Gonçalves Dias
Numa terra antigamente
Existia um Trovador;
Na Lira sua inocente
Só cantava o seu amor.
Nenhum sarau se acabava
Sem a Lira de marfim,
Pois cantar tão alto e doce
Nunca alguém ouvira assim.
E quer donzela, quer dona,
Que sentira comoção
Pular-lhe n'alma, escutando
Do Trovador a canção;
De jasmins e de açucenas
A fronte sua adornou;
Mas só a rosa da amada
Na Lira amante poisou.
E o Trovador conheceu
Que era traído - por fim;
Pôs-se a andar, e só se ouvia
Nos seus lábios: ai de mim!
Enlutou de negro fumo
A rosa de seu amor,
Que meia oculta se via
Na gorra do Trovador;
Como virgem bela, morta
Da idade na linda flor,
Que parece, o dó trajando,
Inda sorrir-se de amor.
No meio do seu caminho
Gentil donzela encontrou:
Canta - disse; e as cordas d'oiro
Vibrando, o triste cantou.
"Teu rosto engraçado e belo
"Tem a lindeza da flor;
"Mas é risonho o teu rosto:.
"Não tens de sentir amor!
"Mas tão bem por esse dia
"Que viverás, como a flor,
"Mimosa, engraçada e bela,
"Não tens de sentir amor!
"Oh! não queiras, por Deus, homem que tenha
"Tingida a larga testa de palor;
"Sente fundo a paixão, - e tu no mundo
"Não tens de sentir amor!
"Sorriso jovial te enfeita os lábios,
"Nas faces de jasmim tens rósea cor;
"Fundo amor não se ri, não é corado...
"Não tens de sentir amor;
"Mas se queres amar, eu te aconselho,
"Que não guerreiro, escolhe um trovador,
"Que não tem um punhal, quando é traído,
"Que vingue o seu amor."
Do Trovador pelo rosto
Torva raiva se espalhou,
E a Lira sua, tremendo,
Sem cordas d'oiro ficou.
Mais além no seu caminho
Donzel garboso encontrou:
Canta - disse: e argênteas cordas
Pulsando, o triste cantou.
"Aos homens da mulher enganam sempre
"O sorriso, o amor;
"É este breve, como é breve aquele
"Sorriso enganador.
"Teu peito por amor, Donzel, suspira,
"Que é de jovens amar a formosura;
"Mas sabe que a mulher, que amor te jura,
"Dos lindos lábios seus cospe a mentira!
"Já frenético amor cantei na lira,
"Delícias já sorvi num seu sorriso,
"Já venturas fruí do paraíso,
"Em terna voz de amor, que era mentira!
"O amor é como a aragem que murmura
"Da tarde no cair - pela folhagem;
"Não volta o mesmo amor à formosura
"Bem como nunca volta a mesma - aragem.
"Não queiras amar, não; pois que a'sperança
"Se arroja além do amor por largo espaço.
"Tens, brilhando ao sol, a forte lança,
"Tens longa espada cintilante d'aço.
"Tens a fina armadura de Milão,
"Tens luzente e brilhante capacete,
"Tens adaga e punhal e bracelete
"E, qual lúcido espelho, o morrião.
"Tens fogoso corcel todo arreiado,
"Que mais veloz que os ventos sorve a terra;
"Tens duelos, tens justas, tens torneios,
"Que os fracos corações de medo cerro;
"'tens pajens, tens valetes e escudeiros
"E a marcha afoita, apercebida em guerra
"Do luzido esquadrão de mil guerreiros.
"Oh! não queiras amar! - Como entre a neve
"O gigante vulcão borbulha e ferve
"E sulfúrea chama pelos ares lança,
"Que após o seu cair torna-se fria;
"Assim tu acharás petrificada,
"Bem como a lava ardente do vulcão,
"A lava que teu peito consumia
"No peito da mulher - ou cinza ou nada -
"Não frio, mas gelado o coração!"
E o Trovador despeitoso
De prata as cordas quebrou,
E nas de chumbo seu fado
A lastimar começou.
"Que triste que é neste mundo
"O fado dum Trovador! ,
"Que triste que é! - bem que tenha ,
"Sua Lira e seu amor,
"Quando em festejos descanta,
"Rasgado o peito com dor,
"Mimoso tem de cantar
"Na sua Lira - o amor!
"Como a um servo vil ordena
"Um orgulhoso Senhor,
"Canta, diz-lhe; quero ouvir-te:
"Quero descantes de amor!
"Diz-lhe o guerreiro, que apenas
"Lidou em justas de amor:
"- Minha dama quer ouvir-te,
"Canta, truão trovador! -
"Manda a mulher que nos deixa
"De beijos murchada flor:
"- Canta, truão, quero ouvir-te,
"Um terno canto de amor!
"Mas se a mulher, que ele adora
"Atraiçoa o seu amor;
"Embalde busca a seu lado
"Um punhal - o Trovador!
Se escuta palavras dela, -
"Que a outros juram amor;
"Embalde busca a seu lado
"Um punhal - o Trovador!
"Se vê luzir de alguns lábios
"Um sorriso mofador;
"Embalde busca a seu lado
"Um punhal - o Trovador!
"Que triste que é neste mundo
"O fado dum Trovador!
"Pesar lhe dá sua Lira,
"Dá-lhe pesar seu amor!"
E o Trovador neste ponto
A corda extrema arrancou;
E num marco do caminho
A Lira sua quebrou:
Ninguém mais a voz sentida
Do Trovador escutou!