouviste,

Que o forte Japeguá diz ter sonhado,

Assela o que tupã me está dizendo

Cá dentro em mim nos decifrados sonhos,

Depois que os funestou propínquo sangue.”

 

“Devoto piaga (Mojacá prossegue)

Que vida austera e penitente vives

Dos rochedos na Iapa venerada,

Tu, dos gênios do Ibaque bem fadado,

Tu face a face com Tupã praticas

ves nos sonos meus melhor qu’eu mesmo.

Escuta, e dize, ó venerando piaga

(Benévolo Tupã teus ditos oiça)

Angüera mau turbou-te a fantasia,

Aflito Mojacá, teu sonho mente.”

 

Palavras tais no índio circunspecto,

Cujos lábios envão nunca se abriram;

Guerreiro, cujos sonhos nunca foram,

Nem mesmo em risco estreito, pavorosos;

No vulgo frio horror vão trescalando,

Que entre a crença do piaga, e a deferência

Devida a tanto herói flutua incerta.

“Eu vi, diz ele, vi em baba imiga

Guerreiro, como vós, comado e hirsuto!

A corda estreita do cruento rito

Os rins lhe apertaa dura tangapema

Sobre-está-lhe fatal; – cantos se entoam

E a tuba dançatriz em torno gira.

Sono não foi, que o vi, como vos vejo;

Mas não vos direi já quem fosse o triste!

Se vísseis, como eu vi, a fronte altiva,

O olhar soberbo, – aquela força grande,

Aquele riso desdenhoso e fundo...

Talvez um só, nenhum talvez se encontre,

 eu seja para estar no passo horrendo

Tão seguro de si, tão descansado!

 

Acaso um tronco volumoso e tôsco

De escamas fortes entre si travadas

Ali perto jazia. Ogib, o velho,

Pai do errante Jatir, ali sentou-se.

Ali triste pensava, até que o sonho

Do aflito Mojacá veio acorda-lo.

“Tupã! que mal te fiz, que assim me colha

Do teu furor a seta envenenada?

Com voz choroza e trêmula clamava.

“Escuto os gabos que só cabem nele,

Vejo e conheço o costumado ornato

Do filho meu querido! isto que fora,

A quem tão infeliz como eu não fosse,

Ventura grande, me constringe o peito!

Conheço o filho meu no que disseste,

Guerreiro, como a flor pelo perfume,

Como o esposo conhece a grata esposa

Pelas usadas plumas da araçóia,

Que entre as folhas do bosque a espaços brilha,

Ai! nunca brilhe a flor, se hão de roê-la

Insetos; nunca vague a linda esposa

No bosque, se há de as feras devora-la!

 

A dor que mostra o velho em todo o aspecto,

Nas vozes por soluços atalhadas,

Nas lágrimas que chora, os move a todos

A triste compaixão; mas mais àquele,

Que, antes do pobre pai, já todo angústias,

Da própria narração se enternecia.

Às querelas de Ogib volta o rosto

O fatal sonhador, – que, seu mau grado,

As setas da aflição tendo cravado

Nas entranhas de um pai, quer logo o suco,

Fresco e saudável, do louvor, na chaga

Verter-lhe, donde o sangue em jorros salta.

 

“Tal era, tão impávido (prossegue,

Fitando o velho Ogib o seu desplante,

Qual foi o de Jatir naquele dia,

Quando, novel nas artes do guerreiro,

Circundado se viu à nossa vista

D’imiga multidão: todos o vimos;

Todos da clara estirpe deslembrados,

Clamamos tristes, pávidos: “É morto!

Ele porém que o arco usar não pode,

O válido tacape desprendendo,

Sacode-o, vibra-o: fere, prostra e mata

êste, àquele; e em volumosos feixes

Acerva a turba vil, lucrando um nome.

 

Tapir, caudilho seu, que não suporta

Que um homem só e quase inerme, o cubra

De tamanho labéu, altivo brada:

“Cede-me, estulto, cede ao meu tacape

Que nunca ameaçou ninguém debalde.”

E assim dizendo vibra crebros golpes,

Co a bruta folha retalhando os ares!

Um coiro de tapir, em vez de escudo,

Rijo e piloso lhe guardava os membros.

Jatir, do arco seu curvando as pontas,

Sacode a seta fina e sibilante,

Que vara o couro e o corpo surge for.

Tomba de chofre o índio, e o som da queda

Remata o som que a voz não rematara.

Vista a pel’ do tapir, que o resguardava,

Japi, mesmo Japi lhe inveja o tiro.”

 

Todo o campo se aflige, todos clamam:

JatirJatiro forte entre os mais fortes.”

Ordem não há; mulheres e meninos

Baralham-se em tropel: o pranto, os gritos

Confundem-se: do velho Ogib entanto

Mal se percebe a voz “Jatir” gritando.

 

Itajubá por fim silêncio impondo

À turba mulheril, e à dos guerreiros

Nesta batalha: “Consultemos, disse,

Consultemos o piaga: às vezes pode

O santo velho, serenando o ibaque,

Amigo bom tornar o Deus malquisto.”

 

Mas ora não! – responde o piaga iroso.

“Só quando ruge a negra tempestade,

“Só quando a fúria d’Anhangá fuzila

Raios do escuro céu na terra aflita

Do piaga vos lembrais?Tanta lembrança,

Tarda e fatal, guerreiros! Quantas vezes

Não fui, em mesmo, nos terreiros vossos

Fincar o santo maracá? Debalde,

Debalde o fui, que à noite o achava sempre

Sem oferta, que aos Deuses tanto prazem!

Nu e despido o vi, como ora o vedes.

(E assim dizendo mostra o sacrossanto

Mistério, que de irado pareceu-lhes

Soltar mais rouco som no seu rugido)

Quem de vós se lembrou que o santo Piaga

Na lapa dos rochedos se mirrava

Apura míngua? Só Tupã, que ao velho

Deu não sentir os dentes aguçados

Da fome, que por dentro o remordia,

E mais cruel, passada entre os seus filhos!

 

Cegou-nos Anhangá, diz Itajubá,

Fincando o maracá nos meus terreiros,

Cegou-nos certo! – nunca o vi sem honras!

Que o vira, bom piaga... oh!não se diga

Que um homem só, dos meus, perece à mingua,

(Quem quer que seja, quanto mais um Piaga_

Quando campeam tantos homens d’arco

Nas tabas de Itajubá, – tantas donas

Na cultura dos campos adestradas.

hoje mesmo farei que ao antro escuro

Caminhem tantos dons, tantas ofertas,

Que o teu santo mistério há de por força,

Quer queiras, quer não, dormir sobre elas!

“Talvez a rica of’renda aplaca os Deuses,

E saudável conselho a noite inspira!

Disse e sem ais dizer se acolhe à gruta.

 

À caça, ó meus guerreiros, brada o chefe;

Ledas donzelas ao cauim se apliquem,

Os meninos à pesca, à roça as donas,

Eia!” – Ferve o labor, reina o tumulto,

Que quase tanto val como a alegria,

Ou antes, só prazer que o povo gosta.

 

Já deslembrados do que ausente choram

Favor das turbas que tão leve passas!

Ledos no peito, ledos na aparência

Todos se incumbem da tarefa usada.

 

Trabalho no prazer, prazer que moras

Dentro de tanto afã! festa que nasces

Sob auspícios tão maus, possa algum gênio,

Possa Tupã sorrir-te carinhoso,

E das alturas condoer-se amigo

Do triste, órfão de amor, e pai sem filho!


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 01 de maio de 2022

OS TIMBIRAS - CANTO SEGUNDO (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)
 

OS TIMBIRAS

CANTO SEGUNDO

Gonçalves Dias

 

 

Desdobra-se da noite o  manto escuro:

Leve brisa subtil pela floresta

Enreda-se e murmura, – amplo silêncio

Reina por fim. Nem saberás tu como

Essa imagem da morte é triste e torva.

Se nunca, a sós contigo, a pressentisse

Longe deste zunir da turba inquieta.

No ermo, sim; procura o ermo e as selvas...

Escuta o som final, o extremo alento,

Que exala em fins do dia a natureza!

O pensamento, que incessante voa,

Vai do som â mudez, da luz às sombras

E da terra sem flor, ao céu sem astro.

Simelha a graça luz, qu’inda vacila

Quando, em ledo sarau, o extremo acorde

No deserto salão geme, e se apaga!

 

Era pujante o chefe dos Timbiras,

Sem conto seus guerreiros, três as tabas,

Opimas, – uma e uma derramadas

Em giro, como dança dos guerreiros.

Quem não folgara de as achar nas matas!

Três flores em três hastes diferentes

Num mesmo tronco, – três irmãs formosas

Por um laço de amor ali prendidas

No ermo; mas vivendo aventuradas?

Deu-lhes assento o herói entre dois montes,

Em chã copada de frondosos bosques.

Ali o cajazeiro as perfumava,,

O cajueiro, na estação das flores,

De vivo sangue marchetava as folhas?

As mangas, curvas à feição de um arco,

Beijavam-lhes o teto; a sapucaia

Lambia a terra , – em graciosos laços

Doces maracujás de espessas ramas

Sorriam-se pendentes; o pau-d’arco

Fabricava um dossel de cróceas flores,

E as parasitas de matiz brilhante

úsnea das palmeiras estrelavam!

 

Quadro risonho e grande, em que não fosse

Em granito eu em mármore talhado!

Nem palácios,  nem Tôrres avistaras,

Nem castelos que os anos vão comento,

Nem grimpas, nem zimbórios, nem feituras

Em pedra, que os humanos tanto exaltam!

Rudas palhoças só! que mais carece

Quem há de ter somente um sol de vida,

Jazendo negro pó antes do ocaso?

Que mais? Tão bem a dor há de sentar-se

E a morte revoar tão solta em gritos

Ali, como nos átrios dos senhores.

Tão bem a compaixão há de cobrir-se

De dó, limpando as lágrimas do aflito.

Incerteza voraz, tímida esp’rança,

Desejo, inquietação também lá moram;

Que sobra pois em nós, que falta neles?

 

De Itajubá separam-se os guerreiros;

Mudos, às portas das sombrias tabas,

Imóveis, nem que fossem duros troncos,

Pensativos meditam: Já da guerra

Nada receiam, que Itajubá os manda?

O encanto, os manitôs inda o protege,

Vela tupã sobre ele, e os santos piagas

Comprida série de floridas quadras

Ver lhe asseguram: nem de há pouco a luta,

Melhor dissertas de renome ensejo,

Os desmentiu, que nunca os piagas mentem.

Medo, certo, não têm; são todos bravos!

Por que meditam pois? Também não sabem!

 

Sai o piaga no entanto da caverna,

Que nunca humanos olhos penetraram

Com ligeiro cendal os rins aperta,

Cocar de escuras plumas se debruça

Da fronte, em que se enxerga em fundas rugas

O tenaz pensamento afigurado.

Cercam-lhe os pulsos cascavéis loquazes,

Respondem outros, no tripúdio sacro

Dos pés. Vem majestoso, e grave, e cheio

Do Deus, que o peito seu, tão fraco, habita.

E em quanto o fumo lhe volteia em torno,

Como neblina em torno ao sol que nasce,

Ruidoso maracá nas mãos sustenta,

Solta do sacro rito os sons cadentes.

 

_________________

 

Visita-nos Tupã, quando dormimos,

É só por seu querer que estão sonhamos,

Escute-me Tupã! Sobre vós outros,

Poder do maracá por mim tangido,

Os sonhos desçam, quando o orvalho desce.

“O poder de Anhangá cresce co’a noite;

Sota de noite o mau seus maus ministros:

Caraibebes na floresta acendem

A falsa luz, que o caçador transvia.

Caraibebes enganosas formas

Dão-nos aos sonhos, quando nós sonhamos.

Poder do fumo, que lhes quebra o encanto,

De vós se partam; masTupã vos olhe,

Descendo os sonhos, quando o orvalho desce.

 

“O sonho e a vida são dois galhos gêmeos;

São dois irmãos quer um laço amigo aperta:

A noite é o laço; mas Tupã é o troco

E a seve e o sagüi que circula em ambos.

Vive melhor que da existência ignaro,

Na paz da noite, novas forças cria.

O louco vive com aferro, em quanto

N1alma lhe ondeiam do delírio as sombras,

De vida espúrias; Deus porém lhas rompe

E na loucura do porvir no fala!

Tupã vos olhe,  e sobre vós do Ibaque

Os sonhos desçam, quando o orvalho desce!

 

Assim cantava o piaga merencório,

Tangia o maracá, dançava em roda

Dos guerreiros: poderá ouvido atento

Os sons finais da lúgubre toada

Na plácida mudez da noite amiga

De longe, em côro ouvir? “Sobre nós outros

Os sonos desçam, quando o orvalho desce.”

 

Calou-se o piagaka descansam todos!

Almo Tupã os comunique em sonhos,

E os que sabem tão bem vencer batalhas

Quando acordados malbaratam golpes

Saibam dormidos figurar triunfos!

 

Mas que medita o chefe dos Timbiras?

Bosqueja por ventura ardis de guerra,

Fabrica e enreda as ásperas ciladas,

E a olhos nus do pensamento enxerga

Desfeita em sangue revolver-se em gritos

Morte pávida e má?! ou sente e avista,

Escandecida a mente, o Deus da guerra

Impávido Aresquisanhudo e forte,,

Calcar aos pés cadáveres sem conto,

Na destra ingente sacudindo a maça,

Donde certeira como o raio, desce

A morte, e banha-se orgulhosa – em sangue?

 

Al sente o bravo; outro pensar o ocupa!

Nem Aresqui,nem sangue se lhe antolha,

Nem resolve consigo ardis de guerra,

Nem combates, nem lágrimas medita:

Sentiu calar-lhe n’alma em sentimento

Gelado e mudo, como o véu da noite.

Jatir, dos olhos negros, onde pára?

Que faz que lida: ou que fortuna corre?

Três sóis já são passados: quanto espaço,

Quanto azar não correu nos amplos bosques

impróvido mancebo aventureiro?

Ali na relva a cascavel se esconde,

Ali, das ramas debruçado, o tigre

Aferra traiçoeiro a presa incauta!

Reserve-lhe Tupã mais fama e glória,

E voz amiga de cantor suave

C’os altos feitos lhe embalsame o nome!

 

Assim discorre o chefe, que em nodoso

Tronco rudo-lavrado se recosta?

Não tem poder a noite em seus sentidos,

Que a mesma idéia de contínuo volvem.

Vela e treme nos tetos da cabana

A baça luz das resinosas tochas,

Acres perfumes recendendo; – alastram

De rubins cor de brasa a flor do rio!

 

“Ouvira com prazer um triste canto,

Diz lá consigo; um canto merencório.

Que este presságio fúnebre espancasse.

Bem sinto um não se que aferventar-se-me

Nos olhos, que vai prestes expandir-se:

Não sei chorar, bem sei; mas fora grato,

Talvez bem grato!à noite, e a sós comigo

Sentir macias lágrimas correndo.

O talo agreste de um cipó em graça

Verte compridas lágrimas cortado

O tronco do cajá desfaz-se em goma,

Suspira o vento, o passarinho canta,

O homem cora! eu só, mais desditoso,

Invejo o passarinho, o tronco, o arbusto,

E quem, feliz, de lágrimas se paga”

 

Longo espaço depois falou consigo,

Mudo e sombrio: “Sabiá das matas,

Croá (diz ele ao filho d’Iandiroba)

As mais canoras aves, as mais tristes

No bosque, a suspirar contigo aprendam.

Canta, pois que trocara de bom grado

Os altos feitos pelos doces carmes

Quem quer que os escutou, mesmo Itajubá.

 

Eudeceu: na taba quase escura,

Com pé alterno a dança vagarosa,

Aos sons do maracá, traçava os passos.

“Flor de beleza, luz de amor, Coema,

Murmurava o cantor, onde te foste,

Tão doce e bela, quanto o sol raiava?

Coema, quanto amor que nos deixaste?

Eras tão meiga, teu sorrir tão brando,

Tão macios teus olhos! teus acentos

Cantar perene, tua voz gorjeios

Ruas palavras mel! O romper d’alva,

Se encantos punha a par dos teus encantos

Tentava embalde pleitear contigo!

Não tinha a ema porte mais soberbo,

Nem com mais graça recurvava o colo!

Coema, luz de amor, onde te foste?

 

“Amava-te o melhor, o mais guerreiro

Dentre nós? elegeu-te companheira,

A ti somente, que só tu achavas

Sorriso e graça na presença dele

Flor, que nasceste no musgoso cedro,

Cobravas páreas de abundante seiva,

Tinhas abrigo e proteção das ramas...

Que vendaval te despegou do tronco,

E ao longe, em pó, te esperdiçou no vale?

Coema, luz de amor, flor de beleza,

Onde te foste, quando o sol raiava?

 

“Anhangá rebocou estreita igara

Contra a corrente: Orapacém vem nela,

Orapacém, Tupinambá famoso

Conta prodígios duma raça estranha,

Tão alva como o dia, quando nasce,

Ou como a areia cândida e luzente,

Que as águas dum regato sempre lavam.

Raça, q quem os raios prontos servem,

E o trovão e o relâmpago acompanham

Já de Orapacém os mais guerreiros

Mordem o pó, e as tabas feitas cinza

Clamam vingança em vão contra os estranhos.

Talvez d’outros estranhos perseguidos,

Em punição talvez d’atroz delito.

Orapacém, fugindo, brada sempre:

MairMair! Tupã! – Terror que mostra,

Brados que solta, e as derrocadas tabas,

Desde Tapuitapera alto proclamam

Do vencedor a indômita pujança.

Ai! não viesse nunca as nossas tabas

O tapuia mendaz, que os bravos feitos

Narrava do Mair; nunca os ouviras,

Flor de beleza, luz de amor, Coema!

 

“A cega desventura, nunca ouvida,

Nos move à compaixão: prestes corremos

Com ledo gasalhado restaura-los

Da vil dureza do seu fado: dormem

Nas nossas redes diligentes vamos

Colher-lhes frutos, -- descansados folgam

Nas nossas tabas? Itajubá mesmo

Of’rece abrigo ao palrador tapuia!

Hospedes são, nos diz; Tupã os manda:

Os filhos de tupâ serão bem vindos,

Onde Itajubá impera! – Ao que não eram,

Nem filhos de Tupã, nem gratos hóspedes

Os vis que o rio, a custo, nos trouxera;

Antes dolosa resfriada serpe

Que ao nosso lar creou vida e peçonha.

Quem nunca os vira! porem tu, Coema,

Leda avezinha, que adejavas livre,

Asas da cor da prata ao sol abrindo,

A serpente cruel porque fitaste,

Se já do olhado mau sentias pejo?!

 

“Ouvimos, uma vez, da noite em meio,

Voz de aflita mulher pedir socorro

/e em tom sumido lastimar-se ao longe.

Opacém! – bradou feroz três vezes

O filho de Jaguar: clamou debalde.

Somente acode o eco à voz irada,,

Quando ele o malfeitor no instinto enxerga.

Em sanhas rompe o chefe hospitaleiro,

E tenta com afã chegar ao termo,

Donde as querelas míseras partiam.

Chegou – já tarde! – nós, mais tardos inda,

Assistimos ao súbito espetáculo!

 

“Queimam-se raros fogos nas desertas

Margens do rio, quase imerso em trevas:

Afadigados no labor noturno,

Os traiçoeiros hóspedes caminham,

Pejando à pressa as côncavas igaras.

Longe, Coema, a doce flor dos bosques,

Com voz de embrandecer duros penhascos,

Suplica e roja em vão aos pés do fero,

Caviloso tapuia! Não resiste

Ao fogo da paixão, que dentro lavra,

O bárbaro, que a viu, que a vê tão bela!

 

“Vai arrastá-la, – quando sente uns passos

Rápidos, breves, – volta-se: – Itajubá!

Grita; e os seus, medrosos, receiando

A perigosa luz, os fogos matam.

Mas, no extremo clarão que eles soltaram,

Viu-se Itajubá com seu arco em punho,

Calculando a distância, a força e o tiro:

Era grande a distância, a força imensa...

 

“E a raiva incrível, continua o chefe,

A antiga cicatriz sentindo abrir-se!

Ficou-me o arco em dois nas mãos partido,

E a frecha vil caiu-me sãos pés sem força.”

E assim dizendo nos cerrados punhos

De novo pensativo a fronte oprime.

 

“Sim, tornava o Cantor, Imenso e forte

Devera o arco ser, que entre nós todos

Só um achou, que lhe vergasse as pontas,

Quando Jaguar morreu! – partiu-se o arco!

Depois ouviu-se um grito, após ruído,

Que as águas fazem no tombar de um corpo;

Depois – silêncio e trevas...

        –“Nessas trevas,

Replicava Itajubá, – inteira a noite,

Louco vaguei, corri d’encontro as rochas,

Meu corpo lacerei nos espinheiros,

Mordi sem tino a terra já cansado:

Soluçavam porém meus frouxos lábios

O nome dela tão querido, e o nome...

Aos vis Tupinambás nunca os eu veja,

Ou morra, antes de mim, meu nome e glória

Se os não hei de punir ao recordar-me

A aurora infausta que me trouxe aos olhos

O cadáver...” Parou, que a estreita gorja

Recusa aos cavos sons prestar acento.

 

“Descansa agora o pálido cadáver,

Continua o cantor junto à corrente

So regato, que volve areias d’ouro.

Ali agrestes flores lhe matizão

O modesto sepulcro, – aves canoras

Descantam tristes nênias so compasso

Das águas, que também nênia soluçam

 

“Suspirada Coema, em paz descansa

No teu florido e fúnebre jazigo;

Mas quando a noite dominar no espaço,  

Quando a lua coar úmidos raios

Por entre as densas, buliçosas ramas,

Da cândida neblina veste as formas,

E vem no bosque suspirar co’a brisa:

Ao guerreiro, qu dorme, inspira sonhos,

E à virgem, que adormece, amor inspira.”

 

Calou-se o maracá rugiu de novo

A extrema vez, e jaz emudecido.

Mas no remanso do silêncio e trevas,

Como débil vagido, escutarias

Queixosa voz, que repetia em sonhos:

“Veste, Coema, as formas da neblina,

Ou vem nos raios trêmulos da lua

Cantar, viver e suspirar comigo.”

 

___________

 

Ogib, o velho pai do aventureiro

Jatir, não dorme nos vazios tetos:

Do filho ausente prendem-no cuidados;

Vela cansado e triste o pai coitado,

Lembrando-se desastres que passaram

Impróvidos, no bosque pernoitando.

E vela, – e a mente aflita mais se enluta,

Quanto mais cresce a noite e as trevas crescem!

Já tarde, sente uns passos apressados,

Medindo a taba escura; o velho treme,

Estende a mão convulsa, e roça um corpo

Molhado e tiritante: a voz lhe falta...

Atende largo espaço, até que escuta

A voz do sempre aflito Piaíba,

Ao pé do fogo extinto lastimar-se.

 

“O louco Piaíba, a noite inteira,

Andou nas matas; miserando sofre;

O corpo tem aberto em fundas chagas,

E o orvalho gotejou fogo sobre elas;

Como o verme na fruta, um Deus maligno

Lhe mora na cabeça, oh! quanto sofre!

“Em quanto o velho Ogib está dormindo,

Vou-me aquecer;

O fogo é bom, o fogo aquece muito;

Tira o sofrer.

Em quanto o velho dorme, não me expulsa

D’ao pé do lar;

Dou-lhe a mensagem, que me deu a morte,

Quando acordar!

Eu via a morte: vi-a bem de perto

Em hora má!

Vi´-a de perto, não me quis consigo,

Por ser tão má.

Só não tem coração, dizem os velhos,

E é bem de ver;

Que, se o tivera, me daria a morte,

Que é meu querer.

Não quis matar-me; mas é bem formosa;

Eu vi-a bem:

É como a virgem, que não tem amores,

Nem ódios tem..

O fogo é bom, o fogo aquece muito,

Quero-lhe bem!

 

Remexe, assim dizendo, as frias cinzas

E mais e mais conchega-se o borralho.

O velho entanto, erguido a meio corpo

Na rede, escuta pávido, e tirita

De frio e medo, – quase igual delírio

Castiga-lhe as idéias transtornadas.

 

“Já me não lembra o que me disse a morte!...

Ah! sim, já sei!

–Junto ao sepulcro da fiel Coema,

Ali serei:

Ogib emprazo, que a falar me venha

Ao anoitecer! –

O velho Ogib há-de ficar contente

Co’o meu dizer;

Talvez que o velho, que viveu já muito,

Queira morrer!

Emudeceu: alfim tornou mais brando.

“Mas dizem que a morte procura mancebos,

Porém tal não é:

Que colhe as florinhas abertas de fresco

E os frutos no pé?!...

Não, não, que só ama sem folha as flores,

E sem perfeição;

E os frutos perdidos, que apanha golosa,

Caídos no chão.

Também me não lembra que tempo hei vivido,

Nem por que razão

Da morte me queixo,que vejo, e não vê-me,

Tão sem compaixão.”

As ânsias não vencendo, que o soçobram

Salta da curva rede Ogib aflito;

Trêmulo as trevas apalpando, topa,

E roja miserando aos pés do louco.

 

– “Oh! dize-me, se a viste, e se em tua alma

Algum sentir humano inda se aninha,

Jatir, que é feito dele? Disse a morte

Haver-me cubiçado o moço imberbe,

A cara luz dos meus cansados olhos:

Oh dize-o! Assim o espírito inimigo

Folgados anos respirar te deixe!

O louco ouviu nas trevas os soluços

Do velho, mas seus olhos nada alcançam:

Pasma, e de novo o seu cantar começa:

“Em quanto o velho dorme, não me expulsa

D’ao pé do lar.”

           – “Mas expulsei-te eu nunca?

Tornava Ogib a desfazer-se em pranto,

Em ânsias de transido desespero.

Bem sei que um Deus te mora dentro d’alma;

E nunca houvera Ogib de espancar-te

Do lar, onde Tupã é venerado.

Mas fala! ohfala, uma só vez repete-o:

Vagaste à noite nas sombrias matas...”

 

“Silencio! brada o louco, não escutas:?!”

E pára, como ouvindo uns sons longínquos.

Depois prossegue: Piaíba o louco

Errou de noite nas sombrias matas;

O corpo tem aberto em fundas chagas,

E o orvalho gotejou fogo sobre elas.

Geme e sofre e sente fome e frio,

Nem há quem de seus males se condoa.

Oh! tenho frio! o fogo é bom, e aquece,

Quero-lhe bem!

   – “Tupã, que tudo podes,

Orava Ogib em lágrima desfeito,

A vida inútil do cansado velho

Toma, se a queres; mas que eu veja em vida

Meu filho, só depois me colha a morte!


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 24 de abril de 2022

OS TIMBIRAS - CANTO PRIMEIRO (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)
 

OS TIMBIRAS

CANTO PRIMEIRO

Gonçalves Dias

 

Sentado em sítio escuso descansava

Dos Timbiras o chefe em trono anoso,

Itajubá, o valente, o destemido

Acoçador das feras, o guerreiro

Fabricador das incansáveis lutas.

Seu pai, chefe também, também Timbira,

Chamava-se o Jaguar: dele era fama

Que os musculosos membros repeliam

A flecha sibilante, e que o seu crânio

Da maça aos tesos golpes não cedia.

Cria-se... e em que não crê o povo stulto?

Que um velho piaga na espelunca horrenda

Aquele encanto, inútil num cadáver,

Tirara ao pai defunto, e ao filho vivo

Inteiro o transmitira: é certo ao menos

Que durante uma noite juntos foram

O moço e o velho e o pálido cadáver.

 

Mas acertando um dia estar oculto

Num denso tabocal, onde perdera

Traços de fera, que rever cuidava,

Seta ligeira atravessou-lhe um braço.

Mão d’imigo traidor a disparara,

Ou fora algum dos seus, que receioso

Do mal causado, emudeceu prudente.

 

Relata o caso, irrefletido, o chefe.

Mal crido foi! –– por abonar seu dito,

Redobra d’imprudência, –– mostra aos olhos

A traiçoeira flecha, o braço e o sangue.

A fama voa, as tribos inimigas

Adunam-se, amotinam-se os guerreiros

E as bocas dizem: o Timbira é morto!

Outras emendam: Mal ferido sangra!

Do nome do Itajubá se despega

O medo, – um só desastre venha, e logo

Esse encanto vai prestes converter-se

Em riso e farsa das nações vizinhas!

Os manitós, que moram pendurados

Nas tabas d’Itajuba, que as protejam:

O terror do seu nome já não vale,

Já defensão não é dos seus guerreiros!

 

Dos Gamelas um chefe destemido,

Cioso d’alcançar renome e glória,

Vencendo a fama, que os  sertões enchia,

Saiu primeiro a campo, armado e forte

Guedelha e ronco dos sertões imensos,

Guerreiros mil e mil vinham trás ele,

Cobrindo os montes e juncando as matas,

Com pejado carcaz de ervadas setas

Tingidas d’urucu, segundo a usança

Bárbara e fera, desgarrados gritos

Davam no meio das canções de guerra.

 

Chegou, e fez saber que era chegado

O rei das selvas a propor combate

Dos Timbiras ao chefe. ––  “A nós só caiba,

(Disse ele) a honra e a glória; entre nós ambos

Decida-se a questão do esforço e brios.

Estes, que vês, impávidos guerreiros

São meus, que me obedecem; se me vences,

São teus; se és o vencido, os teus me sigam:

Aceita ou foge, que  a vitória é minha.”

 

Não fugirei, respondeu-lhe Itajubá,

Que os homens, meus iguais, encaram fito

O sol brilhante, e os não deslumbra o raio.

 

Serás, pois que me afrontas, torna o bárbaro

Do meu valor troféu, –– e da vitória,

Qu’hei de certo alcançar, despojo opimo.

Nas tabas em que habito ora as mulheres

Tecem da sapucaia as longas cordas,

Que os pulsos teus hão de arrochar-te em breve;

E tu vil, e tu preso, e tu coberto

D’escárnio de d’irrrisão! – Cheio de glória,

Além dos Andes voará meu nome!

 

O filho de Jaguar sorriu-se a furto:

Assim o pai sorri ao filho imberbe,

Que, desprezado o arco seu pequeno,

Talhado para aquelas mãos sem forças,

Tenta doutro maior curvar as pontas,

Que vezes três o mede em toda altura!

 

Travaram luta fera os dois guerreiros,

Primeiro ambos de longe as setas vibram,

Amigos manitôs, que ambos protegem,

Nos ares as desgarram, Do Gamela

Entrou a fecha trêmula num tronco

E só parou no cerne, a do Timbira,

Cicando veloz, fugiu mais longe,

Roçando apenas os frondosos cimos

Encontraram-se valentes: braço  a braço,

Alentando açodados, peito a peito,

Revolvem fundo a terra aos pés, e ao longe

Rouqueja o peito arfado um som confuso.

 

Cena vistosa! quadro aparatoso!

Guerreiros velhos, à vitória afeitos,

Tamanhos campeões vendo n’arena,

E a luta horrível e o combate aceso,

Mudos quedaram de terror transidos.

Qual daqueles heróis há de primeiro

Sentir o egrégio esforço abandona-lo

Perguntam; mas não há quem lhes responda.

 

São ambos fortes: o Timbira hardido,

Esbelto como o tronco da palmeira,

Flexível como a flecha bem talhada,

Ostenta-se robusto o rei das selvas;

Seu corpo musculoso, imenso e forte

È como rocha enorme, que desaba

De serra altiva, e cai no vale inteira

Não vale humana força desprende-la

Dali, onde ela está: fugaz corisco

Bate-lhe a calva fronte sem parti-la.

 

Separam-se os guerreiros um do outro,

Foi dum o pensamento, – a ação foi d’ambos.

Ambos arquejam, descoberto o peito

Arfa, estua, eleva-se, comprime-se

o ar em ondas sôfregos respiram

Cada qual, mais pasmado que medroso

Se estranha a força que no outro encontra,

A mal cuidada resistência o irrita.

Itajubá! Itajubá! – os seus exclamam

Guerreiro, tal como ele, se descora

Um só momento, é dar-se por vencido

O filho de Jaguar voltou-se rápido

Donde essa voz partiu? quem no aguilhoa?

Raiva de tigre anuviou-lhe o rosto

E os olhos cor de sangue irados pulam

 

“A tua vida a minha glória insulta!

Grita ao rival, e já de mais viveste.”

Disse, e como o condor, descendo a prumo

Dos astros, sobre o lhama descuidoso

Pávido o prende nas torcidas garras,

E sobe audaz onde não chega o raio...

Voa Itajubá sobre o rei das selvas,

Cinge-o nos braços, contra si o aperta

Com força incrível: o colosso verga,

Inclina-se, desaba, cai de chofre,

E o pó levanta e atroa forte os ecos.

Assim cai na floresta um tronco anoso,

E o som da queda se propaga ao longe!

O fero vencedor um pé alçando,

Morre! – lhe brada – e o nome teu contigo!

O pé desceu, batendo a arca do peito

Do exânime vencido: os olhos turvos,

Levou, a extrema vez, o desditoso

Àqueles céus d’azul, àquelas matas,

Doce cobertas de verdura e flores!

 

Depois, erguendo o esquálido cadáver

Sobre a cabeça, horrivelmente belo,

Aos seus o mostra ensangüentado e torpe;

Então por vezes três o horrendo grito

Do triunfo soltou; e os seus três vezes

O mesmo grito em coro repetiram

Aquela massa enfim côa nos ares;

Porem na destra do feliz guerreiro

Dividem-se entre os dedos as melenas,

De cujo crânio marejava o sangue!

 

Transbordando ufania do sucesso

Inda recente, recordava as fases

Orgulhos o guerreiro! Ainda escuta

A dura voz, inda a figura avista

Desse, que ousou atravessar-lhe as sanhas:

Lembra-se! e da lembrança grato enlevo

Lhe côa n’alma em fogo: longos  olhos

Em quanto assim medita, vai levando

Por onde o rio, em tortuosos giros,

Queixoso lambe as empedradas margens.

Assim o jugo seu não escorjassem

Tredos Gamelas co’a noturna fuga!

Pérfidos!o herói jurou vingar-se!

Tremei! qu’há de o valente debelar-vos!

E em quanto segue o céu, e o rio, e as selvas,

Crescem-lhe brios, força, –– alteia o colo,

Fita orgulhos a terra, onde não acha,

Nem crê achar quem lhe resista; eis nisto

Reconhece um dos seus, que pressuroso

Corre encontra-lo, – rápido caminha;

Porém d’instante a instante, d’enfiado

Volta o pávido rosto, onde se pinta

O susto vil, que denuncia o fraco.

– Ó filho de Jaguar – de longe brada,

Neste aperto nos vale, – ei-los se avançam

Pujantes contra nós, tão bastos, tantos,

Como enredados troncos na floresta.

 

Tu sempre tremes, Jurucei, tornou-lhe

Com voz tranqüila e majestosa o chefe.

O mel, que em falas sem cessar distilas,

Tolhe-te o esforço e te enfraquece a vista:

 

Amigos são talvez, amigas tribos,

Algum chefe, que tem conosco as armas,

Em sinal d’aliança, espedaçado:

Vem talvez festejar o meu triunfo,

E os seus cantores celebrar meu nome.

 

Não!não! ouvi o som triste e sonoro

Sas igaras, rompendo a custo as águas

Dos remos manejados a compasso,

E os sons guerreiros do boré, e os cantos

Do combate; parece, d'irritado,

Tão grande peso agora a flor lhe corta,

Que o rio vai sorver as altas margens”.

 

E são Gamelas? – perguntou-lhe o chefe.

“Vi-os, tornou-lhe Jurucei, são eles!”

O chefe dos Timbiras dentro d’alma

Sentiu ódio e vingança remorde-lo.

Rugiu a tempestade, mas lá dentro,

Cá fora retumbou, mas quase extinta.

Começa então com voz cavada e surda.

 

Irás  tu, Jurucei, por mim dizer-lhes:

Itajubá, o valente, o rei da guerra,

Fabricador das incansáveis lutas,

Em quanto a maça não sopesa em quanto

Dormem-lhe as setas no carcaz imóveis,

Of’rece-vos liança e paz; – não ama,

Tigre repleto, espedaçar mais presas,

Nem quer dos vossos derramar mais sangue.

Três grandes Tabas, onde heróis pululam,

Tantos e mais que vós, tanto e mais bravos,

Caídas a seus pés, a voz lhe escutam.

Vós outros, atendei, – cortai nas matas

Troncos robustos e frondosas palmas,

E construí cabanas, – onde o corpo

Caiu do rei das  selvas, – onde o sangue

Daquele herói, vossa perfídia atesta.

 

Aquela briga enfim de dois, tamanhos,

Sinalai; por que estranho caminheiro,

Amigas vendo e juntas nossas tabas,

E a fé, que usais guardar, sabendo, exclamem:

Vejo um povo de heróis e um grande chefe!

 

Disse: e vingando o cimo d’alto monte,

Que em roda largo espaço dominava,

O atroador membi soprou com força.

O tronco, o arbusto, a moita, a rocha, a pedra,

Convertem-se em guerreiros.-- mais depressa,

Quando soa o clarim, núncio de guerra,

Não sopra, e escava a terra, e o ar divide

Co’as crinas flutuantes, o ginete,

Impávido, orgulhoso, em campo aberto.

 

Da montanha Itajubá os vê sorrindo,

Galgando vales, combros, serranias,

Coalhando o ar e o céu de feios gritos.

E folga, por que os vê correr tão prestes

Aos sons do cavo búzio conhecido,

Já tantas vezes repetidos antes

Por vales e por serras; já não pode

Numera-los, de tantos que se apinham;

Mas vendo-os, reconhece o vulto e as armas

Dos seus: “Tupã sorri-se lá dos astros,

– Diz o chefe entre si, – lá, descuidosos

Das folganças de Ibaque, heróis timbiras

Contemplam-me, das nuvens debruçados:

E por ventura de lhes ser eu filho

Enlevam-se, e repetem, não sem glória,

Os seus cantores d’Itajuba o nome.

 

Vem primeiro Jucá de fero aspecto.

Duma onça bicolor cai-lhe na fronte

pel’ vistosa;sob as hirtas cerdas,

Como sorrindo, alvejam brancos dentes,

E nas vazias órbitas lampejam

Dois olhos, fulvos, maus. – No bosque, um dia,

A traiçoeira fera a cauda enrosca

E mira nele o pulo; do tacape

Jucá desprende o golpe, e furta o corpo;

Onde estavam seus pés, as  duras garras

Encravavam-se enganadas, e onde as garras

Morderam, beija a terra a fera exangue

E, morta, ao vencedor tributa um nome.

 

Vem depois Jacaré, senhor dos rios,

Ita-roca indomável, – Catucaba,

Primeiro sempre no combate, – o forte

Juçurana, – Poti ligeiro e destro,

O tardo Japeguá, – o sempre aflito

Piaíba, que espíritos perseguem:

MojacáMopereba, irmãos nas armas,

Sempre unidos, ninguém não foi como eles!

Lagos de sangue derramaram juntos;

Filhos e pais e mães d'imigas tabas

Odeiam-nos chorando, e a glória d’ambos,

Assim chorada, mais e mais se exalta:

Samotim, Pirajá, e outros infindos,

Heróis também, aos quais faltou somente

Nação menor, menos guerreira tribo.

 

Japi, o atirador, quando escutava

Os sons guerreiros do membi troante,

Na tesa corda flecha embebe inteira,

E mira um javali que os alvos dentes,

Navalhados, remove: pára,escuta...

Volvem-lhe os mesmos sons: Bate-lhe o peito

Os olhos pulam, – solta horrendo grito,

Arranca e roça a fera!... a fera atônita,

Aterrada, transida, treme, erriça

As duras cerdas; tiritante, pávida,

Esgazeando os olhos fascinados,

Recua: um tronco só lhe embarga os passos.

Por longo trato, de si mesma alheia,

Demora-se, lembrada: a custo o sangue

Volve de novo ao costumado giro,

Em quando o vulto horrendo se recorda!

 

“Mas onde está Jatir? – pergunta o chefe,

Que debalde o procura entre os que o cercam:

Jatir, dos olhos negros, que me luzem,

Melhor que o sol nascendo, dentro d’alma;

Jatir, que aos chefes todos anteponho,

Cuja bravura e temerário arrojo

Folgo em reger e moderar nos prélios;

Esse, porque não vem, quando vos vindes?

– Corre Jatir no bosque, diz um chefe

Bem sabes como: acinte se desgarra

Dos nossos, – andal só, talvez sem armas,

Talvez bem longe: acordo nele é certo,

Creio, de nos tachar assim de fracos! –

Pais de JatirOgib, entrara em anos;

Grosseiro cedro mal lhe afirma os passos,

Os olhos pouco vêem; mas de conselho

Valioso e prestante. Ali, mil vezes,

Havia com prudência temperado

O juvenil ardor dos seus, que o ouviam.

Alheio agora da prudência, escuta

A voz que o filho amado lhe crimina.

Sopra-lhe o dizer acre a cinza quente,

Viva, acesa, antes brasa, – o amor paterno:

Amor inda tão forte na velhice,

Como no dia venturoso, quando

Cendi, que os olhos seus só viram bela,

Sorrindo luz de amor dos meigos olhos,

Carinhosa lho deu; quando na rede

Ouvia com prazer ass ledas vozes

Dos companheiros seus, – e quando absorto,

Olhos pregados no gentil menino,

Bem longas horas, sim, porém bem doces

Levou cismando aventuradas sinas.

Ali o tinha, ali meigo e risonho

Aqueles tenros braços levantava;

Aqueles olhos límpidos se abriam

À luz da vida: cândido sorriso,

Como o sorrir da flor no romper d’alva,

Radiava-lhe o rosto: quem julgara,

Quem poderá aventar, supor ao menos

Haverem de apertar-se aqueles braços

Tão mimosos, um dia, contra o peito

Arquejante e cansado, – e aqueles olhos

Verterem pranto amargo em soledade?

Incrível! – porém lágrimas cresceram-lhe

Dos olhos, – lá tombou-lhe uma, das faces

No filho, em cujo rosto um beijo a enxuga.

Agora, Ogib, alheio da prudência,

Que ensina, imputações tão más ouvindo

Contra o filho querido, acre responde.

 

“São torpes os anuns que em bandos folgam,

São maus os caitetus, que em varas pascem,

Somente o sabiá geme sozinho,

E sozinho o Condor aos  céus remonta.

Folga Jatir de só viver consigo:

Em bem, que tens agora que dizer-lhe?

Esmaga o  seu tacape a quem vos prende,

A quem vos dana, afoga entre os seus braços,

E em quem vos acomete, emprega as setas.

Fraco! não temes já que te não falte

O  primeiro entre vós, Jatir, meu filho?

 

Despeitoso Itajubá, ouvindo um nome.

Embora o de Jatirapregoado

Melhor, maior que o seu, a testa enruga

E diz severo aos dois qu’inda argumentam

 

Mais respeito, mancebo, ao sábio velho,

Qu’éramos nós crianças, manejava

A seta e o arco em defensão dos nossos.

Tu, velho, mais prudência. Entre nós todos

O primeiro sou eu: Jatir, teu filho,

E forte e bravo; porém novo. Eu mesmo

Gabo-lhe o porte e a gentileza; e aos feitos

Novéis aplaudo: bem  maneja o arco,

Vibra certeira a flecha; mas...(sorrindo

Prossegue) afora dele inda há quem saiba

Mover tão bem as armas, e nos braços

Robustos, afogar fortes guerreiros.

Jatir virá, senão... serei convosco.

(Disse voltado para os  seus, que o cercam)

E bem sabeis que vos não falto eu nunca.

 

Altercam eles nas ruidosas tabas,

Em quanto Jurucei com pé ligeiro

Caminha: as aves docemente atitam,

De ramo em ramo – docemente o bosque

À medo rumoreja, – à medo o rio

Escoa-se e murmura: um borborinho,

Confuso se propaga, – um rio incerto

Dilata-se do sol doirando o ocaso.

Último som que morre, último raio

De luz, que treme incerta, quantos entes

Oh! hão de ver a luz de novo

E o romper d’alva, e os céus, e a natureza

Risonha e fresca, -- e os sons, e os ledos cantos

Ouvir das aves tímidas no bosque

Outra vez ao surgir da nova aurora?!


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 17 de abril de 2022

OS TIMBIRAS - INTRODUÇÃO (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)
OS TIMBIRAS

INTRODUÇÃO

Gonçalves Dias

 

Os ritos semibárbaros dos Piagas,

Cultores de Tupã, a terra virgem

Donde como dum trono, enfim se abriram

Da cruz de Cristo os piedosos braços;

As festas, e batalhas mal sangradas

Do povo Americano, agora extinto,

Hei de cantar na lira.– Evoco a sombra

Do selvagem guerreiro!... Torvo o aspecto,

Severo e quase mudo, a lentos passos,

Caminha incerto, – o bipartido arco

Nas mãos sustenta, e dos despidos ombros

Pende-lhe a rôta aljava... as entornadas,

Agora inúteis setas, vão mostrando

A marcha triste e os passos mal seguros

De quem, na terra de seus pais, embalde

Procura asilo, e foge o humano trato.

 

Quem poderá, guerreiro, nos seus cantos

A voz dos piagas teus um só momento

Repetir; essa voz que nas montanhas

Valente retumbava, e dentro d’alma

Vos ia derramando arrojo e brios,

Melhor que taças de cauim fortíssimo?!

Outra vez a chapada e o bosque ouviram

Dos filhos de Tupã a voz e os feitos

Dentro do circo, onde o fatal delito

Expia o malfadado prisioneiro,

Qu’enxerga a maça e sente a muçurana

Cingir-lhe os rins a enodoar-lhe o corpo:

E sós de os escutar mais forte acento

Haveriam de achar nos seus refolhos

O monte e a selva e novamente os ecos.

 

Como os sons do boré, soa o meu canto

Sagrado ao rudo povo americano:

Quem quer que a natureza estima e preza

E gosta ouvir as empoladas vagas

Bater gemendo as cavas penedias,

E o negro bosque sussurrando ao longe ––

Escute-me. –– Cantor modesto e humilde,

A fronte não cingi de mirto e louro,

Antes de verde rama engrinaldei-a,

D’agrestes flores enfeitando a lira;

Não me assentei nos cimos do Parnaso,

Nem vi correr a linfa da Castália.

Cantor das selvas, entre bravas matas

Áspero tronco da palmeira escolho.

Unido a ele soltarei meu canto,

Em quanto o vento nos palmares zune,

Rugindo os longos encontrados leques.

 

Nem só me escutareis fereza e mortes:

As lágrimas do orvalho por ventura

Da minha lira distendendo as cordas,

Hão de em parte ameigar e embrandece-las.

Talvez o lenhador quando acomete

O tranco d’alto cedro corpulento,

Vem-lhe tingido o fio da segure

De puto mel, que abelhas fabricaram;

Talvez tão bem nas  folhas qu’engrinaldo,

A acácia branca o seu candor derrame

E a flor do sassafraz se estrele amiga.


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 10 de abril de 2022

A MANGUEIRA (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)
A MANGUEIRA

Gonçalves Dias

 

Já viste coisa mais bela
Do que uma bela mangueira,
E a doce fruta amarela,
Sorrindo entre as folhas dela,
E a leve copa altaneira?
Já viste coisa mais bela
Do que uma bela mangueira?

Nos seus alegres verdores
Se embalança o passarinho;
Todo é graça, todo amores,
Decantando seus ardores
À beira do casto ninho:
Nos seus alegres verdores
Se embalança o passarinho!

O cansado viandante
A sombra dela acha abrigo;
Traz-lhe a aragem sussurrante,
Que lhe passa no semblante,
Talvez o adeus d′um amigo;
E o cansado viandante
À sombra dela acha abrigo -

A sombra que ela derrama
Todas as dores acalma;
Seja dor que o peito inflama,
Ou voraz, nociva chama
Que nos mora dentro d′alma,
A sombra que ela derrama
Todas as dores acalma.

O mancebo namorado
Para ela se encaminha;
Bate-lhe o peito açodado
Quando chega o prazo dado,
Quando ao tronco se avizinha,
E o mancebo namorado
Para o tronco se encaminha.

Sob a copa deleitosa
Mil suspiros se entrelaçam,
E d′uma hora aventurosa
Guarda a prova a casca anosa
Nas cifras que ali se abraçam:
Sob a copa venturosa
Mil suspiros se entrelaçam.

Grata estação dos amores,
Abrigo dos que o não tem,
Deixa-me ouvir teus cantores,
Admirar teus verdores;
Presta-me abrigo também,
Grata estação dos amores,
Abrigo dos que o não tem.


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 03 de abril de 2022

CANÇÃO DO TAMOIO (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)
 
 

CANÇÃO DO TAMOIO

Gonçalves Dias

 

I

Não chores, meu filho;
Não chores, que a vida
É luta renhida:
Viver é lutar.
A vida é combate,
Que os fracos abate,
Que os fortes, os bravos
Só pode exaltar.

II

Um dia vivemos!
O homem que é forte
Não teme da morte;
Só teme fugir;
No arco que entesa
Tem certa uma presa,
Quer seja tapuia,
Condor ou tapir.

III

O forte, o cobarde
Seus feitos inveja
De o ver na peleja
Garboso e feroz;
E os tímidos velhos
Nos graves concelhos,
Curvadas as frontes,
Escutam-lhe a voz!

IV

Domina, se vive;
Se morre, descansa
Dos seus na lembrança,
Na voz do porvir.
Não cures da vida!
Sê bravo, sê forte!
Não fujas da morte,
Que a morte há de vir!

V

E pois que és meu filho,
Meus brios reveste;
Tamoio nasceste,
Valente serás.
Sê duro guerreiro,
Robusto, fragueiro,
Brasão dos tamoios
Na guerra e na paz.

VI

Teu grito de guerra
Retumbe aos ouvidos
D'imigos transidos
Por vil comoção;
E tremam d'ouvi-lo
Pior que o sibilo
Das setas ligeiras,
Pior que o trovão.

VII

E a mão nessas tabas,
Querendo calados
Os filhos criados
Na lei do terror;
Teu nome lhes diga,
Que a gente inimiga
Talvez não escute
Sem pranto, sem dor!

VIII

Porém se a fortuna,
Traindo teus passos,
Te arroja nos laços
Do inimigo falaz!
Na última hora
Teus feitos memora,
Tranqüilo nos gestos,
Impávido, audaz.

IX

E cai como o tronco
Do raio tocado,
Partido, rojado
Por larga extensão;
Assim morre o forte!
No passo da morte
Triunfa, conquista
Mais alto brasão.

X

As armas ensaia,
Penetra na vida:
Pesada ou querida,
Viver é lutar.
Se o duro combate
Os fracos abate,
Aos fortes, aos bravos,
Só pode exaltar.


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 27 de março de 2022

MARABÁ (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)

 

MARABÁ

Gonçalves Dias

 

Eu vivo sozinha; ninguém me procura!
Acaso feitura
Não sou de Tupá?
Se algum dentre os homens de mim não se esconde,
— Tu és, me responde,
— Tu és Marabá!

— Meus olhos são garços, são cor das safiras,
— Têm luz das estrelas, têm meigo brilhar;
— Imitam as nuvens de um céu anilado,
— As cores imitam das vagas do mar!

Se algum dos guerreiros não foge a meus passos:
"Teus olhos são garços,
Responde anojado; "mas és Marabá:
"Quero antes uns olhos bem pretos, luzentes,
"Uns olhos fulgentes,
"Bem pretos, retintos, não cor d'anajá!"

— É alvo meu rosto da alvura dos lírios,
— Da cor das areias batidas do mar;
— As aves mais brancas, as conchas mais puras
— Não têm mais alvura, não têm mais brilhar. —

Se ainda me escuta meus agros delírios:
"És alva de lírios",
Sorrindo responde; "mas és Marabá:
"Quero antes um rosto de jambo corado,
"Um rosto crestado
"Do sol do deserto, não flor de cajá."

— Meu colo de leve se encurva engraçado,
— Como hástea pendente do cáctus em flor;
— Mimosa, indolente, resvalo no prado,
— Como um soluçado suspiro de amor! —

"Eu amo a estatura flexível, ligeira,
"Qual duma palmeira,
Então me responde; "tu és Marabá:
"Quero antes o colo da ema orgulhosa,
"Que pisa vaidosa,
"Que as flóreas campinas governa, onde está."

— Meus loiros cabelos em ondas se anelam,
— O oiro mais puro não tem seu fulgor;
— As brisas nos bosques de os ver se enamoram,
— De os ver tão formosos como um beija-flor!

Mas eles respondem: "Teus longos cabelos,
"São loiros, são belos,
"Mas são anelados; tu és Marabá:
"Quero antes cabelos, bem lisos, corridos,
"Cabelos compridos,
"Não cor d'oiro fino, nem cor d'anajá."

E as doces palavras que eu tinha cá dentro
A quem nas direi?
O ramo d'acácia na fronte de um homem
Jamais cingirei:

Jamais um guerreiro da minha arazoia
Me desprenderá:
Eu vivo sozinha, chorando mesquinha,
Que sou Marabá!


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 20 de março de 2022

I-JUCA PIRAMA (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)

 I-JUCA PIRAMA

 

No meio das tabas de amenos verdores,
Cercadas de troncos - cobertos de flores,
Alteiam-se os tetos d’altiva nação;
São muitos seus filhos, nos ânimos fortes,
Temíveis na guerra, que em densas coortes
Assombram das matas a imensa extensão.
São rudos, severos, sedentos de glória,
Já prélios incitam, já cantam vitória,
Já meigos atendem à voz do cantor:
São todos Timbiras, guerreiros valentes!
Seu nome lá voa na boca das gentes,
Condão de prodígios, de glória e terror!
As tribos vizinhas, sem forças, sem brio,
As armas quebrando, lançando-as ao rio,
O incenso aspiraram dos seus maracás:
Medrosos das guerras que os fortes acendem,
Custosos tributos ignavos lá rendem,
Aos duros guerreiros sujeitos na paz.
No centro da taba se estende um terreiro,
Onde ora se aduna o concílio guerreiro
Da tribo senhora, das tribos servis:
Os velhos sentados praticam d’outrora,
E os moços inquietos, que a festa enamora,
Derramam-se em torno dum índio infeliz.
Quem é? - ninguém sabe: seu nome é ignoto,
Sua tribo não diz: - de um povo remoto
Descende por certo - dum povo gentil;
Assim lá na Grécia ao escravo insulano
Tornavam distinto do vil muçulmano
As linhas corretas do nobre perfil.
Por casos de guerra caiu prisioneiro
Nas mãos dos Timbiras: - no extenso terreiro
Assola-se o teto, que o teve em prisão;
Convidam-se as tribos dos seus arredores,
Cuidosos se incubem do vaso das cores,
Dos vários aprestos da honrosa função.
Acerva-se a lenha da vasta fogueira
Entesa-se a corda da embira ligeira,
Adorna-se a maça com penas gentis:
A custo, entre as vagas do povo da aldeia
Caminha o Timbira, que a turba rodeia,
Garboso nas plumas de vário matiz.
Em tanto as mulheres com leda trigança,
Afeitas ao rito da bárbara usança,
índio já querem cativo acabar:
A coma lhe cortam, os membros lhe tingem,
Brilhante enduape no corpo lhe cingem,
Sombreia-lhe a fronte gentil canitar,

II

Em fundos vasos d’alvacenta argila
Ferve o cauim;
Enchem-se as copas, o prazer começa,
Reina o festim.
O prisioneiro, cuja morte anseiam,
Sentado está,
O prisioneiro, que outro sol no ocaso
Jamais verá!
A dura corda, que lhe enlaça o colo,
Mostra-lhe o fim
Da vida escura, que será mais breve
Do que o festim!
Contudo os olhos d’ignóbil pranto
Secos estão;
Mudos os lábios não descerram queixas
Do coração.
Mas um martírio , que encobrir não pode,
Em rugas faz
A mentirosa placidez do rosto
Na fronte audaz!
Que tens, guerreiro? Que temor te assalta
No passo horrendo?
Honra das tabas que nascer te viram,
Folga morrendo.
Folga morrendo; porque além dos Andes
Revive o forte,
Que soube ufano contrastar os medos
Da fria morte.
Rasteira grama, exposta ao sol, à chuva,
Lá murcha e pende:
Somente ao tronco, que devassa os ares,
O raio ofende!
Que foi? Tupã mandou que ele caísse,
Como viveu;
E o caçador que o avistou prostrado
Esmoreceu!
Que temes, ó guerreiro? Além dos Andes
Revive o forte,
Que soube ufano contrastar os medos
Da fria morte.

III

Em larga roda de novéis guerreiros
Ledo caminha o festival Timbira,
A quem do sacrifício cabe as honras,
Na fronte o canitar sacode em ondas,
O enduape na cinta se embalança,
Na destra mão sopesa a iverapeme,
Orgulhoso e pujante. - Ao menor passo
Colar d’alvo marfim, insígnia d’honra,
Que lhe orna o colo e o peito, ruge e freme,
Como que por feitiço não sabido
Encantadas ali as almas grandes
Dos vencidos Tapuias, inda chorem
Serem glória e brasão d’imigos feros.
"Eis-me aqui", diz ao índio prisioneiro;
"Pois que fraco, e sem tribo, e sem família,
"As nossas matas devassaste ousado,
"Morrerás morte vil da mão de um forte."
Vem a terreiro o mísero contrário;
Do colo à cinta a muçurana desce:
"Dize-nos quem és, teus feitos canta,
"Ou se mais te apraz, defende-te." Começa
O índio, que ao redor derrama os olhos,
Com triste voz que os ânimos comove.

IV

Meu canto de morte,
Guerreiros, ouvi:
Sou filho das selvas,
Nas selvas cresci;
Guerreiros, descendo
Da tribo tupi.
Da tribo pujante,
Que agora anda errante
Por fado inconstante,
Guerreiros, nasci;
Sou bravo, sou forte,
Sou filho do Norte;
Meu canto de morte,
Guerreiros, ouvi.
Já vi cruas brigas,
De tribos imigas,
E as duras fadigas
Da guerra provei;
Nas ondas mendaces
Senti pelas faces
Os silvos fugaces
Dos ventos que amei.
Andei longes terras
Lidei cruas guerras,
Vaguei pelas serras
Dos vis Aimoréis;
Vi lutas de bravos,
Vi fortes - escravos!
De estranhos ignavos
Calcados aos pés.
E os campos talados,
E os arcos quebrados,
E os piagas coitados
Já sem maracás;
E os meigos cantores,
Servindo a senhores,
Que vinham traidores,
Com mostras de paz.
Aos golpes do imigo,
Meu último amigo,
Sem lar, sem abrigo
Caiu junto a mi!
Com plácido rosto,
Sereno e composto,
O acerbo desgosto
Comigo sofri.
Meu pai a meu lado
Já cego e quebrado,
De penas ralado,
Firmava-se em mi:
Nós ambos, mesquinhos,
Por ínvios caminhos,
Cobertos d’espinhos
Chegamos aqui!
O velho no entanto
Sofrendo já tanto
De fome e quebranto,
Só qu’ria morrer!
Não mais me contenho,
Nas matas me embrenho,
Das frechas que tenho
Me quero valer.
Então, forasteiro,
Caí prisioneiro
De um troço guerreiro
Com que me encontrei:
O cru dessossêgo
Do pai fraco e cego,
Enquanto não chego
Qual seja, - dizei!
Eu era o seu guia
Na noite sombria,
A só alegria
Que Deus lhe deixou:
Em mim se apoiava,
Em mim se firmava,
Em mim descansava,
Que filho lhe sou.
Ao velho coitado
De penas ralado,
Já cego e quebrado,
Que resta? - Morrer.
Enquanto descreve
O giro tão breve
Da vida que teve,
Deixai-me viver!
Não vil, não ignavo,
Mas forte, mas bravo,
Serei vosso escravo:
Aqui virei ter.
Guerreiros, não coro
Do pranto que choro:
Se a vida deploro,
Também sei morrer.

V

Soltai-o! - diz o chefe. Pasma a turba;
Os guerreiros murmuram: mal ouviram,
Nem pode nunca um chefe dar tal ordem!
Brada segunda vez com voz mais alta,
Afrouxam-se as prisões, a embira cede,
A custo, sim; mas cede: o estranho é salvo.
Timbira, diz o índio enternecido,
Solto apenas dos nós que o seguravam:
És um guerreiro ilustre, um grande chefe,
Tu que assim do meu mal te comoveste,
Nem sofres que, transposta a natureza,
Com olhos onde a luz já não cintila,
Chore a morte do filho o pai cansado,
Que somente por seu na voz conhece.
- És livre; parte.
- E voltarei.
- Debalde.
- Sim, voltarei, morto meu pai.
- Não voltes!
É bem feliz, se existe, em que não veja,
Que filho tem, qual chora: és livre; parte!
- Acaso tu supões que me acobardo,
Que receio morrer!
- És livre; parte!
- Ora não partirei; quero provar-te
Que um filho dos Tupis vive com honra,
E com honra maior, se acaso o vencem,
Da morte o passo glorioso afronta.
- Mentiste, que um Tupi não chora nunca,
E tu choraste!... parte; não queremos
Com carne vil enfraquecer os fortes.
Sobresteve o Tupi: - arfando em ondas
O rebater do coração se ouvia
Precípite. - Do rosto afogueado
Gélidas bagas de suor corriam:
Talvez que o assaltava um pensamento...
Já não... que na enlutada fantasia,
Um pesar, um martírio ao mesmo tempo,
Do velho pai a moribunda imagem
Quase bradar-lhe ouvia: - Ingrato! Ingrato!
Curvado o colo, taciturno e frio.
Espectro d’homem, penetrou no bosque!

VI

- Filho meu, onde estás?
- Ao vosso lado;
Aqui vos trago provisões; tomai-as,
As vossas forças restaurai perdidas,
E a caminho, e já!
- Tardaste muito!
Não era nado o sol, quando partiste,
E frouxo o seu calor já sinto agora!
- Sim demorei-me a divagar sem rumo,
Perdi-me nestas matas intrincadas,
Reaviei-me e tornei; mas urge o tempo;
Convém partir, e já!
- Que novos males
Nos resta de sofrer? - que novas dores,
Que outro fado pior Tupã nos guarda?
- As setas da aflição já se esgotaram,
Nem para novo golpe espaço intacto
Em nossos corpos resta.
- Mas tu tremes!
- Talvez do afã da caça....
- Oh filho caro!
Um quê misterioso aqui me fala,
Aqui no coração; piedosa fraude
Será por certo, que não mentes nunca!
Não conheces temor, e agora temes?
Vejo e sei: é Tupã que nos aflige,
E contra o seu querer não valem brios.
Partamos!... -
E com mão trêmula, incerta
Procura o filho, tacteando as trevas
Da sua noite lúgubre e medonha.
Sentindo o acre odor das frescas tintas,
Uma idéia fatal ocorreu-lhe à mente...
Do filho os membros gélidos apalpa,
E a dolorosa maciez das plumas
Conhece estremecendo: - foge, volta,
Encontra sob as mãos o duro crânio,
Despido então do natural ornato!...
Recua aflito e pávido, cobrindo
Às mãos ambas os olhos fulminados,
Como que teme ainda o triste velho
De ver, não mais cruel, porém mais clara,
Daquele exício grande a imagem viva
Ante os olhos do corpo afigurada.
Não era que a verdade conhecesse
Inteira e tão cruel qual tinha sido;
Mas que funesto azar correra o filho,
Ele o via; ele o tinha ali presente;
E era de repetir-se a cada instante.
A dor passada, a previsão futura
E o presente tão negro, ali os tinha;
Ali no coração se concentrava,
Era num ponto só, mas era a morte!
- Tu prisioneiro, tu?
- Vós o dissestes.
- Dos índios?
- Sim.
- De que nação?
- Timbiras.
- E a muçurana funeral rompeste,
Dos falsos manitôs quebrastes maça...
- Nada fiz... aqui estou.
- Nada! -
Emudecem;
Curto instante depois prossegue o velho:
- Tu és valente, bem o sei; confessa,
Fizeste-o, certo, ou já não fôras vivo!
- Nada fiz; mas souberam da existência
De um pobre velho, que em mim só vivia....
- E depois?...
- Eis-me aqui.
- Fica essa taba?
- Na direção do sol, quando transmonta.
- Longe?
- Não muito.
- Tens razão: partamos.
- E quereis ir?...
- Na direção do acaso.

VII

"Por amor de um triste velho,
Que ao termo fatal já chega,
Vós, guerreiros, concedestes
A vida a um prisioneiro.
Ação tão nobre vos honra,
Nem tão alta cortesia
Vi eu jamais praticada
Entre os Tupis, - e mas foram
Senhores em gentileza.
"Eu porém nunca vencido,
Nem nos combates por armas,
Nem por nobreza nos atos;
Aqui venho, e o filho trago.
Vós o dizeis prisioneiro,
Seja assim como dizeis;
Mandai vir a lenha, o fogo,
A maça do sacrifício
E a muçurana ligeira:
Em tudo o rito se cumpra!
E quando eu for só na terra,
Certo acharei entre os vossos,
Que tão gentis se revelam,
Alguém que meus passos guie;
Alguém, que vendo o meu peito
Coberto de cicatrizes,
Tomando a vez de meu filho,
De haver-me por se ufane!"
Mas o chefe dos Timbiras,
Os sobrolhos encrespando,
Ao velho Tupi guerreiro
Responde com tôrvo acento:
- Nada farei do que dizes:
É teu filho imbele e fraco!
Aviltaria o triunfo
Da mais guerreira das tribos
Derramar seu ignóbil sangue:
Ele chorou de cobarde;
Nós outros, fortes Timbiras,
Só de heróis fazemos pasto. -
Do velho Tupi guerreiro
A surda voz na garganta
Faz ouvir uns sons confusos,
Como os rugidos de um tigre,
Que pouco a pouco se assanha!

VIII

"Tu choraste em presença da morte?
Na presença de estranhos choraste?
Não descende o cobarde do forte;
Pois choraste, meu filho não és!
Possas tu, descendente maldito
De uma tribo de nobres guerreiros,
Implorando cruéis forasteiros,
Seres presa de via Aimorés.
"Possas tu, isolado na terra,
Sem arrimo e sem pátria vagando,
Rejeitado da morte na guerra,
Rejeitado dos homens na paz,
Ser das gentes o espectro execrado;
Não encontres amor nas mulheres,
Teus amigos, se amigos tiveres,
Tenham alma inconstante e falaz!
"Não encontres doçura no dia,
Nem as cores da aurora te ameiguem,
E entre as larvas da noite sombria
Nunca possas descanso gozar:
Não encontres um tronco, uma pedra,
Posta ao sol, posta às chuvas e aos ventos,
Padecendo os maiores tormentos,
Onde possas a fronte pousar.
"Que a teus passos a relva se torre;
Murchem prados, a flor desfaleça,
E o regato que límpido corre,
Mais te acenda o vesano furor;
Suas águas depressa se tornem,
Ao contacto dos lábios sedentos,
Lago impuro de vermes nojentos,
Donde fujas com asco e terror!
"Sempre o céu, como um teto incendido,
Creste e punja teus membros malditos
E oceano de pó denegrido
Seja a terra ao ignavo tupi!
Miserável, faminto, sedento,
Manitôs lhe não falem nos sonhos,
E do horror os espectros medonhos
Traga sempre o cobarde após si.
"Um amigo não tenhas piedoso
Que o teu corpo na terra embalsame,
Pondo em vaso d’argila cuidoso
Arco e frecha e tacape a teus pés!
Sê maldito, e sozinho na terra;
Pois que a tanta vileza chegaste,
Que em presença da morte choraste,
Tu, cobarde, meu filho não és."

IX

Isto dizendo, o miserando velho
A quem Tupã tamanha dor, tal fado
Já nos confins da vida reservada,
Vai com trêmulo pé, com as mãos já frias
Da sua noite escura as densas trevas
Palpando. - Alarma! alarma! - O velho pára!
O grito que escutou é voz do filho,
Voz de guerra que ouviu já tantas vezes
Noutra quadra melhor. - Alarma! alarma!
- Esse momento só vale a pagar-lhe
Os tão compridos trances, as angústias,
Que o frio coração lhe atormentaram
De guerreiro e de pai: - vale, e de sobra.
Ele que em tanta dor se contivera,
Tomado pelo súbito contraste,
Desfaz-se agora em pranto copioso,
Que o exaurido coração remoça.
A taba se alborota, os golpes descem,
Gritos, imprecações profundas soam,
Emaranhada a multidão braveja,
Revolve-se, enovela-se confusa,
E mais revolta em mor furor se acende.
E os sons dos golpes que incessantes fervem,
Vozes, gemidos, estertor de morte
Vão longe pelas ermas serranias
Da humana tempestade propagando
Quantas vagas de povo enfurecido
Contra um rochedo vivo se quebravam.
Era ele, o Tupi; nem fora justo
Que a fama dos Tupis - o nome, a glória,
Aturado labor de tantos anos,
Derradeiro brasão da raça extinta,
De um jacto e por um só se aniquilasse.
- Basta! Clama o chefe dos Timbiras,
- Basta, guerreiro ilustre! Assaz lutaste,
E para o sacrifício é mister forças. -
O guerreiro parou, caiu nos braços
Do velho pai, que o cinge contra o peito,
Com lágrimas de júbilo bradando:
"Este, sim, que é meu filho muito amado!
"E pois que o acho enfim, qual sempre o tive,
"Corram livres as lágrimas que choro,
"Estas lágrimas, sim, que não desonram."

X

Um velho Timbira, coberto de glória,
Guardou a memória
Do moço guerreiro, do velho Tupi!
E à noite, nas tabas, se alguém duvidava
Do que ele contava,
Dizia prudente: - "Meninos, eu vi!
"Eu vi o brioso no largo terreiro
Cantar prisioneiro
Seu canto de morte, que nunca esqueci:
Valente, como era, chorou sem ter pejo;
Parece que o vejo,
Que o tenho nest’hora diante de mi.
"Eu disse comigo: Que infâmia d’escravo!
Pois não, era um bravo;
Valente e brioso, como ele, não vi!
E à fé que vos digo: parece-me encanto
Que quem chorou tanto,
Tivesse a coragem que tinha o Tupi!"
Assim o Timbira, coberto de glória,
Guardava a memória
Do moço guerreiro, do velho Tupi.
E à noite nas tabas, se alguém duvidava
Do que ele contava,
Tornava prudente: "Meninos, eu vi!".

FIM

 


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 13 de março de 2022

LEITO DE FOLHAS VERDES (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)

LEITO DE FOLHAS VERDES

Gonçalves Dias

 

 

Por que tardas, Jatir, que tanto a custo
À voz do meu amor moves teus passos?
Da noite a viração, movendo as folhas,
Já nos cimos do bosque rumoreja.

Eu, sob a copa da mangueira altiva
Nosso leito gentil cobri zelosa
Com mimoso tapiz de folhas brandas,
Onde o frouxo luar brinca entre flores.

Do tamarindo a flor abriu-se, há pouco,
Já solta o bogari mais doce aroma!
Como prece de amor, como estas preces,
No silêncio da noite o bosque exala.

Brilha a lua no céu, brilham estrelas,
Correm perfumes no correr da brisa,
A cujo influxo mágico respira-se
Um quebranto de amor, melhor que a vida!

A flor que desabrocha ao romper d`alva
Um só giro do sol, não mais, vegeta:
Eu sou aquela flor que espero ainda
Doce raio do sol que me dê vida.

Sejam vales ou montes, lago ou terra,
Onde quer que tu vás, ou dia ou noite,
Vai seguindo após ti meu pensamento;
Outro amor nunca tive: és meu, sou tua!

Meus olhos outros olhos nunca viram,
Não sentiram meus lábios outros lábios,
Nem outras mãos, Jatir, que não as tuas
A arazóia na cinta me apertaram

Do tamarindo a flor jaz entreaberta,
Já solta o bogari mais doce aroma;
Também meu coração, como estas flores,
Melhor perfume ao pé da noite exala!

Não me escutas, Jatir! nem tardo acodes
À voz do meu amor, que em vão te chama!
Tupã! lá rompe o sol! do leito inútil
A brisa da manhã sacuda as folhas!


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 06 de março de 2022

O GIGANTE DE PEDRA (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)
O GIGANTE DE PEDRA

Gonçalves Dias

 

O guerriers! ne laissez pas ma dépouille au corbeau!
Ensevelissez-moi parmi des monts sublimes,
Afin que l'étranger cherche, en voyant leurs cimes,
Quelle montagne est mon tombeau!
V.Hugo.Le Géant.

I

Gigante orgulhoso, de fero semblante,
Num leito de pedra lá jaz a dormir!
Em duro granito repousa o gigante,
Que os raios somente puderam fundir.

Dormido atalaia no serro empinado
Devera cuidoso, sanhudo velar;
O raio passando o deixou fulminado,
E à aurora, que surge, não há de acordar!

Co'os braços no peito cruzados nervosos,
Mais alto que as nuvens, os céus a encarar,
Seu corpo se estende por montes fragosos,
Seus pés sobranceiros se elevam do mar!

De lavas ardentes seus membros fundidos
Avultam imensos: só Deus poderá
Rebelde lançá-lo dos montes erguidos,
Curvados ao peso, que sobre lhe 'stá.

E o céu, e as estrelas e os astros fulgentes
São velas, são tochas, são vivos brandões,
E o branco sudário são névoas algentes,
E o crepe, que o cobre, são negros bulcões.

Da noite, que surge, no manto fagueiro
Quis Deus que se erguesse, de junto a seus pés,
A cruz sempre viva do sol no cruzeiro,
Deitada nos braços do eterno Moisés.

Perfumam-no odores que as flores exalam,
Bafejam-no carmes de um hino de amor
Dos homens, dos brutos, das nuvens que estalam,
Dos ventos que rugem, do mar em furor.

E lá na montanha, deitado dormido
Campeia o gigante, — nem pode acordar!
Cruzados os braços de ferro fundido,
A fronte nas nuvens, os pés sobre o mar!

II

Banha o sol os horizontes,
Trepa os castelos dos céus,
Aclara serras e fontes,
Vigia os domínios seus:
Já descai p'ra o ocidente,
E em globo de fogo ardente
Vai-se no mar esconder;
E lá campeia o gigante,
Sem destorcer o semblante,
Imóvel, mudo, a jazer!

Vem a noite após o dia,
Vem o silêncio, o frescor,
E a brisa leve e macia,
Que lhe suspira ao redor;

E da noite entre os negrores,
Das estrelas os fulgores
Brilham na face do mar:
Brilha a lua cintilante,
E sempre mudo o gigante,
Imóvel, sem acordar!

Depois outro sol desponta,
E outra noite também,
Outra lua que aos céus monta,
Outro sol que após lhe vem:
Após um dia outro dia,
Noite após noite sombria,
Após a luz o bulcão,
E sempre o duro gigante,
Imóvel, mudo, constante
Na calma e na cerração!

Corre o tempo fugidio,
Vem das águas a estação,
Após ela o quente estio;
E na calma do verão
Crescem folhas, vingam flores,
Entre galas e verdores
Sazonam-se frutos mil;
Cobrem-se os prados de relva,
Murmura o vento na selva,
Azulam-se os céus de anil!

Tornam prados a despir-se,
Tornam flores a murchar,
Tornam de novo a vestir-se,
Tornam depois a secar;
E como gota filtrada
De uma abóbada escavada
Sempre, incessante a cair,
Tombam as horas e os dias,
Como fantasmas, sombrias,
Nos abismos do porvir!

E no féretro de montes
Inconcusso, imóvel, fito,
Escurece os horizontes
O gigante de granito.
Com soberba indiferença
Sente extinta a antiga crença
Dos Tamoios, dos Pajés;
Nem vê que duras desgraças,
Que lutas de novas raças
Se lhe atropelam aos pés!

III

E lá na montanha deitado dormido
Campeia o gigante! — nem pode acordar!
Cruzados os braços de ferro fundido,
A fronte nas nuvens, e os pés sobre o mar!...

IV

Viu primeiro os íncolas
Robustos, das florestas,
Batendo os arcos rígidos,
Traçando homéreas festas,
À luz dos fogos rútilos,
Aos sons do murmuré!
E em Guanabara esplêndida
As danças dos guerreiros,
E o guau cadente e vário
Dos moços prazenteiros,
E os cantos da vitória
Tangidos no boré.

E das igaras côncavas
A frota aparelhada,
Vistosa e formosíssima
Cortando a undosa estrada,
Sabendo, mas que frágeis,
Os ventos contrastar:
E a caça leda e rápida

Por serras, por devesas,
E os cantos da janúbia
Junto às lenhas acesas,
Quando o tapuia mísero
Seus feitos vai narrar!

E o germe da discórdia
Crescendo em duras brigas,
Ceifando os brios rústicos
Das tribos sempre amigas,
— Tamoi a raça antígua,
Feroz Tupinambá.
Lá vai a gente impróvida,
Nação vencida, imbele,
Buscando as matas ínvias,
Donde outra tribo a expele;
Jaz o pajé sem glória,
Sem glória o maracá.

Depois em naus flamívomas
Um troço ardido e forte,
Cobrindo os campos úmidos
De fumo, e sangue, e morte,
Traz dos reparos hórridos
D'altíssimo pavês:
E do sangrento pélago
Em míseras ruínas
Surgir galhardas, límpidas
As portuguesas quinas,
Murchos os lises cândidos
Do impróvido gaulês!

V

Mudaram-se os tempos e a face da terra,
Cidades alastram o antigo paul;
Mas inda o gigante, que dorme na serra,
Se abraça ao imenso cruzeiro do sul.

Nas duras montanhas os membros gelados,
Talhados a golpes de ignoto buril,
Descansa, ó gigante, que encerras os fados,
Que os términos guardas do vasto Brasil.

Porém se algum dia fortuna inconstante
Puder-nos a crença e a pátria acabar,
Arroja-te às ondas, o duro gigante,
Inunda estes montes, desloca este mar!


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 27 de fevereiro de 2022

TABIRA - POESIA AMERICANA (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)
 

 

TABIRA

POESIA AMERICANA

Gonçalves Dias

 

    I

 

É Tabira guerreiro valente,

Cumpre as partes de chefe e soldado;

É caudilho de tribo potente,

Tobajaras – o povo senhor!

Ninguém mais observa o tratado

Ninguém menos de p’rigos se aterra,

Ninguém corre aos acenos da guerra

Mais depressa que o bom lidador!

 

   II

 

Seu viver é batalha aturada,

Dos contrários a traça aventando;

É dispor a cilada arriscada,

Onde o imigo se venha meter!

Levam noites com ele sonhado

Potiguares, que o viram de perto;

Potiguares, que asselam por certo

Que Tabira só sabe vencer!

 

   III

 

Mil enganos lhe tem já tecido,

Mil ciladas lhe tem preparado;

Mas Tabira, fatal, destemido,

Tem feitiço, ou encanto, ou condão!

Sempre o plano da guerra é frustrado,

Sempre o bravo fronteiro aparece,

Que os enganos cruéis lhes destece,

Face a face, arco e setas na mão.

 

   IV

 

Já dos Lusos o trôço apoucado,

Paz firmando com ele traidora,

Dorme ileso na fé do tratado,

Que Tabira é valente e leal.

Sem Tabira do Lusos que fora?

Sem Tabira que os guarda e defende,

Que das pazes talvez se arrepende

Já feridas outrora em seu mal!

 

   V

 

Chefe stulto dum povo de bravos,

Mas que os piagas vitórias te fadem,

Hão de os teus, miserandos escravos,

Tais triunfos um dia chorar!

Caraíbas tais feitos aplaudem,

Mas sorrindo vos forjam cadeias,

E pesadas algemas, e peias,

Que traidores vos hão-de lançar!

 

   VI

 

Chefe sólido, insano, imprudente,

Sangue e vida dos teus malbaratas?!

Míngua as forças da tribo potente,

Vencedora da raça Tupi!

Hão de os teus, acossados nas matas,

Não podendo viver como escravos,

Dar o resto do sangue por ti!

 

   VII

 

Vivem homens de pel’ cor da noite

Neste solo, que a vida embeleza;

Podem, servos, debaixo do açoite,

Nênias tristes da pátria cantar!

Mas o índio que a vida só preza

Por amor dos combates, e festas

Dos triunfos sangrentos, e sestas

Resguardadas do sol no palmar;

 

   VIII

 

Ociosa. Indolente, vadio,

Ou ativo, incansável, fragueiro;

Já nas matas, no bosque erradio,

Já disposto a lutar, a vencer;

Ama as selvas, e o vento palreiro,

Ama a glória, ama a vida; mas antes

Que viver amargados instante,

Quer e pode e bem sabe morrer!

 

   IX

 

Eia, avante! Ó caudilho valente!

Potiguares lá vem denodados;

Tão cerrado concurso de gente

Ninguém viu nestas partes assim!

Poucos são, mas briosos soldados;

Não são homens de aspecto jocundo!

Restos são, mas são rstos dum mundo;

Poucos são, mas soldados por fim!

 

   X

 

Os seus velhos disseram consigo,

Discutindo os motivos da guerra:

“É Tabira – cruel, inimigo,

Já nem crê, renegado, em Tupã!

Pés robustos lá batem na terra,

Pó ligeiro se expande nos ares:

Era noite! Milhar de milhares

São armados, mal rompe a manhã.

 

   XI

 

Vem soberbos, - o sol luz apenas!

Confiados, galardos, lustrosos,

Vem bizarros nas armas, nas penas,

Atrevidos no acento e na voz!

Um dentre eles, dos mais orgulhosos,

Sobe à pressa nas aspas dum monte,

Dali brada, postado defronte

De Tabira – com jeito feroz:

 

   XII

 

“Ó TabiraTabiraaqui somos

A provar nossas forças contigo;

Dizes tu que vencidos já fomos!

Di0lo tu, não no diz mais ninguém.

Ora eu só a vós todos vos digo:

Sois cobardes, irmão de Tabira!

Propagastes solene mentira,

Que vencer não sabemos tão bem.

 

   XIII

 

“Para o vosso terreiro vos chamo,

Contra mim vinde todos, - sou forte:

Acorrei ao meu nobre reclamo!

Aqui sou, nem me parto daqui!

Vinde todos em densa coorte:

Travaremos combate sangrento,

Mas por fim do triunfo cruento

Direis vós, se fui eu quem menti.”

 

   XIV

 

Disse o arauto: eis a turba ufanosa

Lhe responde, arco e setas brandindo,

Pés batidos, voz alta e ruidosa:

- Bem falado, ó guerreiro, mui bem!

Assim é; mas Tabira rugindo,

Ressentindo de ofensas tamanhas,

O rancor mal encobre das sanhas,

Que não leva no sangue de alguém.

 

   XV

 

Raso outeiro ali perto se of’rece:

Vinga-o prestes, hardido, açodado!...

Como leiva de pálida messe,

Já madura, tremendo no pé;

Todo o campo descobre ocupado

Por guerreiros, - no extremo horizonte

Não distingue nas faldas do monte,

O que é gente, o que gente não é.

 

   XVI

 

Não se abala o preclaro guerreiro,

Do que vê seu valor não fraqueia;

Diz consigo: “Um só golpe certeiro

Vai de todo esta raça apagar!

Juntos são, mas são meus!” – Já vozeia;

Logo os seus lhe respondem gritando,

Tais rugidos, tais roncos soltando

Que aos seus próprios deveram turbar!

 

   XVII

 

Diz a fama que então de assustadas

Muitas aves que o espaço cruzavam,

De pavor subitâneo tomadas,

Descaíam pasmadas no chão:

Já com silvos e atitos voavam

Muitas outras, que o triste gemido

No conflito, abafado e sumido,

Talvez deram, - mas fraco, mas vão!

 

   XVIII

 

Eis que os arcos de longe se encurvam,

Eis que as setas aladas já voam,

Eis que os ares se cobrem, se turvam,

De flechados, de surdos que são.

Novos gritos mais altos reboam,

Entre as hostes se apaga o terreno,

Já tornado apoucado e pequeno,

Já coberto de mortos o chão!

 

   XIX

 

Peito a peito encontrados afoutos,

Braço a braço travados briosos,

Fervem todos inquietos, revoltos,

Qu’indecisa a vitória inda está.

Todos movem tacapes pesados;

Qual resvala, qual todo se enterra

No imigo que morde na terra,

Que sepulcro talvez lhe será.

 

   XX

 

“Mas Tabira! Tabira! Que é dele?

“Onde agora se esconde o pujante?”

- Não no vedes?! – Tabira é aquele

-Que sangrento, impiedoso lá vai!

-Vê-lo-eis andar sempre adiante,

-Larga esteira de mortos deixando

- Trás de si, como o raio cortando

- Ramos, troncos do bosque, onde cai. –

 

   XXI

 

“Foge! Foge! Leal Tobajara;

“Quantos arcos que em ti fazem mira?!”

- Muitos são; porem medos encara

- Face a face, quem é como eu sou! –

Muitas setas cravejam Tabira:

Belo quadro! – mas vê-lo era horrível!

Porco-espim que sangrado e terrível

Duras cerdas raivando espetou!

 

   XXII

 

Tem um olho dum tiro flechado!

Quebra as setas que os passos lh’impedem

E do rosto, em seu sangue lavado,

Flecha e olho arrebata sem dó!

E aos imigos que o campo não cedem,

Olho e flecha mostrando extorquidos,

Diz, em voz que mais eram rugidos:

Basta, vis, por vencer-vos um só!

 

   XXIII

 

E com fúria tão grande arremete,

Com despego tão nobre da vida;

Tantos golpes, tão fundos repete,

Que senhores do campo já são!

Potiguares lá vão de fugida,

Inda à fera mais torva e bravia

Disputando guarida dum dia

No mais fundo do vasto sertão!

 

   XXIV

 

Potiguares, que a aurora risonha

Viu nação numerosa e potente,

Não já povo na tarde medonha,

Mas só restos dum povo infeliz!

Insepultos na terra inclemente

Muitos dormem; mas há quem lhinveja

Essa morte do bravo em peleja,

 Uem a vida do escravo maldiz!

 

   XV

 

“Este o conto que os Índios contavam,

“A desoras, na triste senzala;

“Outros homens ali descansavam,

“Negra pel1; mas escravos tão bem.

“Não choravam; somente na fala

“Era um quê da tristeza que mora

“Dentro d’alma do homem que chora

“O passado e o presente que tem!"


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 20 de fevereiro de 2022

TABIRA - DEDICATÓRIA AOS PERNAMBUCANOS (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)
 

TABIRA

DEDICATÓRIA OS PERNAMBUCANOS

 

 

Salve, terra formosa, ó Pernambuco,

Veneza Americana, transportada

 Boiante sobre as aguas!

Amigo gênio te formou na Europa,

Gênio melhor te despertou sorrindo

 À sombra dos coqueiros.

 

Salve, risonha terra! São teus montes

Arrelvados, inúmeros teus vales,

 Cujas veias são rios!

Doces teus prados, tuas várzeas férteis,

Onde reluz o fruto sazonado

 Entre o matiz das flores!

 

Outros, pátria d’heróis, teus feitos cantem,

a bela história de colônia exaltem,

 E os nomes forasteiros;

Não eu, que nada almejo senão ver-vos,

Tu e Olinda, ambas vós, co’os olhos longos,

 Espraiados no mar!

 

Ambas vós, sobre tudo americanas,

Doces flores dos mares de Colombo,

 Filhas do norte ardente!

Virgens irmãs, que vão de mãos travadas

Sorrirem d’inocência à própria imagem,

 Que luz em claro arroio.

 

Andei, por vós somente, em vossas matas,

Colhendo agrestes flores na floresta,

 Não respiradas nunca,

Singelas, como vós, - como vós, belas,

Enastrei-as em forma de grinalda

 Fino, extremoso amante!

 

Não vivem muito as flores: são versos

Efêmeros como elas; cor sem brilho,

 Ou perfume apagado,

Ou tino fraco d’ave matutina,

Ou eco de um baixel que passa ao longe

 Com descante saudoso.


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 13 de fevereiro de 2022

DEPRECAÇÃO (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)
DEPRECAÇÃO

Gonçalves Dias

 

 

Tupã, ó Deus grande! cobriste o teu rosto
Com denso velâmen de penas gentis;
E jazem teus filhos clamando vingança
Dos bens que lhes deste da perda infeliz!

Tupã, ó Deus grande! teu rosto descobre:
Bastante sofremos com tua vingança!
Já lágrimas tristes choraram teus filhos,
Teus filhos que choram tão grande mudança.

Anhangá impiedoso nos trouxe de longe
Os homens que o raio manejam cruentos,
Que vivem sem pátria, que vagam sem tino
Trás do ouro correndo, voraces, sedentos.

E a terra em que pisam, e os campos e os rios
Que assaltam, são nossos; tu és nosso Deus:
Por que lhes concedes tão alta pujança,
Se os raios de morte, que vibram, são teus?

Tupã, ó Deus grande! cobriste o teu rosto
Com denso velâmen de penas gentis;
E jazem teus filhos clamando vingança
Dos bens que lhes deste da perda infeliz.

Teus filhos valentes, temidos na guerra,
No albor da manhã quão fortes que os vi!
A morte pousava nas plumas da frecha,
No gume da maça, no arco tupi!

E hoje em que apenas a enchente do rio
Cem vezes hei visto crescer e baixar...
Já restam bem poucos dos teus, qu'inda possam
Dos seus, que já dormem, os ossos levar.

Teus filhos valentes causavam terror,
Teus filhos enchiam as bordas do mar,
As ondas coalhavam de estreitas igaras,
De frechas cobrindo os espaços do ar.

Já hoje não caçam nas matas frondosas
A corça ligeira, o trombudo coati...
A morte pousava nas plumas da frecha,
No gume da maça, no arco tupi!

O Piaga nos disse que breve seria,
A que nos infliges cruel punição;
E os teus inda vagam por serras, por vales,
Buscando um asilo por ínvio sertão!

Tupã, ó Deus grande! descobre o teu rosto:
Bastante sofremos com tua vingança!
Já lágrimas tristes choraram teus filhos,
Teus filhos que choram tão grande tardança.

Descobre o teu rosto, ressurjam os bravos,
Que eu vi combatendo no albor da manhã;
Conheçam-te os feros, confessem vencidos
Que és grande e te vingas, qu'és Deus, ó Tupã!

 


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 06 de fevereiro de 2022

CAXIAS (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)
CAXIAS

Gonçalves Dias

 

 

Quanto és bela, ó Caxias! - no deserto,
Entre montanhas, derramada em vale
De flores perenais,
És qual tênue vapor que a brisa espalha
No frescor da manhã meiga soprando
À flor de manso lago.

Tu és a flor que despontaste livre
Por entre os troncos de robustos cedros,
Forte - em gleba inculta;
És qual gazela, que o deserto educa,
No ardor da sesta debruçada exangue
À margem da corrente.

Em mole seda as graças não escondes,
Não cinges d'oiro a fronte que descansas
Na base da montanha;
És bela como a virgem das florestas,
Que no espelho das águas se contempla,
Firmada em tronco anoso.

Mas dia inda virá, em que te pejes
Dos, que ora trajas, símplices ornatos
E amável desalinho:
Da pompa e luxo amiga, hão de cair-te
Aos pés então - da poesia a c'roa
E da inocência o cinto.


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 30 de janeiro de 2022

O CANTO DO ÍNDIO (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)

O CANTO DO ÍNDIO

Gonçalves Dias

 

Quando o sol vai dentro d'água
Seus ardores sepultar,
Quando os pássaros nos bosques
Principiam a trinar;

Eu a vi, que se banhava...
Era bela, ó Deuses, bela,
Como a fonte cristalina,
Como luz de meiga estrela.

Ó Virgem, Virgem dos Cristãos formosa,
Porque eu te visse assim, como te via,
Calcara agros espinhos sem queixar-me,
Que antes me dera por feliz de ver-te.

O tacape fatal em terra estranha
Sobre mim sem temor veria erguido;
Dessem-me a mim somente ver teu rosto
Nas águas, como a lua, retratado.

Eis que os seus loiros cabelos
Pelas águas se espalhavam,
Pelas águas, que de vê-los
Tão loiros se enamoravam.

Ela erguia o colo ebúrneo,
Por que melhor os colhesse;
Níveo colo, quem te visse,
Que de amores não morresse!

Passara a vida inteira a contemplar-te,
Ó Virgem, loira Virgem tão formosa,
Sem que dos meus irmãos ouvisse o canto,
Sem que o som do Boré que incita à guerra
Me infiltrasse o valor que m'hás roubado,
Ó Virgem, loira Virgem tão formosa.

As vezes, quando um sorriso
Os lábios seus entreabria,
Era bela, oh! mais que a aurora
Quando a raiar principia.

Outra vez - dentre os seus lábios
Uma voz se desprendia;
Terna voz, cheia de encantos,
Que eu entender não podia.

Que importa? Esse falar deixou-me n'alma
Sentir d'amores tão sereno e fundo,
Que a vida me prendeu, vontade e força
Ah! que não queiras tu viver comigo,
Ó Virgem dos Cristãos, Virgem formosa!

Sobre a areia, já mais tarde,
Ela surgiu toda nua;
Onde há, ó Virgem, na terra
Formosura como a tua!?

Bem como gotas de orvalho
Nas folhas de flor mimosa,
Do seu corpo a onda em fios
Se deslizava amorosa.

Ah! que não queiras tu vir ser rainha
Aqui dos meus irmãos, qual sou rei deles!
Escuta, ó Virgem dos Cristãos formosa.
Odeio tanto aos teus, como te adoro;
Mas queiras tu ser minha, que eu prometo
Vencer por teu amor meu ódio antigo,
Trocar a maça do poder por ferros
E ser, por te gozar, escravo deles.


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 23 de janeiro de 2022

O CANTO DO PIAGA (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)

O CANTO DO PIAGA

Gonçalves Dias

 

 

I

O' Guerreiros da Taba sagrada,
O' Guerreiros da Tribo Tupi,
Falam Deuses nos cantos do Piaga,
O' Guerreiros, meus cantos ouvi.

Esta noite — era a lua já morta —
Anhangá me vedava sonhar;
Eis na horrível caverna, que habito,
Rouca voz começou-me a chamar.

Abro os olhos, inquieto, medroso,
Manitôs! que prodígios que vi!
Arde o pau de resina fumosa,
Não fui eu, não fui eu, que o acendi!

Eis rebenta a meus pés um fantasma,
Um fantasma d'imensa extensão;
Liso crânio repousa a meu lado,
Feia cobra se enrosca no chão.

O meu sangue gelou-se nas veias,
Todo inteiro — ossos, carnes — tremi,
Frio horror me coou pelos membros,
Frio vento no rosto senti.

Era feio, medonho, tremendo,
O' Guerreiros, o espectro que eu vi.
Falam Deuses nos cantos do Piaga,
O' Guerreiros, meus cantos ouvi!

II

Porque dormes, ó Piaga divino?
Começou-me a Visão a falar,
Porque dormes? O sacro instrumento
De per si já começa a vibrar.

Tu não viste nos céus um negrume
Toda a face do sol ofuscar;
Não ouviste a coruja, de dia,
Seus estrídulos torva soltar?

Tu não viste dos bosques a coma
Sem aragem – vergar-se a gemer,
Nem a lua de fogo entre nuvens,
Qual em vestes de sangue, nascer?

E tu dormes, ó Piaga divino!
E Anhangá te proíbe sonhar!
E tu dormes, ó Piaga, e não sabes,
E não podes augúrios cantar?!

Ouve o anúncio do horrendo fantasma,
Ouve os sons do fiel Maracá;
Manitôs já fugiram da Taba!
O' desgraça! ó ruína! ó Tupá!

III

Pelas ondas do mar sem limites
Basta selva, sem folhas, i vem;
Hartos troncos, robustos, gigantes;
Vossas matas tais monstros contêm.

Traz embira dos cimos pendente
– Brenha espessa de vário cipó –
Dessas brenhas contêm vossas matas,
Tais e quais, mas com folhas; e só!

Negro monstro os sustenta por baixo,
Brancas asas abrindo ao tufão,
Como um bando de cândidas garças,
Que nos ares pairando – lá vão.

Oh! quem foi das entranhas das águas,
O marinho arcabouço arrancar?
Nossas terras demanda, fareja...
Esse monstro... – o que vem cá buscar?

Não sabeis o que o monstro procura?
Não sabeis a que vem, o que quer?
Vem matar vossos bravos guerreiros,
Vem roubar-vos a filha, a mulher!

Vem trazer-vos crueza, impiedade —
Dons cruéis do cruel Anhangá;
Vem quebrar-vos a maça valente,
Profanar Manitôs, Maracás.

Vem trazer-vos algemas pesadas,
Com que a tribo Tupi vai gemer;
Hão de os velhos servirem de escravos,
Mesmo o Piaga inda escravo há de ser!

Fugireis procurando um asilo,
Triste asilo por ínvio sertão;
Anhangá de prazer há de rir-se,
Vendo os vossos quão poucos serão.

Vossos Deuses, ó Piaga, conjura,
Susta as iras do fero Anhangá.
Manitôs já fugiram da Taba,
O' desgraça! ó ruína! ó Tupá!


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 16 de janeiro de 2022

O CANTO DO GUERREIRO (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)
O CANTO DO GUERREIRO

Gonçalves Dias

(Grafia original)

 

I

O' Guerreiros da Taba sagrada,
O' Guerreiros da Tribo Tupi,
Falam Deuses nos cantos do Piaga,
O' Guerreiros, meus cantos ouvi.

Esta noite — era a lua já morta —
Anhangá me vedava sonhar;
Eis na horrível caverna, que habito,
Rouca voz começou-me a chamar.

Abro os olhos, inquieto, medroso,
Manitôs! que prodígios que vi!
Arde o pau de resina fumosa,
Não fui eu, não fui eu, que o acendi!

Eis rebenta a meus pés um fantasma,
Um fantasma d'imensa extensão;
Liso crânio repousa a meu lado,
Feia cobra se enrosca no chão.

O meu sangue gelou-se nas veias,
Todo inteiro — ossos, carnes — tremi,
Frio horror me coou pelos membros,
Frio vento no rosto senti.

Era feio, medonho, tremendo,
O' Guerreiros, o espectro que eu vi.
Falam Deuses nos cantos do Piaga,
O' Guerreiros, meus cantos ouvi!

II

Porque dormes, ó Piaga divino?
Começou-me a Visão a falar,
Porque dormes? O sacro instrumento
De per si já começa a vibrar.

Tu não viste nos céus um negrume
Toda a face do sol ofuscar;
Não ouviste a coruja, de dia,
Seus estrídulos torva soltar?

Tu não viste dos bosques a coma
Sem aragem – vergar-se a gemer,
Nem a lua de fogo entre nuvens,
Qual em vestes de sangue, nascer?

E tu dormes, ó Piaga divino!
E Anhangá te proíbe sonhar!
E tu dormes, ó Piaga, e não sabes,
E não podes augúrios cantar?!

Ouve o anúncio do horrendo fantasma,
Ouve os sons do fiel Maracá;
Manitôs já fugiram da Taba!
O' desgraça! ó ruína! ó Tupá!

III

Pelas ondas do mar sem limites
Basta selva, sem folhas, i vem;
Hartos troncos, robustos, gigantes;
Vossas matas tais monstros contêm.

Traz embira dos cimos pendente
– Brenha espessa de vário cipó –
Dessas brenhas contêm vossas matas,
Tais e quais, mas com folhas; e só!

Negro monstro os sustenta por baixo,
Brancas asas abrindo ao tufão,
Como um bando de cândidas garças,
Que nos ares pairando – lá vão.

Oh! quem foi das entranhas das águas,
O marinho arcabouço arrancar?
Nossas terras demanda, fareja...
Esse monstro... – o que vem cá buscar?

Não sabeis o que o monstro procura?
Não sabeis a que vem, o que quer?
Vem matar vossos bravos guerreiros,
Vem roubar-vos a filha, a mulher!

Vem trazer-vos crueza, impiedade —
Dons cruéis do cruel Anhangá;
Vem quebrar-vos a maça valente,
Profanar Manitôs, Maracás.

Vem trazer-vos algemas pesadas,
Com que a tribo Tupi vai gemer;
Hão de os velhos servirem de escravos,
Mesmo o Piaga inda escravo há de ser!

Fugireis procurando um asilo,
Triste asilo por ínvio sertão;
Anhangá de prazer há de rir-se,
Vendo os vossos quão poucos serão.

Vossos Deuses, ó Piaga, conjura,
Susta as iras do fero Anhangá.
Manitôs já fugiram da Taba,
O' desgraça! ó ruína! ó Tupá!


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 09 de janeiro de 2022

CANÇÃO DO EXÍLIO (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)
 
CANÇÃO DO EXÍLIO

Gonçalves Dias

 

Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá;
As aves, que aqui gorjeiam,
Não gorjeiam como lá.

Nosso céu tem mais estrelas,
Nossas várzeas têm mais flores,
Nossos bosques têm mais vida,
Nossa vida mais amores.

Em cismar, sozinho, à noite,
Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.

Minha terra tem primores,
Que tais não encontro eu cá;
Em cismar — sozinho, à noite —
Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.

Não permita Deus que eu morra,
Sem que eu volte para lá;
Sem que desfrute os primores
Que não encontro por cá;
Sem qu’inda aviste as palmeiras,
Onde canta o Sabiá.


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 02 de janeiro de 2022

QUADRAS DA MINHA VIDA (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)
QUADRAS DA MINHA VIDA

Gonçalves Dias

 


I
Houve tempo em que os meus olhos
Gostavam do sol brilhante,
E do negro véu da noite,
E da aurora cintilante.

Gostavam da branca nuvem
Em céu de azul espraiada,
Do terno gemer da fonte
Sobre pedras despenhada.

Gostavam das vivas cores
De bela flor vicejante,
E da voz imensa e forte
Do verde bosque ondeante.

Inteira a natureza me sorria!
A luz brilhante, o sussurrar da brisa,
O verde bosque, o rosicler d'aurora,
Estrelas, céus, e mar, e sol, e terra,
D'esperança e d'amor minha alma ardente,
De luz e de calor meu peito enchiam.
Inteira a natureza parecia
Meus mais fundos, mais íntimos desejos
Perscrutar e cumprir; - almo sorriso
Parecia enfeitar co'os seus encantos,
Com todo o seu amor compor, doirá-lo,
Porque os meus olhos deslumbrados vissem-no,
Porque minha alma de o sentir folgasse.

Oh! quadra tão feliz! - Se ouvia a brisa
Nas folhas sussurrando, o som das águas,
Dos bosques o rugir; - se os desejava,
- O bosque, a brisa, a folha, o trepidante
Das águas murmurar prestes ouvia.
Se o sol doirava os céus, se a lua casta.
Se as tímidas estrelas cintilavam,
Se a flor desabrochava envolta em musgo,
- Era a flor que eu amava, - eram estrelas
Meus amores somente, o sol brilhante,
A lua merencória - os meus amores!
Oh! quadra tão feliz! - doce harmonia,
Acordo estreme de vontade e força,
Que atava minha vida à natureza!
Ela era para mim bem como a esposa
Recém-casada, pudica sorrindo;
Alma de noiva - coração de virgem,
Que a minha vida inteira abrilhantava!
Quando um desejo me brotava n'alma,
Ela o desejo meu satisfazia;
E o quer que ela fizesse ou me dissesse,
Esse era o meu desejo, essa a voz minha,
Esse era o meu sentir do fundo d'alma,
Expresso pela voz que eu mais amava.

II
Agora a flor que m'importa,
Ou a brisa perfumada,
Ou o som d'amiga fonte
Sobre pedras despenhada?

Que me importa a voz confusa
Do bosque verde-frondoso,
Que m'importa a branca lua,
Que m'importa o sol formoso?

Que m'importa a nova aurora,
Quando se pinta no céu;
Que m'importa a feia noite,
Quando desdobra o seu véu?

Estas cenas, que amei, já me não causam
Nem dor e nem prazer! - Indiferente,
Minha alma um só desejo não concebe,
Nem vontade já tem!... Oh! Deus! quem pôde
Do meu imaginar as puras asas
Cercear, desprender-lhe as níveas plumas,
Rojá-las sobre ó pó, calcá-las tristes?
Perante a criação tão vasta e bela
Minha alma é como a flor que pende murcha;
É qual profundo abismo: - embalde estrelas
Brilham no azul dos céus, embalde a noite
Estende sobre a terra o negro manto:
Não pode a luz chegar ao fundo abismo,
Nem pode a noite enegrecer-lhe a face;
Não pode a luz à flor prestar mais brilho
Nem viço e nem frescor prestar-lhe a noite!

III
Houve tempo em que os meus olhos
Se extasiavam de ver
Ágil donzela formosa
Por entre flores correr.

Gostavam de um gesto brando,
Que revelasse pudor;
Gostavam de uns olhos negros,
Que rutilassem de amor.

E gostavam meus ouvidos
De uma voz - toda harmonia, -
Quer pesares exprimisse,
Quer exprimisse alegria.

Era um prazer, que eu tinha, ver a virgem
Indolente ou fugaz - alegre ou triste,
Da vida a estreita senda desflorando
Com pé ligeiro e ânimo tranqüilo;
lmpróvida e brilhante parecendo
Seus dias desfolhar, uns após outros,
Como folhas de rosa; - e no futuro -
Ver luzir-lhe somente a luz d'aurora.
Era deleite e dor vê-la tão leda
Do mundo as aflições, angústias, prantos
Afrontar co'um sorriso; era um descanso
Interno e fundo, que sentia a mente,
Um quadro em que os meus olhos repousavam,
Ver tanta formosura e tal pureza
Em rosto de mulher com alma d'anjo!

IV
Houve tempo em que os meus olhos
Gostavam de lindo infante,
Com a candura e sorriso
Que adorna infantil semblante.

Gostavam do grave aspecto
De majestoso ancião,
Tendo nos lábios conselhos,
Tendo amor no coração.

Um representa a inocência,
Outro a verdade sem véu;
Ambos tão puros, tão graves,
Ambos tão perto do céu!

Infante e velho! - princípio e fim da vida! -
Um entra neste mundo, outro sai dele,
Gozando ambos da aurora; - um sobre a terra,
E o outro lá nos céus. - O Deus, que é grande,
Do pobre velho compensando as dores,
O chama para si; o Deus clemente
Sobre a inocência de continuo vela.
Amei do velho o majestoso aspecto,
Amei o infante que não tem segredos,
Nem cobre o coração co'os folhos d'alma.
Armei as doces vozes da inocência,
A ríspida franqueza amei do velho,
E as rígidas verdades mal sabidas,
Só por lábios senis pronunciadas.

V
Houve tempo, em que possível
Eu julguei no mundo achar
Dois amigos extremosos,
Dois irmãos do meu pensar:

Amigos que compr'endessem
Meu prazer e minha dor,
Dos meus lábios o sorriso,
Da minha alma o dissabor;

Amigos, cuja existência
Vivesse eu co'o meu viver:
Unidos sempre na vida,
Unidos - té no morrer.

Amizade! - união, virtude, encanto -
Consórcio do querer, de força e d'alma -
Dos grandes sentimentos cá da terra
Talvez o mais recíproco, o mais fundo!
Quem há que diga: Eu sou feliz! - se acaso
Um amigo lhe falta? - um doce amigo,
Que sinta o seu prazer como ele o sente,
Que sofra a sua dor como ele a sofre?
Quando a ventura lhe sorri na vida,
Um a par doutro - ei-los lá vão felizes;
Quando um sente aflição, nos braços do outro
A aflição, que é só dum, carpindo juntos,
Encontra doce alívio o desditoso
No tesouro que encerra um peito amigo.
Cândido par de cisnes, vão roçando
A face azul do mar co'as níveas asas
Em deleite amoroso; - acalentados
Pelo sereno espreguiçar das ondas,
Aspirando perfumes mal sentidos,
Por vesperina aragem bafejados,
É jogo o seu viver; - porém se o vento
No frondoso arvoredo ruge ao longe,
Se o mar, batendo irado as ermas praias,
Cruzadas vagas em novelo enrola,
Com grito de terror o par candente
Sacode as níveas asas, bate-as, - fogem.

VI
Houve tempo em que eu pedia
Uma mulher ao meu Deus,
Uma mulher que eu amasse,
Um dos belos anjos seus.

Em que eu a Deus só pedia
Com fervorosa oração
Um amor sincero e fundo,
Um amor do coração.

Qu'eu sentisse um peito amante
Contra o meu peito bater,
Somente um dia... somente!
E depois dele morrer.

Amei! e o meu amor foi vida insana!
Um ardente anelar, cautério vivo,
Posto no coração, a remordê-lo.
Não tinha uma harmonia a natureza
Comparada a sua voz; não tinha cores
Formosas como as dela, - nem perfumes
Como esse puro odor qu'ela esparzia
D'angélica pureza. - Meus ouvidos
O feiticeiro som dos meigos lábios
Ouviam com prazer; meus olhos vagos
De a ver não se cansavam; lábios d'homens
Não puderam dizer como eu a amava!
E achei que o amor mentia, e que o meu anjo
Era apenas mulher! chorei! deixei-a!
E aqueles, que eu amei co'o amor d'amigo,
A sorte, boa ou má, levou-mos longe,
Bem longe quando eu perto os carecia.
Concluí que a amizade era um fantasma,
Na velhice prudente - hábito apenas,
No jovem - doudejar; em mim lembrança;
Lembrança! - porém tal que a não trocara
Pelos gozos da terra, - meus prazeres
Foram só meus amigos, - meus amores
Hão de ser neste mundo eles somente.

VII
Houve tempo em que eu sentia
Grave e solene aflição,
Quando ouvia junto ao morto
Cantar-se a triste oração.

Quando ouvia o sino escuro
Em sons pesados dobrar,
E os cantos do sacerdote
Erguidos junto do altar.

Quando via sobre um corpo
A fria lousa cair;
Silêncio debaixo dela,
Sonhos talvez - e dormir.

Feliz quem dorme sob a lousa amiga,
Tépida talvez com o pranto amargo
Dos olhos da aflição; - se os mortos sentem,
Ou se almas tem amor aos seus despojos,
Certo dos pés dó Eterno, entre a aleluia,
E o gozo lá dos céus, e os coros d'anjos,
Hão de lembrar-se com prazer dos vivos,
Que choram sobre a campa, onde já brota
O denso musgo, e já desponta a relva.

Laje fria dos mortos! quem me dera
Gozar do teu descanso, ir asilar-me
Sob o teu santo horror, e nessas trevas
Do bulício do mundo ir esconder-me!
Oh! laje dos sepulcros! quem me desse
No teu silêncio fundo asilo eterno!
Ai não pulsa o coração, nem sente
Martírios de viver quem já não vive.


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 26 de dezembro de 2021

A VILA MALDITA, CIDADE DE DEUS (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)
A VILA  MALDITA, CIDADE DE DEUS

Gonçalves Dias


I
O imenso aposento a luz alaga
Com soberbo clarão,
E as mesas do banquete se devolvem
Pelo vasto salão;

E os instrumentos palpitantes soam
Frenética harmonia;
E o coro dos convivas se levanta
Pleno d'ébria alegria!

Ali se ostenta o nobre vicioso
Rebuçado em orgulho, - o rico infame,
Cheio de mesquinhez, - o envilecido,
Imundo pobre no seu manto involto
De misérias, torpeza e vilanias;
- A prostituta que alardeia os vícios,
Menosprezando a castidade e a honra,
Sem pejo, sem pudor, d'infâmia eivada.

E o livre ditirambo, a atroz blasfêmia,
Os cantos imorais, canções impudicas,
Gritos e orgia envolta em negro manto
De fumo e vinho, - os ares aturdiam;
E muito além, no meio d'alta noite,
Nos ecos, ruas, praças rebatiam.

II
Depois, ainda suja a boca, as faces,
D'imundo vomitar,
Com vacilante pé calcando a terra
Os viras levantar.

A larga porta despedia em turmas
A noturna coorte;
Ouvia-se depois por toda a parte
Gritos, horror de morte!

E ninguém vinha ao retinir de ferro,
Que assassinava;
Porque era dum valente o punhal nobre,
Que as leis ditava.

Outra vez a cair se emaranhavam
Da porta pelo umbral:
Tinham tintas de sangue a face, as vestes,
Em sangue tinto o punhal.

E vinha o sol manifestar horrores
Da noite derradeira;
E a morte vária revelava a fúria
Da turba carniceira.

E o sacrílego padre só vendia
O tum'lo por dinheiro;
Vendia a terra aos mortos insepultos,
O vil interesseiro!

Ou lá ficavam, como pasto aos corvos,
Por sobre a terra nua;
E ninguém de tal sorte se pesava,
Que ser podia a sua!

"E Deus maldisse a terra criminosa,
"Maldisse aos homens dela,
"Maldisse a cobardia dos escravos
"Dessa terra tão bela."

III
E a mortífera peste lutuosa
Do inferno rebentou,
E nas asas dos ventos pavorosa
Sobre todos passou.

E o mancebo que via esperançoso
Longa vida futura,
Doido sentiu quebrar-lhe as esperanças
Pedra de sepultura.

E a donzela tão linda que vivia
Confiada no amor,
Entre os braços da mãe provou bem cedo
Da morte o dissabor.

E o trêmulo ancião qu'inda esperava
Morrer assim
Como um fruto maduro destacado
D'árvore enfim,

Sentiu a morte esvoaçar-lhe em tomo,
Como um bulcão,
Que afronta o nauta quando avista a terra
Da salvação.

Era deserta a vila, a casa, o templo -
Ar de morte soprou!
Mas a casa dos vis nos seus delírios
Ébria continuou!

"E Deus maldisse a terra criminosa,
"Maldisse os homens dela,
"Maldisse a cobardia dos escravos
"Dessa terra tão bela."

IV
Eis o aço da guerra lampeja,
Do fogoso corcel o nitrido,
Eis o brônzeo canhão que rouqueja,
Eis da morte represso o gemido.

Já se aprestam guerreiros luzentes,
Já se enfreiam corcéis belicosos,
Já mancebos se partem contentes,
Augurando a vitória briosos.

Brilha a raiva nos olhos; - nas faces
O interno rancor podes ler;
Eia, avante! - clamaram os bravos,
Eia, avante! - ou vencer ou morrer!

Eia, avante! - briosos corramos
Na peleja o imigo bater;
Crua morte na espada levamos!
Eia, avante! - ou vencer ou morrer!

Eis o aço da guerra lampeja,
Do corcel belicoso o nitrido,
Eis o brônzeo canhão que rouqueja
E da morte represso o gemido.

V
E a selva vomitou homens sem conto
A voz do onipotente,
Como a neve hibernal que o sol derrete,
Engrossando a corrente.

E em redor dessa vila se estreitaram,
Cingidos d'armadura;
E a vila se doeu no íntimo seio
De tão acre amargura.

Mas os fortes bradaram: - Eia, avante!
Prontos a batalhar;
Mas o braço e valor ante os imigos
Se vieram quebrar.

E um ano inteiro sem cessar lutaram,
Cheios de bizarria,
Como dois crocodilos que brigassem
Dum rio a primazia!

E renderam-se enfim, mas de famintos.
De sequiosos;
Valentes lidadores foram eles,
Se não briosos.

VI
E o exército contrário entra rugindo
Na vila, que as suas portas lhe franqueia:
Rasteiro corre o incêndio e surdamente
O custoso edifício ataca e mina.
Eis que a chama roaz amostra as fendas
Das portas que se abrasam; descortina
O torvo olhar do vencedor - apenas -
Lá dentro o incêndio só, fora só trevas!
Urros de frenesi, de dor, de raiva
Escutam dos que, às súbitas colhidos,
Contra os muros em brasa se arremessam;
Dos que, perdido o tino, intentam loucos
Achar a salvação, e a morte encontram.
Lá dentro confusão, silêncio foral
São carrascos aqui, vítimas dentro,
Geme o travejamento, estrala a pedra,
Cresce horror sobre horror, desaba o teto,
E o fumo enegrecido se enovela
Co'o vértice sublime os céus roçando.
Como o vulcão que a lava arroja às nuvens,
Como ígnea coluna que da terra
Hiante rebentasse, - tal se eleva,
Tal sobe aos ares, tal se empina e cresce
A labareda portentosa; e baixa,
E desce à terra, c o edifício enrola,
E o sorve inteiro, qual se foram vagas
Que a dura rocha do alicerce abalam,
Que a enlaçam, como a preá, - e ao fundo pego
Levam, deixando e mar branco d'espuma.
No horror da noite, sibilando os ventos,
Línguas piramidais do atroz incêndio.
Fumosas pelas ruas estalando,
Tingem da cor do inferno a cor da noite,
Tingem da cor do sangue a cor do inferno!
- O ar são gritos, fumo o céu, e a terra fogo.

VII
E aqueles que inda sãos e imunes eram,
Os que a peste enjeitou,
Que fome e sede e privações sofreram...
A espada decepou.

E a donzela tremeu, da mãe nos braços
Não salva ainda,
Que incitava os prazeres do soldado
A face linda.

E o fido amante, que de a ver tão bela
Sentiu prazer,
Sente martírios porque a vê formosa
No seu morrer.

Coisa alguma escapou! - Já tudo é cinzas
Tudo destruição:
A coluna, o palácio, a casa, o templo,
O templo da oração!

Meninos, homens e mulheres, - todos
Já rojam sobre o pó;
Mas o Deus, o Deus bom já está vingado.
Por ela já sente dó.

E a vila d'outrora mais ruidosa,
Lá ressurgiu cidade;
Porque o Deus da justiça, o das armadas,
O Deus é de bondade.


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 19 de dezembro de 2021

O PIRATA (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)
O PIRATA

Gonçalves Dias

 

Nas asas breves do tempo
Um ano e outro passou,
E Lia sempre formosa
Novos amores tomou.

Novo amante mão de esposo,
De mimos cheia, lh'of'rece;
E bela, apesar de ingrata,
Do que a amou Lia se esquece.

Do que a amou que longe pára,
Do que a amou, que pensa nela,
Pensando encontrar firmeza
Em Lia, que era tão bela!

Nesse palácio deserto
Já luzes se vêm luzir,
Que vem nas sedas, nos vidros
Cambiantes refletir.

Os ecos alegres soam,
Soa ruidosa harmonia,
Soam vozes de ternura,
Sons de festa e d'alegria.

E qual ave que em silêncio
A face do mar desflora,
À noite bela fragata
Chega ao porto, amaina, ancora.

Cai da popa e fere as ondas
Inquieta, esguia falua,
Que resvala sobre as águas
Na esteira que traça a lua.

Já na vácua praia toca;
Um vulto em terra saltou,
Que na longa escadaria
Presago e torvo enfiou..

Malfadado! por que aportas
A este sítio fatal!
Queres o brilho aumentar
Das bodas do teu rival?

Não, que a vingança lhe range
Nos duros dentes cerrados,
Não, que a cabeça referve
Em maus projetos danados!

Não, que os seus olhos bem dizem
O que diz seu coração;
Terríveis, como um espelho,
Que retratasse um vulcão.

Não, que os lábios descorados
Vociferam seu rival;
Não, que a mão no peito aperta
Seu pontiagudo punhal.

Não, por Deus, que tais afrontas
Não as sói deixar impunes,
Quem tem ao lado um punhal,
Quem tem no peito ciúmes!

Subiu! - e viu com seus olhos
Ela a rir-se que dançava,
Folgando, infame! nos braços
Porque assim o assassinava.

E ele avançou mais avante,
E viu. . . o leito fatal!
E viu. . . e cheio de raiva
Cravou no meio o punhal.

E avançou... e à janela
Sozinha a viu suspirar,
- Saudosa e bela encarando
A imensidade do mar.

Como se vira um espectro,
De repente ela fugiu!
Tal foge a corça nos bosques
Se leve rumor sentiu.

Que foi? - Quem sabe dizê-lo?
Foram vislumbres de dor:
Coração, que tem remorsos,
Sente contínuo terror!

Ele à janela chegou-se,
Horrível nada encontrou. . .
Somente, ao longe, nas sombras,
Sua fragata avistou.

Então pensou que no mundo
Nada mais de seu contava!
Nada mais que essa fragata!
Nada mais de quanto amava!

Nada mais!... - que lh'importava
De no mundo só se achar?
Inda muito lhe ficava -
Água e céus e vento e mar.

Assim pensava, mas nisto
Descortina o seu rival,
Não visto; - a mão na cintura
Cingiu raivoso o punhal!

Mas pensou. . . - não, seja dela,
E tenha zelos como eu? -
Larga o punhal, e um retrato
Na destra mão estendeu.

Porém sentiu que inda tinha
Mais que branda compaixão;
Miserando! inda guardava
Seu amor no coração.

Infeliz! não foi culpada;
Foi culpa do fado meu!
Nada mais de pensar nela;
Finjamos que ela morreu.

Por entre a turba que alegre
No baile - a sorrir-se estava,
Mudo, triste, e pensativo
Surdamente se afastava.

De manhã - quando o sarau
Apagava o seu rumor,
Chegava Lia a janela,
Mais formosa de palor.

Chegou-se; - e além -.- no horizonte
Uma vela inda avistou;
E co'a mão trêmula e fria
O telescópio buscou!

Um pavilhão viu na popa,
Que tinha um globo pintado;
E no mastro da mezena
Um negro vulto encostado.

Eram chorosos seus olhos,
Os olhos seus enxugou;
E o telescópio de novo
Para essa vela apontou.

Quem era o vulto tão triste
Parece reconheceu;
Mas a vela no horizonte
Para sempre se perdeu.


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 12 de dezembro de 2021

O COMETA (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)
O COMETA
Gonçalves Dias
 
 
 

Eis nos céus rutilando ígneo cometa!
A imensa cabeleira o espaço alastra,
E o núcleo, como um sol tingido em sangue,
Alvacento luzir verte agoireiro
Sobre a pávida terra.

Poderosos do mundo, grandes, povo,
Dos lábios removei a taça ingente,
Que em vossas festas gira; eis que rutila
O sangüíneo cometa em céus infindos!...
Pobres mortais, - sois vermes!

O Senhor o formou terrível, grande;
Como indócil corcel que morde o freio,
Retinha-o só a mão do Onipotente.
Ao fim lhe disse: - Vai, Senhor dos Mundos,
Senhor do espaço infindo.

E qual louco temido, ardendo em fúria,
Que ao vento solta a coma desgrenhada,
E vai, néscio de si, livre de ferros,
De encontro às duras rochas, - tal progride
O cometa incansável.

Se na marcha veloz encontra um mundo,
O mundo em mil pedaços se converte;
Mil centelhas de luz brilham no espaço
A esmo, como um tronco pelas vagas
Infrenes combatido.

Se junto doutro mundo acaso passa,
Consigo o arrasta e leva transformado;
A cauda portentosa o enlaça e prende,
E o astro vai com ele, como argueiro
Em turbilhão levado.

Como Leviatã perturba os mares,
Ele perturba o espaço; - como a lava,
Ele marcha incessante e sempre; - eterno,
Marcou-lhe largo giro a lei que o rege,
- Às vezes o infinito.

Ele carece então da eternidade!
E aos homens diz - e majestoso e grande
Que jamais o verão; e passa, e longe
Se entranha em céus sem fim, como se perde
Um barco no horizonte!


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 05 de dezembro de 2021

O ORGULHOSO (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)
O ORGULHOSO

Gonçalves Dias

 

Eu o vi! - tremendo era no gesto,
Terrível seu olhar;
E o cenho carregado pretendia
O globo dominar.

Tremendo era na voz, quando no peito
Fervia-lhe o rancor!
E aos demais homens, como um cedro à relva,
Se cria sup'rior.

E o pobre agricultor, junto a seus filhos,
Dentro do humilde lar,
Quisera, antes que os dele, ver um Tigre
Os olhos fuzilar:

Que a um filho seu talvez quisera o nobre
Para um Executor;
Ou para o leito infesto alguma filha
Do triste agricultor.

Quem ousaria resistir-lhe? - Apenas
Algum pobre ancião
Já sobre o seu sepulcro, desejando
A morte e a salvação.

Alguns dias apenas decorreram;
E eis que ele se sumiu!
E a laje dos sepulcros fria e muda
Sobre ele já caiu.

E o bárbaro tropel dos que o serviam
Exulta com seu fim!
E a turba aplaude; e ninguém chora a morte
De homem tão ruim.


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 28 de novembro de 2021

O DESTERRO DE UM POBRE VELHO (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)
O DESTERRO DE UM  POBRE VELHO

Gonçalves Dias

 

A aurora vem despontando,
Não tarda o sol a raiar:
Cantam aves, - a natura
Já começa a respirar.

Bem mansa na branca areia
Onda queixosa murmura,
Bem mansa aragem fagueira
Entre a folhagem sussurra.

É hora cheia de encantos,
E hora cheia de amor;
A relva brilha enfeitada,
Mais fresca se mostra a flor.

Esbelta joga a fragata,
Como um corcel a nitrir;
Suspensa a amarra tem presa,
Suspensa, que vai partir.

Em demanda da fragata,
Leve barco vem vogando;
Nele um velho cujas faces
Mudo choro está cortando.

Quem era o velho tão nobre,
Que chorava,
Por assim deixar seus lares,
Que deixava?

"Ancião, por que te ausentas?
Corres tu trás de ventura?
Louco! a morte já vem perto.
Tens aberta a sepultura.

"Louco velho, já não sentes
Bater frouxo o coração? .
Oh! que o sente! - É lei d'exílio
A que o leva em tal sazão!

"Não ver mais a cara pátria,
Não ver mais o que deixava,
Não ver nem filhos, nem filhas,
Nem o casal, que habitava!...

"Oh! que é má pena de morte,
A pena de proscrição;
Traz dores que martirizam,
Negra dor de coração!

"Pobre velho! - longe, longe
Vás sustento mendigar;
Tens de sofrer novas dores,
Novos males que penar.

"Não t'há de valer a idade,
Nem a dor tamanho e nobre;
Tens de tragar vis afrontas,
- Insultos que sofre o pobre!

"Nada acharás no degredo,
Que fale dos filhos teus;
Ninguém sente a dor do pobre,,,
Só te fica a mão de Deus.

"O sol, que além vês raiando
Entre nuvens de carmim,
Noutros climas, noutras terras
Não verás raiar assim.

"Não verás a rocha erguida,
Onde t'ias assentar;
Nem o som bem conhecido
Do teu sino hás de escutar.

"Há de cair sobre as ondas
O pranto do teu sofrer,
E nesse abismo salgado,
Salgado se há de perder."

Já chegou junto à fragata,
Já na escada de apoiou,
Já com voz intercortada
Último adeus soluçou.

Canta o nauta, e solta as velas
Ao vento que o vai guiar;
E a fragata mui veleira
Vai fugindo sobre o mar.

E o velho sempre em silêncio
A calva testa dobrou,
E pranto mais abundante
O rosto senil cortou.

Inda se vê branca a vela
Do navio, que partiu;
Mais além - inda se avista!
Mais além - já se sumiu!


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 21 de novembro de 2021

AO DR. JOÃO DUARTE LISBOA SERRA (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)
AO DR. JOÃO DUARTE LISBOA SERRA

Gonçalves Dias

 

Mais um pungir de acérrima saudade,
Mais um canto de lágrimas ardentes,
Oh! minha Harpa, - oh! minha Harpa desditosa.

Escuta, ó meu amigo: da minha alma
Foi uma lira outrora o instrumento;
Cantava nela amor, prazer, venturas,
Até que um dia a morte inexorável
Triste pranto de irmão veio arrancar-te!

As lágrimas dos olhos me caíram,
E a minha lira emudeceu de mágoa!
Então aventei eu que a vida inteira
Do bardo, era um perene sacerdócio
De lágrimas e dor; - tomei uma Harpa:
Na corda da aflição gemeu minha alma,
Foi meu primeiro canto um epicédio!
Minha alma batizou-se em pranto amargo,
Na frágua do sofrer purificou-se!

Lancei depois meus olhos sobre o mundo,
Cantor do sofrimento e da amargura;
E vi que a dor aos homens circundava,
Como em roda da terra o mar se estreita;
Que apenas desfrutamos, - miserandos!
Desbotado prazer entre mil dores,
- Uma rosa entre espinhos aguçados,
Um ramo entre mil vagas combatido.

Voltou-se então p'ra Deus o meu esp'rito,
E a minha voz queixosa perguntou-lhe:
- Senhor, porque do nada me tiraste,
Ou por que a tua voz onipotente
Não fez secar da minha vida a sebe,
Quando eu era principio e feto - apenas?

Outra voz respondeu-me dentro d'alma:
- Ardam teus dias como o feno, - ou durem
Como o fogo de tocha resinosa,
- Como rosa em jardim sejam brilhantes,
Ou baços como o cardo montesinho.
Não deixes de cantar, ó triste bardo. -
E as cordas da minha harpa - da primeira
À extrema - da maior à mais pequena,
Nas asas do tufão - entre perfumes,
Um cântico de amores exaltaram
Ao trono do Senhor; - e eu disse às turbas:
- Ele nos faz gemer porque nos ama;
Vem o perdão nas lágrimas contritas,

Nas asas do sofrer desce a demência;
Sobre quem chora mais ele mais vela!
Seu amor divinal é como a lâmpada,
Na abóbada dum templo pendurada,
Mais luz filtrando em mais opacas trevas.
Eu o conheço: - o cântico do bardo
É bálsamo ao que morre, - é lenitivo,
Mas doloroso, mas funéreo e triste
A quem lhe carpe infausto a morte crua.
Mas quando a alma do justo, espedaçando
O invólucro de lodo, aos céus remonta,
Como estrada de luz correndo os astros,
Seguindo o som dos cânticos dos anjos
Que na presença do Senhor se elevam;
Choro... tão bem Jesus chorou a Lázaro!
Mas na excelsa visão que se me antolha
Bebo consolações, - minha alma anseia
A hora em que também há de asilar-se
No seio imenso do perdão do Eterno.

Chora, amigo: porém quando sentires
O pranto nos teus olhos condensar-se,
Que já não pode mais banhar-te as faces,
Ergue os olhos ao céu, onde a luz mora,
Onde o orvalho se cria, onde parece
Que a tímida esperança nasce e habita.
E se eu - feliz! - puder inda algum dia
Ferir por teu respeito na minha harpa
A leda corda onde o prazer palpita,
A corda do prazer que ainda inteira,
Que virgem de emoção inda conservo,
Suspenderei minha harpa dalgum tronco
Em of'renda à fortuna; - ali sozinha,
Tangida pelo sopro só do vento,
Há de mistérios conversar co'a noite.
De acorde estreme perfumando as brisas:
Qual Harpa de Sião presa aos salgueiros
Que não há de cantar a desventura,
Tendo cantos gentis vibrado nela.


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 14 de novembro de 2021

A ESCRAVA (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)
A ESCRAVA

Goçalves Dias

 

O biem qu’aucun bien ne peut rendre,
O Patrie, ó doux nom que l’exil fait comprendre!
Marino Faliero

Oh! doce país de Congo,
Doces terras d’além-mar!
Oh! dias de sol formoso!
Oh! noites d’almo luar!

Desertos de branca areia
De vasta, imensa extensão,
Onde livre corre a mente,
Livre bate o coração!

Onde a Ieda caravana
Rasga o caminho passando,
Onde bem longe se escuta
As vozes que vão cantando!

Onde longe inda se avista
O turbante muçulmano,
O Iatagã recurvado,
Preso à cinta do Africano!

Onde o sol na areia ardente
Se espelha, como no mar;
Oh! doces terras de Congo,
Doces terras d’além-mar!

Quando a noite sobre a terra
Desenrolava o seu véu,
Quando sequer uma estrela
Não se pintava no céu;

Quando só se ouvia o sopro
De mansa brisa fagueira,
Eu o aguardava — sentada
Debaixo da bananeira.

Um rochedo ao pé se erguia,
Dele à base uma corrente
Despenhada sobre pedras,
Murmurava docemente.

E ele às vezes me dizia:
— “Minha Alsgá, não tenhas medo:
Vem comigo, vem sentar-te
Sobre o cimo do rochedo.”

E eu respondia animosa:
— “Irei contigo, onde fores!”
E tremendo e palpitando
Me cingia aos meus amores.

Ele depois me tornava
Sobre o rochedo — sorrindo:
— “As águas desta corrente
Não vês como vão fugindo?

“Tão depressa corre a vida,
Minha Alsgá; depois morrer
Só nos resta!… — Pois a vida
Seja instantes de prazer.

“Os olhos em torno volves
Espantados — Ah! também
Arfa o teu peito ansiado!…
Acaso temes alguém?

“Não receies de ser vista,
Tudo agora jaz dormente;
Minha voz mesmo se perde
No fragor desta corrente.

“Minha Alsgá, por que estremeces?
Por que me foges assim?
Não te partas, não me fujas,
Que a vida me foge a mim!

“Outro beijo acaso temes,
Expressão de amor ardente?
Quem o ouviu? — o som perdeu-se
No fragor desta corrente.”

Assim praticando amigos
A aurora nos vinha achar!
Oh! doces terras de Congo,
Doces terras d’além-mar!

———

Do ríspido Senhor a voz irada
Rábida soa,
Sem o pranto enxugar a triste escrava
Pávida voa.

Mas era em mora por cismar na terra,
Onde nascera,
Onde vivera tão ditosa, e onde
Morrer devera!

Sofreu tormentos, porque tinha um peito,
Qu’inda sentia;
Mísera escrava! no sofrer cruento,
“Congo!” dizia.


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 07 de novembro de 2021

A MENDIGA (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)
A MENDIGA

Gonçalves Dias


 
I

Eu sonhei durante a noite...
Que triste foi meu sonhar!
Era uma noite medonha,
Sem estrelas, sem luar.

E ao través do manto escuro
Das trevas, meus olhos viam
Triste mendiga formosa,
Qu'infortúnios consumiam.

Era uma pobre mendiga,
Porém, cândida donzela;
Pudibunda, afável, doce,
Amorosa, e casta, e bela.

Vestia rotos andrajos,
Que o seu corpo mal cobriam;
Por vergonha os olhos dela
Sobre ela se não volviam.

Pelas costas descobertas
Cortador o frio entrava;
Tinha fome e sede, - e o pranto
Nos seus olhos borbulhava.

E qual vemos dos céus descendo rápido
Um fugaz meteoro, vi descendo
Um anjo do Senhor; - Parou sobre ela,
E mudo a contemplava. - Uma tristeza
Simpática, indizível pouco e pouco
Do anjo nas feições se foi pintando:
Qual tristeza de irmão que a irmã mais nova
Conhece enferrna e chora. - Ela no peito
Menor sentiu a dor, e humilde orava.

 

II

De um vasto edifício nas frias escadas
Eu vi-a sentada; - era um templo, diziam,
Secreto concílio de sócios piedosos,
Que o bem tinha juntos, que bem só faziam.

Defronte um palácio soberbo se erguia,
E dele partia confuso rumor:
- A dança girava, e a orquestra sonora
Cantava alegria, prazeres e amor.

E quando ao palácio um conviva chegava,
Rugindo se abria o ruidoso portão;
Eflúvios de incenso nos ares corriam
Da rua esteirada com vivo clarão.

E a triste mendiga ali 'stava ao relento,
Com fome, com frio, com sede e com dor;
E eu vi o seu anjo, mais triste no aspecto,
Mais baço, mais turvo da glória o fulgor.

E à porta do vasto sombrio edifício
Um vulto chegou.
- Senhor, uma esmola! bradou-lhe a mendiga
E o vulto parou.

E rude no acento, no aspecto severo,
Lhe disse: - O teu nome?
Tornou-lhe a mendiga: - Senhor, uma esmola,
Que eu morro de fome.

- Não, dizes teu nome? lhe torna o soberbo
- Sou órfã, sozinha;
Meu nome qu'importa, se eu sofro, se eu gemo,
Se eu choro mesquinha!"

- Em vis meretrizes não cabe esse orgulho,
Tornou-lhe o Senhor,
Que à noite, nas trevas, contratam no crime,
Vendendo o pudor.

E a porta do templo - erguido à piedade
Com força batia;
Co'o peso do insulto acrescido à crueza,
A triste gemia.

 

III

Ouvi depois um rodar que a todo o instante
Mais distinto se ouvia; e logo um forte,
Fascinador clarão por toda a rua
Se derramou soberbo. - Infindos pajens
Ricas librés trajando, mil archotes
Nos ares revolviam; - fortes, rápidos,
Fumegantes corcéis, sorvendo a terra,
Tiravam rica sege melindrosa.
Sobre a terra saltou airosa e bela
A dona, em frente do festivo paço;
E a mendiga bradou: - Senhora minha,
Dai uma esmola, dai! - À voz dorida
Volveu-se o rosto d'anjo, porém d'anjo
Não era o coração; - foi-lhe importuno,
Mais que importuno... da mesquinha o grito!
E da mendiga o protetor celeste
Parecia falar em favor dela;
E a rica dona o escutava, como
Se ouvisse a interna voz que dentro mora.

E eu dizia também - Ó bela Dona,
Dai-lhe uma esmola, daí; - de que vos serve
Um óbolo mesquinha, que não pode
Sequer um dixe sem valor comprar-vos?
Ah! bela como sois, que vos importam
Custosas flores, com que ornais a fronte?
Para a salvar do vórtice do crime,
O preço delas, uma só, da coisa,
Que sem valor julgardes, é bastante.
Sabeis? - Além da vida, além da morte,
Quando deixardes o ouropel na campa,
Quando subirdes do Senhor ao trono,
Sem andrajos sequer, também mendiga,
Ali tereis as lágrimas do pobre,
A bênção do afligido, a prece ardente
Do que sofrendo vos bendisse, - ó Dona.

Fechou-se a porta festival sobre ela!
E a donzela se ergueu, corou de pejo,
Lançando os olhos pela rua escusa,
E segura no andar, e firme, à porta
Do palácio bateu - entrou - sumiu-se.

E o anjo, como aflito sob um peso,
Um gemido soltou; era uma nota
Melancólica e triste, - era um suspiro
Mavioso de virgem, - um soído
Subtil, mimoso, como d'Harpa Eólia,
Que a brisa da manhã roçou medrosa.

 

IV

Dos muros ao través meus olhos viram
Soberba roda de convivas, - todos
Veludos, sedas, e custosas galas
Trajavam senhoris. - Reinava o jogo
Avaro e grave, leda e viva a dança
Em vórtices girava, a orquestra doce
Cantava oculta; condensados, bastos,
Em redor do banquete estavam muitos.
A mendiga ali estava, - não trajando
Sujos farrapos, mas delgadas telas.
Choviam brindes e canções e vivas

À Deusa airosa do banquete; todos
Um volver dos seus olhos, um sorriso,
Uma voz de ternura, um mimo, um gesto
Cobiçavam rivais; - e ali com ela,
Como um raio do sol por entre as nuvens
Lá na quadra hibernal penetra a custo
Quase sem vida, sem calor, sem força,
Menos brilhante vi seu anjo belo.
Nos curtos lábios da feliz mendiga
Passava rápido um sorriso às vezes;
Outras chorava, no volver do rosto,
Na taça do prazer sorvendo o pranto.
Encontradas paixões sentia o anjo:
Parecia chorar co'o seu sorriso,
Parecia sorrir co'o choro dela.


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 31 de outubro de 2021

A MORTE PREMATURA (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)

 

 
A MORTE PREMATURA

Gonçalves Dias

 

Lá, bem longe daqui, em tarde amena,
Gozando a viração das frescas auras,
Que do Brasil os bosques brandamente
Faziam balançar, – e que espalhavam
No éter encantado odor, pureza –
Do que a rosa mais bela, – meiga e casta,
Como as virgens do sol,
Que de vezes não foi ela pendente
Dos braços fraternais em meigo abraço;
Como mimosa flor presa, enlaçada
A tenro arbusto que a vergôntea débil
Lhe ampara docemente. . .
E o Irmão que só nela se revia,
O Irmão que a adorava, qual se adora
Um mimo do Senhor;
Que a tinha por farol, conforto e guia,
Os seus dias contava por encantos;
E as virtudes co’os dias pleiteavam.
E ela morreu no viço de seus anos!…
E a laje fria e muda dos sepulcros
Se fechou sobre o ente esmorecido
Ao despontar de vida
Tão rica de esperanças e tão cheia
De formosura e graças!… _
Campal campa! que de terror incutes!
Quanto esse teu silêncio me horroriza!
E quanto se assemelha a tua calma
À do cruel malvado que impassível
Contempla a sua vítima torcer-se
Em convulsões horríveis, desesp’radas;
Cruas vascas da morte!…
Quem tão má fé te criou?
Tu que tragas o ente que esmorece
Ao despontar de vida
Tão rica de esperanças e tão cheia
De formosura e graças?!
O farol se apagou? a luz sumiu-se!
Como o fugaz clarão do meteoro,
Extinguiu-se a esperança; e o malfadado
Sobre a terra deserta em vão procura
Traços dessa que amou, que tanto o amara,
Da jovem companheira de seus brincos,
Pesares e alegrias.
Ele a procurai… o viajor pasmado
Nos campos de Pompéia, alonga a vista
Pela amplidão do plano,
Destroços e ruínas encontrando,
Onde esperava movimento e vida.
Não poder eu a troco de meu sangue
Poupar-te dessas lágrimas metade!
Oh! poder que eu pudesse! – e almo sorriso.
Que tanto me compraz ver-te nos lábios,
Inda uma vez brilhasse!
E essa existência,
Que tão cara me é, ta visse eu leda,
E feliz como a vida dos Arcanjos!
Infeliz é quem chora: ela finou-se,
Porque os anjos à terra não pertencem:
Mas lá dos imortais sobre os teus dias
A suspirada irmã vela incessante.
Vinde, cândidas rosas, açucenas,
Vinde, roxas saudades;
Orvalhai, tristes lágrimas, as c’roas,
Que hão de a campa adornar por mim depostas
Em holocausto à vítima da morte.
Inocência, pudor, beleza e graça
Com ela nessa campa adormeceram.
Anjo no coração, anjo no rosto,
Devera o amor chorar sobre o teu seio,
Que não grinaldas fúnebres tecer-te;
Devera voz d’esposo acalentar-te
O sono da inocência, – não grosseira
Canção de trovador não conhecido.


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 24 de outubro de 2021

O VATE (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)
 
O VATE

Gonçalves Dias

No Álbum de um Poeta

 

Moi... j’aimerai ta victoire;

Pour mon coeur, ami de toute gloire,

Les triomphes d’autrui ne sont pas un affront.

Poète, j’eus toujours un chant pour les poètes,

Et jamais le laurier qui pare d’autres têtes

Ne jeta d’ombre sur mon front

V. Hugo

 

Vate! Vate! Que és tu? – Nos seus extremos

Fadou-te Deus um coração de amores,

Fadou-te uma alma acesa borbulhando

Ardidos pensamentos, como a lava

Que o gigante Vesúvio arroja às nuvens.

 

Vate! Vate! Que és tu? – Foste ao princípio

Sacerdote e profeta;

Eram nos céus teus cantos uma prece,

Na terra um vaticínio.

E ele cantava então: – Jeová me disse,

Majestoso e terrível.

 

“Vês tu Jerusalém como orgulhosa

Campeã entre as nações, como no Líbano

Um cedro a cuja sombra a hissope cresce?

Breve a minha ira transformada em raios

Sobre ela cairá;

Um fero vencedor dentro em seus muros

Tributária a fará;

E quando escravo seus filhos, sobre pedra

Pedra não ficará.”

 

E os réprobos de saco se vestiam;

Em pó, em cinza envoltos;

E colando co’a terra os torpes lábios,

E açoitando co’as mãos o peito imbele,

Senhor! Senhor! – clamavam.

 

E o vate entanto o pálido semblante

Meditabundo sobre as mãos firmava,

Suplicando ao Senhor do interno d’alma.

Foram santos então. – Homero o mundo

Criou segunda vez, – o inferno o Dante, –

Milton o paraíso, – foram grandes!

 

E hoje!... em nosso exílio erramos tristes,

Mimosa esp’rança ao infeliz legando,

Maldizendo a soberba, o crime, os vícios;

E o infeliz se consola, e o grande treme.

Damos ao infante aqui do pão que temos,

E o manto além ao mísero raquítico;

Somos hoje Cristãos.


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 17 de outubro de 2021

A TEMPESTADE (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)

 

A TEMPESTADE

Gonçalves Dias

 

Quem porfiar contigo... ousara
Da glória o poderio;
Tu que fazes gemer pendido o cedro,
Turbar-se o claro rio?
A. HERCULANO

Um raio
Fulgura
No espaço
Esparso,
De luz;
E trêmulo
E puro
Se aviva,
S’esquiva
Rutila,
Seduz!

Vem a aurora
Pressurosa,
Cor de rosa,
Que se cora
De carmim;
A seus raios
As estrelas,
Que eram belas,
Tem desmaios,
Já por fim.

O sol desponta
Lá no horizonte,
Doirando a fonte,
E o prado e o monte
E o céu e o mar;
E um manto belo
De vivas cores
Adorna as flores,
Que entre verdores
Se vê brilhar.

Um ponto aparece,
Que o dia entristece,
O céu, onde cresce,
De negro a tingir;
Oh! vede a procela
Infrene, mas bela,
No ar s’encapela
Já pronta a rugir!
Não solta a voz canora
No bosque o vate alado,
Que um canto d’inspirado
Tem sempre a cada aurora;
É mudo quanto habita
Da terra n’amplidão.
A coma então luzente
Se agita do arvoredo,
E o vate um canto a medo
Desfere lentamente,
Sentindo opresso o peito
De tanta inspiração.

Fogem do vento que ruge
As nuvens aurinevadas,
Como ovelhas assustadas
Dum fero lobo cerval;
Estilham-se como as velas
Que no alto mar apanha,
Ardendo na usada sanha,
Subitâneo vendaval.

Bem como serpentes que o frio
Em nós emaranha, — salgadas
As ondas s’estanham, pesadas
Batendo no frouxo areal.
Disseras que viras vagando
Nas furnas do céu entreabertas
Que mudas fuzilam, — incertas
Fantasmas do gênio do mal!

E no túrgido ocaso se avista
Entre a cinza que o céu apolvilha,
Um clarão momentâneo que brilha,
Sem das nuvens o seio rasgar;
Logo um raio cintila e mais outro,
Ainda outro veloz, fascinante,
Qual centelha que em rápido instante
Se converte d’incêndios em mar.

Um som longínquo cavernoso e ouco
Rouqueja, e n’amplidão do espaço morre;
Eis outro inda mais perto, inda mais rouco,
Que alpestres cimos mais veloz percorre,
Troveja, estoura, atroa; e dentro em pouco
Do Norte ao Sul, — dum ponto a outro corre:
Devorador incêndio alastra os ares,
Enquanto a noite pesa sobre os mares.

Nos últimos cimos dos montes erguidos
Já silva, já ruge do vento o pegão;
Estorcem-se os leques dos verdes palmares,
Volteiam, rebramam, doudejam nos ares,
Até que lascados baqueiam no chão.

Remexe-se a copa dos troncos altivos,
Transtorna-se, tolda, baqueia também;
E o vento, que as rochas abala no cerro,
Os troncos enlaça nas asas de ferro,
E atira-os raivoso dos montes além.

Da nuvem densa, que no espaço ondeia,
Rasga-se o negro bojo carregado,
E enquanto a luz do raio o sol roxeia,
Onde parece à terra estar colado,
Da chuva, que os sentidos nos enleia,
O forte peso em turbilhão mudado,
Das ruínas completa o grande estrago,
Parecendo mudar a terra em lago.

Inda ronca o trovão retumbante,
Inda o raio fuzila no espaço,
E o corisco num rápido instante
Brilha, fulge, rutila, e fugiu.
Mas se à terra desceu, mirra o tronco,
Cega o triste que iroso ameaça,
E o penedo, que as nuvens devassa,
Como tronco sem viço partiu.

Deixando a palhoça singela,
Humilde labor da pobreza,
Da nossa vaidosa grandeza,
Nivela os fastígios sem dó;
E os templos e as grimpas soberbas,
Palácio ou mesquita preclara,
Que a foice do tempo poupara,
Em breves momentos é pó.

Cresce a chuva, os rios crescem,
Pobres regatos s’empolam,
E nas turvam ondas rolam
Grossos troncos a boiar!
O córrego, qu’inda há pouco
No torrado leito ardia,
É já torrente bravia,
Que da praia arreda o mar.

Mas ai do desditoso,
Que viu crescer a enchente
E desce descuidoso
Ao vale, quando sente
Crescer dum lado e d’outro
O mar da aluvião!
Os troncos arrancados
Sem rumo vão boiantes;
E os tetos arrasados,
Inteiros, flutuantes,
Dão antes crua morte,
Que asilo e proteção!

Porém no ocidente
S’ergue de repente
O arco luzente,
De Deus o farol;
Sucedem-se as cores,
Qu’imitam as flores
Que lembram primores
Dum novo arrebol.

Nas águas pousa;
E a base viva
De luz esquiva,
E a curva altiva
Sublima ao céu;
Inda outro arqueia,
Mais desbotado,
Quase apagado,
Como embotado
De tênue véu.

Tal a chuva
Transparece,
Quando desce
E ainda vê-se
O sol luzir;
Como a virgem,
Que numa hora
Ri-se e cora,
Depois chora
E torna a rir.

A folha
Luzente
Do orvalho
Nitente
A gota
Retrai:
Vacila,
Palpita;
Mais grossa
Hesita,
E treme
E cai. 


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 10 de outubro de 2021

A NOITE (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)
 
A NOITE 

Gonçalves Dias

 


Noite, melhor que o  dia, quem não ama,
Quem não vive mais brando em teu regaço!

Eu amo a noite solitaria e muda,

Quando no vasto céo fitando os ollios,
Alem do escuro, que lhe tinge a face,
       Alcanço deslumbrado
Milhões de sóes a divagar no espaço,
Como em salas de esplendido banquete
Mil tochas aromaticas ardendo
       Entre nuvens d’incenso!

Eu amo a noite taciturna e quêda!
Amo a doce mudez que ella derrama,
E a fraca aragem pelas densas folhas
       Do bosque murmurando:
Então, máo grado o véo que involve a terra,
A vista do que vela enxerga mundos,
E apezar do silencio, o ouvido escuta
       Notas de ethereas harpas.

Eu amo a noite taciturna e quêda!
Então parece que da vida as fontes
Mais faceis correm, mais sonoras soão,
       Mais fundas se abrem;
Então parece que mais pura a brisa
Corre, — que então mais funda e leve a fonte
Mana, — e que os sons então mais doce e triste
       Da musica se espargem.
 

O peito aspira sofrego ar de vida,
Que da terra não é, qual flôr nocturna,
Que bebe orvalho, elle se embebe e ensópa
       Em extasis de amor:
Mais direitas então, mais puras devem,
Calada a natureza, a terra e os homens,
Subir as orações aos pés do Eterno
       Para afagar-lhe o throno!

Assim é que no templo magestoso
Rebôa pela nave o som mais alto,
Quando o sacro instrumento quebra a augusta
       Mudez do sanctuario:
Assim é que o incenso mais direito
Se eleva na capella que o resguarda,
E na chave da abobada topando,
       Como um docél, se expraia.

Eu amo a noite solitaria e muda;
Como formosa dona em regios paços,
Trajando ao mesmo tempo luto e galas
       Magestosa e sentida;
Se no dó attentais, de que se enluta,
Certo sentis pezar de a ver tão triste;
Se o rosto lhe fitais, sentis deleite
       De a ver tão bella e grave!

Considerai porêm o nobre aspecto,
E o pórte, e o garbo senhoril e altivo,
E as fallas poucas, e o olhar sob’rano,
       E a fronte levantada:
No silencio que a véste, adorna e honra,
Conhecendo por fim quanto ella é grande,
Com voz humilde a saudareis rainha,
       Curvado e respeitoso.

Eu amo a noite solitaria e muda,
Quando, bem como em salas de banquete
Mil tochas aromaticas ardendo,
       Girão fúlgidos astros!

Eu amo o leve odor que ella diffunde,
E o rorante frescor cahindo em per’las,
E a magica mudez que tanto falla,
       E as sombras transparentes!

Oh! quando sobre a terra ella se estende,
Como em praia arenosa mansa vaga;
Ou quando, como a flôr d’entre o seo musgo,
       A aurora desabrocha;
Mais forte e pura a voz humana sôa,
E mais se accórda ao hymno harmonioso,
Que a natureza sem cessar repete,
       E Deos gostoso escuta.

(Grafia original)

 


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 03 de outubro de 2021

A LUA (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)

 

 

A LUA

Gonçalves  Dias

 

 

Salve, ó Lua cândida,

Que trás dos altos montes

Erguendo a fronte pálida,

Dos negros horizontes

As sombras melancólicas

Vens ora afugentar

Salve, ó astro fúlgido,

Que brilhas docemente,

Melhor que o lume trêmulo

D’estrela inquieta, ardente,

Melhor que o brilho esplêndido

Do sol ferindo o mar!

 

Salve, ó reflexo tênue

Da eterna luz preclara

Nas nossas noites hórridas;

Qual sol que em linfa clara

Desponta os raios vívidos,

Em tarja multicor;

És como a virgem pudica.

Que amor no peito encerra;

Mas só, mas solitária,

Vagando aqui na terra

Triplica o selo místico

Do não sabido amor!

Eu te amo, ó Lua cândida,

No giro sonolento.

E o teu cortejo mádido

De estrelas, e do vento

O sopro merencório,

Que à noite dá frescor.

Por teus influxos mágicos

Minha alma aos sons do canto

Revive; e os olhos úmidos

Gotejam triste pranto,

Que orvalha a chaga tépido,

Que míngua a antiga dor!

 

Em gélido sudário

De neve alvinitente,

Por terras vi longínquas,

Durante a noite algente,

A tua luz benéfica

Luzir meiga do céu.

Nos mares solitários

Tão bem a vi! – nas vagas

Brincava o lume argênteo,

Cantava o nauta as magas

Canções, no voluntário,

Cansado exílio seu!

 

Tão bem a vi na límpida

Corrente vagarosa;

Tão bem nas densas árvores

De selva majestosa,

Coando os raios lúbricos

No lôbrego palmar.

E eu só e melancólico

Sentado ao pé da veia,

Que a deslizar-se tímida

Beijava a branca areia;

Ou já na sombra tétrica

Da mata secular;

 

Em devaneio plácido

Velava, em quanto via

Ao longe – os altos píncaros

Da negra serrania,

- Disformes atalaias,

Que sempre ali serão!

No rórido silêncio

Minha alma se exaltava;

E das visões fantásticas,

Que a lua desenhava,

Seguia os traços áureos,

Tremendo em negro chão!

 

Pensava ledo, impróvido,

Até que de repente

Da minha vida mísera

Se me antolhava à mente

A quadra breve e rápida

Do malfadado amor.

Então fugia atônito

O bosque, a selva, a fonte,

E as sombras, e o silêncio;

Bem como o cervo insonte,

Que às setas foge pávido

Do fero caçador!

 

Salve, ó astro fúlgido,

Que brilhas docemente.

Melhor que o lume trêmulo

D’estrela inquieta, ardente,

Melhor que o brilho esplêndido

Do sol ferindo o mar.

Eu te amo, ó Lua pálida,

Vagando em noite bela,

Rompendo as nuvens túrdidas

Da ríspida procela;

Eu te amo até nas lágrimas

Que fazes derramar.


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 26 de setembro de 2021

ADEUS (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)
 
ADEUS

Gonçalves Dias

 

Aos meus amigos do Maranhão

 
Meus amigos, Adeus! Já no horizonte
O fulgor da manhã se empurpurece:
É puro e branco o céu, - as ondas mansas,
- Favorável a brisa; - irei de novo
Sorver o ar puríssimo das ondas,
E na vasta amplidão dos céus e mares
De vago imaginar embriagar-me!
Meus Amigos, Adeus! - Verei fulgindo
A lua em campo azul, e o sol no ocaso
Tingir de fogo a implacidez das águas;
Verei hórridas trevas lento e lento
Desceram, como um crepe funerário
Em negro esquife, onde repoisa a morte;
Verei a tempestade quando alarga
As negras asas de bulcões, e as vagas
Soberbas encastela, esporeando
O curto bojo de ligeiro barco,
Que geme, e ruge, e empina-se insofrido
Galgando os escarcéus, - bem larga esteira
De fósforo e de luz trás si deixando:
Generoso corcel, que sente as cruzes
Agudas de teimosos acicates
Lacerarem-lhe rábidas o ventre.

Inda uma vez, Adeus! Curtos instantes
De inefável prazer - horas bem curtas
De ventura e de paz frui convosco:
Oásis que encontrei no meu deserto,
Tépido vale entre fragosas serras
Virente derramado, foi a quadra
Da minha vida, que passei convosco.
Aqui de quanto amei, do que hei sofrido,
De tudo quanto almejo, espero, ou temo
Deslembrado vivi! - Oh! quem me dera
Que entre vós outros me alvejasse a fronte,
E que eu morresse entre vós! Mas força oculta,
lrresistível, me persegue e impele.
Qual folha instável em ventoso estio
Do vento ao sopro a esvoaçar sem custo;
Assim vou eu sem tino, - aqui pegadas
Mal firmes assentando - além pedaços
De mim mesmo deixando. Na floresta
O lasso viandante extraviado
Por todo o verde bosque estende os olhos,
E cansado esmorece, - cai, medita,
Respira mais de espaço, cobra alento,
E nas solidões de novo ei-lo se entranha.
Vestígios mal seguros sopra o vento,
Ou nivela-os a chuva, ou relva os cobre:
Talvez que folhas ásperas de arbusto
Mordam velos da túnica, e denotem
(Duvida o viajor, que os vê com pasmo)
Que errante caminheiro ali passasse.
E eu parti! - Não chorei, que do meu pranto
A larga fonte jaz de há muito exausta;
Há muito que os meus olhos não gotejam
O repassado fel d'acre amargura;
E o pranto no meu peito represado
Em cinza o coração me há convertido.
É assim que um vulcão se torna fonte
De linfa amarga e quente; e a fonte em ermo,
Onde não crescem perfumadas flores,
Nem tenras aves seus gorjeios soltam,
Nem triste viajor encontra abrigo.

Rasgado o coração de pena acerba,
Transido de aflições, cheio de mágoa,
Miserando parti! tal quando réprobo,
Adão, cobrindo os olhos co'as mãos ambas,
Em meio a sua dor só descobria
Do Arcanjo os candidíssimos vestidos,
E os lampejos da espada fulminante,
Que o Éden tão mimoso lhe vedava.
Porém quando algum dia o colorido
Das vivas ilusões, que inda conservo,
Sem força esmorecer, - e as tão viçosas
Esp'ranças, que eu educo, se afundarem
Em mar de desenganos; - a desgraça
Do naufrágio da vida há de arrojar-me
A praia tão querida, que ora deixo,
Tal parte o desterrado: um dia as vagas
Hão de os seus restos rejeitar na praia,
Donde tão novo se partira, e onde
Procura a cinza fria achar jazigo.


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 19 de setembro de 2021

TE DEUM (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)
 
 

 
 
TE DEUM
Gonçalves Dias
Nós, Senhor, nós te louvamos,
Nós, Senhor, te confessamos.



Senhor Deus Sabaó, três vezes santo,
Imenso é o teu poder, tua força imensa,
Teus prodígios sem conta; — e os céus e a terra
Teu ser e nome e glória preconizam.

E o arcanjo forte, e o serafim sem mancha,
E o coro dos profetas, e dos mártires
A turba eleita — a ti, Senhor, proclamam,
Senhor Deus Sabaó, três vezes santo.

Na inocência do infante és tu quem falas;
A beleza, o pudor — és tu que as gravas
Nas faces da mulher, — és tu que ao velho
Prudência dás, — e o que verdade e força
Nos puros lábios, do que é justo, imprimes.

És tu quem dás rumor à quieta noite,
És tu quem dás frescor à mansa brisa,
Quem dás fulgor ao raio, asas ao vento,
Quem na voz do trovão longe rouquejas.

És tu que do oceano à fúria insana
Pões limites e cobro, — és tu que a terra
No seu vôo equilibras, — quem dos astros
Governas a harmonia, como notas

Acordes, simultâneas, palpitando
Nas cordas d'Harpa do teu Rei Profeta,
Quando ele em teu furor hinos soltava,
Qu'iam, cheios de amor, beijar teu sólio.
Santo! Santo! Santo! — teus prodígios
São grandes, como os astros, — são imensos,
Como areia delgada em quadra estiva.

E o arcanjo forte e o serafim sem mancha,
E o coro dos profetas, e dos mártires
A turba eleita — a ti, Senhor, proclamam,
Senhor Deus Sabaó, três vezes grande.


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 12 de setembro de 2021

O TEMPLO (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)

O TEMPLO

Gonçalves Dias

-- Turquety

 

I

Estou só neste mudo santuário,

Eu só, com minha dor, com minhas penas!

E o pranto nos meus olhos represado,

Que nunca viu correr humana vista,

Livremente o derramo aos pés de Cristo,

Que tão bem suspirou, gemeu sozinho,

Que tão bem padeceu sem ter conforto,

Como eu padeço, e sofro, e gemo, e choro.

 

Remorso não me punge a consciência,

Vergonha não me tinge a cor do rosto,

Nem crimes perpetrei; - porque assim choro?

E direi eu por quê? - Antes meu berço,

Que vagidos de infante vividouro,

Os sons finais de um moribundo ouvisse!

Que esperanças que eu tinha tão formosas,

Que mimosos enlevos de ternura,

Não continha minha alma toda amores!

Esperanças e amor, que é feito delas?

Um dia me roubava uma esperança,

E sozinho, uma e uma, me deixaram.

Morreram todas, como folhas verdes

Que em princípios do inverno o vento arranca.

 

E o amor! - podia eu senti-lo ao menos;

Quando eu via a desdita de bem perto

Co'um sorriso infernal no rosto esquálido,

Com fome e frio a tiritar demente,

Acenando-me infausta? - quando vinda

Minha honra já sentia, em que os meus lábios,

Tremendo de vergonha, soluçassem

Ao f'liz com que eu na rua deparasse,

De mãos erguidas: Meu Senhor, piedade!

Eis por que sofro assim, por que assim gemo,

Por que meu rosto pálido se encova,

Por que somente a dor me ri nos lábios,

Por que meu coração já todo é cinzas.

 

Menti, Senhor, menti! - porque te adoro.

No altar profano de beleza esquiva

Não queimo incenso vão; - tu só me ocupas

O coração, que eu fiz hóstia sagrada,

Apuro de elevados sentimentos,

Que o teu amor somente asilam, nutrem.

Quando ao sopé da cruz me chego aflito,

Sinto que o meu sofrer se vai minguando,

Sinto minha ama que de novo existe,

Sinto meu coração arder em chamas,

Arder meus lábios ao dizer teu nome.

Assim a cada aurora, a cada noite.

Virei consolações beber sedento

Aos pés do meu Senhor; - virei meu peito

Encher de religião, de amor, de fogo,

Que além de infindos céus minha alma exalte.

 

II

Quem me dera nas asas deste vento,

Que agora tão saudoso aqui murmura,

Agitando as cortinas, que me encobrem

Do teu rosto o fulgor, que me não cegue,

Subir além dos sois, além das nuvens

Ao teu trono, ó meu Deus; ou quem me desse

Ser este incenso que se arroja em ondas

A subir, a crescer, em rolo, em fumo,

Até perder-se na amplidão dos ares!

Não qu'ria aqui viver! - Quando eu padeço,

Surdez fingida a minha voz responde;

Não tenho voz de amor, que me console,

Corre o meu pranto sobre terra ingrata,

E dor mortal meu coração fragoa.

Só tu, Senhor, só tu, no meu deserto

Escutas minha voz que te suplica;

Só tu nutres minha alma de esperança;

Só tu, ó meu Senhor, em mim derramas

Torrentes de harmonia, que me abrasam.

 

Qual órgão, que ressoa mavioso,

Quando segura mão lhe oprime as teclas,

Assim minha alma, quando a ti se achega,

Hinos de ardente amor disfere grata:

E, quando mais serena, inda conserva

Eflúvios desse canto, que me guia

No caminho da vida áspero e duro.

Assim por muito tempo reboando

Vão no recinto do sagrado templo

Sons, que o órgão soltou, que o ouvido escuta.


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 05 de setembro de 2021

A TARDE (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)
A TARDE

Gonçalves Dias

 


Ó tarde, oh bela tarde, oh meus amores,
Mãe da meditação, meu doce encanto!
Os rogos da minha alma enfim ouviste,
E grato refrigério vens trazer-lhe
No teu remansear prenhe de enlevos!
Em quanto de te ver gostam meus olhos,
Enquanto sinto a minha voz nos lábios,
Enquanto a morte me não rouba à vida,
Um hino em teu louvor minha alma exale,
Oh tarde, oh bela tarde, oh meus amores!

I
É bela a noite, quando grave estende
Sobre a terra dormente o negro manto
De brilhantes estrelas recamado;
Mas nessa escuridão, nesse silêncio
Que ela consigo traz, há um quê de horrível
Que espanta e desespera e geme n'alma;
Um quê de triste que nos lembra a morte!
No romper d'alva há tanto amor, tal vida,
Há tantas cores, brilhantismo e pompa,
Que fascina, que atrai, que a amar convida;
Não pode suportá-la homem que sofre,
Órfãos de coração não podem vê-la.

Só tu, feliz, só tu, a todos prendes!
A mente, o coração, sentidos, olhos,
A ledice e a dor, o pranto e o riso,
Folgam de te avistar; - são teus, - és deles
Homem que sente dor folga contigo,
Homem que tem prazer folga de ver-te!
Contigo simpatizam, porque és bela,
Qu'és mãe de merencórios pensamentos,
Entre os céus e a terra êxtasis doce,
Entre dor e prazer celeste arroubo.

II
A brisa que murmura na folhagem,
As aves que pipilam docemente,
A estrela que desponta, que rutila,
Com duvidosa luz ferindo os mares,
O sol que vai nas águas sepultar-se
Tingindo o azul dos céus de branco e d'oiro;
Perfumes, murmurar, vapores, brisa,
Estrelas, céus e mar, e sol e terra,
Tudo existe contigo, e tu és tudo.

III
Homem que vivo agro viver de corte,
lndiferente olhar derrama a custo
Sobre os fulgores teus; - homem do mundo
Mal pode o desbotado pensamento
Revolver sobre o pó; mas nunca, oh nunca!
Há de elevar-se a Deus, e nunca há de ele
Na abóbada celeste ir pendurar-se,
Como de rósea flor pendente abelha.
Homem da natureza, esse contemple
De púrpura tingir a luz que morre
As nuvens lá no ocaso vacilantes!
Há de vida melhor sentir no peito,
Sentir doce prazer sorrir-lhe n'alma,
E fonte de ternura inesgotável
Do fundo coração brotar-lhe em ondas.

Hora do pôr do sol? - hora fagueira,
Qu'encerras tanto amor, tristeza tanta!
Quem há que de te ver não sinta enlevos,
Quem há na terra que não sinta as fibras
Todas do coração pulsar-lhe amigas,
Quando desse teu manto as pardas franjas
Soltas, roçando a habitação dos homens?
Há i prazer tamanho que embriaga,
Há i prazer tão puro, que parece
Haver anjos dos céus com seus acordes
A mísera existência acalentado!

IV
Sócia do forasteiro, tu, saudade,
Nesta hora os teus espinhos mais pungentes
Cravas no coração do que anda errante.
Só ele, o peregrino, onde acolher-se,
Não tem tugúrio seu, nem pai, nem 'spôsa,
Ninguém que o espere com sorrir nos lábios
E paz no coração, - ninguém que estranhe,
Que anseie aflito de o não ver consigo!
Cravas então, saudade, os teus espinhos;
E eles, tão pungentes, tão agudos,
Varando o coração de um lado a outro,
Nem trazem dor, nem desespero incitam;
Mas remanso de dor, mas um suave
Recordar do passado, - um quê de triste
Que ri ao coração, chamando aos olhos
Tão espontâneo, tão fagueiro pranto,
Que não fora prazer não derramá-lo.
E quem - ah tão feliz! -- quem peregrino
Sobre a terra não foi? Quem sempre há vista
Sereno e brando deslizar-se o fumo
Sobre o teto dos seus; e sobre os cumes
Que os seus olhos hão visto à luz primeira
Crescer branca neblina que se enrola,
Como incenso que aos céus a terra envia?
Tão feliz! quando a morte envolta em pranto
Com gelado suor lh'enerva os membros,
Procura inda outra mão co'a mão sem vida,
E o extremo cintilar dos olhos baços,
De um ente amado procurando os olhos,
Sem prazer, mas sem dor, ali se apaga.
O exilado! esse não; tão só na vida,
Como no passamento ermo e sozinho,
Sente dores cruéis, torvos pesares
Do leito aflito esvoaçar-lhe em torno,
Roçar-lhe o frio, o pálido semblante,
E o instante derradeiro amargurar-lhe.
Porém, no meu passar da vida à morte,
Possa co'a extrema luz destes meus olhos
Trocar último adeus com os teus fulgores!
Ah! possa o teu alento perfumado,
Do que na terra estimo, docemente
Minha alma separar, e derramá-la
Como um vago perfume aos pés do Eterno.

 


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 29 de agosto de 2021

O ROMPER D*ALVA (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)
O ROMPER D'ALVA

Gonçalves Dias

 


Do vento o rijo sopro as mansas ondas
Varreu do imenso pego, - e o mar rugindo
As nuvens se elevou com fúria insana;
Enoveladas vagas se arrojaram
Ao céu co'a branca espuma!
Raivando em vão se encontram soluçando
Na base d'erma rocha descalvada;
Em vão de fúrias crescem, que se quebra
A força enorme do impotente orgulho
Na rocha altiva ou na arenosa praia. _
Da tormenta o furor lhe acende os brios,
Da tormenta o furor lh'enfreia as iras,
Que em teimosos gemidos se descerram,
Da quieta noite despertando os ecos
Além, no vale humilde, onde não chega
Seu sanhudo gemer, que o dia abafa.

Mas a brisa sussurrando
A face do céu varreu,
Tristes nuvens espalhando,
Que a noite em ondas verteu.

Além, atrás da montanha,
Branda luz se patenteia,
Que d'alma a dor afugenta,
Se dentro sentida anseia.

Branda luz, que afaga a vista,
De que se ama o céu tingir,
Quando entre o azul transparente
Parece alegre sorrir;

Como és linda! - Como dobras
Da vida a força e do amor!
- Que tão bem luz dentro d'alma
Teu luzir encantador!

No teu ameno silêncio
A tormenta se perdeu,
E do mar a forte vida
Nos abismos se escondeu!

Porque assim de novo agora
Que o vento o não vem toldar,
Parece que vai queixoso
Mansamente a soluçar?

Porque as ramas do arvoredo,
Bem como as ondas do mar,
Sem correr sopro de vento,
Começam de murmurar?

Sobre o tapiz d'alva relva,
- Rocio da madrugada -
Destila gotas de orvalho
A verde folha inclinada.

Renascida a natureza
Parece sentir amor;
Mais brilhante, mais viçosa
O cálix levanta a flor.

Por entre as ramas ocultas,
Docemente a gorjear,
Acordam trinando as aves,
Alegres, no seu trinar.

O arvoredo nessa língua
Que diz, por que assim sussurra?
Que diz o cantar das aves?
Que diz o mar que murmura?

- Dizem um nome sublime,
O nome do que é Senhor,
Um nome que os anjos dizem,
O nome do Criador.

Tão bem eu, Senhor, direi
Teu nome - do coração,
E ajuntarei o meu hino
Ao hino da criação.

Quando a dor meu peito acanha,
Quando me rala a aflição.
Quando nem tenho na terra
Mesquinha consolação;

Tu, Senhor, do peso insano
Livras meu peito arquejante,
Secas-me o pranto que os olhos
Vertendo estão abundante.

Tu pacificas minha alma,
Quando se rasga com pena,
Como a noite que se esconde
Na luz da manhã serena.

Tu és a luz do universo,
Tu és o ser criador,
Tu és o amor, és a vida,
Tu és meu Deus, meu Senhor.

Direi nas sombras da noite,
Direi ao romper da aurora:
- Tu és o Deus do universo,
O Deus que minha alma adora.

Tão bem eu, Senhor, direi
Teu nome - do coração,
E ajuntarei o meu hino
Ao hino da criação.


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 22 de agosto de 2021

IDEIA DE DEUS (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)
IDEIA DE DEUS

Gonçalves Dias

 

 

Gross ist der Herr! Die Himmel ohne Zahl

Sind seine Wohnungen!

Seine Wagen die donnernden Gewolke,

Und Blitze sein Gespann.

- Kleist

I

À voz de Jeová infindos mundos

Se formaram do nada;

Rasgou-se o horror das trevas, fez-se o dia,

E a noite foi criada,

Luziu no espaço a lua! Sobre a terra

Rouqueja o mar raivoso,

E as esferas nos céus ergueram hinos

Ao Deus prodigioso.

Hino de amar a criação, que soa

Eternal, incessante,

Da noite no remanso, no ruído

Do dia cintilante!

A morte, as aflições, o espaço, o tempo,

O que é para o Senhor?

Eterno, imenso, que lh’importa a sanha

Do tempo roedor?

Como um raio de luz, percorre o espaço,

E tudo nota e vê –

O argueiro, os mundos, o universo, o justo;

E o homem que não crê.

E Ele que pode aniquilar os mundos,

Tão forte como Ele é,

E vê e passa, e não castiga o crime,

Nem o ímpio sem fé!

51

Porém quando corrupto um povo inteiro

O Nome seu maldiz,

Quando só vive de vingança e roubos,

Julgando-se feliz;

Quando o ímpio comanda, quando o justo

Sofre as penas do mal,

E as virgens sem pudor, e as mães sem honra.

E a justiça venal;

Ai da perversa, da nação maldita,

Cheia de ingratidão,

Que há de ela mesma sujeitar seu colo

A justa punição.

Ou já terrível peste expande as asas,

Bem lenta a esvoaçar;

Vai de uns a outros, dos festins conviva,

Hóspede em todo o lar!

Ou já torvo rugir da guerra acesa

Espalha a confusão;

E a esposa, e a filha, de tenor opresso,

Não sente o coração.

E o pai, e o esposo, no morrer cruento,

Vomita o fel raivoso;

- Milhões de insetos vis que um pé gigante

Enterra em chão lodoso.

E do povo corrupto um povo nasce

Esperançoso e crente.

Como do podre e carunchoso tronco

Hástea forte e virente.

II

Oh! Como é grande o Senhor Deus, que os mundos

Equilibra nos ares;

Que vai do abismo aos céus, que susta as iras

52

Do pélago fremente,

A cujo sopro a máquina estrelada

Vacila nos seus eixos,

A cujo aceno os querubins se movem

Humildes, respeitosos,

Cujo poder, que é sem igual, excede

A hipérbole arrojada!

Oh! Como é grande o Senhor Deus dos mundos,

O Senhor dos prodígios.

III

Ele mandou que o sol fosse princípio,

E razão de existência,

Que fosse a luz dos homens – olho eterno

Da sua providência.

Mandou que a chuva refrescasse os membros,

Refizesse o vigor

Da terra hiante, do animal cansado

Em praino abrasador.

Mandou que a brisa sussurrasse amiga,

Roubando aroma à flor;

Que os rochedos tivessem longa vida,

E os homens grato amor!

Oh! Como é grande e bom o Deus que manda

Um sonho ao desgraçado,

Que vive agro viver entre misérias,

De ferros rodeado;

O Deus que manda ao infeliz que espere

Na sua providência;

Que o justo durma, descansado e forte

Na sua consciência!

Que o assassino de contínuo vele,

Que trema de morrer;

Enquanto lá nos céus, o que foi morto,

Desfruta outro viver!

53

Oh! Como é grande o Senhor Deus, que rege

A máquina estrelada,

Que ao triste dá prazer; descanso e vida

À mente atribulada!


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil sábado, 19 de junho de 2021

ANGELINA (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)

 

ANGELINA

 

 

É gentil e linda e bela,

E eu sei que m’arrouba o vê-la

         Tão divina:

A lira seus cantos cesse;

Mas minha alma não s’esquece

         D’Angelina!

 

Outro louve os seus cabelos,

Cante a luz dos olhos belos

         Que fascina;

E o leve sorrir donoso

Que irradia o rosto airoso

         D’Angelina!

 

Os dotes diga que apura,

Quando em lânguida postura

         Se reclina;

Que s’ergue, se acaso passa,

Sussurro que aplaude a graça

         D’Angelina!

 

Que de amor quando suspira

O bardo quebrara a lira,

         De mofina;

Que jamais poderam cantos

Pintar no vivo os encantos

         D’Angelina!

 

Que da sua alma a pureza

Equipara-se à beleza

         Peregrina;

Que amor seu trono tem posto

N’alma, no talhe e no rosto

         D’Angelina!

 

Eu que não sei descrevê-la,

Só sei que me arrouba o vê-la

         Tão divina;

A lira seus cantos cesse,

Mas minha alma não s’esquece

         D’Angelina!


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 20 de dezembro de 2020

SOLIDÃO (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS) - VÍDEO


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 09 de agosto de 2020

O DESENGANO (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)

O DESENGANO

Gonçalves Dias

 

Já vigílias  passei namorado,
Doces horas d'insônia passei,
Já meus olhos, d'amor fascinado,
Em ver só meu amor empreguei.

Meu amor era puro, extremoso,
Era amor que meu peito sentia,
Eram lavas de um fogo teimoso,
Eram notas de meiga harmonia.

Harmonia era ouvir sua voz,
Era ver seu sorriso harmonia;
E os seus modos e gestos e ditos
Eram graças, perfume e magia.

E o que era o teu amor, que me embalava
Mais do que meigos sons de meiga lira?
Um dia o decifrou - não mais que um dia
Fingimento e mentira!

Tão belo o nosso amor! - foi só de um dia,
Como uma flor!.
Por que tão cedo o talismã quebraste
Do nosso amor?

Por que num só instante assim partiste
Essa anosa cadeia?
De bom grado a sofreste! essa lembrança
Inda hoje me recreia.

Quão insensato fui! - busquei firmeza.
Qual em ondas de areia movediça,
Na mulher, - não achei!
E da esp'rança, que eu via tão donosa
Sorrir dentro em minha alma, as longas asas
Doido e néscio cortei!

E tu vás caprichosa prosseguindo
Essa esteira de amor, que julgas cheia
De flores bem gentis;
Podes ir, que os meus olhos te não vejam;
Longe, longe de mim, mas que em minha alma
Eu sinta qu'és feliz.

Podes ir, que é desfeito o nosso laço,
Podes ir, que o teu nome nos meus lábios
Nunca mais soará!
Sim, vai; - mas este amor que me atormenta,
Que tão grato me foi, que me é tão duro,
Comigo morrerá!

Tão belo o nosso amor! - foi só de um dia
Como uma flor!
Oh! que bem cedo o talismã quebraste
Do nosso amor!


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 14 de junho de 2020

SEXTILHAS DE FREI ANTÃO - LOA DA PRINCESA SANTA (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)

SEXTILHAS DE FREI ANTÃO

LOA DA PRINCESA SANTA

Gonçalves Dias

 

 

Bom tempo foi o d’outrora
Quando o reino era cristão
Quando nas guerras de mouros [ 1 ]
Era o rei nosso pendão,
Quando as donas consumiam
Seus teres em devação.

Dava o rei uma batalha
Deus lhe acudia do céu;
Quantas terras que ganhava, [ 2 ]
Dava o Senhor que lhas deu,
E só em fazer mosteiros
Gastava muito do seu.

Se havia muitos Ifantes
Torneio não se fazia;
É esse o estilo de Frandres, [ 3 ]
Onde anda muita heregia:
Para os armar cavaleiros
A armada se apercebia.

Chamava el-rei seus vassalos
E em cortes logo os reunia:
Vinha o povo atencioso, [ 4 ]
Vinha muita cleregia,
Vinha a nobreza do reino,
Gente de muita valia.

Quando o rei tinha-los juntos
Começava a discursar:
“Os Ifantes já são homens,
Vou-me às terras de além-mar [ 5 ]
Armá-los lá cavaleiros;
Deus Senhor m’ há de ajudar.”

Não concluía o pujante rei
Rei – de assi lhes propor,
Clamavam todos em grita [ 6 ]
Com vozes de muito ardor:
“Seremos nessa folgança,
Honra de nosso Senhor!”

E logo todos em sembra,
Todos gente mui de bem,
Na armada se agazalhavam, [ 7 ]
Sem se pesar de ninguém;
E os Padres de Sam Domingos
Iam com eles também.

Iam, si, os bentos Padres:
E que assim fosse, é rezão,
Que o santo em guerras d’Igreja [ 8 ]
Foi um bom santo cristão:
Queimou a muitos hereges
No fogo da expiação!

REPORT THIS AD
REPORT THIS AD

Quando depois se tornava
Toda a frota pêra cá,
Primeiro se perguntava, [ 9 ]
“Que terra temos por lá?”
Quem em Deus tanto confia,
Sempre Deus por si terá.

El-rei tornava benino,
Como coisa natural:
“Temos Ceuta, Arzila ou Tângere, [10]
Conquistas de Portugal!”
E todos, a voz em grita,
Clamavam : real! real!

Bom tempo foi o d’outrora
Quando o reino era cristão;
Os moços davão-se à guerra, [11]
As moças à devação:
Aquela terra de mouros
Vivia em muita aflição.

Deu-nos Deus tantas vitórias,
E tanto pêra louvar,
Que os padres de Sam Domingos [12]
Já não sabiam rezar;
Todo-lo tempo era pouco
Pêra louvores cantar!

Sendo tantas as batalhas,
Nem recontro se perdeu!
Aqueles Padres coitados [13]
Não tinham tempo de seu:
Levavam todo cantando
Louvores ao pai do céu.

Louvores ao pai do céu,
Que eu inda possa trovar,
Quando não vejo nos mares [14]
Nossas quinas tremolar;
Mas somente o templo mudo,
Sem guarnimentos o altar!

Vejo os sinos apeados
Dos campanários subtis,
E a prata das sacristias, [15]
Servidas em misteres vis,
E ante os leões de Castela
Dobrada a Lusa cerviz!

Cant’eu, em bem que sou Padre,
Digo que sou Português:
Arço de ver nossas coisas [16]
Irem todas ao revés,
Arço de ver nossa gente
Andar conosco ao envés

Mercê de Deus! Minha vida
É vida de muito dura!
Vivo esquecido dos vivos [17]
Na terra da desventura;
Vivo escrevendo e penando
Num canto de cela escura.

 

Do meu velho breviário
Só deixarei a leitura
Para escrever estes carmes, [18]
Remédio à nossa amargura;
O corpo tenho alquebrado,
Vive minha alma em tristura.

Que armada de tantas velas,
Que armada é essa qu’ i vem?
Vem subindo Tejo acima, [19]
Que fermosura que tem!
Nas praias se apinha o povo,
E as cobre todas porém.

Dão sinais as fortalezas,
Respondem sinais de lá:
Vem el-rei vitorioso [20]
Quem de gáudio se terá?
O mar é todo bonança,
O céu muito sereno está!

Oco bronze fumo e fogo
Já começa a despejar;
Acordam alegres ecos [21]
Os sinos a repicar;
Grita e folgança na terra,
Celeuma e grita no mar!

Vinde embora muito depressa,
Senhores da capital!
Vinde ver Afonso quinto, [22]
Rei, senhor de Portugal;
Vem das terras africanas
Dar-vos festança real.

Nossos reis foram outrora
Fragueiros de condição
Dormiam quase vestidos, [23]
Espada nua na mão;
Nem repoisavam de noite
Sem fazer sua oração.

Empresa não cometiam
Sem primeiro comungar
Sem fazer voto a algum santo [24]
De tenção particular;
Porém vitórias houveram,
Que são muito de espantar!

Os vindouros esquecidos
Da benção divinal,
Conheceram os poderes [25]
Da bênção celestial,
Se contarem os mosteiros
Das Terras de Portugal!

Nossas capelas que temos,
Nossos mosteiros custosos,
São obras santas de Santos, [26]
Obras de rei mui piedosos;
São brados de pedra viva,
Que pregam feitos briosos.

 

Alguns já agora escarnecem
Dos templos edificados;
Dizem que foram mal gastos [27]
Os bens com eles gastados:
Eu creio (Deus me perdoe)
Que são incréus disfarçados!

E mais prasmam dos feitios
De pedra, que Mênfis tem,
Sem ter olhos para Mafra, [28]
Pera Batalha ou Belém!
Oh! Se a estes conheceras,
Meu frei Gil de Santarém!

Naquela vila deserta
Ainda se me afigura
Ver elevar-se nas sombras [29]
Tua válida estatura,
E ouvir a voz que intimava
Ao rei a sentença dura!

E mais a tacha que tinha
Era ser fraco, e não mais!
Tu, meu Santo, que fizeras, [30]
Se ouviras a estes tais,
Que nos assacam motejos
Às nossas obras reais!

Mas vós, quem quer qu’isto lerdes,
Relevai-me esta tardança;
São achaques da velhice: [31]
Vivemos de remembrança
E em longas falas fazemos
De tudo comemorança.”

Já el-rei Affonso quinto
Nas sua terras pojou:
Alegre o povo o recebe, [32]
Alegre el-rei se mostrou;
Abrio-se em alas vistosas,
El-rei entre elas passou.

Vêm os músicos troando
Nos atabales guerreiros,
Tangem outros intromentos [33]
Desses climas forasteiros,
E trás ele vêm marchando,
Passo a passo, os prisioneiros.

São eles mouros gigantes
De bigodes retorcidos,
Caminham a passos lentos, [34]
Com sembrantes atrevidos.
Causa medo vê-los tantos,
Tam membrudos, tam crescidos!

São homens de fero aspeito,
Homens de má condição,
Que vivem na lei nojenta [35]
Do seu nojento alcorão,
Que – vinho? Nem querem vê-lo,
Só por que o bebe um cristão!

 

Vêm as moiras depois deles,
Rostos cobertos com véus;
Bem que filhas d”Agarenos, [36]
São também filhas de Deus;
Se foram cristãs ou freiras,
Seriam anjos dos céus.

Luziam os olhos delas,
Como pedras muito finas;
Deviam ser finas bruxas, [37]
Inda qu’eram bem meninas,
Que essas moiras da mourama
Nascem já bruxas cadinas!

Uma delas que lá vinha
Olhou-me à través do véu!…
Foi aquilo obra do demo, [38]
Quase, quase me rendeu!
Pensei nela muitas vezes,
Valeram-me anjos do céu!

Vi as largas pantalonas,
E o pezinho delicado…
Como pode pensar nisto [39]
Um pobre frade cansado,
Um padre da Observância,
Que sempre come pescado?!

Enfim, dizer quanto vimos
Não cabe neste papel;
Vinham muitas alimárias, [40]
Como achadas a granel;
Vinha o ifante brioso,
Montado no seu corcel.

Vinham pajens e varletes,
Vinham muitos escudeiros,
Vinham do sol abrasados [41]
Nossos robustos guerreiros;
Vinha muita e boa gente,
Muitos e bons cavaleiros!

A Princesa Dona Joana
Saiu dos Paços reais;
Era moça, e muito airosa, [42]
E dona de partes tais,
Que todos lhe qu’riam muito.
Estranhos e naturais!

Foi requerida de muitos
E muito grandes senhores,
Por fama que dela tinham, [43]
E por cópia de pintores,
Que muitos vinham de fora
Ao cheiro de seus louvores.

E diz-se dum rei de França,
Ludovico, creio eu:
Um pobre frade mesquinho [44]
Só trata em coisas do céu;
Sabe ele que muito sabe,
Se a bem morrer aprendeu.

 

Pois diz-se do rei de França,
O onzeno do nome seu,
Que vendo um retrato destes [45]
Pêra si logo entendeu,
Qu’era prodígio na terra
Quem tanto tinha de céu.

E logo sem mais tardança
Caiu, giolhos no chão,
No feltro traz arrelíquias, [46]
Assi usa um rei cristão;
O seu feltro pôs diante,
E fez sua oração!

Saiu a real Princesa,
Saiu dos Paços reais
Nos pulsos ricas pulseiras, [47]
Na fronte finos ramais;
De longe seguem-lhe a trilha
Muitos bons homens segrais.

Traçava um mantéu vistoso
Sôbolas suas espaldas,
E as largas roupas na cinta [48]
Prendia em muitas laçadas;
Seus olhos valiam tanto
Como duas esmeraldas.

Tinha elevada estatura
E meneio concertado,
Solto o cabelo em madeixas, [49]
Pelas costas debruçado:
Cadeixo de fios d’oiro,
Franjas de templo sagrado.

Vinha assi a régia Dona,
Vinha muito para ver:
O povo em si não cabia, [50]
Quando a via, de prazer;
Era ela santa às ocultas
E anjo no parecer!

Debaixo das telas finas
E dos brocados luzidos,
Trazia à raiz das carnes [51]
Duros cilício cosidos
E umas crinas mui agras,
Tudo extremos mui subidos.

Passava noites inteiras
No oratório a rezar,
Dormia despois na pedra [52]
Sem ninguém o suspeitar:
Extremos tais em princesa
Quem nos há de acreditar?

No dia de lava-pés
Ordenava seu Vedor
Trazer-lhe doze mulheres; [53]
E depois, com muita dor,
Chorando os pés lhes lavava,
Honra de nosso Senhor!

 

E depois de os ter lavado,
Não perdia a ocasião,
Despedia a todas juntas [54]
Com sua esmola na mão:
Dizia que era humildade
E obra de devação.

E as mendigas prasmadas
Sabiam de tal saber,
E perguntavam, quem era [55]
Aquela santa mulher?!
Maus pecados que ela tinha
Só pêra assi proceder!

O mesmo Vedor foi quem
Isto despois revelou,
Quando aquela humanidade [56]
E o Senhor descansou;
Dona Joana era já morta,
Ele porém mo contou.

Mas sendo tanto o resguardo
Que guardava em coisas tais,
Sabiam algo os estranhos [57]
Por muitos certos sinais,
Que o ar é todo perfume,
Se a terra é toda rosais.

É coisa de maravilha
Que me faz cismar a mi,
Que as donas d’hoje pareçam [58]
Uns camafeus d’ alfini,
Nas donas de carne e osso;
As donas de outrora – si.

Hoje leigos de nonada
(É-lhes o demo caudel)
Praguejam a mesa escassa [59]
E as arestas do burel;
Querem mimos e regalos,
E jejuns a leite e mel.

Lá caminha Dona Joana,
Regente de Portugal;
Trás sobre si muitas jóias [60]
Do tesouro paternal;
Deus lhe pôs graça divina
Sobre a graça natural.

Acostou-se a comitiva,
Muito senhora de si:
Perante el-rei se agiolha, [61]
Disse-lhe el-rei: não assi!
E ao peito a cinge dizendo:
Não a meus pés, mas aqui!

“Sois um bom pai, Senhor rei.
Tornou-lhe a santa Princesa:
Eu que sou vassala vossa [62]
E filha por natureza,
Peço mercê como aquela,
Como esta peço fineza.”

 

Ficaram logo suspensos,
Todolos os que eram ali,
Ficaram como enleiados, [63]
Enleio tal nunca vi!
Eis que a Princesa medrosa
Começa a propor assi.

El-rei não lhe respondera;
Que lhe havia responder?
Boa filha Deus lhe dera. [64]
Que lhe havia defender?
Sorriu-se, o bom rei quisera
Muito por ela fazer.

A Princesa disse entonces:
“De alguns capitães antigos
Tenho lido, Senhor rei, [65]
Que, vencidos os imigos,
Tornavam, a Deus fazendo
Sacrifícios mui subidos.

“Viam as coisas melhores
Que dos seus reinos haviam,
E logo lhas ofertavam; [66]
E mercês também faziam,
No dia de seu triunfo
A los que justas pediam.

“Deslembrar a usança antiga
Fora de grande estranheza;
Agora sobre maneira, [67]
Perfeita tamanha empresa,
De tanto lustre aos do reino,
De tal honra a vossa Alteza.

“Digo pois a vossa Alteza,
E digo com muita fé,
Deve a oferta ser tamanha [68]
Quamanha foi a mercê,
Não do nobre rei pujante,
Mas do santo rei qual é.

“A oferta que vós fizerdes,
Será mercê paternal:
Se quereis que corresponda [69]
Ao favor celestial,
Deve ser coisa mui alta,
Deve ser coisa real.

“Ao Deus que vence as batalhas
Dai-lhe a filha muito amada;
Dai-lhe a filha só que tendes [70]
Em tantos mimos criada:
Será oferta bem quista
E do Senhor aceitada.

“E eu a quem mais custou
De medos, esta jornada,
Que muitas noites orando [71]
Passei em pranto banhada,
Sou eu, Senhor, quem vos peço
Ser a hóstia a Deus votada.”

 

Que santa que era a Princesa,
Que extremos de devação!
Nos sembrantes dos presentes [72]
Viu-se, e não era razão,
Que a nenhum deles prazia
Deferir tal petição.

Sobr’esteve um pouco mudo,
El-rei por que muito a amava:
Aquele dizer da filha [73]
Todo prazer lhe aguava,
Aquele pedir sem dó
Todo o ser lhe transtornava.

Encostou-se ao ombro dela
O pobre velho cansado,
Chorou o triunfo breve, [74]
E o prazer mal rematado,
Não como rei valeroso,
Mas como pai anojado.

El-rei despois mais tranqüilo
Rompeu o silêncio alfi’;
E entre aflito e satisfeito [75]
Disse à filha: Seja assi!…
Velhos guerreiros vi eu
Choraram também ali.

Cant’eu perdido entre o vulgo
Não sei que tempo gastei,
Nem sei de mim que fizeram, [76]
Nem tam pouco se chorei;
Foi traça da providência:
Nisto comigo assentei.

Foi Jefté corajoso,
O forte rei de Judá;
Volta coberto de loiros, [77]
Quem primeiro encontrará?
Sente a filha, torce o rosto…
Nada ao triste valerá.

Qual destes dois sacrifícios
Soube a Deus mais agradar?
Vai a Hebrea constrangida [78]
Depor o colo no altar,
Vai a cristã jubilosa!
São ambas pera prasmar.

Depois num dia formoso,
Era no mês de janeiro,
Houve uma cena vistosa [79]
Dentro de um pobre mosteiro;
Fundou-o Brites Leitoa,
Dona mui nobre d’Aveiro.

Uma princesa jurada,
Sobrinha d’altos Ifantes,
Filha de reis soberanos, [80]
Senhora das mais pujantes,
Era a primeira figura,
Espantava os circunstantes.

 

Ali humilde e curvada,
Pesar de todos os seus,
Giolhos sobre o ladrilho [81]
E as mãos erguidas aos céus,
Ouvi – exígua mortalha
Pedir polo amor de Deus.

Cantemos todos louvores,
Louvores ao Senhor Deus:
Os anjos digam o seu nome, [82]
Rostos cobertos com véus;
Leiam-no os homens escrito
No liso campo dos céus.

Bom tempo foi o d’outrora
Quando o reino era cristão,
Quando as guerras mouriscas [83]
Era o rei nosso pendão,
Quando as donas consumiam
Seus teres em devação.


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 07 de junho de 2020

OS TIMBIRAS - CANTO QUARTO (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)

 

OS TIMBIRAS

CANTO QUARTO

Gonçalves Dias

 

Bem-vindo seja o fausto mensageiro,

O melífluo Timbira, cujos lábios

Destilam sons mais doces do que os favos

Que errado caçador na brenha inculta

Por ventura topou! Hóspede amigo,

Ledo núcio de paz, que o território

Pisou de imigas hostes, quando a aurora

Despontava nos céus – bem vindo seja!

Não luz mas brando e grato o romper d’alva

Que o teu sereno aspecto; nem mais doce

A fresca brisa da manhã cicia

Pela selvosa encosta, que a mensagem

Que o chefe imigo e fero anseia ouvir-te.

Melífluo Jurecei, bem vindo sejas

Dos Gamelas ao chefe, Gurupema,

Senhor dos arcos, quebrador das setas,

Das selvas rei, filho de Icrá valente.

 

Assim consigo as hostes do Gamela:

Consigo só, que a usada gravidade

Já na garganta, a voz lhes retardava.

Não veio Jurucei? Posto de fronte,

Arco e flecha na mão feito pedaços,

Certo sinal do respeitoso encargo,

Por terra não lançou? – Que pois augura

Tal vinda, a não ser que o audaz Timbira

Melhor conselho toma: e por ventura

De Gurupema receiando as forcas,

Amiga paz lhe of1rece, e em sinal dela

So vencido Gamela o corpo entrega?!

Em bem! que a torva sombra vagarosa

Do outrora chefe seu há-de aplacar-se,

Ouvindo a mesma voz das carpideiras,

E vendo no sarcófago depostas

As armas, que no ibaque hão-de servi-lhe,

E junto ao corpo, que foi seu, as plumas,

Em quanto vivo, insígnias do mando.

Embora ostente o chefe dos Timbiras

O ganhado troféu; embora à cinta

Ufano prenda o gadelhudo crânio,

Aberto em croa, do infeliz Gamela.

Embora; mas porém amigas quedem

Do Timbira e Gamela as grandes tabas;

E largo em roda na floresta imperem,

Que o mundo em peso, unidas , afrontaram!

 

Nascia a aurora: do Gamela s hostes

Em pé, na praia,  mensageiro aguardam

Sisudos, graves, Um caudal regato,

Cujo branco areial a prata imita,

Sereno ali volvia as mansas águas,

Como que triste de as levar ao rio,

Que ao mar conduz a rápida torrente

Por entre a selva umbrosa e brocas penhas.

Esta a praia! – em redor troncos gigantes,

Que a folhagem no rio debruçavam,

Onde beber frescor os galhos vinham,

Cuxuriando em viço! – penduradas

Trepadeiras gentis da coma excelsa,

Estrelando do bosque o verde manto

Aqui, ali, de flores cintilantes,

Meneiavam-se ao vento, como fitas,

De que se enastra a coma a virgem bela.

Era um prado, uma várzea, um tabuleiro

Com mimoso tapiz de várias flores,

Agrestes, sim, mas belas, Gênio amigo

Chegou-lhe só a mágica vergasta!

Ei-las a prumo ao logo da corrente

Com requebros louçãos a enamorá-la!

 

A nós de embira aos troncos amarradas

Quase igaras em conto figuravam

Ousada ponte no correr das águas

Por força mais qu1humana trabalhada.

 

Vê-as e pasma Jureceinotando

imigo  poderio, e seu mau grado

Vai lá consigo mesmo discorrendo:

“Muitos, certo e as nossas tabas forte,

Itajubá invencível; mas da guerra

É sempre incerto o azar e sempre vário!

E... quem sabe? – talvez... mas nunca, oh! nunca!

Itajubá! Itajubá! – onde há no mundo

Posses que valham contrastar seu nome?

Onde a seta que valha derriba-lo,

E a tribo ou povo que os Timbiras vençam?!

 

Entre as hostes que a si tinha fronteiras

Penetra! – tão galhardo era o seu gesto,

Que os Gamelas em si tão bem disseram:

– Missão de paz o traga, que se os outros

São tão feros assim, Tupã nos valha,

Sim, Tupã; que o não pode o rei das selvas!

 

Hospedagem sincera entanto of’recem

A quem talvez não tardará busca-los

Com fina seta no leal combate.

Ás igaras o levam pressurosos,

Servem-lhe o piraquém na guerra usado,

E os loiros sons so colmeal agreste;

Servem-lhe amigos suculento pasto

/em banquete frugal; servem-lhe taças

(A ver se mais que a fome o instiga a sede)

Do espumoso cauim, – taças pesadas

Na funda noz da sapucaia abertas.

Sem temor o timbira vai provando

O mel, o piraquém, as iguarias;

Mas dos vinhos coíbe-se prudente.

 

Em remoto lugar forma conselho

O rei da selvasGurupema, em quanto

Restaura o mensageiro os lassos membros.

Chama primeiro Cab-oçu valente;

As ríspidas melenas corridias

Cortam-lhe o rosto, – Pendem-lhe nas costas,

Hirtas e lesas, como o junco em feixes

Acamados no leito ressequido

D’invernosa corrente, O rosto feio

Aqui, ali negreja manchas negras

Como da bananeira a larga folha,

Colhida ao romper d’alva, qu’uma virgem

Nas mãos lascivas machucou brincando.

 

Valente é Caba-oçu; mas sem piedade!

Como senta fera almeja sangue

E de malvada ação cruel se paga.

Apressou em combate um seu contrário,

Que mais imigo tinha entre os imigos:

Da guerra os duros vínculos lançou-lhe

à terreiro o chamou, como  é de usança

Para o triunfo bélico adornado.

Fizeram-lhe terreiro os mais d’entôrno:

Ele do sacrifício empunha a maça,

Impropérios assaca, vibra o golpe,

E antes que tombe o corpo, aferra os dentes

No crânio fulminado: jorra o sangue

No rosto, e em gorgulhões se expande o cérebro,

Que a fera humana rábida mastiga!

E em quanto limpa à desgrenhada coma

Do sevo pasto o esquálido sobejo,

Bárbaras hostes do Gamela torcem,

À tanto horror, o transtornado rosto.

 

Vem Jepiaba, o forte entre os mais fortes,

TaiatuTaiatingaNupançaba,

Tucura o ágil, Cravatá sombrio,

Andira, o sonhador de agouros tristes,

Que ele é primeiro a desmentir co’as armas,

Pirera que jamais não foi vencido,

Itapeba, rival de Gurupema,

Oquena, que por si vale mil arcos,

Escudo e defensão dos seus que ampara;

E outros, e muitos outros, cuja morte

Não  foi sem glória no cantar dos bardos.

 

Guerreiros! Gurupema assim começa,

“Antes de ouvir o mensageiro estranho,

Consultar-vos me é força; a nós incumbe

Vingar do rei da selva a morte indigna.

Do que morreu, em que lhe seja eu filho,

E a todos nós da gloriosa herança

Compete o desagravo. Se nos busca

O filho de Jaguar, é que nos teme;

A nossa fúria por ventura intenta

Voltar a mais amigo sentimento.

Talvez do vosso chefe o corpo e as armas

Com larga pompa nos envia agora:

Basta-vos isto?

         Guerra! guerraexclamam.

 

Notai porém quanto é pujante o chefe,

Que os Timbiras dirige. Sempre o segue

Fácil vitória, e mesmo antes da luta

As galas triunfais dispõe seguro.

 

Embora, dizem uns; outros murmuram,

Que de tão grande herói, qualquer que seja

A oferta expiatória, em bem, se aceite.

Vacilam no conselho. A injúria é grande,

Bem fundo a sentem, mas bem grande é o risco.

“Se o orgulho desce a ponto no Timbira,

Que pazes nos propõe, diz Itapeba

Com dura voz e cavernoso acento,

Já está vencido! – Alguém pensa o contrário

(E com despeito a Gurupema encara)

Alguém, não eu! Se havemos de barato

Dar-lhe a vitória, humildes aceitando

O triste câmbio (a idéia só me irrita)

De um morto por um arco tão valente,

Aqui as armas vis faço pedaços

Em breve trato, e vou-me a ter com esse,

Que sabe leis ditar, mesmo vencido!

Como tormenta, que rouqueja ao longe

E som confuso espalha em surdos ecos;

Como rápida flecha corta os ares,

Já perto soa, já mais perto brame,

Já sobranceira enfim roncando estala;

Nasce fraco rumor que logo cresce,

Avulta, ruge, horríssono ribomba.

OquenaOquenao herói nunca vencido,

Com voz troante e procelosa exclama,

Dominando o rumor, que longe Esaú:

 

“Fujam tímidas aves aos lampejos

Do raio abrasador, – medrosas fujam!

Mas não será que o herói se acanhe ao vê-los!

Itapeba, só nós somos guerreiros;

Só nos, que a olhos nus fitando o raio,

Da glória a senda estreita à par trilhamos.

Tens em mim quanto sou e quanto valho,

Armas e braço enfim!

 

        Eis rompe a densa

Turba que d’entôrno d’Itapeba

Formidável barreira alevantava.

 

Quadro pasmosoos dois de mãos travadas,

Sereno o aspecto, plácido o semblante,

À fúria popular se apresentavam

De constância e valor somente armados.

Eram escolhos gêmeos, empinados,

Que a fúria de um vulcão ergueu nos mares.

Eterno ali serão co’os pés no abismo,

Com os negros cimos devassando as nuvens,

Se outra força maior os não afunda.

Ruge embalde o tufão, embalde as vagas

Do fundo pego à flor do mar borbulham!

 

Estranha a turba, e pasma o desusado

Arrojo, que jamais assim não viram!

Mas mais que todos Caba-oçu valente

Enleva-se da ação que o maravilha;

E de nobre furor tomado e cheio,

Clama altivo: “Eu também serei convosco,

Eu também, que a só mercê vos peço

De haver às mãos o pérfido Timbira.

Seja, o que mais lhe apraz invulnerável,

Que d’armas não careço por vence-lo.

Aqui o tenho, – aqui comigo o aperto,

Estreitamente o aperto nestes braços,

(E os braços mostra e os peitos musculosos)

Há-de medir a terra já vencido,

E orgulho e vida perderá co’o sangue,

Arrã soprada, que um menino espoca!

 

E bate o chão, e o pé na areia enterra,

Orgulhoso e robusto: o vulgo aplaude,

De prazer  rancor soltando gritos

Tão altos, tais, como se ali  tivera

Aos pés, rendido e morto o herói Timbira.

 

Por entre os alvos dentes que branquejam,

Ri-se o prazer nos lábios do Gamela.

Aos rosto a cor lhe sobe, aos olhos chega

Fugaz clarão da raiva que aos Timbiras

Votou de há muito, e mais que tudo ao chefe,

Que o espolio paternal mostra vaidoso.

 

Com gesto senhoril silêncio impondo

Alegre aos três a mão calosa of’rece,

Rompendo nestas vozes: “Desde quando

Cabe ao soldado pleitear combates

E ao chefe em ócio viver seguro?

Guerreiros sois, que os atos bem no provam;

Mas se vos não apraz ter-me por chefe,

Guerreiro tão bem sou, e onde se ajuntam

Guerreiros, hão-de haver logar os bravos!

Serei convosco, disse. – E aos três se passa.

 

Soam batidos arcos, rompem gritos

Do festivo prazer, sobe de ponto

O ruidoso aplaudir, Só Itapeba,

Que ao seu rival deu azo de triunfo,

Mal satisfeito e quase irado rosna.

 

Um Tapuia, guerreiro adventício,

Filhado acaso à tribo dos Gamelas,

Pede atenção, – prestam-lhe ouvidos todos.

Estranho é certo; porém longa vida

A velhice robusta lhe autoriza.

Muito há visto, sofreu muitos reveses,

Longas terras correu, aprendeu muito;

Mas quem é, donde vem, qual é seu nome?

Ninguém o sabe: ele não o disse nunca.

Que vida teve, a que nação pertence,

Que azar o trouxe à tribo dos Gamelas?

Ignora-se também. Nem mesmo o chefe

Perguntar-lhe se atreve. É forte, é sábio,

È velho e experiente, o mais que importa?

Chamem-lhe o forasteiro, é quanto basta.

Se à caça os aconselha, a caça abunda;

Se à pesca, os rios cobrem-se de peixes;

Se à guerra, ai da nação que ele indigita!

Valem seus ditos mais que valem sonhos,

E acerta mais que os piagas nos conselhos.

 

Mancebo (assim diz ele a Gurupema)

“Já vi o que por vós não será visto,

Imensas tabas, bárbaros imigos,

como nunca os vereis; andei já tanto,

Que o não fareis, andando a vida inteira!

Estranhos casos vi, chefes pujantes!

Tabira, o rei dos bravos Tobajaras,

Alquíndar, que talvez já não exista,

IperuJepipó de Mambucaba,

Coniã, rei dos festins guerreiros;

E outros, e outros mais. Pois eu vos digo,

Ação, que eu saiba, de tão grandes Cabos,

Como a vossa não foi, – nem tal façanha

Fizeram nunca, e sei que foram grandes!

Itapeba entre os seus não encontraras,

Que não pagasse com seu sangue o arrojo

Se tanto as claras por-se-lhes contrário.

Mas quem do humano sangue derramado

Por ventura se peja? – em que logares

A glória da peleja horror infunde?

Ninguém, nenhures, ou somente aonde,

Ou só aquele que já viu infunde

Cruas vagas de sangue; e os turvos rios

Mortos por tributo ao mar volvendo.

Vi-as eu, inda novo; mas tal vista

do humano sangue saciou-me a sede.

Ouvi-me, Gurupema, ouvi-me todos:

Da sua tentativa o rei das selvas

Teve por prêmio o lacrimoso evento:

E era chefe brioso e bom soldado!

Só não pode sofrer que alguém dissesse

Haver outro maior tão perto dele!

A vaidade o cegou! hardida empresa

Cometeu, mas por si: de fora, e longe

Os seus o viram deslindas seu pleito.

Vencido foi... a vossa lei de guerra,

Bárbara, sim, mas lei, – dava ao Timbira

Usar, com ele usou, do seu triunfo.

A que pois fabricar novos combates?

Por que empreende-los nós, quando mais justos

Os Timbiras talvez mover poderam?

Que vos importa a vós vencer batalhas?

Tendes rios piscosos, fundas matas,

Inúmeros guerreiros, tabas fortes;

Que mais vos é mister? Tupã é grande:

De um lado o mar se estende sem limites,

Pingues florestas d’outro lado correm

Sem limites também. Quantas igaras

Quantos arcos houvermos, nas florestas,

No mar, nos rios caberão às largas:

Por que então batalhar? por que insensatos,

Buscando o inútil, necessário aos outros,

Sangue e vida arriscar em néscias lutas?

Se o filho de Jaguar trazer-nos manda

Do chefe desdidoto e frio corpo,

Aceite-se... se não... voltemos sempre,

Ou com ele, ou sem ele, às nossas tabas,

Às nossas tabas mudas, lacrimosas,

Que hão-de certo enlutar nossos guerreiros,

Quer vencedores voltem quer vencidos.”

 

Do forasteiro, que tão solto fala

E tão livre argumenta, Gurupema

Pesa a prudente voz, e alfim responde:

Tupã decidirá,” – Oh! não decide,

(Como consigo diz o forasteiro)

Não decide Tupã humanos casos,

Quando imprudente e cego o homem corre

D’encontro ao fado seu: não valem sonhos,

Nem da prudência meditado aviso

Do atalho infausto a desviar-lhe os passos!

 

O chefe dos Gamelas não responde:

Vai pensativo demandando a praia,

Onde o Timbira mensageiro o aguarda.

 

Reina o silêncio, sentam-se na arena,

JuruceiGurupema e os mais com eles.

Amiga recepção, – ali não viras

Nem pompa oriental, nem galas ricas,

Nem armados salões, nem corte egrégia,

Nem régios passos, nem caçoilas fundas,

Onde a cheirosa goma se derrete.

Era tudo singelo, simples tudo,

Na carência do ornato – o grande, o belo.

Na própria singeleza a majestade

Era a terra o palácio, as nuvens teto,

Colunatas os troncos gigantescos,

Balcões os montes, pavimento a relva,

Candelabros a lua, o sol e os astros.

 

Lá estão na branca areia descansados.

Como  festiva taça num banquete,

O cachimbo de paz, correndo em roda,

Se fumo adelgaçado cobre os ares.

Almejam,sim, ouvir o mensageiro,

E mudos são contudo: não dissera,

Quem quer que os visse ali tão descuidoso,

Que ardor inquieto e fundo os ansiava.

 

O forte Gurupema alfim começa

Após côngruo silêncio, em voz pausada:

Saúde ao núncio do Timbira! disse.

Tornou-lhe Jurucei“Paz aos Gamelas,

Renome e glória ao chefe seu preclaro!

– A que vens pois? Nós te escutamos: fala

“Todos vós, que me ouvis, vistes boiantes,

À mercê da corrente, o arco e as setas

Feitas pedaços, por mim mesmo inúteis.”

 

“E de to  ver folguei; mas quero eu mesmo

Ouvir dos lábios teus quanto imagino.

Acata-me Itajubá, e de medroso

Tenta poupar aos seus tristeza e luto?

A flor das Tabas suas, talvez manda

Trazer-me o corpo e as armas do Gamela,

Vencido, em mal, no desleal combate!

Pois seja, que talvez não queira eu sangue,

E do justo furor quebrando as setas...

Mas dize-o tu primeiro... Nada temas,

È sagrado entre nós guerreiro inerme,

E mais sagrado o mensageiro estranho.”

 

Treme de pasmo e cólera o Timbira,

Ao ouvir tal discurso. – Mais surpreso

Não fica o pescador, que mariscando

Vai na maré vazante, quando avista

Envolto em Iodo um tubarão na praia,

Que reputa sem vida, passa rente,

co’as malas da rede acaso o açoita

E a desleixo; – feroz o monstro acorda

E escancarando as fauces mostra nelas

Em sete filas alinhada a morte!

Tal ficou Jurecei, – não de receio,

Mas de surpresa atônito, – o contrário,

Que de o ver merencório não se agasta,

A que proponha o seu encargo o anima.

 

“Não ignavo temor a voz me embarga,

Emudeço de ver quão mal conheces

Do filho de Jaguar os altos brios!

Esta a mensagem que por mim vos manda:

Três grandes tabas, onde heróis pululam,

Tantos e mais que nós, tanto e mais bravos,

Caídas a seus pés a voz lhe escutam.

Não quer dos vossos derramar mais sangue:

Tigre cevado em carnes palpitante,

Rejeita a fácil presa; nem o tenta

De perjuros haver troféus sem glória.

Em quanto pois a maça não sopesa,

Em quanto no carcaz dormem-lhe as setas

Imóveis – atendei! – cortai no bosque

Troncos robustos e frondosas palmas

novas tabas construí no campo,

Onde o corpo caiu do rei das sevas,

Onde empastado inda enrubece a terra

Sangue daquele herói que vos infama!

Aquela briga enfim de dois, tamanhos,

Sinalai; porque estranho caminheiro

Amigas vendo e juntas nossas tabas

E a fé que usais guardar, sabendo, exclame:

Vejo um povo de heróis, e um grande chefe!

Em quanto escuta o mensageiro estranho,

Gurupema, talvez sem que o sentisse,

Vai pouco e pouco erguendo o corpo inteiro.

A baça cor do rosto é sempre a mesma,

O mesmo o aspecto, – a válida postura

A quem de longe vê, somente indica

Vigor descomunal, e a gravidade

Que os próprios Índios por incrível notam.

Era uma estátua, exceto só nos olhos,

Que por entre as em vão caídas pálpebras

Clarão funéreo derramava entorno.

 

Quero ver que valor mostras nas armas,

(Diz ao Timbira, que a resposta agrada)

Tu que arrogante, em frases descorteses,

Guerra declaras, quando paz of’reces.

Quebraste o arco teu quando chegaste,

O meu te of’reço! O quebrador dos arcos

Nos dons por certo liberal se mostra,

Quando o seu arco of’rece: julga e pasma!

 

Do pejado carcaz tira uma seta,

Na corda a ajeita, – o arco entesa e curva,

Atira, – soa a corda, a flecha voa

Com silvos de serpente. Sobre a copa

Duma arvore frondosa descansava

Há pouco um cenembi, – flechado agora

Despenha-se no rio, sopra iroso,

A cortante serrilha embora erriça,

Co’a dura cauda embora açoita as águas;

A corrente o conduz, e em breve trato

hastil da flecha sobrenada a prumo.

 

Poderá  Jurecei, alçando o braço,

Poupar ação tão baixa àqueles bosques,

Onde os guerreiros de Itajubá imperam.

Imóvel, mudo contemplou o rio

Se chôfre o cenembi cair flechado,

Lutar co’a morte, ensangüentando as águas,

Desaparecer, – a voz por fim levanta:

 

“Ó rei das selvas, Gurupema, escuta:

Tu, que medroso em face d’Itajuba

Não ousaras tocar o p´que o vento

Nas folhas dos seus bosques deposita;

Senhor das selvas, que de longe o insultas,

Por que me vês aqui cozinho e fraco,

Fraco e sem armas, onde armado imperas;

Senhor das selvas (que antes flecha acesa

Sobre os tetos houvesses arrojado,

Onde as mulheres tens e os filhos caros),

Nunca miraste um alvo mais funesto

Nem tiro mais fatal vibraste nunca.

Com lágrimas de sangue hás de chora-lo,

Maldizendo o lugar, o ensejo, o dia,

O braço, a força, o ânimo, o conselho

Do delito infeliz que vai perder-te!

Eu, sozinho entre os teus que me rodeiam,

Sem armas, entre as armas que descubro,

Sem medo, entre os medrosos que me cercam,

Em tanta solidão seguro e ousado,

Rosto a rosto contigo, e no teu campo.

Digo-te, ó Gurupema, , ó rei das selvas,

Que és vil, qu’és fraco!

          Sibilante flecha

Rompe da turva-multa e crava o braço

Do ousado Jureceiqu’inda falava.

 

“É seguro entre vós guerreiro inerme,

E mais seguro o mensageiro estranho!

Disse com riso mofador nos lábios.

Aceito o arco, ó chefe, e a treda flecha,

Que vos hei-de tornar, ultriz da ofensa

Infame, que Aimorés nunca sonharam!

Ide , correi, quem cós impede a marcha?

Vingai esta corrente, não mui longe

Os Timbiras estão! – Voltai da empresa

Com este feito heróico rematado;

Fugi, se vos apraz; fugi, cobarde!

Vida por gota pagareis meu sangue;

Por onde quer que fordes de fugida

Vai o fero Itajubá perseguir-vos

Por água ou terra, ou campos, ou florestas;

Tremei!...

E como o raio em noite escura

Cegou, desapareceu! De timorato

Procura Gurupema o autor do crime,

E autor lhe não descobre; inquire... embalde!

Ninguém foi, ninguém sabe, e todos viram.


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 31 de maio de 2020

OS TIMBIRAS - CANTO TERCEIRO (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)

OS TIMBIRAS

CANTO TERCEIRO

Gonçalves Dias

 

Era a hora em que a flor balança o cálix

Aos doces beijos da serena brisa,

Quando a ema soberba alteia o colo,

Roçando apenas o matiz relvoso;

Quando o sol em doirando os altos montes,

E as ledas aves à porfia trinam,.

E a verde coma dos frondosos cerros

Quando a corrente meio oculta soa

De sob o denso véu da parda névoa;

Quando nos panos das mais brancas nuvens

Desenha a aurora melindrosos quadros

Gentis orlados com listões de fogo;

Quando o vivo carmim do esbelto cáctus

Refulge a mêdo abrilhantado esmalte,

Doce poeira da aljofradas gotas,

Ou pó sutil de pérolas desfeitas.

 

Era a hora gentil, filha de amores,

Era o nascer do sol, libando as meigas,

Risonhas faces da luzente aurora!

Era o canto e o perfume, a luz e a vida,

Uma só coisa e muitas, – melhor face

Da sempre vária  e bela natureza:

Um quadro antigo, que já vimos todos,

Que todos com prazer vemos de novo.

 

Ama o filho do bosque contemplar-te,

Risonha aurora, – ama acordar contigo;

Ama espreitar nos céus a luz que nasce,

Ou rósea ou branca, já carmim, já fogo,

Já tímidos reflexos, já torrentes

De luz, que fere oblíqua os altos cimos.

Amavam contemplar-te os de Itajubá

Impávidos guerreiros, quando as tabas

Imensas, que Jaguar fundou primeiro

Cresciam, como crescem gigantescos

Cedros nas matas, prolongando a sombra

Longes nos vales, – e na copa excelsa

Do sol estivo os abrasados raios

Parando em vasto leito de esmeraldas.

 

As três formosas tabas de Itajubá

Já foram como os cedros gigantescos

Da corrente impedrada: hoje acamados

Fósseis que dormem sob a térrea crusta,

Que os homens e as nações por fim sepultam

No bojo imenso! – Chame-lhe progresso

Quem do extermínio secular se ufana:

Eu modesto cantor do povo exinto

Chorarei nos vastíssimos sepulcros,

Que vão do mar ao Andes, e do Prata

Ao largo e doce mar das Amazonas.

Ali me sentarei meditabundo

Em sítio, onde não oiçam meus ouvidos

Os sons freqüentes d’europeus machados

Por mãos de escravos Afros manejados:

Nem veja as matas arrasar, e os troncos,

Donde chorando a preciosa goma,

Resina virtuosa e grato incenso

A nossa incúria grande eterno asselam:

Em sítio onde os meus olhos não descubram

Triste arremedo de longínquas terras.

Aos crimes das nações Deus não perdoa:

Do pai aos filhos e do filho aos netos,

Por que um deles de todo apague a culpa,

Virá correndo a maldição – contínua,

Como fuzis de uma cadeia eterna.

Virão nas nossas festas mais solenes

Miríade de sombras miserandas,

Escarnecendo, secar o nosso orgulho

De nação; mas nação que tem por base

Os frios ossos da nação senhora,

E por cimento a cinza profanada

Dos mortos, amassada aos pés de escravos.

Não me deslumbra a luz da velha Europa;

Há-de apagar-se mas que a inunde agora;

E nós?... sucamos leite mau na infância,

Foi corrompido o ar que respiramos,

Havemos de acabar talvez primeiro.

 

América infeliz! – que bem sabia,

Quem te criou tão bela e tão sozinha,

Dos teus destinos maus! Grande e sublime

Corres de pólo a pólo entre os sois mares

Máximos de globo: anos da infância

Contavas tu por séculos! que vida

Não fora a tua na sazão das flores!

Que majestosos frutos, na velhice,

Não deras tu, filha melhor do Eterno?!

Velho tutor e avaro cubiçou-te,

Desvalida pupila, a herança pingue

Cedeste, fraca; e entrelaçaste os anos

Da mocidade em flor – às cãs e à vida

Do velho, que já pende e já declina

Do leito conjugal imerecido

À campa, onde talvez cuida encontrar-te!

 

Tu, filho de Jaguar, guerreiro ilustre,

E os teus, de que então vós ocupáveis,

 Quando nos vossos mares alinhadas

As naus de Holanda, os galeões de Espanha,

As fragatas de França, e as caravelas

E portuguesas naus se abalroavam,

Retalhado entre si vosso domínio,

Qual se vosso não fora? Ardia o prélio,

Fervia o mar em fogo a meia-noite,

Nuvem de espesso fumo condensado

Toldava astros e céus; e o mar e os montes

Acordavam rugindo aos sons troantes

Da insólita peleja! – Vós, guerreiros,

Vós, que fazíeis, quando a espavorida

Fera bravia procurava asilo

Nas fundas matas, e na praia o monstro

Marinho, a quem o mar, já não seguro

Reparo contra a fôrça e indústria humana,

Lançava alheio e pávido na areia?

Agudas setas, válidos tacapes

Fabricavam talvez!... ai não... capelas,

Capelas enastravam para ornato

Do vencedor; – grinaldas penduravam

Dos alindados tetos, por que vissem

Os forasteiros, que os paternos ossos

Deixando atrás, sem manitôs vagavam,

Os filhos de Tupã como os hospedam

Na terra, a que Tupã não dera ferros!

 

_______________

 

Rompia a fresca aurora, rutilando

Sinais de um lia límpido e sereno.

Então vinham saindo os de Itajubá

Fortes guerreiros a contar os sonhos

Com que Tupã amigo os bafejara,

Quando as estrelas pálidas tombavam,

Já de clarão maior esmorecidas.

Vinham ledos ou tristes na aparência,

Timoratos ou cheios de hardimento,

Como o futuro evento se espelhava

Nos sonhos, bons ou maus; mas acordá-los

Disparatados, e o melhor de tantos

Coligir, era missão mais alta.

Não fosse o piaga intérprete divino,

Nem os seus olhos penetrantes vissem

O porvir, ao través do véu do tempo,

Como ao través do corpo a mente enxergam;

Não fosse, quem há que se afoutasse

Em campo de batalha a expor a vida,

A vida nossa tão querida, e tanto

Da flor a vida breve semilhando:

Roaz inseto a vai traçando em giro,

Nem mais revive uma só vez cortada!

 

Mande porém Tupã seus gratos filhos,

Rogados sonhos, que os decifra o piaga:

E Tupã, de benigno os influi sempre

Em vespras de batalha, como as chuvas

Descem, quando a terra humores pede,

Ou como, em sazão própria, brotam flores.

 

Postam-se em forma de crescente os bravos:

Ávida turba mulheril no entanto

O rito sacro impaciente aguarde.

Brincam na relva os folgazões meninos,

Em quanto os mais crescidos, contemplando

O aparato elétrico das armas,

Enlevam-se; e, mordidos pela inveja,

Discorrem lá consigo: – Quando havemos,

Nós outros, d’empunhar daqueles arcos,

E quando levaremos de vencida

As hostes vis do pérfido Gamela!

 

Vem por fim Itajubá. O piaga austero,

Volvendo o maracá nas mãos mirradas,

Pergunta: – “Foi o espírito convosco,

O espírito da fôrça, e os ledos sonhos,

Ministros de Tupã, núncios da glória?"

– Sim, foram, lhe respondem, ledos sonhos,

Correios de Tupã;  mas o mais claro

É duro nó que o piaga só desata.

“Dizei-os pois, que vos escuta o piaga

Disse, e maneja o maracá: das bocas

Do mistério divino, em puros flocos

De neve, o fumo em borbotões golfeja.

 

Diz um qu, divagando em matas virgens,

Sentira a luz fugir-lhe de repente

Dos olhos, – se não foi que a natureza,

Por mágico feitiço transtornada,

Vestia por si mesma novas galas

E aspectos novos, – nem as elegantes,

Viçosas trepadeiras, nem as rêdes

Agrestes do cipó já divisava.

Em lugar da floresta, uma clareira

Relvosa descobria, em vez da árvores

Tão altas, de que havia pouco o bosque

Parecia ufanar-se, – um tronco apenas,

Mas tronco tal que os resumia a todos.

 

Ali sozinho o tronco agigantado

Luxuriava em folhas verde-negras,

Em flores cor de sangue, e na abundância

Sos frutos, como  nunca os viu nas matas;

Tão alvos como a flor do mamãozeiro,

De macia penugem debruados.

 

“Extático de os ver ali tão belos

Tais frutos, que eu algures nunca vira,

O bárbaro dizia, fui colhendo

O melhor, por que o visse de mais perto.

Pesar de não saber se era salubre,

Ansiava gosta-lo, e em fura lida

Lutava o meu desejo co’a prudência.

Venceu aquêleai não vencesse nunca!

Nunca, ludibrio não dos meus desejos,

Mordessem-no meus lábios ressequidos.

Conta-lo me arrepia! – Mal o toco,

Força-me rejeita-lo um quê oculto,

Que os nervos me estremece: a causa inquiro..

 

Eis que uma cobra, uma coral, de dentro

Desdobra o corpo lúbrico, e em três voltas,

Mas grata armila, me circunda o braço.

Da vista e do contato horrorizado,

Sacudo o estranho ornato; e vão me agito:

Com quanto mais afã tento livrar-me,

Mais apertado o sinto. – Nisto acordo,

Úmido o corpo e fatigado, e a mente

Molesta ainda do combate inglório.

O que é, não sei; tu sabes tudo, ó Piaga

Há e talvez razão que eu não alcanço,

Que certo isto não é sonhar batalhas.”

 

– “Haja sentido oculto no teu sonho,

(Diz ao guerreiro o piaga) eu, que levanto

O véu do tempo, e aos mortais o mostro.

Dir-to-ei por certo; mas eu creio e tenho

Que algum gênio turbou-te a fantasia,

Talvez angüera de traidor Gamela;

Que os Gamelas são pérfidos em morte,

Como em vida.” – Assim é, diz Itajubá.

 

Outro sonhou caçadas abundantes,

Temíveis caitetus, pacas ligeiras,

Coatis e jabotins, – te onça e tigres,

Tudo em rimas, em feixes: outro em sonhos

Nada disto enxergou: porém cardumes

De peixes vários, que o timbó prestante

Trazia quase à mão, se não fechados

Em mondes espaçosos! – gáudio imenso!

De os ver ali raivando na estacada

Tão grandes serubinstrauíras tantas,

Ou boiando sem tino à flor da aguas!

 

Outros não viram nem mondes, nem peixes,

Nem aves, nem quadrúpedes: mas grandes

Samotins transbordando argêntea espuma

Do fervente cauim; e por três noites

Girar em roda a taça do banquete,

Em quanto cada qual memora em cantos

Os feitos próprios: reina o guau, que passa

Destes àqueles com cadencia alterna.

“O piaga exulta! Eu vos auguro, ó bravos

Do herói Timbira  (clama entusiasta)

Leda vitória! Nunca em nossas tabas

Haverá de correr melhor folgançã,

Nem ganhareis jamais honra tamanha.

Bem sabeis como é de uso entre os que vencem

Festejar o triunfo: o canto e a dança

Marcham de par, – banquetes se preparam,

 

E a glória da nação mais alta brilha!

Oh! nunca sobre as tabas de Itajubá

Haverá de nascer mais grata aurora!

 

Soam festivos gritos, e as pocemas

Dos guerreiros, que sôfregos escutam

Do piaga os ditos, e o feliz augúrio

Da próxima vitória. Não dissera

Quem quer que fosse estranho aos usos deles

Senão que por aquela densa pinha

De vulgo, se espalhara a fausta nova

De gloriosa ação já consumada,

Que os seus, validos da vitória, obraram.

Entanto Japeguá, posto de parte,

Em quanto lavra em todos o contágio

Da glória e do prazer, – bem claro mostra

No rosto descontente o que medita.

“Prazer que em altos gritos se propala,

Discorre lá consigo o Americano,

“É como a chama rápida correndo

Nas folhas da pindoba: é falso e breve!

 

Atenta nele o chefe dos Timbiras,

Como que interno, igual pressentimento

Rejeita, seu mau grado, a voz do piaga.

“Que pensa Japeguá? Acaso em sonhos

Tremendo e torvo se lhe antolha o êxito

Da batalha? ou seja, ou não conosco,

Que tarda em nos dizer seu pensamento?

 

“Eu, vi" Japeguá e assim dizendo,

Sacode vezes três a fronte adusta,

Onde gravara da prudência o sêlo

Contínuo meditar)“Vi altos combros

De mortos já polutos, – via lagoas

Brutas de sangue impuro e negrejante;

Vi setas e carcaz espedaçados,

Tacapes adentados, ou partidos

Ou já sem fio! – vi...” Eis Catucaba

Mal sofrido intervém, interronpendo

A narração do sonhador de males.

Bravo e hardido como é, nunca a prudência

Lhe foi virtude, nem por tal a aceita.

Nunca o membi guerreiro em seus ouvidos

Troou medonho, inóspito combate,

Que às armas não corresse o valeroso,

Intrépido soldado; mais que tudo

Amava a luta, o sangue, vascas, transes,

Convulsos arrepios, altos gritos

Do vencedor, imprecações sumidas

Do que, vencido, jaz no pó sem glória.

Sim, ama e que o tráfego das armas

Talvez melhor que a si; nem mais risonha

Imagem se lhe antolha, nem há cousa

Que tenha em mais apreço ou mais cubice.

O p’rigo que aventasse era feitiço,

Que em delírio de febre o transtornava.

Fanático de si, ébrio de glória,

Lá se arrojava intrépido e brioso,

Onde pior, onde mais negro o via.

 

Não eram dois na esquadra de Itajubá

De gênios em mais pontos encontrados:

Por isso em luta sempre. Catucaba,

Fragueiro, inquieto, sempre aventuroso,

Em cata de mais glória e mais renome,

Sempre à mira de encontros arriscados,

Sempre o arco na mão, sempre embebida

Na corda tesa e frecha equilibrada.

Ninguém mais solto em vozes, mais galhardo

No guerreiro desplante, ou que mostrasse

Atrevido e soberbo e forte em campo

Quer pujança maior, que mais orgulho.

 

Japeguá, corajoso, mas prudente,

Evitava o conflito, via o risco,

Media o seu poder e as posses dele

E o azar da luta e descansava em ócio.

Sua própria indolência revelava

Ânimo grande e não vulgar coragem.

Se fosse lá nos paramos da Líbia,

Deitado à sombra da árvore gigante,

O leão da Numídia bem poderá

Trilhar por junto dele os movediços

Combros da areia, – amedrontando os ares

Com aquele bramir agreste e rudo,

Que as feras sem terror ouvir não sabem.

O índio ouvira impávido o rugido,

Sem que o terror lhe distingisse as faces;

E ao rei dos animais voltando o rosto,

Somente porque mais à jeito o visse,

Viras ambos, sombrios, majestosos,

Contemplarem-se á espaço, destemidos;

D’estranheza o leão os seus rugidos

Na gorja sufocar, e a nobre cauda,

Entre medos e assomos de hardimento,

Mover de leve e irresoluto aos ventos!

 

Um – era a luz fugaz fácil prendida

Nas plumas do algodão: luz que deslumbra

E que em breve amortece: outro – faísca,

Que surda, pouco a pouco vai lavrando

Não vista e não sentida te que surge

Dum jato só, tornada incêndio e fumo.

 

“Que viste? diz-lhe o êmulo brioso,

“Só coalheiras de sangue inficionado,

Só tacapes e setas bipartidas,

E corpos já corruptos?! Eia, ó fraco,

Embora em ócio ignavo aqui descanses,

E nos misteres feminis te adestres!

Ninguém te cama à vida dos combates,

Não te almeja ninguém por companheiro,

Nem há-de o sonho teu acobardar-nos.

É certo que haverá mortos sem conto,

Mas não seremos nós; – setas partidas,,

As nossas, não; tacapes amolgados...

Mas os nossos verás mais bem talhantes,

Quando houverem partido imigos crânios.

 

“Herói, não em façanhas, mas nos ditos

Lidador que a vileza d’alma encobres

Com frases descorteses, – já te viram,

Pendentes braço e armas, contemplando

Os feitos meus, pesar que sou cobarde.

Essa infame tarefa que me incumbes

É minha, sim; mas por diverso modo:

Não ministro cauim às vossas festas;

Mas na refrega o meu trabalho é vosso.

Da batalha no campo achais defuntos,

Vossa glória e brasão,  corpos sem conto,

Cujas feridas largas e profundas,

De largas e profundas, denunciam

A mão que as sói fazer com tanto efeito.

Não tenho espaço, onde recolha os ossos,

Não tenho cinto, onde pendure os crânios,

Nem colar onde caibam tantos dentes,

De quantos venci já; por isso inteiros

Lá vo-los deixo, heróis; e vós lá ides,

Em que me não queirais por companheiro,

Rivais dos urubus, fortes guerreiros,

Fácil triunfo conquistar nas trevas,

Aos vorazes tatus roubando a presa.”

 

Calou-se... e o vulgo rosna em tôrno d’ambos,

Deste ou daquele herói tomando as partes.

Pois quê?... -de ficar tamanha afronta

Impune, e não haveis levar das armas,

Por que o sangue a desbote e apague inteira?

 

Diziam, – e a tais ditos mais fermente

A raiva em ambos; fazem-lhes terreiro,

Já verga o arco, já se entesa a corda,

Já batem pés no solo pulvurento:

Correra o sangue de um, talvez o de ambos,

Que sobre os dois a morte, abrira as asas!

Silêncio! brada o chefe dos Timbiras,

Interposto severo em meio da ambos;

De um lado e outro a turba circunfusa

Emudece, – divide-as largo espaço,

De cujo centro gira os torvos olhos

O herói, e só de olhar lhe estende as raias.

Assim de altivo píncaro descamba

Enorme rocha, obstruindo o leito

De um rio caudaloso: as fundas águas

Latindo envão na rocha volumosa

Separam-se, cavando novos leitos,

Em quanto o antigo se resseca e abras.

 

Silêncio!disse; e em torno os olhos gira,

Fúlgidos, negros: orgulhosas frontes,

Que aos golpes do tacape não se dobram

Em torno sobre o peito vão caindo

Uma após outra: altivo um só apenas

Rebelde arrosta o olhar! – rápido golpe,

Rápido e forte, como o raio, o prostra

Na arena em sangue! Mosqueado tigre,

Se cai no meio de preás medrosos,

Talvez no primo impulso algum aferra;

Vulgacho imbele! – ao mísero que prende

E torce ainda nas compridas garras,

Longe, sem vida, desdenhoso o arroja.

 

Assim o herói. Por longo trato mudo

Soberdo e grande alfim mostrando o rio,

Quedou sem mais dizer; o rio ao longe

As águas, como sempre, majestosas

Na gorja das montanhas derramava,

Caudal, imenso. Trás daqueles montes,

Diz Itajubá, não sabeis quem seja?

Afronta e nome vil haja o guerreiro,

Que ousa lutas ferir, travar discórdias,

Quando o imigo boré tão perto soa.”

 

Acorre o piaga em meio do conflito:

“Prudência, ó filho de Jaguar, exclama;

Nem mais sangue timbira se derrame,

Que já não basta por pagar-nos deste,

Que derramaste, quando houver nas veias

Dos pérfidos Gamelas. O que ouviste,

Que o forte Japeguá diz ter sonhado,

Assela o que tupã me está dizendo

Cá dentro em mim nos decifrados sonhos,

Depois que os funestou propínquo sangue.”

 

“Devoto piaga (Mojacá prossegue)

Que vida austera e penitente vives

Dos rochedos na Iapa venerada,

Tu, dos gênios do Ibaque bem fadado,

Tu face a face com Tupã praticas

ves nos sonos meus melhor qu’eu mesmo.

Escuta, e dize, ó venerando piaga

(Benévolo Tupã teus ditos oiça)

Angüera mau turbou-te a fantasia,

Aflito Mojacá, teu sonho mente.”

 

Palavras tais no índio circunspecto,

Cujos lábios envão nunca se abriram;

Guerreiro, cujos sonhos nunca foram,

Nem mesmo em risco estreito, pavorosos;

No vulgo frio horror vão trescalando,

Que entre a crença do piaga, e a deferência

Devida a tanto herói flutua incerta.

“Eu vi, diz ele, vi em baba imiga

Guerreiro, como vós, comado e hirsuto!

A corda estreita do cruento rito

Os rins lhe apertaa dura tangapema

Sobre-está-lhe fatal; – cantos se entoam

E a tuba dançatriz em torno gira.

Sono não foi, que o vi, como vos vejo;

Mas não vos direi já quem fosse o triste!

Se vísseis, como eu vi, a fronte altiva,

O olhar soberbo, – aquela força grande,

Aquele riso desdenhoso e fundo...

Talvez um só, nenhum talvez se encontre,

 eu seja para estar no passo horrendo

Tão seguro de si, tão descansado!

 

Acaso um tronco volumoso e tôsco

De escamas fortes entre si travadas

Ali perto jazia. Ogib, o velho,

Pai do errante Jatir, ali sentou-se.

Ali triste pensava, até que o sonho

Do aflito Mojacá veio acorda-lo.

“Tupã! que mal te fiz, que assim me colha

Do teu furor a seta envenenada?

Com voz choroza e trêmula clamava.

“Escuto os gabos que só cabem nele,

Vejo e conheço o costumado ornato

Do filho meu querido! isto que fora,

A quem tão infeliz como eu não fosse,

Ventura grande, me constringe o peito!

Conheço o filho meu no que disseste,

Guerreiro, como a flor pelo perfume,

Como o esposo conhece a grata esposa

Pelas usadas plumas da araçóia,

Que entre as folhas do bosque a espaços brilha,

Ai! nunca brilhe a flor, se hão de roê-la

Insetos; nunca vague a linda esposa

No bosque, se há de as feras devora-la!

 

A dor que mostra o velho em todo o aspecto,

Nas vozes por soluços atalhadas,

Nas lágrimas que chora, os move a todos

A triste compaixão; mas mais àquele,

Que, antes do pobre pai, já todo angústias,

Da própria narração se enternecia.

Às querelas de Ogib volta o rosto

O fatal sonhador, – que, seu mau grado,

As setas da aflição tendo cravado

Nas entranhas de um pai, quer logo o suco,

Fresco e saudável, do louvor, na chaga

Verter-lhe, donde o sangue em jorros salta.

 

“Tal era, tão impávido (prossegue,

Fitando o velho Ogib o seu desplante,

Qual foi o de Jatir naquele dia,

Quando, novel nas artes do guerreiro,

Circundado se viu à nossa vista

D’imiga multidão: todos o vimos;

Todos da clara estirpe deslembrados,

Clamamos tristes, pávidos: “É morto!

Ele porém que o arco usar não pode,

O válido tacape desprendendo,

Sacode-o, vibra-o: fere, prostra e mata

êste, àquele; e em volumosos feixes

Acerva a turba vil, lucrando um nome.

 

Tapir, caudilho seu, que não suporta

Que um homem só e quase inerme, o cubra

De tamanho labéu, altivo brada:

“Cede-me, estulto, cede ao meu tacape

Que nunca ameaçou ninguém debalde.”

E assim dizendo vibra crebros golpes,

Co a bruta folha retalhando os ares!

Um coiro de tapir, em vez de escudo,

Rijo e piloso lhe guardava os membros.

Jatir, do arco seu curvando as pontas,

Sacode a seta fina e sibilante,

Que vara o couro e o corpo surge for.

Tomba de chofre o índio, e o som da queda

Remata o som que a voz não rematara.

Vista a pel’ do tapir, que o resguardava,

Japi, mesmo Japi lhe inveja o tiro.”

 

Todo o campo se aflige, todos clamam:

JatirJatiro forte entre os mais fortes.”

Ordem não há; mulheres e meninos

Baralham-se em tropel: o pranto, os gritos

Confundem-se: do velho Ogib entanto

Mal se percebe a voz “Jatir” gritando.

 

Itajubá por fim silêncio impondo

À turba mulheril, e à dos guerreiros

Nesta batalha: “Consultemos, disse,

Consultemos o piaga: às vezes pode

O santo velho, serenando o ibaque,

Amigo bom tornar o Deus malquisto.”

 

Mas ora não! – responde o piaga iroso.

“Só quando ruge a negra tempestade,

“Só quando a fúria d’Anhangá fuzila

Raios do escuro céu na terra aflita

Do piaga vos lembrais?Tanta lembrança,

Tarda e fatal, guerreiros! Quantas vezes

Não fui, em mesmo, nos terreiros vossos

Fincar o santo maracá? Debalde,

Debalde o fui, que à noite o achava sempre

Sem oferta, que aos Deuses tanto prazem!

Nu e despido o vi, como ora o vedes.

(E assim dizendo mostra o sacrossanto

Mistério, que de irado pareceu-lhes

Soltar mais rouco som no seu rugido)

Quem de vós se lembrou que o santo Piaga

Na lapa dos rochedos se mirrava

Apura míngua? Só Tupã, que ao velho

Deu não sentir os dentes aguçados

Da fome, que por dentro o remordia,

E mais cruel, passada entre os seus filhos!

 

Cegou-nos Anhangá, diz Itajubá,

Fincando o maracá nos meus terreiros,

Cegou-nos certo! – nunca o vi sem honras!

Que o vira, bom piaga... oh!não se diga

Que um homem só, dos meus, perece à mingua,

(Quem quer que seja, quanto mais um Piaga_

Quando campeam tantos homens d’arco

Nas tabas de Itajubá, – tantas donas

Na cultura dos campos adestradas.

hoje mesmo farei que ao antro escuro

Caminhem tantos dons, tantas ofertas,

Que o teu santo mistério há de por força,

Quer queiras, quer não, dormir sobre elas!

“Talvez a rica of’renda aplaca os Deuses,

E saudável conselho a noite inspira!

Disse e sem ais dizer se acolhe à gruta.

 

À caça, ó meus guerreiros, brada o chefe;

Ledas donzelas ao cauim se apliquem,

Os meninos à pesca, à roça as donas,

Eia!” – Ferve o labor, reina o tumulto,

Que quase tanto val como a alegria,

Ou antes, só prazer que o povo gosta.

 

Já deslembrados do que ausente choram

Favor das turbas que tão leve passas!

Ledos no peito, ledos na aparência

Todos se incumbem da tarefa usada.

 

Trabalho no prazer, prazer que moras

Dentro de tanto afã! festa que nasces

Sob auspícios tão maus, possa algum gênio,

Possa Tupã sorrir-te carinhoso,

E das alturas condoer-se amigo

Do triste, órfão de amor, e pai sem filho!

 


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 24 de maio de 2020

OS TIMBIRAS - CANTO SEGUNDO (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)

 

OS TIMBIRAS

CANTO SEGUNDO

Gonçalves Dias

 

 

Desdobra-se da noite o  manto escuro:

Leve brisa subtil pela floresta

Enreda-se e murmura, – amplo silêncio

Reina por fim. Nem saberás tu como

Essa imagem da morte é triste e torva.

Se nunca, a sós contigo, a pressentisse

Longe deste zunir da turba inquieta.

No ermo, sim; procura o ermo e as selvas...

Escuta o som final, o extremo alento,

Que exala em fins do dia a natureza!

O pensamento, que incessante voa,

Vai do som â mudez, da luz às sombras

E da terra sem flor, ao céu sem astro.

Simelha a graça luz, qu’inda vacila

Quando, em ledo sarau, o extremo acorde

No deserto salão geme, e se apaga!

 

Era pujante o chefe dos Timbiras,

Sem conto seus guerreiros, três as tabas,

Opimas, – uma e uma derramadas

Em giro, como dança dos guerreiros.

Quem não folgara de as achar nas matas!

Três flores em três hastes diferentes

Num mesmo tronco, – três irmãs formosas

Por um laço de amor ali prendidas

No ermo; mas vivendo aventuradas?

Deu-lhes assento o herói entre dois montes,

Em chã copada de frondosos bosques.

Ali o cajazeiro as perfumava,,

O cajueiro, na estação das flores,

De vivo sangue marchetava as folhas?

As mangas, curvas à feição de um arco,

Beijavam-lhes o teto; a sapucaia

Lambia a terra , – em graciosos laços

Doces maracujás de espessas ramas

Sorriam-se pendentes; o pau-d’arco

Fabricava um dossel de cróceas flores,

E as parasitas de matiz brilhante

úsnea das palmeiras estrelavam!

 

Quadro risonho e grande, em que não fosse

Em granito eu em mármore talhado!

Nem palácios,  nem Tôrres avistaras,

Nem castelos que os anos vão comento,

Nem grimpas, nem zimbórios, nem feituras

Em pedra, que os humanos tanto exaltam!

Rudas palhoças só! que mais carece

Quem há de ter somente um sol de vida,

Jazendo negro pó antes do ocaso?

Que mais? Tão bem a dor há de sentar-se

E a morte revoar tão solta em gritos

Ali, como nos átrios dos senhores.

Tão bem a compaixão há de cobrir-se

De dó, limpando as lágrimas do aflito.

Incerteza voraz, tímida esp’rança,

Desejo, inquietação também lá moram;

Que sobra pois em nós, que falta neles?

 

De Itajubá separam-se os guerreiros;

Mudos, às portas das sombrias tabas,

Imóveis, nem que fossem duros troncos,

Pensativos meditam: Já da guerra

Nada receiam, que Itajubá os manda?

O encanto, os manitôs inda o protege,

Vela tupã sobre ele, e os santos piagas

Comprida série de floridas quadras

Ver lhe asseguram: nem de há pouco a luta,

Melhor dissertas de renome ensejo,

Os desmentiu, que nunca os piagas mentem.

Medo, certo, não têm; são todos bravos!

Por que meditam pois? Também não sabem!

 

Sai o piaga no entanto da caverna,

Que nunca humanos olhos penetraram

Com ligeiro cendal os rins aperta,

Cocar de escuras plumas se debruça

Da fronte, em que se enxerga em fundas rugas

O tenaz pensamento afigurado.

Cercam-lhe os pulsos cascavéis loquazes,

Respondem outros, no tripúdio sacro

Dos pés. Vem majestoso, e grave, e cheio

Do Deus, que o peito seu, tão fraco, habita.

E em quanto o fumo lhe volteia em torno,

Como neblina em torno ao sol que nasce,

Ruidoso maracá nas mãos sustenta,

Solta do sacro rito os sons cadentes.

 

_________________

 

Visita-nos Tupã, quando dormimos,

É só por seu querer que estão sonhamos,

Escute-me Tupã! Sobre vós outros,

Poder do maracá por mim tangido,

Os sonhos desçam, quando o orvalho desce.

“O poder de Anhangá cresce co’a noite;

Sota de noite o mau seus maus ministros:

Caraibebes na floresta acendem

A falsa luz, que o caçador transvia.

Caraibebes enganosas formas

Dão-nos aos sonhos, quando nós sonhamos.

Poder do fumo, que lhes quebra o encanto,

De vós se partam; masTupã vos olhe,

Descendo os sonhos, quando o orvalho desce.

 

“O sonho e a vida são dois galhos gêmeos;

São dois irmãos quer um laço amigo aperta:

A noite é o laço; mas Tupã é o troco

E a seve e o sagüi que circula em ambos.

Vive melhor que da existência ignaro,

Na paz da noite, novas forças cria.

O louco vive com aferro, em quanto

N1alma lhe ondeiam do delírio as sombras,

De vida espúrias; Deus porém lhas rompe

E na loucura do porvir no fala!

Tupã vos olhe,  e sobre vós do Ibaque

Os sonhos desçam, quando o orvalho desce!

 

Assim cantava o piaga merencório,

Tangia o maracá, dançava em roda

Dos guerreiros: poderá ouvido atento

Os sons finais da lúgubre toada

Na plácida mudez da noite amiga

De longe, em côro ouvir? “Sobre nós outros

Os sonos desçam, quando o orvalho desce.”

 

Calou-se o piagaka descansam todos!

Almo Tupã os comunique em sonhos,

E os que sabem tão bem vencer batalhas

Quando acordados malbaratam golpes

Saibam dormidos figurar triunfos!

 

Mas que medita o chefe dos Timbiras?

Bosqueja por ventura ardis de guerra,

Fabrica e enreda as ásperas ciladas,

E a olhos nus do pensamento enxerga

Desfeita em sangue revolver-se em gritos

Morte pávida e má?! ou sente e avista,

Escandecida a mente, o Deus da guerra

Impávido Aresquisanhudo e forte,,

Calcar aos pés cadáveres sem conto,

Na destra ingente sacudindo a maça,

Donde certeira como o raio, desce

A morte, e banha-se orgulhosa – em sangue?

 

Al sente o bravo; outro pensar o ocupa!

Nem Aresqui,nem sangue se lhe antolha,

Nem resolve consigo ardis de guerra,

Nem combates, nem lágrimas medita:

Sentiu calar-lhe n’alma em sentimento

Gelado e mudo, como o véu da noite.

Jatir, dos olhos negros, onde pára?

Que faz que lida: ou que fortuna corre?

Três sóis já são passados: quanto espaço,

Quanto azar não correu nos amplos bosques

impróvido mancebo aventureiro?

Ali na relva a cascavel se esconde,

Ali, das ramas debruçado, o tigre

Aferra traiçoeiro a presa incauta!

Reserve-lhe Tupã mais fama e glória,

E voz amiga de cantor suave

C’os altos feitos lhe embalsame o nome!

 

Assim discorre o chefe, que em nodoso

Tronco rudo-lavrado se recosta?

Não tem poder a noite em seus sentidos,

Que a mesma idéia de contínuo volvem.

Vela e treme nos tetos da cabana

A baça luz das resinosas tochas,

Acres perfumes recendendo; – alastram

De rubins cor de brasa a flor do rio!

 

“Ouvira com prazer um triste canto,

Diz lá consigo; um canto merencório.

Que este presságio fúnebre espancasse.

Bem sinto um não se que aferventar-se-me

Nos olhos, que vai prestes expandir-se:

Não sei chorar, bem sei; mas fora grato,

Talvez bem grato!à noite, e a sós comigo

Sentir macias lágrimas correndo.

O talo agreste de um cipó em graça

Verte compridas lágrimas cortado

O tronco do cajá desfaz-se em goma,

Suspira o vento, o passarinho canta,

O homem cora! eu só, mais desditoso,

Invejo o passarinho, o tronco, o arbusto,

E quem, feliz, de lágrimas se paga”

 

Longo espaço depois falou consigo,

Mudo e sombrio: “Sabiá das matas,

Croá (diz ele ao filho d’Iandiroba)

As mais canoras aves, as mais tristes

No bosque, a suspirar contigo aprendam.

Canta, pois que trocara de bom grado

Os altos feitos pelos doces carmes

Quem quer que os escutou, mesmo Itajubá.

 

Eudeceu: na taba quase escura,

Com pé alterno a dança vagarosa,

Aos sons do maracá, traçava os passos.

“Flor de beleza, luz de amor, Coema,

Murmurava o cantor, onde te foste,

Tão doce e bela, quanto o sol raiava?

Coema, quanto amor que nos deixaste?

Eras tão meiga, teu sorrir tão brando,

Tão macios teus olhos! teus acentos

Cantar perene, tua voz gorjeios

Ruas palavras mel! O romper d’alva,

Se encantos punha a par dos teus encantos

Tentava embalde pleitear contigo!

Não tinha a ema porte mais soberbo,

Nem com mais graça recurvava o colo!

Coema, luz de amor, onde te foste?

 

“Amava-te o melhor, o mais guerreiro

Dentre nós? elegeu-te companheira,

A ti somente, que só tu achavas

Sorriso e graça na presença dele

Flor, que nasceste no musgoso cedro,

Cobravas páreas de abundante seiva,

Tinhas abrigo e proteção das ramas...

Que vendaval te despegou do tronco,

E ao longe, em pó, te esperdiçou no vale?

Coema, luz de amor, flor de beleza,

Onde te foste, quando o sol raiava?

 

“Anhangá rebocou estreita igara

Contra a corrente: Orapacém vem nela,

Orapacém, Tupinambá famoso

Conta prodígios duma raça estranha,

Tão alva como o dia, quando nasce,

Ou como a areia cândida e luzente,

Que as águas dum regato sempre lavam.

Raça, q quem os raios prontos servem,

E o trovão e o relâmpago acompanham

Já de Orapacém os mais guerreiros

Mordem o pó, e as tabas feitas cinza

Clamam vingança em vão contra os estranhos.

Talvez d’outros estranhos perseguidos,

Em punição talvez d’atroz delito.

Orapacém, fugindo, brada sempre:

MairMair! Tupã! – Terror que mostra,

Brados que solta, e as derrocadas tabas,

Desde Tapuitapera alto proclamam

Do vencedor a indômita pujança.

Ai! não viesse nunca as nossas tabas

O tapuia mendaz, que os bravos feitos

Narrava do Mair; nunca os ouviras,

Flor de beleza, luz de amor, Coema!

 

“A cega desventura, nunca ouvida,

Nos move à compaixão: prestes corremos

Com ledo gasalhado restaura-los

Da vil dureza do seu fado: dormem

Nas nossas redes diligentes vamos

Colher-lhes frutos, -- descansados folgam

Nas nossas tabas? Itajubá mesmo

Of’rece abrigo ao palrador tapuia!

Hospedes são, nos diz; Tupã os manda:

Os filhos de tupâ serão bem vindos,

Onde Itajubá impera! – Ao que não eram,

Nem filhos de Tupã, nem gratos hóspedes

Os vis que o rio, a custo, nos trouxera;

Antes dolosa resfriada serpe

Que ao nosso lar creou vida e peçonha.

Quem nunca os vira! porem tu, Coema,

Leda avezinha, que adejavas livre,

Asas da cor da prata ao sol abrindo,

A serpente cruel porque fitaste,

Se já do olhado mau sentias pejo?!

 

“Ouvimos, uma vez, da noite em meio,

Voz de aflita mulher pedir socorro

/e em tom sumido lastimar-se ao longe.

Opacém! – bradou feroz três vezes

O filho de Jaguar: clamou debalde.

Somente acode o eco à voz irada,,

Quando ele o malfeitor no instinto enxerga.

Em sanhas rompe o chefe hospitaleiro,

E tenta com afã chegar ao termo,

Donde as querelas míseras partiam.

Chegou – já tarde! – nós, mais tardos inda,

Assistimos ao súbito espetáculo!

 

“Queimam-se raros fogos nas desertas

Margens do rio, quase imerso em trevas:

Afadigados no labor noturno,

Os traiçoeiros hóspedes caminham,

Pejando à pressa as côncavas igaras.

Longe, Coema, a doce flor dos bosques,

Com voz de embrandecer duros penhascos,

Suplica e roja em vão aos pés do fero,

Caviloso tapuia! Não resiste

Ao fogo da paixão, que dentro lavra,

O bárbaro, que a viu, que a vê tão bela!

 

“Vai arrastá-la, – quando sente uns passos

Rápidos, breves, – volta-se: – Itajubá!

Grita; e os seus, medrosos, receiando

A perigosa luz, os fogos matam.

Mas, no extremo clarão que eles soltaram,

Viu-se Itajubá com seu arco em punho,

Calculando a distância, a força e o tiro:

Era grande a distância, a força imensa...

 

“E a raiva incrível, continua o chefe,

A antiga cicatriz sentindo abrir-se!

Ficou-me o arco em dois nas mãos partido,

E a frecha vil caiu-me sãos pés sem força.”

E assim dizendo nos cerrados punhos

De novo pensativo a fronte oprime.

 

“Sim, tornava o Cantor, Imenso e forte

Devera o arco ser, que entre nós todos

Só um achou, que lhe vergasse as pontas,

Quando Jaguar morreu! – partiu-se o arco!

Depois ouviu-se um grito, após ruído,

Que as águas fazem no tombar de um corpo;

Depois – silêncio e trevas...

        –“Nessas trevas,

Replicava Itajubá, – inteira a noite,

Louco vaguei, corri d’encontro as rochas,

Meu corpo lacerei nos espinheiros,

Mordi sem tino a terra já cansado:

Soluçavam porém meus frouxos lábios

O nome dela tão querido, e o nome...

Aos vis Tupinambás nunca os eu veja,

Ou morra, antes de mim, meu nome e glória

Se os não hei de punir ao recordar-me

A aurora infausta que me trouxe aos olhos

O cadáver...” Parou, que a estreita gorja

Recusa aos cavos sons prestar acento.

 

“Descansa agora o pálido cadáver,

Continua o cantor junto à corrente

So regato, que volve areias d’ouro.

Ali agrestes flores lhe matizão

O modesto sepulcro, – aves canoras

Descantam tristes nênias so compasso

Das águas, que também nênia soluçam

 

“Suspirada Coema, em paz descansa

No teu florido e fúnebre jazigo;

Mas quando a noite dominar no espaço,  

Quando a lua coar úmidos raios

Por entre as densas, buliçosas ramas,

Da cândida neblina veste as formas,

E vem no bosque suspirar co’a brisa:

Ao guerreiro, qu dorme, inspira sonhos,

E à virgem, que adormece, amor inspira.”

 

Calou-se o maracá rugiu de novo

A extrema vez, e jaz emudecido.

Mas no remanso do silêncio e trevas,

Como débil vagido, escutarias

Queixosa voz, que repetia em sonhos:

“Veste, Coema, as formas da neblina,

Ou vem nos raios trêmulos da lua

Cantar, viver e suspirar comigo.”

 

___________

 

Ogib, o velho pai do aventureiro

Jatir, não dorme nos vazios tetos:

Do filho ausente prendem-no cuidados;

Vela cansado e triste o pai coitado,

Lembrando-se desastres que passaram

Impróvidos, no bosque pernoitando.

E vela, – e a mente aflita mais se enluta,

Quanto mais cresce a noite e as trevas crescem!

Já tarde, sente uns passos apressados,

Medindo a taba escura; o velho treme,

Estende a mão convulsa, e roça um corpo

Molhado e tiritante: a voz lhe falta...

Atende largo espaço, até que escuta

A voz do sempre aflito Piaíba,

Ao pé do fogo extinto lastimar-se.

 

“O louco Piaíba, a noite inteira,

Andou nas matas; miserando sofre;

O corpo tem aberto em fundas chagas,

E o orvalho gotejou fogo sobre elas;

Como o verme na fruta, um Deus maligno

Lhe mora na cabeça, oh! quanto sofre!

“Em quanto o velho Ogib está dormindo,

Vou-me aquecer;

O fogo é bom, o fogo aquece muito;

Tira o sofrer.

Em quanto o velho dorme, não me expulsa

D’ao pé do lar;

Dou-lhe a mensagem, que me deu a morte,

Quando acordar!

Eu via a morte: vi-a bem de perto

Em hora má!

Vi´-a de perto, não me quis consigo,

Por ser tão má.

Só não tem coração, dizem os velhos,

E é bem de ver;

Que, se o tivera, me daria a morte,

Que é meu querer.

Não quis matar-me; mas é bem formosa;

Eu vi-a bem:

É como a virgem, que não tem amores,

Nem ódios tem..

O fogo é bom, o fogo aquece muito,

Quero-lhe bem!

 

Remexe, assim dizendo, as frias cinzas

E mais e mais conchega-se o borralho.

O velho entanto, erguido a meio corpo

Na rede, escuta pávido, e tirita

De frio e medo, – quase igual delírio

Castiga-lhe as idéias transtornadas.

 

“Já me não lembra o que me disse a morte!...

Ah! sim, já sei!

–Junto ao sepulcro da fiel Coema,

Ali serei:

Ogib emprazo, que a falar me venha

Ao anoitecer! –

O velho Ogib há-de ficar contente

Co’o meu dizer;

Talvez que o velho, que viveu já muito,

Queira morrer!

Emudeceu: alfim tornou mais brando.

“Mas dizem que a morte procura mancebos,

Porém tal não é:

Que colhe as florinhas abertas de fresco

E os frutos no pé?!...

Não, não, que só ama sem folha as flores,

E sem perfeição;

E os frutos perdidos, que apanha golosa,

Caídos no chão.

Também me não lembra que tempo hei vivido,

Nem por que razão

Da morte me queixo,que vejo, e não vê-me,

Tão sem compaixão.”

As ânsias não vencendo, que o soçobram

Salta da curva rede Ogib aflito;

Trêmulo as trevas apalpando, topa,

E roja miserando aos pés do louco.

 

– “Oh! dize-me, se a viste, e se em tua alma

Algum sentir humano inda se aninha,

Jatir, que é feito dele? Disse a morte

Haver-me cubiçado o moço imberbe,

A cara luz dos meus cansados olhos:

Oh dize-o! Assim o espírito inimigo

Folgados anos respirar te deixe!

O louco ouviu nas trevas os soluços

Do velho, mas seus olhos nada alcançam:

Pasma, e de novo o seu cantar começa:

“Em quanto o velho dorme, não me expulsa

D’ao pé do lar.”

           – “Mas expulsei-te eu nunca?

Tornava Ogib a desfazer-se em pranto,

Em ânsias de transido desespero.

Bem sei que um Deus te mora dentro d’alma;

E nunca houvera Ogib de espancar-te

Do lar, onde Tupã é venerado.

Mas fala! ohfala, uma só vez repete-o:

Vagaste à noite nas sombrias matas...”

 

“Silencio! brada o louco, não escutas:?!”

E pára, como ouvindo uns sons longínquos.

Depois prossegue: Piaíba o louco

Errou de noite nas sombrias matas;

O corpo tem aberto em fundas chagas,

E o orvalho gotejou fogo sobre elas.

Geme e sofre e sente fome e frio,

Nem há quem de seus males se condoa.

Oh! tenho frio! o fogo é bom, e aquece,

Quero-lhe bem!

   – “Tupã, que tudo podes,

Orava Ogib em lágrima desfeito,

A vida inútil do cansado velho

Toma, se a queres; mas que eu veja em vida

Meu filho, só depois me colha a morte!


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 17 de maio de 2020

OS TIMBIRAS - CANTO PRIMEIRO (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)

 

OS TIMBIRAS

CANTO PRIMEIRO

Gonçalves Dias

 

Sentado em sítio escuso descansava

Dos Timbiras o chefe em trono anoso,

Itajubá, o valente, o destemido

Acoçador das feras, o guerreiro

Fabricador das incansáveis lutas.

Seu pai, chefe também, também Timbira,

Chamava-se o Jaguar: dele era fama

Que os musculosos membros repeliam

A flecha sibilante, e que o seu crânio

Da maça aos tesos golpes não cedia.

Cria-se... e em que não crê o povo stulto?

Que um velho piaga na espelunca horrenda

Aquele encanto, inútil num cadáver,

Tirara ao pai defunto, e ao filho vivo

Inteiro o transmitira: é certo ao menos

Que durante uma noite juntos foram

O moço e o velho e o pálido cadáver.

 

Mas acertando um dia estar oculto

Num denso tabocal, onde perdera

Traços de fera, que rever cuidava,

Seta ligeira atravessou-lhe um braço.

Mão d’imigo traidor a disparara,

Ou fora algum dos seus, que receioso

Do mal causado, emudeceu prudente.

 

Relata o caso, irrefletido, o chefe.

Mal crido foi! –– por abonar seu dito,

Redobra d’imprudência, –– mostra aos olhos

A traiçoeira flecha, o braço e o sangue.

A fama voa, as tribos inimigas

Adunam-se, amotinam-se os guerreiros

E as bocas dizem: o Timbira é morto!

Outras emendam: Mal ferido sangra!

Do nome do Itajubá se despega

O medo, – um só desastre venha, e logo

Esse encanto vai prestes converter-se

Em riso e farsa das nações vizinhas!

Os manitós, que moram pendurados

Nas tabas d’Itajuba, que as protejam:

O terror do seu nome já não vale,

Já defensão não é dos seus guerreiros!

 

Dos Gamelas um chefe destemido,

Cioso d’alcançar renome e glória,

Vencendo a fama, que os  sertões enchia,

Saiu primeiro a campo, armado e forte

Guedelha e ronco dos sertões imensos,

Guerreiros mil e mil vinham trás ele,

Cobrindo os montes e juncando as matas,

Com pejado carcaz de ervadas setas

Tingidas d’urucu, segundo a usança

Bárbara e fera, desgarrados gritos

Davam no meio das canções de guerra.

 

Chegou, e fez saber que era chegado

O rei das selvas a propor combate

Dos Timbiras ao chefe. ––  “A nós só caiba,

(Disse ele) a honra e a glória; entre nós ambos

Decida-se a questão do esforço e brios.

Estes, que vês, impávidos guerreiros

São meus, que me obedecem; se me vences,

São teus; se és o vencido, os teus me sigam:

Aceita ou foge, que  a vitória é minha.”

 

Não fugirei, respondeu-lhe Itajubá,

Que os homens, meus iguais, encaram fito

O sol brilhante, e os não deslumbra o raio.

 

Serás, pois que me afrontas, torna o bárbaro

Do meu valor troféu, –– e da vitória,

Qu’hei de certo alcançar, despojo opimo.

Nas tabas em que habito ora as mulheres

Tecem da sapucaia as longas cordas,

Que os pulsos teus hão de arrochar-te em breve;

E tu vil, e tu preso, e tu coberto

D’escárnio de d’irrrisão! – Cheio de glória,

Além dos Andes voará meu nome!

 

O filho de Jaguar sorriu-se a furto:

Assim o pai sorri ao filho imberbe,

Que, desprezado o arco seu pequeno,

Talhado para aquelas mãos sem forças,

Tenta doutro maior curvar as pontas,

Que vezes três o mede em toda altura!

 

Travaram luta fera os dois guerreiros,

Primeiro ambos de longe as setas vibram,

Amigos manitôs, que ambos protegem,

Nos ares as desgarram, Do Gamela

Entrou a fecha trêmula num tronco

E só parou no cerne, a do Timbira,

Cicando veloz, fugiu mais longe,

Roçando apenas os frondosos cimos

Encontraram-se valentes: braço  a braço,

Alentando açodados, peito a peito,

Revolvem fundo a terra aos pés, e ao longe

Rouqueja o peito arfado um som confuso.

 

Cena vistosa! quadro aparatoso!

Guerreiros velhos, à vitória afeitos,

Tamanhos campeões vendo n’arena,

E a luta horrível e o combate aceso,

Mudos quedaram de terror transidos.

Qual daqueles heróis há de primeiro

Sentir o egrégio esforço abandona-lo

Perguntam; mas não há quem lhes responda.

 

São ambos fortes: o Timbira hardido,

Esbelto como o tronco da palmeira,

Flexível como a flecha bem talhada,

Ostenta-se robusto o rei das selvas;

Seu corpo musculoso, imenso e forte

È como rocha enorme, que desaba

De serra altiva, e cai no vale inteira

Não vale humana força desprende-la

Dali, onde ela está: fugaz corisco

Bate-lhe a calva fronte sem parti-la.

 

Separam-se os guerreiros um do outro,

Foi dum o pensamento, – a ação foi d’ambos.

Ambos arquejam, descoberto o peito

Arfa, estua, eleva-se, comprime-se

o ar em ondas sôfregos respiram

Cada qual, mais pasmado que medroso

Se estranha a força que no outro encontra,

A mal cuidada resistência o irrita.

Itajubá! Itajubá! – os seus exclamam

Guerreiro, tal como ele, se descora

Um só momento, é dar-se por vencido

O filho de Jaguar voltou-se rápido

Donde essa voz partiu? quem no aguilhoa?

Raiva de tigre anuviou-lhe o rosto

E os olhos cor de sangue irados pulam

 

“A tua vida a minha glória insulta!

Grita ao rival, e já de mais viveste.”

Disse, e como o condor, descendo a prumo

Dos astros, sobre o lhama descuidoso

Pávido o prende nas torcidas garras,

E sobe audaz onde não chega o raio...

Voa Itajubá sobre o rei das selvas,

Cinge-o nos braços, contra si o aperta

Com força incrível: o colosso verga,

Inclina-se, desaba, cai de chofre,

E o pó levanta e atroa forte os ecos.

Assim cai na floresta um tronco anoso,

E o som da queda se propaga ao longe!

O fero vencedor um pé alçando,

Morre! – lhe brada – e o nome teu contigo!

O pé desceu, batendo a arca do peito

Do exânime vencido: os olhos turvos,

Levou, a extrema vez, o desditoso

Àqueles céus d’azul, àquelas matas,

Doce cobertas de verdura e flores!

 

Depois, erguendo o esquálido cadáver

Sobre a cabeça, horrivelmente belo,

Aos seus o mostra ensangüentado e torpe;

Então por vezes três o horrendo grito

Do triunfo soltou; e os seus três vezes

O mesmo grito em coro repetiram

Aquela massa enfim côa nos ares;

Porem na destra do feliz guerreiro

Dividem-se entre os dedos as melenas,

De cujo crânio marejava o sangue!

 

Transbordando ufania do sucesso

Inda recente, recordava as fases

Orgulhos o guerreiro! Ainda escuta

A dura voz, inda a figura avista

Desse, que ousou atravessar-lhe as sanhas:

Lembra-se! e da lembrança grato enlevo

Lhe côa n’alma em fogo: longos  olhos

Em quanto assim medita, vai levando

Por onde o rio, em tortuosos giros,

Queixoso lambe as empedradas margens.

Assim o jugo seu não escorjassem

Tredos Gamelas co’a noturna fuga!

Pérfidos!o herói jurou vingar-se!

Tremei! qu’há de o valente debelar-vos!

E em quanto segue o céu, e o rio, e as selvas,

Crescem-lhe brios, força, –– alteia o colo,

Fita orgulhos a terra, onde não acha,

Nem crê achar quem lhe resista; eis nisto

Reconhece um dos seus, que pressuroso

Corre encontra-lo, – rápido caminha;

Porém d’instante a instante, d’enfiado

Volta o pávido rosto, onde se pinta

O susto vil, que denuncia o fraco.

– Ó filho de Jaguar – de longe brada,

Neste aperto nos vale, – ei-los se avançam

Pujantes contra nós, tão bastos, tantos,

Como enredados troncos na floresta.

 

Tu sempre tremes, Jurucei, tornou-lhe

Com voz tranqüila e majestosa o chefe.

O mel, que em falas sem cessar distilas,

Tolhe-te o esforço e te enfraquece a vista:

 

Amigos são talvez, amigas tribos,

Algum chefe, que tem conosco as armas,

Em sinal d’aliança, espedaçado:

Vem talvez festejar o meu triunfo,

E os seus cantores celebrar meu nome.

 

Não!não! ouvi o som triste e sonoro

Sas igaras, rompendo a custo as águas

Dos remos manejados a compasso,

E os sons guerreiros do boré, e os cantos

Do combate; parece, d'irritado,

Tão grande peso agora a flor lhe corta,

Que o rio vai sorver as altas margens”.

 

E são Gamelas? – perguntou-lhe o chefe.

“Vi-os, tornou-lhe Jurucei, são eles!”

O chefe dos Timbiras dentro d’alma

Sentiu ódio e vingança remorde-lo.

Rugiu a tempestade, mas lá dentro,

Cá fora retumbou, mas quase extinta.

Começa então com voz cavada e surda.

 

Irás  tu, Jurucei, por mim dizer-lhes:

Itajubá, o valente, o rei da guerra,

Fabricador das incansáveis lutas,

Em quanto a maça não sopesa em quanto

Dormem-lhe as setas no carcaz imóveis,

Of’rece-vos liança e paz; – não ama,

Tigre repleto, espedaçar mais presas,

Nem quer dos vossos derramar mais sangue.

Três grandes Tabas, onde heróis pululam,

Tantos e mais que vós, tanto e mais bravos,

Caídas a seus pés, a voz lhe escutam.

Vós outros, atendei, – cortai nas matas

Troncos robustos e frondosas palmas,

E construí cabanas, – onde o corpo

Caiu do rei das  selvas, – onde o sangue

Daquele herói, vossa perfídia atesta.

 

Aquela briga enfim de dois, tamanhos,

Sinalai; por que estranho caminheiro,

Amigas vendo e juntas nossas tabas,

E a fé, que usais guardar, sabendo, exclamem:

Vejo um povo de heróis e um grande chefe!

 

Disse: e vingando o cimo d’alto monte,

Que em roda largo espaço dominava,

O atroador membi soprou com força.

O tronco, o arbusto, a moita, a rocha, a pedra,

Convertem-se em guerreiros.-- mais depressa,

Quando soa o clarim, núncio de guerra,

Não sopra, e escava a terra, e o ar divide

Co’as crinas flutuantes, o ginete,

Impávido, orgulhoso, em campo aberto.

 

Da montanha Itajubá os vê sorrindo,

Galgando vales, combros, serranias,

Coalhando o ar e o céu de feios gritos.

E folga, por que os vê correr tão prestes

Aos sons do cavo búzio conhecido,

Já tantas vezes repetidos antes

Por vales e por serras; já não pode

Numera-los, de tantos que se apinham;

Mas vendo-os, reconhece o vulto e as armas

Dos seus: “Tupã sorri-se lá dos astros,

– Diz o chefe entre si, – lá, descuidosos

Das folganças de Ibaque, heróis timbiras

Contemplam-me, das nuvens debruçados:

E por ventura de lhes ser eu filho

Enlevam-se, e repetem, não sem glória,

Os seus cantores d’Itajuba o nome.

 

Vem primeiro Jucá de fero aspecto.

Duma onça bicolor cai-lhe na fronte

pel’ vistosa;sob as hirtas cerdas,

Como sorrindo, alvejam brancos dentes,

E nas vazias órbitas lampejam

Dois olhos, fulvos, maus. – No bosque, um dia,

A traiçoeira fera a cauda enrosca

E mira nele o pulo; do tacape

Jucá desprende o golpe, e furta o corpo;

Onde estavam seus pés, as  duras garras

Encravavam-se enganadas, e onde as garras

Morderam, beija a terra a fera exangue

E, morta, ao vencedor tributa um nome.

 

Vem depois Jacaré, senhor dos rios,

Ita-roca indomável, – Catucaba,

Primeiro sempre no combate, – o forte

Juçurana, – Poti ligeiro e destro,

O tardo Japeguá, – o sempre aflito

Piaíba, que espíritos perseguem:

MojacáMopereba, irmãos nas armas,

Sempre unidos, ninguém não foi como eles!

Lagos de sangue derramaram juntos;

Filhos e pais e mães d'imigas tabas

Odeiam-nos chorando, e a glória d’ambos,

Assim chorada, mais e mais se exalta:

Samotim, Pirajá, e outros infindos,

Heróis também, aos quais faltou somente

Nação menor, menos guerreira tribo.

 

Japi, o atirador, quando escutava

Os sons guerreiros do membi troante,

Na tesa corda flecha embebe inteira,

E mira um javali que os alvos dentes,

Navalhados, remove: pára,escuta...

Volvem-lhe os mesmos sons: Bate-lhe o peito

Os olhos pulam, – solta horrendo grito,

Arranca e roça a fera!... a fera atônita,

Aterrada, transida, treme, erriça

As duras cerdas; tiritante, pávida,

Esgazeando os olhos fascinados,

Recua: um tronco só lhe embarga os passos.

Por longo trato, de si mesma alheia,

Demora-se, lembrada: a custo o sangue

Volve de novo ao costumado giro,

Em quando o vulto horrendo se recorda!

 

“Mas onde está Jatir? – pergunta o chefe,

Que debalde o procura entre os que o cercam:

Jatir, dos olhos negros, que me luzem,

Melhor que o sol nascendo, dentro d’alma;

Jatir, que aos chefes todos anteponho,

Cuja bravura e temerário arrojo

Folgo em reger e moderar nos prélios;

Esse, porque não vem, quando vos vindes?

– Corre Jatir no bosque, diz um chefe

Bem sabes como: acinte se desgarra

Dos nossos, – andal só, talvez sem armas,

Talvez bem longe: acordo nele é certo,

Creio, de nos tachar assim de fracos! –

Pais de JatirOgib, entrara em anos;

Grosseiro cedro mal lhe afirma os passos,

Os olhos pouco vêem; mas de conselho

Valioso e prestante. Ali, mil vezes,

Havia com prudência temperado

O juvenil ardor dos seus, que o ouviam.

Alheio agora da prudência, escuta

A voz que o filho amado lhe crimina.

Sopra-lhe o dizer acre a cinza quente,

Viva, acesa, antes brasa, – o amor paterno:

Amor inda tão forte na velhice,

Como no dia venturoso, quando

Cendi, que os olhos seus só viram bela,

Sorrindo luz de amor dos meigos olhos,

Carinhosa lho deu; quando na rede

Ouvia com prazer ass ledas vozes

Dos companheiros seus, – e quando absorto,

Olhos pregados no gentil menino,

Bem longas horas, sim, porém bem doces

Levou cismando aventuradas sinas.

Ali o tinha, ali meigo e risonho

Aqueles tenros braços levantava;

Aqueles olhos límpidos se abriam

À luz da vida: cândido sorriso,

Como o sorrir da flor no romper d’alva,

Radiava-lhe o rosto: quem julgara,

Quem poderá aventar, supor ao menos

Haverem de apertar-se aqueles braços

Tão mimosos, um dia, contra o peito

Arquejante e cansado, – e aqueles olhos

Verterem pranto amargo em soledade?

Incrível! – porém lágrimas cresceram-lhe

Dos olhos, – lá tombou-lhe uma, das faces

No filho, em cujo rosto um beijo a enxuga.

Agora, Ogib, alheio da prudência,

Que ensina, imputações tão más ouvindo

Contra o filho querido, acre responde.

 

“São torpes os anuns que em bandos folgam,

São maus os caitetus, que em varas pascem,

Somente o sabiá geme sozinho,

E sozinho o Condor aos  céus remonta.

Folga Jatir de só viver consigo:

Em bem, que tens agora que dizer-lhe?

Esmaga o  seu tacape a quem vos prende,

A quem vos dana, afoga entre os seus braços,

E em quem vos acomete, emprega as setas.

Fraco! não temes já que te não falte

O  primeiro entre vós, Jatir, meu filho?

 

Despeitoso Itajubá, ouvindo um nome.

Embora o de Jatirapregoado

Melhor, maior que o seu, a testa enruga

E diz severo aos dois qu’inda argumentam

 

Mais respeito, mancebo, ao sábio velho,

Qu’éramos nós crianças, manejava

A seta e o arco em defensão dos nossos.

Tu, velho, mais prudência. Entre nós todos

O primeiro sou eu: Jatir, teu filho,

E forte e bravo; porém novo. Eu mesmo

Gabo-lhe o porte e a gentileza; e aos feitos

Novéis aplaudo: bem  maneja o arco,

Vibra certeira a flecha; mas...(sorrindo

Prossegue) afora dele inda há quem saiba

Mover tão bem as armas, e nos braços

Robustos, afogar fortes guerreiros.

Jatir virá, senão... serei convosco.

(Disse voltado para os  seus, que o cercam)

E bem sabeis que vos não falto eu nunca.

 

Altercam eles nas ruidosas tabas,

Em quanto Jurucei com pé ligeiro

Caminha: as aves docemente atitam,

De ramo em ramo – docemente o bosque

À medo rumoreja, – à medo o rio

Escoa-se e murmura: um borborinho,

Confuso se propaga, – um rio incerto

Dilata-se do sol doirando o ocaso.

Último som que morre, último raio

De luz, que treme incerta, quantos entes

Oh! hão de ver a luz de novo

E o romper d’alva, e os céus, e a natureza

Risonha e fresca, -- e os sons, e os ledos cantos

Ouvir das aves tímidas no bosque

Outra vez ao surgir da nova aurora?!

 


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 10 de maio de 2020

OS TIMBIRAS - INTRODUÇÃO (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)

OS TIMBIRAS

INTRODUÇÃO

Gonçalves Dias

 

Os ritos semibárbaros dos Piagas,

Cultores de Tupã, a terra virgem

Donde como dum trono, enfim se abriram

Da cruz de Cristo os piedosos braços;

As festas, e batalhas mal sangradas

Do povo Americano, agora extinto,

Hei de cantar na lira.– Evoco a sombra

Do selvagem guerreiro!... Torvo o aspecto,

Severo e quase mudo, a lentos passos,

Caminha incerto, – o bipartido arco

Nas mãos sustenta, e dos despidos ombros

Pende-lhe a rôta aljava... as entornadas,

Agora inúteis setas, vão mostrando

A marcha triste e os passos mal seguros

De quem, na terra de seus pais, embalde

Procura asilo, e foge o humano trato.

 

Quem poderá, guerreiro, nos seus cantos

A voz dos piagas teus um só momento

Repetir; essa voz que nas montanhas

Valente retumbava, e dentro d’alma

Vos ia derramando arrojo e brios,

Melhor que taças de cauim fortíssimo?!

Outra vez a chapada e o bosque ouviram

Dos filhos de Tupã a voz e os feitos

Dentro do circo, onde o fatal delito

Expia o malfadado prisioneiro,

Qu’enxerga a maça e sente a muçurana

Cingir-lhe os rins a enodoar-lhe o corpo:

E sós de os escutar mais forte acento

Haveriam de achar nos seus refolhos

O monte e a selva e novamente os ecos.

 

Como os sons do boré, soa o meu canto

Sagrado ao rudo povo americano:

Quem quer que a natureza estima e preza

E gosta ouvir as empoladas vagas

Bater gemendo as cavas penedias,

E o negro bosque sussurrando ao longe ––

Escute-me. –– Cantor modesto e humilde,

A fronte não cingi de mirto e louro,

Antes de verde rama engrinaldei-a,

D’agrestes flores enfeitando a lira;

Não me assentei nos cimos do Parnaso,

Nem vi correr a linfa da Castália.

Cantor das selvas, entre bravas matas

Áspero tronco da palmeira escolho.

Unido a ele soltarei meu canto,

Em quanto o vento nos palmares zune,

Rugindo os longos encontrados leques.

 

Nem só me escutareis fereza e mortes:

As lágrimas do orvalho por ventura

Da minha lira distendendo as cordas,

Hão de em parte ameigar e embrandece-las.

Talvez o lenhador quando acomete

O tranco d’alto cedro corpulento,

Vem-lhe tingido o fio da segure

De puto mel, que abelhas fabricaram;

Talvez tão bem nas  folhas qu’engrinaldo,

A acácia branca o seu candor derrame

E a flor do sassafraz se estrele amiga.

 

 


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 03 de maio de 2020

A MANGUEIRA (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)

A MANGUEIRA

Gonçalves Dias

 

Já viste coisa mais bela
Do que uma bela mangueira,
E a doce fruta amarela,
Sorrindo entre as folhas dela,
E a leve copa altaneira?
Já viste coisa mais bela
Do que uma bela mangueira?

Nos seus alegres verdores
Se embalança o passarinho;
Todo é graça, todo amores,
Decantando seus ardores
À beira do casto ninho:
Nos seus alegres verdores
Se embalança o passarinho!

O cansado viandante
A sombra dela acha abrigo;
Traz-lhe a aragem sussurrante,
Que lhe passa no semblante,
Talvez o adeus d′um amigo;
E o cansado viandante
À sombra dela acha abrigo -

A sombra que ela derrama
Todas as dores acalma;
Seja dor que o peito inflama,
Ou voraz, nociva chama
Que nos mora dentro d′alma,
A sombra que ela derrama
Todas as dores acalma.

O mancebo namorado
Para ela se encaminha;
Bate-lhe o peito açodado
Quando chega o prazo dado,
Quando ao tronco se avizinha,
E o mancebo namorado
Para o tronco se encaminha.

Sob a copa deleitosa
Mil suspiros se entrelaçam,
E d′uma hora aventurosa
Guarda a prova a casca anosa
Nas cifras que ali se abraçam:
Sob a copa venturosa
Mil suspiros se entrelaçam.

Grata estação dos amores,
Abrigo dos que o não tem,
Deixa-me ouvir teus cantores,
Admirar teus verdores;
Presta-me abrigo também,
Grata estação dos amores,
Abrigo dos que o não tem.


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 26 de abril de 2020

CANÇÃO DO TAMOIO (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)

 

CANÇÃO DO TAMOIO

Gonçalves Dias

 

I

Não chores, meu filho;
Não chores, que a vida
É luta renhida:
Viver é lutar.
A vida é combate,
Que os fracos abate,
Que os fortes, os bravos
Só pode exaltar.

II

Um dia vivemos!
O homem que é forte
Não teme da morte;
Só teme fugir;
No arco que entesa
Tem certa uma presa,
Quer seja tapuia,
Condor ou tapir.

III

O forte, o cobarde
Seus feitos inveja
De o ver na peleja
Garboso e feroz;
E os tímidos velhos
Nos graves concelhos,
Curvadas as frontes,
Escutam-lhe a voz!

IV

Domina, se vive;
Se morre, descansa
Dos seus na lembrança,
Na voz do porvir.
Não cures da vida!
Sê bravo, sê forte!
Não fujas da morte,
Que a morte há de vir!

V

E pois que és meu filho,
Meus brios reveste;
Tamoio nasceste,
Valente serás.
Sê duro guerreiro,
Robusto, fragueiro,
Brasão dos tamoios
Na guerra e na paz.

VI

Teu grito de guerra
Retumbe aos ouvidos
D'imigos transidos
Por vil comoção;
E tremam d'ouvi-lo
Pior que o sibilo
Das setas ligeiras,
Pior que o trovão.

VII

E a mão nessas tabas,
Querendo calados
Os filhos criados
Na lei do terror;
Teu nome lhes diga,
Que a gente inimiga
Talvez não escute
Sem pranto, sem dor!

VIII

Porém se a fortuna,
Traindo teus passos,
Te arroja nos laços
Do inimigo falaz!
Na última hora
Teus feitos memora,
Tranqüilo nos gestos,
Impávido, audaz.

IX

E cai como o tronco
Do raio tocado,
Partido, rojado
Por larga extensão;
Assim morre o forte!
No passo da morte
Triunfa, conquista
Mais alto brasão.

X

As armas ensaia,
Penetra na vida:
Pesada ou querida,
Viver é lutar.
Se o duro combate
Os fracos abate,
Aos fortes, aos bravos,
Só pode exaltar.


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 19 de abril de 2020

MARABÁ (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)

MARABÁ

Gonçalves Dias

 

Eu vivo sozinha; ninguém me procura!
Acaso feitura
Não sou de Tupá?
Se algum dentre os homens de mim não se esconde,
— Tu és, me responde,
— Tu és Marabá!

— Meus olhos são garços, são cor das safiras,
— Têm luz das estrelas, têm meigo brilhar;
— Imitam as nuvens de um céu anilado,
— As cores imitam das vagas do mar!

Se algum dos guerreiros não foge a meus passos:
"Teus olhos são garços,
Responde anojado; "mas és Marabá:
"Quero antes uns olhos bem pretos, luzentes,
"Uns olhos fulgentes,
"Bem pretos, retintos, não cor d'anajá!"

— É alvo meu rosto da alvura dos lírios,
— Da cor das areias batidas do mar;
— As aves mais brancas, as conchas mais puras
— Não têm mais alvura, não têm mais brilhar. —

Se ainda me escuta meus agros delírios:
"És alva de lírios",
Sorrindo responde; "mas és Marabá:
"Quero antes um rosto de jambo corado,
"Um rosto crestado
"Do sol do deserto, não flor de cajá."

— Meu colo de leve se encurva engraçado,
— Como hástea pendente do cáctus em flor;
— Mimosa, indolente, resvalo no prado,
— Como um soluçado suspiro de amor! —

"Eu amo a estatura flexível, ligeira,
"Qual duma palmeira,
Então me responde; "tu és Marabá:
"Quero antes o colo da ema orgulhosa,
"Que pisa vaidosa,
"Que as flóreas campinas governa, onde está."

— Meus loiros cabelos em ondas se anelam,
— O oiro mais puro não tem seu fulgor;
— As brisas nos bosques de os ver se enamoram,
— De os ver tão formosos como um beija-flor!

Mas eles respondem: "Teus longos cabelos,
"São loiros, são belos,
"Mas são anelados; tu és Marabá:
"Quero antes cabelos, bem lisos, corridos,
"Cabelos compridos,
"Não cor d'oiro fino, nem cor d'anajá."

E as doces palavras que eu tinha cá dentro
A quem nas direi?
O ramo d'acácia na fronte de um homem
Jamais cingirei:

Jamais um guerreiro da minha arazoia
Me desprenderá:
Eu vivo sozinha, chorando mesquinha,
Que sou Marabá!


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 12 de abril de 2020

I-JUCA-PIRAMA (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)

I-JUCA-PIRAMA

Gonçalves Dias

I


No meio das tabas de amenos verdores,
Cercadas de troncos — cobertos de flores,
Alteiam-se os tetos d'altiva nação;
São muitos seus filhos, nos ânimos fortes,
Temíveis na guerra, que em densas coortes
Assombram das matas a imensa extensão.


São rudos, severos, sedentos de glória,
Já prélios incitam, já cantam vitória,
Já meigos atendem à voz do cantor:
São todos Timbiras, guerreiros valentes!
Seu nome lá voa na boca das gentes,
Condão de prodígios, de glória e terror!


As tribos vizinhas, sem forças, sem brio,
As armas quebrando, lançando-as ao rio,
O incenso aspiraram dos seus maracás:
Medrosos das guerras que os fortes acendem,
Custosos tributos ignavos lá rendem,
Aos duros guerreiros sujeitos na paz.


No centro da taba se estende um terreiro,
Onde ora se aduna o concílio guerreiro
Da tribo senhora, das tribos servis:
Os velhos sentados praticam d'outrora,
E os moços inquietos, que a festa enamora,
Derramam-se em torno dum índio infeliz.


Quem é? — ninguém sabe: seu nome é ignoto,
Sua tribo não diz: — de um povo remoto
Descende por certo — dum povo gentil;
Assim lá na Grécia ao escravo insulano
Tornavam distinto do vil muçulmano
As linhas corretas do nobre perfil.


Por casos de guerra caiu prisioneiro
Nas mãos dos Timbiras: — no extenso terreiro
Assola-se o teto, que o teve em prisão;
Convidam-se as tribos dos seus arredores,
Cuidosos se incumbem do vaso das cores,
Dos vários aprestos da honrosa função.


Acerva-se a lenha da vasta fogueira,
Entesa-se a corda de embira ligeira,
Adorna-se a maça com penas gentis:
A custo, entre as vagas do povo da aldeia
Caminha o Timbira, que a turba rodeia,
Garboso nas plumas de vário matiz.
Entanto as mulheres com leda trigança,
Afeitas ao rito da bárbara usança,
O índio já querem cativo acabar:
A coma lhe cortam, os membros lhe tingem,
Brilhante enduape no corpo lhe cingem,
Sombreia-lhe a fronte gentil canitar.



II


Em fundos vasos d'alvacenta argila
ferve o cauim;
Enchem-se as copas, o prazer começa,
reina o festim.
O prisioneiro, cuja morte anseiam,
sentado está,
O prisioneiro, que outro sol no ocaso
jamais verá!


A dura corda, que lhe enlaça o colo,
mostra-lhe o fim
Da vida escura, que será mais breve
do que o festim!


Contudo os olhos d'ignóbil pranto
secos estão;
Mudos os lábios não descerram queixas
do coração.
Mas um martírio, que encobrir não pode,
em rugas faz
A mentirosa placidez do rosto
na fronte audaz!


Que tens, guerreiro? Que temor te assalta
no passo horrendo?
Honra das tabas que nascer te viram,
folga morrendo.


Folga morrendo; porque além dos Andes
revive o forte,
Que soube ufano contrastar os medos
da fria morte.


Rasteira grama, exposta ao sol, à chuva,
lá murcha e pende:
Somente ao tronco, que devassa os ares,
o raio ofende!


Que foi? Tupã mandou que ele caísse,
como viveu;
E o caçador que o avistou prostrado
esmoreceu!


Que temes, ó guerreiro? Além dos Andes
revive o forte,
Que soube ufano contrastar os medos
da fria morte.



III


Em larga roda de novéis guerreiros
Ledo caminha o festival Timbira,
A quem do sacrifício cabe as honras.
Na fronte o canitar sacode em ondas,
O enduape na cinta se embalança,
Na destra mão sopesa a ivirapeme,
Orgulhoso e pujante. — Ao menor passo


Colar d'alvo marfim, insígnia d'honra,
Que lhe orna o colo e o peito, ruge e freme,
Como que por feitiço não sabido
Encantadas ali as almas grandes
Dos vencidos Tapuias, inda chorem
Serem glória e brasão d'imigos feros.


“Eis-me aqui, diz ao índio prisioneiro;
“Pois que fraco, e sem tribo, e sem família,
“As nossas matas devassaste ousado,
“Morrerás morte vil da mão de um forte.”


Vem a terreiro o mísero contrário;
Do colo à cinta a muçurana desce:
“Dize-nos quem és, teus feitos canta,
“Ou se mais te apraz, defende-te.” Começa
O índio, que ao redor derrama os olhos,
Com triste voz que os ânimos comove.



IV


Meu canto de morte,
Guerreiros, ouvi:
Sou filho das selvas,
Nas selvas cresci;
Guerreiros, descendo
Da tribo Tupi.


Da tribo pujante,
Que agora anda errante
Por fado inconstante,
Guerreiros, nasci;
Sou bravo, sou forte,
Sou filho do Norte;
Meu canto de morte,
Guerreiros, ouvi.


Já vi cruas brigas,
De tribos imigas,
E as duras fadigas
Da guerra provei;
Nas ondas mendaces
Senti pelas faces
Os silvos fugaces
Dos ventos que amei.


Andei longes terras,
Lidei cruas guerras,
Vaguei pelas serras
Dos vis Aimorés;
Vi lutas de bravos,
Vi fortes — escravos!
De estranhos ignavos
Calcados aos pés.


E os campos talados,
E os arcos quebrados,
E os piagas coitados
Já sem maracás;
E os meigos cantores,
Servindo a senhores,
Que vinham traidores,
Com mostras de paz


Aos golpes do imigo
Meu último amigo,
Sem lar, sem abrigo
Caiu junto a mi!
Com plácido rosto,
Sereno e composto,
O acerbo desgosto
Comigo sofri.


Meu pai a meu lado
Já cego e quebrado,
De penas ralado,
Firmava-se em mi:
Nós ambos, mesquinhos,
Por ínvios caminhos,
Cobertos d'espinhos
Chegamos aqui!


O velho no entanto
Sofrendo já tanto
De fome e quebranto,
Só qu'ria morrer!
Não mais me contenho,
Nas matas me embrenho,
Das frechas que tenho
Me quero valer.


Então, forasteiro,
Caí prisioneiro
De um troço guerreiro
Com que me encontrei:
O cru dessossego
Do pai fraco e cego,
Enquanto não chego,
Qual seja — dizei!


Eu era o seu guia
Na noite sombria,
A só alegria
Que Deus lhe deixou:
Em mim se apoiava,
Em mim se firmava,
Em mim descansava,
Que filho lhe sou.


Ao velho coitado
De penas ralado,
Já cego e quebrado,
Que resta? - Morrer.
Enquanto descreve
O giro tão breve
Da vida que teve,
Deixa-me viver!


Não vil, não ignavo,
Mas forte, mas bravo,
Serei vosso escravo:
Aqui virei ter.
Guerreiros, não coro
Do pranto que choro;
Se a vida deploro,
Também sei morrer.



V


Soltai-o! — diz o chefe. Pasma a turba;
Os guerreiros murmuram: mal ouviram,
Nem pode nunca um chefe dar tal ordem!
Brada segunda vez com voz mais alta,
Afrouxam-se as prisões, a embira cede,
A custo, sim; mas cede: o estranho é salvo,
— Timbira, diz o índio enternecido,
Solto apenas dos nós que o seguravam:
És um guerreiro ilustre, um grande chefe,
Tu que assim do meu mal te comoveste,
Nem sofres que, transposta a natureza,
Com olhos onde a luz já não cintila,
Chore a morte do filho o pai cansado,
Que somente por seu na voz conhece.
— És livre; parte.
— E voltarei.
— Debalde.


— Sim, voltarei, morto meu pai.


— Não voltes!


É bem feliz, se existe, em que não veja,
Que filho tem, qual chora: és livre; parte!
— Acaso tu supões que me acobardo,
Que receio morrer!
— És livre; parte!


— Ora não partirei; quero provar-te
Que um filho dos Tupis vive com honra,
E com honra maior, se acaso vencem,
Da morte o passo glorioso afronta.


— Mentiste, que um Tupi não chora nunca,
E tu choraste!... parte; não queremos
Com carne vil enfraquecer os fortes.
Sobresteve o Tupi: - arfando em ondas
O rebater do coração se ouvia
Precipite. - Do rosto afogueado
Gélidas bagas de suor corriam:
Talvez que o assaltava um pensamento...
Já não... que na enlutada fantasia,
Um pesar, um martírio ao mesmo tempo,
Do velho pai a moribunda imagem
Quase bradar-lhe ouvia: - Ingrato! ingrato!
Curvado o colo, taciturno e frio,
Espectro d'homem, penetrou no bosque!



VI


— Filho meu, onde estás?


— Ao vosso lado;
Aqui vos trago provisões: tomai-as,
As vossas forças restaurar perdidas,
E a caminho, e já!


— Tardaste muito!


Não era nado o sol, quando partiste,
E frouxo o seu calor já sinto agora!


— Sim, demorei-me a divagar sem rumo,
Perdi-me nestas matas intrincadas,
Reaviei-me e tornei; mas urge o tempo;
Convém partir, e já!


— Que novos males


Nos resta de sofrer? — que novas dores,
No outro fado pior Tupã nos guarda?
— As setas da aflição já se esgotaram,
Nem para novo golpe espaço intacto
Em nossos corpos resta.


— Mas tu tremes


— Talvez do afã da caça...


— Oh filho caro


Um quê misterioso aqui me fala,
Aqui no coração; piedosa fraude
Será por certo, que não mentes nunca!
Não conheces temor, e agora temes?
Vejo e sei: é Tupã que nos aflige,
E contra o seu querer não valem brios.
Partamos!... — E com mão trêmula, incerta
Procura o filho, tateando as trevas
Da sua noite lúgubre e medonha.
Sentindo o acre odor das frescas tintas,
Uma idéia fatal correu-lhe à mente...
Do filho os membros gélidos apalpa,
E a dolorosa maciez das plumas
Conhece estremecendo: — foge, volta,
encontra sob as mãos o duro crânio,
Despido então do natural ornato!...
Recua aflito e pávido, cobrindo
Às mãos ambas os olhos fulminados,
Como que teme ainda o triste velho
De ver, não mais cruel, porém mais clara,
Daquele exício grande a imagem viva
Ante os olhos do corpo afigurada.
Não era que a verdade conhecesse
Inteira e tão cruel qual tinha sido;
Mas que funesto azar correra o filho,
Ele o via; ele o tinha ali presente;
E era de repetir-se a cada instante.
A dor passada, a previsão futura
E o presente tão negro, ali os tinha;
Ali no coração se concentrava,
Era num ponto só, mas era a morte!


— Tu prisioneiro, tu?


— Vós o dissesses.


— Dos índios?


— Sim.


— De que nação?


— Timbiras


— E a muçurana funeral rompeste,
Dos falsos manitôs quebraste a maça...
— Nada fiz... aqui estou.


— Nada! —


Emudecem;


Curto instante depois prossegue o velho:
— Tu és valente, bem o sei; confesso,
Fizeste-o, certo, ou já não foras vivo!
— Nada fiz; mas souberam da existência
De um pobre velho, que em mim só vivia...
— E depois?...


—Eis-me aqui.


—Fica essa taba?


— Na direção do sol, quando transmonta.


— Longe?


— Não muito.


— Tens razão: partamos.


— E quereis ir?...


— Na direção do ocaso.



VII


“Por amor de um triste velho,
Que ao termo fatal já chega,
Vós, guerreiros, concedesses
A vida a um prisioneiro.
Ação tão nobre vos honra,
Nem tão alta cortesia
Vi eu jamais praticada
Entre os Tupis — e mas foram
Senhores em gentileza.


“Eu porém nunca vencido,
Nem os combates por armas
Nem por nobreza nos atos;
Aqui venho, e o filho trago.
Vós o dizeis prisioneiro,
Seja assim como dizeis;
Manda! vir a lenha, o fogo,
A maça do sacrifício
E a muçurana ligeira:
Em tudo o rito se cumpra!
E quando eu for só na terra,
Certo acharei entre os vossos,
Que tão gentis se revelam,
Alguém que meus passos guie;
Alguém, que vendo o meu peito
Coberto de cicatrizes,
Tomando a vez de meu filho,
De haver-me por pai se ufane!”


Mas o chefe dos Timbiras,
Os sobrolhos encrespando,
Ao velho Tupi guerreiro
Responde com torvo acento:
— Nada farei do que dizes:
É teu filho imbele e fraco!
Aviltaria o triunfo
Da mais guerreira das tribos
Derramar seu ignóbil sangue:
Ele chorou de cobarde;
Nós outros, fortes Timbiras,
Só de heróis fazemos pasto. —
Do velho Tupi guerreiro
A surda voz na garganta
Faz ouvir uns sons confusos,
Como os rugidos de um tigre,
Que pouco a pouco se assanha!



VIII


“Tu choraste em presença da morte?
Na presença de estranhos choraste?
Não descende o cobarde do forte;
Pois choraste, meu filho não és!
Possas tu, descendente maldito
De uma tribo de nobres guerreiros,
Implorando cruéis forasteiros,
Seres presa de vis Aimorés.


“Possas tu, isolado na terra,
Sem arrimo e sem pátria vagando,
Rejeitado da morte na guerra,
Rejeitado dos homens na paz,
Ser das gentes o espectro execrado;
Não encontres amor nas mulheres,
Teus amigos, se amigos tiveres,
Tenham alma inconstante e falaz!


“Não encontres doçura no dia,
Nem as cores da aurora te ameiguem,
E entre as larvas da noite sombria
Nunca possas descanso gozar:
Não encontres um tronco, uma pedra,
Posta ao sol, posta às chuvas e aos ventos,
Padecendo os maiores tormentos,
Onde possas a fronte pousar.


“Que a teus passos a relva se torre;
Murchem prados, a flor desfaleça,
E o regato que límpido corre,
Mais te acenda o vesano furor;
Suas águas depressa se tornem,
Ao contacto dos lábios sedentos,
Lago impuro de vermes nojentos,
Donde festas como asco e terror!


“Sempre o céu, como um teto incendido,
Creste e punja teus membros malditos
E o oceano de pó denegrido
Seja a terra ao ignavo tupi!
Miserável, faminto, sedento,
Manitôs lhe não falem nos sonhos,
E do horror os espectros medonhos
Traga sempre o cobarde após si.


“Um amigo não tenhas piedoso
Que o teu corpo na terra embalsame,
Pondo em vaso d'argila cuidoso
Arco e frecha e tacape a teus pés!
Sé maldito, e sozinho na terra;
Pois que a tanta vileza chegaste,
Que em presença da morte choraste,
Tu, cobarde, meu filho não és."



IX


Isto dizendo, o meserando velho
A quem Tupã tamanha dor, tal fado
Já nos confins da vida reservara,
Vai com trêmulo pé, com as mãos já frias
Da sua noite escura as densas trevas
Palpando. - Alarma! alarma! - O velho para.
O grito que escutou é voz do filho,
Voz de guerra que ouviu já tantas vezes
Noutra quadra melhor. - Alarma! alarma!
— Esse momento só vale apagar-lhe
Os tão compridos transes, as angústias,
Que o frio coração lhe atormentaram
De guerreiro e de pai: - vale, e de sobra.
Ele que em tanta dor se contivera,
Tomado pelo súbito contraste,
Desfaz-se agora em pranto copioso,
Que o exaurido coração remoça.


A taba se alborota, os golpes descem,
Gritos, imprecações profundas soam,
Emaranhada a multidão braveja,
Revolve-se, enovela-se confusa,
E mais revolta em mor furor se acende.
E os sons dos golpes que incessantes fervem.
Vozes, gemidos, estertor de morte
Vão longe pelas ermas serranias
Da humana tempestade propagando
Quantas vagas de povo enfurecido
Contra um rochedo vivo se quebravam.


Era ele, o Tupi; nem fora justo
Que a fama dos Tupis - o nome, a glória,
Aturado labor de tantos anos,
Derradeiro brasão da raça extinta,
De um jacto e por um só se aniquilasse.


— Basta! clama o chefe dos Timbiras,
— Basta, guerreiro ilustre! assaz lutaste,
E para o sacrifício é mister forças. -
O guerreiro parou, caiu nos braços
Do velho pai, que o cinge contra o peito,
Com lágrimas de júbilo bradando:
“Este, sim, que é meu filho muito amado!


“E pois que o acho enfim, qual sempre o tive,
“Corram livres as lágrimas que choro,
“Estas lágrimas, sim, que não desonram.”



X


Um velho Timbira, coberto de glória,
guardou a memória
Do moço guerreiro, do velho Tupi!


E à noite, nas tabas, se alguém duvidava
do que ele contava,
Dizia prudente: - “Meninos, eu vi!
“Eu vi o brioso no largo terreiro
cantar prisioneiro
Seu canto de morte, que nunca esqueci:
Valente, como era, chorou sem ter pejo;
parece que o vejo,
Que o tenho nest'hora diante de mim.


“Eu disse comigo: Que infâmia d’escravo!
Pois não, era um bravo;
Valente e brioso, como ele, não vi!
E à fé que vos digo: parece-me encanto
Que quem chorou tanto,
Tivesse a coragem que tinha o Tupi!"


Assim o Timbira, coberto de glória,
guardava a memória
Do moço guerreiro, do velho Tupi.
E à noite nas tabas, se alguém duvidava
do que ele contava,
Tomava prudente: "Meninos, eu vi!”


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 05 de abril de 2020

LEITO DE FOLHAS VERDES (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)

LEITO DE FOLHAS VERDES

Gonçalves Dias

 

Por que tardas, Jatir, que tanto a custo
À voz do meu amor moves teus passos?
Da noite a viração, movendo as folhas,
Já nos cimos do bosque rumoreja.

Eu, sob a copa da mangueira altiva
Nosso leito gentil cobri zelosa
Com mimoso tapiz de folhas brandas,
Onde o frouxo luar brinca entre flores.

Do tamarindo a flor abriu-se, há pouco,
Já solta o bogari mais doce aroma!
Como prece de amor, como estas preces,
No silêncio da noite o bosque exala.

Brilha a lua no céu, brilham estrelas,
Correm perfumes no correr da brisa,
A cujo influxo mágico respira-se
Um quebranto de amor, melhor que a vida!

A flor que desabrocha ao romper d`alva
Um só giro do sol, não mais, vegeta:
Eu sou aquela flor que espero ainda
Doce raio do sol que me dê vida.

Sejam vales ou montes, lago ou terra,
Onde quer que tu vás, ou dia ou noite,
Vai seguindo após ti meu pensamento;
Outro amor nunca tive: és meu, sou tua!

Meus olhos outros olhos nunca viram,
Não sentiram meus lábios outros lábios,
Nem outras mãos, Jatir, que não as tuas
A arazóia na cinta me apertaram

Do tamarindo a flor jaz entreaberta,
Já solta o bogari mais doce aroma;
Também meu coração, como estas flores,
Melhor perfume ao pé da noite exala!

Não me escutas, Jatir! nem tardo acodes
À voz do meu amor, que em vão te chama!
Tupã! lá rompe o sol! do leito inútil
A brisa da manhã sacuda as folhas!

 


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 29 de março de 2020

O GIGANTE DE PEDRA (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)

O GIGANTE DE PEDRA

Gonçalves Dias

 

O guerriers! ne laissez pas ma dépouille au corbeau!
Ensevelissez-moi parmi des monts sublimes,
Afin que l'étranger cherche, en voyant leurs cimes,
Quelle montagne est mon tombeau!
V.Hugo.Le Géant.

I

Gigante orgulhoso, de fero semblante,
Num leito de pedra lá jaz a dormir!
Em duro granito repousa o gigante,
Que os raios somente puderam fundir.

Dormido atalaia no serro empinado
Devera cuidoso, sanhudo velar;
O raio passando o deixou fulminado,
E à aurora, que surge, não há de acordar!

Co'os braços no peito cruzados nervosos,
Mais alto que as nuvens, os céus a encarar,
Seu corpo se estende por montes fragosos,
Seus pés sobranceiros se elevam do mar!

De lavas ardentes seus membros fundidos
Avultam imensos: só Deus poderá
Rebelde lançá-lo dos montes erguidos,
Curvados ao peso, que sobre lhe 'stá.

E o céu, e as estrelas e os astros fulgentes
São velas, são tochas, são vivos brandões,
E o branco sudário são névoas algentes,
E o crepe, que o cobre, são negros bulcões.

Da noite, que surge, no manto fagueiro
Quis Deus que se erguesse, de junto a seus pés,
A cruz sempre viva do sol no cruzeiro,
Deitada nos braços do eterno Moisés.

Perfumam-no odores que as flores exalam,
Bafejam-no carmes de um hino de amor
Dos homens, dos brutos, das nuvens que estalam,
Dos ventos que rugem, do mar em furor.

E lá na montanha, deitado dormido
Campeia o gigante, — nem pode acordar!
Cruzados os braços de ferro fundido,
A fronte nas nuvens, os pés sobre o mar!

II

Banha o sol os horizontes,
Trepa os castelos dos céus,
Aclara serras e fontes,
Vigia os domínios seus:
Já descai p'ra o ocidente,
E em globo de fogo ardente
Vai-se no mar esconder;
E lá campeia o gigante,
Sem destorcer o semblante,
Imóvel, mudo, a jazer!

Vem a noite após o dia,
Vem o silêncio, o frescor,
E a brisa leve e macia,
Que lhe suspira ao redor;

E da noite entre os negrores,
Das estrelas os fulgores
Brilham na face do mar:
Brilha a lua cintilante,
E sempre mudo o gigante,
Imóvel, sem acordar!

Depois outro sol desponta,
E outra noite também,
Outra lua que aos céus monta,
Outro sol que após lhe vem:
Após um dia outro dia,
Noite após noite sombria,
Após a luz o bulcão,
E sempre o duro gigante,
Imóvel, mudo, constante
Na calma e na cerração!

Corre o tempo fugidio,
Vem das águas a estação,
Após ela o quente estio;
E na calma do verão
Crescem folhas, vingam flores,
Entre galas e verdores
Sazonam-se frutos mil;
Cobrem-se os prados de relva,
Murmura o vento na selva,
Azulam-se os céus de anil!

Tornam prados a despir-se,
Tornam flores a murchar,
Tornam de novo a vestir-se,
Tornam depois a secar;
E como gota filtrada
De uma abóbada escavada
Sempre, incessante a cair,
Tombam as horas e os dias,
Como fantasmas, sombrias,
Nos abismos do porvir!

E no féretro de montes
Inconcusso, imóvel, fito,
Escurece os horizontes
O gigante de granito.
Com soberba indiferença
Sente extinta a antiga crença
Dos Tamoios, dos Pajés;
Nem vê que duras desgraças,
Que lutas de novas raças
Se lhe atropelam aos pés!

III

E lá na montanha deitado dormido
Campeia o gigante! — nem pode acordar!
Cruzados os braços de ferro fundido,
A fronte nas nuvens, e os pés sobre o mar!...

IV

Viu primeiro os íncolas
Robustos, das florestas,
Batendo os arcos rígidos,
Traçando homéreas festas,
À luz dos fogos rútilos,
Aos sons do murmuré!
E em Guanabara esplêndida
As danças dos guerreiros,
E o guau cadente e vário
Dos moços prazenteiros,
E os cantos da vitória
Tangidos no boré.

E das igaras côncavas
A frota aparelhada,
Vistosa e formosíssima
Cortando a undosa estrada,
Sabendo, mas que frágeis,
Os ventos contrastar:
E a caça leda e rápida

Por serras, por devesas,
E os cantos da janúbia
Junto às lenhas acesas,
Quando o tapuia mísero
Seus feitos vai narrar!

E o germe da discórdia
Crescendo em duras brigas,
Ceifando os brios rústicos
Das tribos sempre amigas,
— Tamoi a raça antígua,
Feroz Tupinambá.
Lá vai a gente impróvida,
Nação vencida, imbele,
Buscando as matas ínvias,
Donde outra tribo a expele;
Jaz o pajé sem glória,
Sem glória o maracá.

Depois em naus flamívomas
Um troço ardido e forte,
Cobrindo os campos úmidos
De fumo, e sangue, e morte,
Traz dos reparos hórridos
D'altíssimo pavês:
E do sangrento pélago
Em míseras ruínas
Surgir galhardas, límpidas
As portuguesas quinas,
Murchos os lises cândidos
Do impróvido gaulês!

V

Mudaram-se os tempos e a face da terra,
Cidades alastram o antigo paul;
Mas inda o gigante, que dorme na serra,
Se abraça ao imenso cruzeiro do sul.

Nas duras montanhas os membros gelados,
Talhados a golpes de ignoto buril,
Descansa, ó gigante, que encerras os fados,
Que os términos guardas do vasto Brasil.

Porém se algum dia fortuna inconstante
Puder-nos a crença e a pátria acabar,
Arroja-te às ondas, o duro gigante,
Inunda estes montes, desloca este mar!


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 22 de março de 2020

TABIRA - POESIA AMERICANA (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)

 

 

TABIRA

POESIA AMERICANA

Gonçalves Dias

 

    I

 

É Tabira guerreiro valente,

Cumpre as partes de chefe e soldado;

É caudilho de tribo potente,

Tobajaras – o povo senhor!

Ninguém mais observa o tratado

Ninguém menos de p’rigos se aterra,

Ninguém corre aos acenos da guerra

Mais depressa que o bom lidador!

 

   II

 

Seu viver é batalha aturada,

Dos contrários a traça aventando;

É dispor a cilada arriscada,

Onde o imigo se venha meter!

Levam noites com ele sonhado

Potiguares, que o viram de perto;

Potiguares, que asselam por certo

Que Tabira só sabe vencer!

 

   III

 

Mil enganos lhe tem já tecido,

Mil ciladas lhe tem preparado;

Mas Tabira, fatal, destemido,

Tem feitiço, ou encanto, ou condão!

Sempre o plano da guerra é frustrado,

Sempre o bravo fronteiro aparece,

Que os enganos cruéis lhes destece,

Face a face, arco e setas na mão.

 

   IV

 

Já dos Lusos o trôço apoucado,

Paz firmando com ele traidora,

Dorme ileso na fé do tratado,

Que Tabira é valente e leal.

Sem Tabira do Lusos que fora?

Sem Tabira que os guarda e defende,

Que das pazes talvez se arrepende

Já feridas outrora em seu mal!

 

   V

 

Chefe stulto dum povo de bravos,

Mas que os piagas vitórias te fadem,

Hão de os teus, miserandos escravos,

Tais triunfos um dia chorar!

Caraíbas tais feitos aplaudem,

Mas sorrindo vos forjam cadeias,

E pesadas algemas, e peias,

Que traidores vos hão-de lançar!

 

   VI

 

Chefe sólido, insano, imprudente,

Sangue e vida dos teus malbaratas?!

Míngua as forças da tribo potente,

Vencedora da raça Tupi!

Hão de os teus, acossados nas matas,

Não podendo viver como escravos,

Dar o resto do sangue por ti!

 

   VII

 

Vivem homens de pel’ cor da noite

Neste solo, que a vida embeleza;

Podem, servos, debaixo do açoite,

Nênias tristes da pátria cantar!

Mas o índio que a vida só preza

Por amor dos combates, e festas

Dos triunfos sangrentos, e sestas

Resguardadas do sol no palmar;

 

   VIII

 

Ociosa. Indolente, vadio,

Ou ativo, incansável, fragueiro;

Já nas matas, no bosque erradio,

Já disposto a lutar, a vencer;

Ama as selvas, e o vento palreiro,

Ama a glória, ama a vida; mas antes

Que viver amargados instante,

Quer e pode e bem sabe morrer!

 

   IX

 

Eia, avante! Ó caudilho valente!

Potiguares lá vem denodados;

Tão cerrado concurso de gente

Ninguém viu nestas partes assim!

Poucos são, mas briosos soldados;

Não são homens de aspecto jocundo!

Restos são, mas são rstos dum mundo;

Poucos são, mas soldados por fim!

 

   X

 

Os seus velhos disseram consigo,

Discutindo os motivos da guerra:

“É Tabira – cruel, inimigo,

Já nem crê, renegado, em Tupã!

Pés robustos lá batem na terra,

Pó ligeiro se expande nos ares:

Era noite! Milhar de milhares

São armados, mal rompe a manhã.

 

   XI

 

Vem soberbos, - o sol luz apenas!

Confiados, galardos, lustrosos,

Vem bizarros nas armas, nas penas,

Atrevidos no acento e na voz!

Um dentre eles, dos mais orgulhosos,

Sobe à pressa nas aspas dum monte,

Dali brada, postado defronte

De Tabira – com jeito feroz:

 

   XII

 

“Ó TabiraTabiraaqui somos

A provar nossas forças contigo;

Dizes tu que vencidos já fomos!

Di0lo tu, não no diz mais ninguém.

Ora eu só a vós todos vos digo:

Sois cobardes, irmão de Tabira!

Propagastes solene mentira,

Que vencer não sabemos tão bem.

 

   XIII

 

“Para o vosso terreiro vos chamo,

Contra mim vinde todos, - sou forte:

Acorrei ao meu nobre reclamo!

Aqui sou, nem me parto daqui!

Vinde todos em densa coorte:

Travaremos combate sangrento,

Mas por fim do triunfo cruento

Direis vós, se fui eu quem menti.”

 

   XIV

 

Disse o arauto: eis a turba ufanosa

Lhe responde, arco e setas brandindo,

Pés batidos, voz alta e ruidosa:

- Bem falado, ó guerreiro, mui bem!

Assim é; mas Tabira rugindo,

Ressentindo de ofensas tamanhas,

O rancor mal encobre das sanhas,

Que não leva no sangue de alguém.

 

   XV

 

Raso outeiro ali perto se of’rece:

Vinga-o prestes, hardido, açodado!...

Como leiva de pálida messe,

Já madura, tremendo no pé;

Todo o campo descobre ocupado

Por guerreiros, - no extremo horizonte

Não distingue nas faldas do monte,

O que é gente, o que gente não é.

 

   XVI

 

Não se abala o preclaro guerreiro,

Do que vê seu valor não fraqueia;

Diz consigo: “Um só golpe certeiro

Vai de todo esta raça apagar!

Juntos são, mas são meus!” – Já vozeia;

Logo os seus lhe respondem gritando,

Tais rugidos, tais roncos soltando

Que aos seus próprios deveram turbar!

 

   XVII

 

Diz a fama que então de assustadas

Muitas aves que o espaço cruzavam,

De pavor subitâneo tomadas,

Descaíam pasmadas no chão:

Já com silvos e atitos voavam

Muitas outras, que o triste gemido

No conflito, abafado e sumido,

Talvez deram, - mas fraco, mas vão!

 

   XVIII

 

Eis que os arcos de longe se encurvam,

Eis que as setas aladas já voam,

Eis que os ares se cobrem, se turvam,

De flechados, de surdos que são.

Novos gritos mais altos reboam,

Entre as hostes se apaga o terreno,

Já tornado apoucado e pequeno,

Já coberto de mortos o chão!

 

   XIX

 

Peito a peito encontrados afoutos,

Braço a braço travados briosos,

Fervem todos inquietos, revoltos,

Qu’indecisa a vitória inda está.

Todos movem tacapes pesados;

Qual resvala, qual todo se enterra

No imigo que morde na terra,

Que sepulcro talvez lhe será.

 

   XX

 

“Mas Tabira! Tabira! Que é dele?

“Onde agora se esconde o pujante?”

- Não no vedes?! – Tabira é aquele

-Que sangrento, impiedoso lá vai!

-Vê-lo-eis andar sempre adiante,

-Larga esteira de mortos deixando

- Trás de si, como o raio cortando

- Ramos, troncos do bosque, onde cai. –

 

   XXI

 

“Foge! Foge! Leal Tobajara;

“Quantos arcos que em ti fazem mira?!”

- Muitos são; porem medos encara

- Face a face, quem é como eu sou! –

Muitas setas cravejam Tabira:

Belo quadro! – mas vê-lo era horrível!

Porco-espim que sangrado e terrível

Duras cerdas raivando espetou!

 

   XXII

 

Tem um olho dum tiro flechado!

Quebra as setas que os passos lh’impedem

E do rosto, em seu sangue lavado,

Flecha e olho arrebata sem dó!

E aos imigos que o campo não cedem,

Olho e flecha mostrando extorquidos,

Diz, em voz que mais eram rugidos:

Basta, vis, por vencer-vos um só!

 

   XXIII

 

E com fúria tão grande arremete,

Com despego tão nobre da vida;

Tantos golpes, tão fundos repete,

Que senhores do campo já são!

Potiguares lá vão de fugida,

Inda à fera mais torva e bravia

Disputando guarida dum dia

No mais fundo do vasto sertão!

 

   XXIV

 

Potiguares, que a aurora risonha

Viu nação numerosa e potente,

Não já povo na tarde medonha,

Mas só restos dum povo infeliz!

Insepultos na terra inclemente

Muitos dormem; mas há quem lhinveja

Essa morte do bravo em peleja,

 Uem a vida do escravo maldiz!

 

   XV

 

“Este o conto que os Índios contavam,

“A desoras, na triste senzala;

“Outros homens ali descansavam,

“Negra pel1; mas escravos tão bem.

“Não choravam; somente na fala

“Era um quê da tristeza que mora

“Dentro d’alma do homem que chora

“O passado e o presente que tem!"


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 15 de março de 2020

TABIRA - DEDICATÓRIA AOS PERNAMBUCANOS (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)

 

TABIRA

DEDICATÓRIA OS PERNAMBUCANOS

 

 

Salve, terra formosa, ó Pernambuco,

Veneza Americana, transportada

 Boiante sobre as aguas!

Amigo gênio te formou na Europa,

Gênio melhor te despertou sorrindo

 À sombra dos coqueiros.

 

Salve, risonha terra! São teus montes

Arrelvados, inúmeros teus vales,

 Cujas veias são rios!

Doces teus prados, tuas várzeas férteis,

Onde reluz o fruto sazonado

 Entre o matiz das flores!

 

Outros, pátria d’heróis, teus feitos cantem,

a bela história de colônia exaltem,

 E os nomes forasteiros;

Não eu, que nada almejo senão ver-vos,

Tu e Olinda, ambas vós, co’os olhos longos,

 Espraiados no mar!

 

Ambas vós, sobre tudo americanas,

Doces flores dos mares de Colombo,

 Filhas do norte ardente!

Virgens irmãs, que vão de mãos travadas

Sorrirem d’inocência à própria imagem,

 Que luz em claro arroio.

 

Andei, por vós somente, em vossas matas,

Colhendo agrestes flores na floresta,

 Não respiradas nunca,

Singelas, como vós, - como vós, belas,

Enastrei-as em forma de grinalda

 Fino, extremoso amante!

 

Não vivem muito as flores: são versos

Efêmeros como elas; cor sem brilho,

 Ou perfume apagado,

Ou tino fraco d’ave matutina,

Ou eco de um baixel que passa ao longe

 Com descante saudoso.


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 08 de março de 2020

DEPRECAÇÃO (POEM DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)

DEPRECAÇÃO

Gonçalves Dias

 

Tupã, ó Deus grande! cobriste o teu rosto
Com denso velâmen de penas gentis;
E jazem teus filhos clamando vingança
Dos bens que lhes deste da perda infeliz!

Tupã, ó Deus grande! teu rosto descobre:
Bastante sofremos com tua vingança!
Já lágrimas tristes choraram teus filhos,
Teus filhos que choram tão grande mudança.

Anhangá impiedoso nos trouxe de longe
Os homens que o raio manejam cruentos,
Que vivem sem pátria, que vagam sem tino
Trás do ouro correndo, voraces, sedentos.

E a terra em que pisam, e os campos e os rios
Que assaltam, são nossos; tu és nosso Deus:
Por que lhes concedes tão alta pujança,
Se os raios de morte, que vibram, são teus?

Tupã, ó Deus grande! cobriste o teu rosto
Com denso velâmen de penas gentis;
E jazem teus filhos clamando vingança
Dos bens que lhes deste da perda infeliz.

Teus filhos valentes, temidos na guerra,
No albor da manhã quão fortes que os vi!
A morte pousava nas plumas da frecha,
No gume da maça, no arco tupi!

E hoje em que apenas a enchente do rio
Cem vezes hei visto crescer e baixar...
Já restam bem poucos dos teus, qu'inda possam
Dos seus, que já dormem, os ossos levar.

Teus filhos valentes causavam terror,
Teus filhos enchiam as bordas do mar,
As ondas coalhavam de estreitas igaras,
De frechas cobrindo os espaços do ar.

Já hoje não caçam nas matas frondosas
A corça ligeira, o trombudo coati...
A morte pousava nas plumas da frecha,
No gume da maça, no arco tupi!

O Piaga nos disse que breve seria,
A que nos infliges cruel punição;
E os teus inda vagam por serras, por vales,
Buscando um asilo por ínvio sertão!

Tupã, ó Deus grande! descobre o teu rosto:
Bastante sofremos com tua vingança!
Já lágrimas tristes choraram teus filhos,
Teus filhos que choram tão grande tardança.

Descobre o teu rosto, ressurjam os bravos,
Que eu vi combatendo no albor da manhã;
Conheçam-te os feros, confessem vencidos
Que és grande e te vingas, qu'és Deus, ó Tupã!


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 01 de março de 2020

CAXIAS (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)

CAXIAS

Gonçalves Dias

 

 

Quanto és bela, ó Caxias! - no deserto,
Entre montanhas, derramada em vale
De flores perenais,
És qual tênue vapor que a brisa espalha
No frescor da manhã meiga soprando
À flor de manso lago.

Tu és a flor que despontaste livre
Por entre os troncos de robustos cedros,
Forte - em gleba inculta;
És qual gazela, que o deserto educa,
No ardor da sesta debruçada exangue
À margem da corrente.

Em mole seda as graças não escondes,
Não cinges d'oiro a fronte que descansas
Na base da montanha;
És bela como a virgem das florestas,
Que no espelho das águas se contempla,
Firmada em tronco anoso.

Mas dia inda virá, em que te pejes
Dos, que ora trajas, símplices ornatos
E amável desalinho:
Da pompa e luxo amiga, hão de cair-te
Aos pés então - da poesia a c'roa
E da inocência o cinto.


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 23 de fevereiro de 2020

O CANTO DO ÍNDIO (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)

O CANTO DO ÍNDIO

Gonçalves Dias

 

Quando o sol vai dentro d'água
Seus ardores sepultar,
Quando os pássaros nos bosques
Principiam a trinar;

Eu a vi, que se banhava...
Era bela, ó Deuses, bela,
Como a fonte cristalina,
Como luz de meiga estrela.

Ó Virgem, Virgem dos Cristãos formosa,
Porque eu te visse assim, como te via,
Calcara agros espinhos sem queixar-me,
Que antes me dera por feliz de ver-te.

O tacape fatal em terra estranha
Sobre mim sem temor veria erguido;
Dessem-me a mim somente ver teu rosto
Nas águas, como a lua, retratado.

Eis que os seus loiros cabelos
Pelas águas se espalhavam,
Pelas águas, que de vê-los
Tão loiros se enamoravam.

Ela erguia o colo ebúrneo,
Por que melhor os colhesse;
Níveo colo, quem te visse,
Que de amores não morresse!

Passara a vida inteira a contemplar-te,
Ó Virgem, loira Virgem tão formosa,
Sem que dos meus irmãos ouvisse o canto,
Sem que o som do Boré que incita à guerra
Me infiltrasse o valor que m'hás roubado,
Ó Virgem, loira Virgem tão formosa.

As vezes, quando um sorriso
Os lábios seus entreabria,
Era bela, oh! mais que a aurora
Quando a raiar principia.

Outra vez - dentre os seus lábios
Uma voz se desprendia;
Terna voz, cheia de encantos,
Que eu entender não podia.

Que importa? Esse falar deixou-me n'alma
Sentir d'amores tão sereno e fundo,
Que a vida me prendeu, vontade e força
Ah! que não queiras tu viver comigo,
Ó Virgem dos Cristãos, Virgem formosa!

Sobre a areia, já mais tarde,
Ela surgiu toda nua;
Onde há, ó Virgem, na terra
Formosura como a tua!?

Bem como gotas de orvalho
Nas folhas de flor mimosa,
Do seu corpo a onda em fios
Se deslizava amorosa.

Ah! que não queiras tu vir ser rainha
Aqui dos meus irmãos, qual sou rei deles!
Escuta, ó Virgem dos Cristãos formosa.
Odeio tanto aos teus, como te adoro;
Mas queiras tu ser minha, que eu prometo
Vencer por teu amor meu ódio antigo,
Trocar a maça do poder por ferros
E ser, por te gozar, escravo deles.


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 16 de fevereiro de 2020

O CANTO DO GUERREIRO (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)

O CANTO DO GUERREIRO

Gonçalves Dias

(Grafia original)

 

I

O' Guerreiros da Taba sagrada,
O' Guerreiros da Tribo Tupi,
Falam Deuses nos cantos do Piaga,
O' Guerreiros, meus cantos ouvi.

Esta noite — era a lua já morta —
Anhangá me vedava sonhar;
Eis na horrível caverna, que habito,
Rouca voz começou-me a chamar.

Abro os olhos, inquieto, medroso,
Manitôs! que prodígios que vi!
Arde o pau de resina fumosa,
Não fui eu, não fui eu, que o acendi!

Eis rebenta a meus pés um fantasma,
Um fantasma d'imensa extensão;
Liso crânio repousa a meu lado,
Feia cobra se enrosca no chão.

O meu sangue gelou-se nas veias,
Todo inteiro — ossos, carnes — tremi,
Frio horror me coou pelos membros,
Frio vento no rosto senti.

Era feio, medonho, tremendo,
O' Guerreiros, o espectro que eu vi.
Falam Deuses nos cantos do Piaga,
O' Guerreiros, meus cantos ouvi!

II

Porque dormes, ó Piaga divino?
Começou-me a Visão a falar,
Porque dormes? O sacro instrumento
De per si já começa a vibrar.

Tu não viste nos céus um negrume
Toda a face do sol ofuscar;
Não ouviste a coruja, de dia,
Seus estrídulos torva soltar?

Tu não viste dos bosques a coma
Sem aragem – vergar-se a gemer,
Nem a lua de fogo entre nuvens,
Qual em vestes de sangue, nascer?

E tu dormes, ó Piaga divino!
E Anhangá te proíbe sonhar!
E tu dormes, ó Piaga, e não sabes,
E não podes augúrios cantar?!

Ouve o anúncio do horrendo fantasma,
Ouve os sons do fiel Maracá;
Manitôs já fugiram da Taba!
O' desgraça! ó ruína! ó Tupá!

III

Pelas ondas do mar sem limites
Basta selva, sem folhas, i vem;
Hartos troncos, robustos, gigantes;
Vossas matas tais monstros contêm.

Traz embira dos cimos pendente
– Brenha espessa de vário cipó –
Dessas brenhas contêm vossas matas,
Tais e quais, mas com folhas; e só!

Negro monstro os sustenta por baixo,
Brancas asas abrindo ao tufão,
Como um bando de cândidas garças,
Que nos ares pairando – lá vão.

Oh! quem foi das entranhas das águas,
O marinho arcabouço arrancar?
Nossas terras demanda, fareja...
Esse monstro... – o que vem cá buscar?

Não sabeis o que o monstro procura?
Não sabeis a que vem, o que quer?
Vem matar vossos bravos guerreiros,
Vem roubar-vos a filha, a mulher!

Vem trazer-vos crueza, impiedade —
Dons cruéis do cruel Anhangá;
Vem quebrar-vos a maça valente,
Profanar Manitôs, Maracás.

Vem trazer-vos algemas pesadas,
Com que a tribo Tupi vai gemer;
Hão de os velhos servirem de escravos,
Mesmo o Piaga inda escravo há de ser!

Fugireis procurando um asilo,
Triste asilo por ínvio sertão;
Anhangá de prazer há de rir-se,
Vendo os vossos quão poucos serão.

Vossos Deuses, ó Piaga, conjura,
Susta as iras do fero Anhangá.
Manitôs já fugiram da Taba,
O' desgraça! ó ruína! ó Tupá!


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 09 de fevereiro de 2020

O CANTO DO GUERREIRO (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS

O CANTO DO GUERREIRO

Gonçalves Dias

 

I

Aqui na floresta
Dos ventos batida,
Façanhas de bravos
Não geram escravos,
Que estimem a vida
Sem guerra e lidar.
— Ouvi-me, Guerreiros,
— Ouvi meu cantar.

II

Valente na guerra,
Quem há, como eu sou?
Quem vibra o tacape
Com mais valentia?
Quem golpes daria
Fatais, como eu dou?
— Guerreiros, ouvi-me;
— Quem há, como eu sou?

III

Quem guia nos ares
A frecha emplumada,
Ferindo uma presa,
Com tanta certeza,
Na altura arrojada
onde eu a mandar?
— Guerreiros, ouvi-me,
— Ouvi meu cantar.

IV

Quem tantos imigos
Em guerras preou?
Quem canta seus feitos
Com mais energia?
Quem golpes daria
Fatais, como eu dou?
— Guerreiros, ouvi-me:
— Quem há, como eu sou?

V

Na caça ou na lide,
Quem há que me afronte?!
A onça raivosa
Meus passos conhece,
O imigo estremece,
E a ave medrosa
Se esconde no céu.
— Quem há mais valente,
— Mais destro que eu?

VI

Se as matas estrujo
Co’os sons do Boré,
Mil arcos se encurvam,
Mil setas lá voam,
Mil gritos reboam,
Mil homens de pé
Eis surgem, respondem
Aos sons do Boré!
— Quem é mais valente,
— Mais forte quem é?

VII

Lá vão pelas matas;
Não fazem ruído:
O vento gemendo
E as matas tremendo
E o triste carpido
Duma ave a cantar,
São eles — guerreiros,
Que faço avançar.

VIII

E o Piaga se ruge
No seu Maracá,
A morte lá paira
Nos ares frechados,
Os campos juncados
De mortos são já:
Mil homens viveram,
Mil homens são lá.

IX

E então se de novo
Eu toco o Boré;
Qual fonte que salta
De rocha empinada,
Que vai marulhosa,
Fremente e queixosa,
Que a raiva apagada
De todo não é,
Tal eles se escoam
Aos sons do Boré.
— Guerreiros, dizei-me,
— Tão forte quem é?


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 02 de fevereiro de 2020

EXILADO, GUARÂNIA, COM CASCATINHA E INHANA


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 02 de fevereiro de 2020

CANÇÃO DO EXÍLIO (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)

CANÇÃO DO EXÍLIO

Gonçalves Dias

 

Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá;
As aves, que aqui gorjeiam,
Não gorjeiam como lá.

Nosso céu tem mais estrelas,
Nossas várzeas têm mais flores,
Nossos bosques têm mais vida,
Nossa vida mais amores.

Em cismar, sozinho, à noite,
Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.

Minha terra tem primores,
Que tais não encontro eu cá;
Em cismar — sozinho, à noite —
Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.

Não permita Deus que eu morra,
Sem que eu volte para lá;
Sem que desfrute os primores
Que não encontro por cá;
Sem qu’inda aviste as palmeiras,
Onde canta o Sabiá.


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 26 de janeiro de 2020

FANTASMAS (PEQUENO TRECHO DO POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)

FANTAS MAS

Gonçalves Dias

 

 

Ia a lua pelos ares

Docemente equilibrada

Qual linda concha embalada.

 

Era tuto amor – dormente

Era a mesma solidão

Porém eis que de repente

Corre de vento um pegão.

 

Morrendo a luz feiticeira

Morre o brilhante do céu

Que da lua a face inteira

Cobre denso opaco véu.

 

Das trevas o véu rasgando

Fuzila breve clarão

No escuro espaço rolando

Rouqueja horrível trovão.

 

Ruge a longe o mar raivoso

Perto – o vento no arvoredo

No cemitério medroso

 

Surgem fantasmas de medo

Passando ao través dos muros

Que do mundo os separava

Penetram no templo escuro:

Mudo e triste o templo estava.

..............................................................


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 19 de janeiro de 2020

QUADRAS DA MINHA VIDA (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)

QUADRAS DA MINHA VIDA

Gonçalves Dias

 


I
Houve tempo em que os meus olhos
Gostavam do sol brilhante,
E do negro véu da noite,
E da aurora cintilante.

Gostavam da branca nuvem
Em céu de azul espraiada,
Do terno gemer da fonte
Sobre pedras despenhada.

Gostavam das vivas cores
De bela flor vicejante,
E da voz imensa e forte
Do verde bosque ondeante.

Inteira a natureza me sorria!
A luz brilhante, o sussurrar da brisa,
O verde bosque, o rosicler d'aurora,
Estrelas, céus, e mar, e sol, e terra,
D'esperança e d'amor minha alma ardente,
De luz e de calor meu peito enchiam.
Inteira a natureza parecia
Meus mais fundos, mais íntimos desejos
Perscrutar e cumprir; - almo sorriso
Parecia enfeitar co'os seus encantos,
Com todo o seu amor compor, doirá-lo,
Porque os meus olhos deslumbrados vissem-no,
Porque minha alma de o sentir folgasse.

Oh! quadra tão feliz! - Se ouvia a brisa
Nas folhas sussurrando, o som das águas,
Dos bosques o rugir; - se os desejava,
- O bosque, a brisa, a folha, o trepidante
Das águas murmurar prestes ouvia.
Se o sol doirava os céus, se a lua casta.
Se as tímidas estrelas cintilavam,
Se a flor desabrochava envolta em musgo,
- Era a flor que eu amava, - eram estrelas
Meus amores somente, o sol brilhante,
A lua merencória - os meus amores!
Oh! quadra tão feliz! - doce harmonia,
Acordo estreme de vontade e força,
Que atava minha vida à natureza!
Ela era para mim bem como a esposa
Recém-casada, pudica sorrindo;
Alma de noiva - coração de virgem,
Que a minha vida inteira abrilhantava!
Quando um desejo me brotava n'alma,
Ela o desejo meu satisfazia;
E o quer que ela fizesse ou me dissesse,
Esse era o meu desejo, essa a voz minha,
Esse era o meu sentir do fundo d'alma,
Expresso pela voz que eu mais amava.

II
Agora a flor que m'importa,
Ou a brisa perfumada,
Ou o som d'amiga fonte
Sobre pedras despenhada?

Que me importa a voz confusa
Do bosque verde-frondoso,
Que m'importa a branca lua,
Que m'importa o sol formoso?

Que m'importa a nova aurora,
Quando se pinta no céu;
Que m'importa a feia noite,
Quando desdobra o seu véu?

Estas cenas, que amei, já me não causam
Nem dor e nem prazer! - Indiferente,
Minha alma um só desejo não concebe,
Nem vontade já tem!... Oh! Deus! quem pôde
Do meu imaginar as puras asas
Cercear, desprender-lhe as níveas plumas,
Rojá-las sobre ó pó, calcá-las tristes?
Perante a criação tão vasta e bela
Minha alma é como a flor que pende murcha;
É qual profundo abismo: - embalde estrelas
Brilham no azul dos céus, embalde a noite
Estende sobre a terra o negro manto:
Não pode a luz chegar ao fundo abismo,
Nem pode a noite enegrecer-lhe a face;
Não pode a luz à flor prestar mais brilho
Nem viço e nem frescor prestar-lhe a noite!

III
Houve tempo em que os meus olhos
Se extasiavam de ver
Ágil donzela formosa
Por entre flores correr.

Gostavam de um gesto brando,
Que revelasse pudor;
Gostavam de uns olhos negros,
Que rutilassem de amor.

E gostavam meus ouvidos
De uma voz - toda harmonia, -
Quer pesares exprimisse,
Quer exprimisse alegria.

Era um prazer, que eu tinha, ver a virgem
Indolente ou fugaz - alegre ou triste,
Da vida a estreita senda desflorando
Com pé ligeiro e ânimo tranqüilo;
lmpróvida e brilhante parecendo
Seus dias desfolhar, uns após outros,
Como folhas de rosa; - e no futuro -
Ver luzir-lhe somente a luz d'aurora.
Era deleite e dor vê-la tão leda
Do mundo as aflições, angústias, prantos
Afrontar co'um sorriso; era um descanso
Interno e fundo, que sentia a mente,
Um quadro em que os meus olhos repousavam,
Ver tanta formosura e tal pureza
Em rosto de mulher com alma d'anjo!

IV
Houve tempo em que os meus olhos
Gostavam de lindo infante,
Com a candura e sorriso
Que adorna infantil semblante.

Gostavam do grave aspecto
De majestoso ancião,
Tendo nos lábios conselhos,
Tendo amor no coração.

Um representa a inocência,
Outro a verdade sem véu;
Ambos tão puros, tão graves,
Ambos tão perto do céu!

Infante e velho! - princípio e fim da vida! -
Um entra neste mundo, outro sai dele,
Gozando ambos da aurora; - um sobre a terra,
E o outro lá nos céus. - O Deus, que é grande,
Do pobre velho compensando as dores,
O chama para si; o Deus clemente
Sobre a inocência de continuo vela.
Amei do velho o majestoso aspecto,
Amei o infante que não tem segredos,
Nem cobre o coração co'os folhos d'alma.
Armei as doces vozes da inocência,
A ríspida franqueza amei do velho,
E as rígidas verdades mal sabidas,
Só por lábios senis pronunciadas.

V
Houve tempo, em que possível
Eu julguei no mundo achar
Dois amigos extremosos,
Dois irmãos do meu pensar:

Amigos que compr'endessem
Meu prazer e minha dor,
Dos meus lábios o sorriso,
Da minha alma o dissabor;

Amigos, cuja existência
Vivesse eu co'o meu viver:
Unidos sempre na vida,
Unidos - té no morrer.

Amizade! - união, virtude, encanto -
Consórcio do querer, de força e d'alma -
Dos grandes sentimentos cá da terra
Talvez o mais recíproco, o mais fundo!
Quem há que diga: Eu sou feliz! - se acaso
Um amigo lhe falta? - um doce amigo,
Que sinta o seu prazer como ele o sente,
Que sofra a sua dor como ele a sofre?
Quando a ventura lhe sorri na vida,
Um a par doutro - ei-los lá vão felizes;
Quando um sente aflição, nos braços do outro
A aflição, que é só dum, carpindo juntos,
Encontra doce alívio o desditoso
No tesouro que encerra um peito amigo.
Cândido par de cisnes, vão roçando
A face azul do mar co'as níveas asas
Em deleite amoroso; - acalentados
Pelo sereno espreguiçar das ondas,
Aspirando perfumes mal sentidos,
Por vesperina aragem bafejados,
É jogo o seu viver; - porém se o vento
No frondoso arvoredo ruge ao longe,
Se o mar, batendo irado as ermas praias,
Cruzadas vagas em novelo enrola,
Com grito de terror o par candente
Sacode as níveas asas, bate-as, - fogem.

VI
Houve tempo em que eu pedia
Uma mulher ao meu Deus,
Uma mulher que eu amasse,
Um dos belos anjos seus.

Em que eu a Deus só pedia
Com fervorosa oração
Um amor sincero e fundo,
Um amor do coração.

Qu'eu sentisse um peito amante
Contra o meu peito bater,
Somente um dia... somente!
E depois dele morrer.

Amei! e o meu amor foi vida insana!
Um ardente anelar, cautério vivo,
Posto no coração, a remordê-lo.
Não tinha uma harmonia a natureza
Comparada a sua voz; não tinha cores
Formosas como as dela, - nem perfumes
Como esse puro odor qu'ela esparzia
D'angélica pureza. - Meus ouvidos
O feiticeiro som dos meigos lábios
Ouviam com prazer; meus olhos vagos
De a ver não se cansavam; lábios d'homens
Não puderam dizer como eu a amava!
E achei que o amor mentia, e que o meu anjo
Era apenas mulher! chorei! deixei-a!
E aqueles, que eu amei co'o amor d'amigo,
A sorte, boa ou má, levou-mos longe,
Bem longe quando eu perto os carecia.
Concluí que a amizade era um fantasma,
Na velhice prudente - hábito apenas,
No jovem - doudejar; em mim lembrança;
Lembrança! - porém tal que a não trocara
Pelos gozos da terra, - meus prazeres
Foram só meus amigos, - meus amores
Hão de ser neste mundo eles somente.

VII
Houve tempo em que eu sentia
Grave e solene aflição,
Quando ouvia junto ao morto
Cantar-se a triste oração.

Quando ouvia o sino escuro
Em sons pesados dobrar,
E os cantos do sacerdote
Erguidos junto do altar.

Quando via sobre um corpo
A fria lousa cair;
Silêncio debaixo dela,
Sonhos talvez - e dormir.

Feliz quem dorme sob a lousa amiga,
Tépida talvez com o pranto amargo
Dos olhos da aflição; - se os mortos sentem,
Ou se almas tem amor aos seus despojos,
Certo dos pés dó Eterno, entre a aleluia,
E o gozo lá dos céus, e os coros d'anjos,
Hão de lembrar-se com prazer dos vivos,
Que choram sobre a campa, onde já brota
O denso musgo, e já desponta a relva.

Laje fria dos mortos! quem me dera
Gozar do teu descanso, ir asilar-me
Sob o teu santo horror, e nessas trevas
Do bulício do mundo ir esconder-me!
Oh! laje dos sepulcros! quem me desse
No teu silêncio fundo asilo eterno!
Ai não pulsa o coração, nem sente
Martírios de viver quem já não vive.


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 12 de janeiro de 2020

A VILA MALDITA, CIDADE DE DEUS (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)

A VILA  MALDITA, CIDADE DE DEUS

Gonçalves Dias


I
O imenso aposento a luz alaga
Com soberbo clarão,
E as mesas do banquete se devolvem
Pelo vasto salão;

E os instrumentos palpitantes soam
Frenética harmonia;
E o coro dos convivas se levanta
Pleno d'ébria alegria!

Ali se ostenta o nobre vicioso
Rebuçado em orgulho, - o rico infame,
Cheio de mesquinhez, - o envilecido,
Imundo pobre no seu manto involto
De misérias, torpeza e vilanias;
- A prostituta que alardeia os vícios,
Menosprezando a castidade e a honra,
Sem pejo, sem pudor, d'infâmia eivada.

E o livre ditirambo, a atroz blasfêmia,
Os cantos imorais, canções impudicas,
Gritos e orgia envolta em negro manto
De fumo e vinho, - os ares aturdiam;
E muito além, no meio d'alta noite,
Nos ecos, ruas, praças rebatiam.

II
Depois, ainda suja a boca, as faces,
D'imundo vomitar,
Com vacilante pé calcando a terra
Os viras levantar.

A larga porta despedia em turmas
A noturna coorte;
Ouvia-se depois por toda a parte
Gritos, horror de morte!

E ninguém vinha ao retinir de ferro,
Que assassinava;
Porque era dum valente o punhal nobre,
Que as leis ditava.

Outra vez a cair se emaranhavam
Da porta pelo umbral:
Tinham tintas de sangue a face, as vestes,
Em sangue tinto o punhal.

E vinha o sol manifestar horrores
Da noite derradeira;
E a morte vária revelava a fúria
Da turba carniceira.

E o sacrílego padre só vendia
O tum'lo por dinheiro;
Vendia a terra aos mortos insepultos,
O vil interesseiro!

Ou lá ficavam, como pasto aos corvos,
Por sobre a terra nua;
E ninguém de tal sorte se pesava,
Que ser podia a sua!

"E Deus maldisse a terra criminosa,
"Maldisse aos homens dela,
"Maldisse a cobardia dos escravos
"Dessa terra tão bela."

III
E a mortífera peste lutuosa
Do inferno rebentou,
E nas asas dos ventos pavorosa
Sobre todos passou.

E o mancebo que via esperançoso
Longa vida futura,
Doido sentiu quebrar-lhe as esperanças
Pedra de sepultura.

E a donzela tão linda que vivia
Confiada no amor,
Entre os braços da mãe provou bem cedo
Da morte o dissabor.

E o trêmulo ancião qu'inda esperava
Morrer assim
Como um fruto maduro destacado
D'árvore enfim,

Sentiu a morte esvoaçar-lhe em tomo,
Como um bulcão,
Que afronta o nauta quando avista a terra
Da salvação.

Era deserta a vila, a casa, o templo -
Ar de morte soprou!
Mas a casa dos vis nos seus delírios
Ébria continuou!

"E Deus maldisse a terra criminosa,
"Maldisse os homens dela,
"Maldisse a cobardia dos escravos
"Dessa terra tão bela."

IV
Eis o aço da guerra lampeja,
Do fogoso corcel o nitrido,
Eis o brônzeo canhão que rouqueja,
Eis da morte represso o gemido.

Já se aprestam guerreiros luzentes,
Já se enfreiam corcéis belicosos,
Já mancebos se partem contentes,
Augurando a vitória briosos.

Brilha a raiva nos olhos; - nas faces
O interno rancor podes ler;
Eia, avante! - clamaram os bravos,
Eia, avante! - ou vencer ou morrer!

Eia, avante! - briosos corramos
Na peleja o imigo bater;
Crua morte na espada levamos!
Eia, avante! - ou vencer ou morrer!

Eis o aço da guerra lampeja,
Do corcel belicoso o nitrido,
Eis o brônzeo canhão que rouqueja
E da morte represso o gemido.

V
E a selva vomitou homens sem conto
A voz do onipotente,
Como a neve hibernal que o sol derrete,
Engrossando a corrente.

E em redor dessa vila se estreitaram,
Cingidos d'armadura;
E a vila se doeu no íntimo seio
De tão acre amargura.

Mas os fortes bradaram: - Eia, avante!
Prontos a batalhar;
Mas o braço e valor ante os imigos
Se vieram quebrar.

E um ano inteiro sem cessar lutaram,
Cheios de bizarria,
Como dois crocodilos que brigassem
Dum rio a primazia!

E renderam-se enfim, mas de famintos.
De sequiosos;
Valentes lidadores foram eles,
Se não briosos.

VI
E o exército contrário entra rugindo
Na vila, que as suas portas lhe franqueia:
Rasteiro corre o incêndio e surdamente
O custoso edifício ataca e mina.
Eis que a chama roaz amostra as fendas
Das portas que se abrasam; descortina
O torvo olhar do vencedor - apenas -
Lá dentro o incêndio só, fora só trevas!
Urros de frenesi, de dor, de raiva
Escutam dos que, às súbitas colhidos,
Contra os muros em brasa se arremessam;
Dos que, perdido o tino, intentam loucos
Achar a salvação, e a morte encontram.
Lá dentro confusão, silêncio foral
São carrascos aqui, vítimas dentro,
Geme o travejamento, estrala a pedra,
Cresce horror sobre horror, desaba o teto,
E o fumo enegrecido se enovela
Co'o vértice sublime os céus roçando.
Como o vulcão que a lava arroja às nuvens,
Como ígnea coluna que da terra
Hiante rebentasse, - tal se eleva,
Tal sobe aos ares, tal se empina e cresce
A labareda portentosa; e baixa,
E desce à terra, c o edifício enrola,
E o sorve inteiro, qual se foram vagas
Que a dura rocha do alicerce abalam,
Que a enlaçam, como a preá, - e ao fundo pego
Levam, deixando e mar branco d'espuma.
No horror da noite, sibilando os ventos,
Línguas piramidais do atroz incêndio.
Fumosas pelas ruas estalando,
Tingem da cor do inferno a cor da noite,
Tingem da cor do sangue a cor do inferno!
- O ar são gritos, fumo o céu, e a terra fogo.

VII
E aqueles que inda sãos e imunes eram,
Os que a peste enjeitou,
Que fome e sede e privações sofreram...
A espada decepou.

E a donzela tremeu, da mãe nos braços
Não salva ainda,
Que incitava os prazeres do soldado
A face linda.

E o fido amante, que de a ver tão bela
Sentiu prazer,
Sente martírios porque a vê formosa
No seu morrer.

Coisa alguma escapou! - Já tudo é cinzas
Tudo destruição:
A coluna, o palácio, a casa, o templo,
O templo da oração!

Meninos, homens e mulheres, - todos
Já rojam sobre o pó;
Mas o Deus, o Deus bom já está vingado.
Por ela já sente dó.

E a vila d'outrora mais ruidosa,
Lá ressurgiu cidade;
Porque o Deus da justiça, o das armadas,
O Deus é de bondade.


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 05 de janeiro de 2020

O PIRATA (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)

O PIRATA

Gonçalves Dias

 

Nas asas breves do tempo
Um ano e outro passou,
E Lia sempre formosa
Novos amores tomou.

Novo amante mão de esposo,
De mimos cheia, lh'of'rece;
E bela, apesar de ingrata,
Do que a amou Lia se esquece.

Do que a amou que longe pára,
Do que a amou, que pensa nela,
Pensando encontrar firmeza
Em Lia, que era tão bela!

Nesse palácio deserto
Já luzes se vêm luzir,
Que vem nas sedas, nos vidros
Cambiantes refletir.

Os ecos alegres soam,
Soa ruidosa harmonia,
Soam vozes de ternura,
Sons de festa e d'alegria.

E qual ave que em silêncio
A face do mar desflora,
À noite bela fragata
Chega ao porto, amaina, ancora.

Cai da popa e fere as ondas
Inquieta, esguia falua,
Que resvala sobre as águas
Na esteira que traça a lua.

Já na vácua praia toca;
Um vulto em terra saltou,
Que na longa escadaria
Presago e torvo enfiou..

Malfadado! por que aportas
A este sítio fatal!
Queres o brilho aumentar
Das bodas do teu rival?

Não, que a vingança lhe range
Nos duros dentes cerrados,
Não, que a cabeça referve
Em maus projetos danados!

Não, que os seus olhos bem dizem
O que diz seu coração;
Terríveis, como um espelho,
Que retratasse um vulcão.

Não, que os lábios descorados
Vociferam seu rival;
Não, que a mão no peito aperta
Seu pontiagudo punhal.

Não, por Deus, que tais afrontas
Não as sói deixar impunes,
Quem tem ao lado um punhal,
Quem tem no peito ciúmes!

Subiu! - e viu com seus olhos
Ela a rir-se que dançava,
Folgando, infame! nos braços
Porque assim o assassinava.

E ele avançou mais avante,
E viu. . . o leito fatal!
E viu. . . e cheio de raiva
Cravou no meio o punhal.

E avançou... e à janela
Sozinha a viu suspirar,
- Saudosa e bela encarando
A imensidade do mar.

Como se vira um espectro,
De repente ela fugiu!
Tal foge a corça nos bosques
Se leve rumor sentiu.

Que foi? - Quem sabe dizê-lo?
Foram vislumbres de dor:
Coração, que tem remorsos,
Sente contínuo terror!

Ele à janela chegou-se,
Horrível nada encontrou. . .
Somente, ao longe, nas sombras,
Sua fragata avistou.

Então pensou que no mundo
Nada mais de seu contava!
Nada mais que essa fragata!
Nada mais de quanto amava!

Nada mais!... - que lh'importava
De no mundo só se achar?
Inda muito lhe ficava -
Água e céus e vento e mar.

Assim pensava, mas nisto
Descortina o seu rival,
Não visto; - a mão na cintura
Cingiu raivoso o punhal!

Mas pensou. . . - não, seja dela,
E tenha zelos como eu? -
Larga o punhal, e um retrato
Na destra mão estendeu.

Porém sentiu que inda tinha
Mais que branda compaixão;
Miserando! inda guardava
Seu amor no coração.

Infeliz! não foi culpada;
Foi culpa do fado meu!
Nada mais de pensar nela;
Finjamos que ela morreu.

Por entre a turba que alegre
No baile - a sorrir-se estava,
Mudo, triste, e pensativo
Surdamente se afastava.

De manhã - quando o sarau
Apagava o seu rumor,
Chegava Lia a janela,
Mais formosa de palor.

Chegou-se; - e além -.- no horizonte
Uma vela inda avistou;
E co'a mão trêmula e fria
O telescópio buscou!

Um pavilhão viu na popa,
Que tinha um globo pintado;
E no mastro da mezena
Um negro vulto encostado.

Eram chorosos seus olhos,
Os olhos seus enxugou;
E o telescópio de novo
Para essa vela apontou.

Quem era o vulto tão triste
Parece reconheceu;
Mas a vela no horizonte
Para sempre se perdeu.


Gonçalves Dias, O Poeta Nacional do Brasil domingo, 29 de dezembro de 2019

O COMETA (POEMA DO MARANHENSE GONÇALVES DIAS)

 

Eis nos céus rutilando ígneo cometa!
A imensa cabeleira o espaço alastra,
E o núcleo, como um sol tingido em sangue,
Alvacento luzir verte agoireiro
Sobre a pávida terra.

Poderosos do mundo, grandes, povo,
Dos lábios removei a taça ingente,
Que em vossas festas gira; eis que rutila
O sangüíneo cometa em céus infindos!...
Pobres mortais, - sois vermes!

O Senhor o formou terrível, grande;
Como indócil corcel que morde o freio,
Retinha-o só a mão do Onipotente.
Ao fim lhe disse: - Vai, Senhor dos Mundos,
Senhor do espaço infindo.

E qual louco temido, ardendo em fúria,
Que ao vento solta a coma desgrenhada,
E vai, néscio de si, livre de ferros,
De encontro às duras rochas, - tal progride
O cometa incansável.

Se na marcha veloz encontra um mundo,
O mundo em mil pedaços se converte;
Mil centelhas de luz brilham no espaço
A esmo, como um tronco pelas vagas
Infrenes combatido.

Se junto doutro mundo acaso passa,
Consigo o arrasta e leva transformado;
A cauda portentosa o enlaça e prende,
E o astro vai com ele, como argueiro
Em turbilhão levado.

Como Leviatã perturba os mares,
Ele perturba o espaço; - como a lava,
Ele marcha incessante e sempre; - eterno,
Marcou-lhe largo giro a lei que o rege,
- Às vezes o infinito.

Ele carece então da eternidade!
E aos homens diz - e majestoso e grande
Que jamais o verão; e passa, e longe
Se entranha em céus sem fim, como se perde
Um barco no horizonte!


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