Arthur Azevedo
O Romualdo tinha perdido, havia já dois ou três meses, o seu lugar de redator numa folha diária; estava sem ganhar vintém, vivendo sabe Deus com que dificuldades, a maldizer o instante em que, levado por uma quimera da juventude, se lembrara de abraçar uma carreira tão incerta e precária como a do jornalismo.
Felizmente era solteiro, e o dono da "pensão" onde ele morava fornecia-lhe casa e comida a crédito, em atenção aos belos tempos em que nele tivera o mais pontual dos locatários.
Cansado de oferecer em pura perda os seus serviços literários a quanto jornal havia então no Rio de Janeiro, o Romualdo lembrou-se, um dia, de procurar ocupação no comércio, abandonando para sempre as suas veleidades de escritor público, os seus desejos de consideração e renome.
Para isso, foi ter com um negociante rico, por nome Caldas, que tinha sido seu condiscípulo no Colégio Vitório, a quem jamais ocupara, embora ele o tratasse com muita amizade e o tuteasse, quando raras vezes se encontravam na rua.
O negociante ouviu-o, e disse-lhe:
– Tratarei mais tarde de arranjar um emprego que te sirva; por enquanto preciso da tua pena. Sim, da tua pena. Apareceste ao pintar! Foste a sopa que me caiu no mel! Quando entraste por aquela porta, estava eu a matutar, sem saber a quem me dirigisse para prestar-me o serviço que te vou pedir. Confesso que não me tinha lembrado de ti... perdoa...
– Estou às tuas ordens
– Preciso publicar amanhã, impreterivelmente, no Jornal do Commercio, um artigo contra o Saraiva.
– Que Saraiva?
– O da rua Direita.
– O João Fernandes Saraiva?
– Esse mesmo.
– E queres tu que seja eu quem escreva esse artigo?
– Sim. Ganharás uns cobres que não te farão mal algum.
– A essa palavra "cobres", o Romualdo teve um estremeção de alegria; mas caiu em si:
– Desculpa, Caldas; bem sabes que o Saraiva é, como tu, meu amigo... como tu, foi meu companheiro de colégio...
– Quando conheceres a questão que vai ser o assunto desse artigo, não te recusarás a escrevê-lo, porque não admito que sejas mais amigo dele do que meu. Demais, nota uma coisa: não quero insultá-lo, não quero dizer nada que o fira na sua honra, quero tratá-lo com luva de pelica. Sou eu o primeiro a lastimar que uma questão de dinheiro destruísse a nossa velha amizade. Escreves o artigo?
– Mas...
– Não há mas nem meio mas! O Saraiva nunca saberá que foi escrito por ti.
– Tenho escrúpulos...
– Deixa lá os teus escrúpulos, e ouve de que se trata. Presta-me toda a atenção.
– E o Caldas expôs longamente ao Romualdo a queixa que tinha do Saraiva. Tratava-se de uma pequena questão comercial, de um capricho tolo que só poderia irritar, um contra o outro, dois amigos que não conhecessem o que a vida tem de áspero e difícil O artigo seria um desabafo menos do brio que da vaidade, e, escrevendo-o, qualquer pena hábil poderia, efetivamente, evitar uma injúria grave.
O Romualdo, que há muito tempo não pegava numa nota de cinco mil-réis, e apanhara, na véspera, uma descompostura de lavadeira, cedeu, afinal, às tentadoras instâncias do amigo, e no próprio escritório deste redigiu o artigo, que satisfez plenamente.
– Muito bem! - Exclamou o Caldas, depois de três leituras consecutivas.
– Se eu soubesse escrever, escreveria isto mesmo! Apanhaste perfeitamente a questão!
–E, depois de um passeio â burra, meteu um envelope na mão de Romualdo, dizendo-lhe:
– Aparece-me daqui a dias: vou procurar o emprego que desejas. – A época é difícil, mas há de se arranjar.
O Romualdo saiu, e, ao dobrar a primeira esquina, abriu sofregamente o envelope: havia dentro uma nota de cem mil-réis! Exultou! Parecia-lhe ter tirado a sorte grande!
Na manhã seguinte, o ex-jornalista pediu ao dono da "pensão" que lhe emprestasse o Jornal do Commercio, e viu a sua prosa "Eu e o sr. João Fernandes Saraiva" assinada pelo Caldas; sentiu alguma coisa que se assemelhava ao remorso, o mal-estar que acomete o espírito e se reflete no corpo do homem todas as vezes que este pratica um ato inconfessável, e aquilo era uma quase traição. Entretanto almoçou com apetite.
À sobremesa entrou na sala de jantar um menino, que lhe trazia uma carta em cujo sobrescrito se lia a palavra "urgente".
Ele abriu-a e leu:
"Romualdo. – Preciso falar-lhe com a maior urgência. Peço-lhe que dê um pulo ao nosso escritório hoje mesmo, logo que possa. Recado do – João Fernandes Saraiva."
Este bilhete inquietou o ex-jornalista.
Com certeza, pensou ele, o Saraiva soube que fui eu o autor do artigo! Naturalmente alguém me viu entrar em casa do Caldas, demorar-me no escritório... desconfiou da coisa e foi dizer-lhe... Mas para que me chamará ele?
O seu desejo era não acudir ao chamado; alegar que estava doente, ou não alegar coisa alguma, e lá não ir; mas o menino de pé, junto à mesa do almoço, esperava a resposta... Era impossível fugir!
– Diga ao seu patrão que daqui a pouco lá estarei.
O menino foi-se.
O Romualdo acabou a sobremesa, tomou o café, saiu, e dirigiu-se ao escritório do Saraiva, receoso de que este o recebesse com duas pedras na mão.
Foi o contrário. O amigo recebeu-o de braços abertos, dizendo-lhe:
– Obrigado por teres vindo! Estava com medo de que o pequeno não te encontrasse! Vem cá!
E levou-o para um compartimento reservado.
– Leste o Jornal do Commercio de hoje?
– Não –, mentiu prontamente o Romualdo. – Raramente leio o Jornal do Commercio.
– Aqui o tens; vê que descompostura me passou o Caldas!
O Romualdo fingiu que leu.
– Isso que aí está é uma borracheira, mas não é escrito por ele! – Bradou o Saraiva. –Aquilo é uma besta que não sabe pegar na pena senão para assinar o nome!
– O artigo não está mau... Tem até estilo...
– Preciso responder!
– Eu, no teu caso, não respondia...
– Assim não penso. Preciso responder amanhã mesmo no próprio Jornal ao Commercio e, se te chamei, foi para pedir-te que escrevas a resposta.
– Eu?...
– Tu, sim! Eu podia escrever mas... que queres?... Estou fora de mim!...
– Bem sabes – gaguejou o Romualdo – que sou amigo do Caldas. Não me fica bem...
– Não te fica bem, por quê? Ele com certeza não é mais teu amigo que eu! Depois, não é intenção minha injuriá-lo; quero apenas dar-lhe o troco!
No íntimo o Romualdo estava satisfeito, por ver naquele segundo artigo um meio de atenuar, ou, se quiserem, de equilibrar o seu remorso.
Ainda mastigou umas escusas, mas o outro insistiu:
– Por amor de Deus, não te recuses a este obséquio tão natural num homem que vive da pena! Tu estás desempregado, precisas ganhar alguma coisa...
O Romualdo cedeu a este último argumento, e, depois de convenientemente instruído pelo Saraiva sobre a resposta que devia dar, pegou na pena e escreveu ali mesmo o artigo.
Reproduziu-se então a cena da véspera, com mudança apenas de um personagem. O Saraiva, depois de ler e reler o artigo, exclamou: – Bravo! Não podia sair melhor! – E, tirando da algibeira um maço de dinheiro, escolheu uma nota de duzentos mil-réis e entregou-a ao prosador.
– Oh! Isto é muito, Saraiva!
– Qual muito! Estás a tocar leques por bandurra: é justo que te pague bem!
– Obrigado, mas olha: recomendo-te que mandes copiar o artigo, porque no jornal pode haver alguém que conheça a minha letra.
– Copiá-lo-ei eu mesmo.
– Adeus.
– Adeus. Se o Caldas treplicar, aparece-me!
– Está dito.
– No dia seguinte, o Caldas entrou muito cedo no quarto do Romualdo, com o Jornal do Commercio na mão.
– O bruto replicou! Vais escrever-me a tréplica!
E batendo com as costas da mão no jornal:
– Isto não é dele... Aquilo é incapaz de traçar duas linhas sem quatro asneiras... mas ainda assim, quem escreveu por ele está longe deter o teu estilo, a tua graça... Anda! Escreve!...
– E o Romualdo escreveu...
Durante um mês teve ele a habilidade de alimentar a polêmica, provocando a réplica, para que não estancasse tão cedo a fonte de receita que encontrara. Para isso fazia insinuações vagas, mas pérfidas, e depois, em conversa ora com um ora com outro, era o primeiro a aconselhar a retaliação e o esforço.
Tanto o Caldas como o Saraiva se mostraram cada vez mais generosos, e o Romualdo nunca em dias de sua vida se viu com tanto dinheiro. Ambos os contendores lhe diziam: – Escreve! Escreve! Eu quero ser o último!
Por fim, vendo que a questão se eternizava, e de um momento para o outro a sua duplicidade podia ser descoberta, o Romualdo foi gradualmente adoçando o tom dos artigos, fazendo, por sua própria conta, concessões recíprocas, lembrando a velha amizade, e com tanto engenho se houve, que os dois contendores se reconciliaram, acabando amigos e arrependidos de terem dito um ao outro coisas desagradáveis em letra de forma.
E o público admirou essa polêmica, em que dois homens discutiam com estilos tão semelhantes que o próprio estilo pareceu harmonizá-los.
O Caldas cumpriu a sua promessa: o Romualdo pouco depois entrou para o comércio, onde ainda hoje se acha, completamente esquecido do tempo que perdeu no jornalismo.
(Do livro Contos Cariocas)
Arthur Azevedo
I
Naquele tempo (não há necessidade de precisar a época) era o doutor Pires de Aguiar o melhor freguês da alfaiataria Raunier e uma das figuras obrigatórias da Rua do Ouvidor. Como advogado diziam-no de uma competência um pouco duvidosa, o que aliás não obstava que ele ganhasse muito dinheiro, — mas como janota – força é confessá-lo – não havia rapaz tão elegante no Rio de Janeiro.
Rapaz? Rapaz, sim: o doutor Pires de Aguiar pertencia a essa privilegiada classe de solteirões que se conservam rapazes durante trinta anos.
Quando lhe perguntavam a idade, respondia invariavelmente: — Orço pelos quarenta, — e durante muito tempo não deu outra resposta. Os seus contemporâneos de Academia atribuíam-lhe cinquenta, e bem puxados. As senhoras, essas não lhe davam mais que trinta e cinco.
Ele tinha um fraco pelas mulheres de teatro. Consistia o seu grande luxo em ser publicamente o amante oficial de alguma atriz. Não fazia questão de espírito nem de beleza; o indispensável é que ela ocupasse lugar saliente no palco, e fosse aplaudida e festejada pelo público. Não era o amor, era a vaidade que o conduzia à nauseabunda Cítera dos bastidores.
Essas ligações depressa se desfaziam; duravam enquanto durava o brilho da estrela; desde que esta começava a ofuscar-se, ele achava um pretexto para afastar-se dela e procurar imediatamente outra. Como era inteligente e generoso – muito mais generosos que inteligente, — nunca ficava mal com o astro caído.
Algumas vezes o rompimento era provocado por elas – pelas de mais espírito – que facilmente se enfaravam de um indivíduo tão preocupado com a própria pessoa, e tão vaidoso das suas roupas.
II
No tempo em que se passou a ação deste ligeiro conto, a nova conquista do doutor Pires de Aguiar era uma atriz portuguesa, a Clorinda, que viera de Lisboa apregoada pelas cem trombetas da réclame, e cuja estreia num dos nossos teatrinhos de opereta, o público esperava ansiosamente.
Uma hora antes de começar o espetáculo de estreia, entrou o advogado triunfantemente na caixa do teatro, levando pelo braço a sua nova amiga, elegantemente envolvida numa soberba capa de pelúcia. Ia fazer-lhe entrega do camarim, cujo arranjo confiara liberalmente ao bom gosto e à perícia dos mais hábeis tapeceiros e estofadores.
Ela ficou encantadíssima, e agradeceu com beijos quentes e sonoros a dedicada solicitude do amante.
Que belo tapete felpudo! Que bonitos quadros! Que papel bem escolhido! Que delicioso divã! Que magnífico espelho de três faces, onde o seu vulto airoso se refletia três vezes por inteiro! E que profusão de perfumarias! E que precioso serviço de toilette!…
Nada faltava também sobre a mesinha da maquilagem, intensamente iluminada por dois bicos de gás.
O doutor Pires de Aguiar tinha longa prática desses arranjos; não podia esquecer-se de nenhum dos ingredientes necessários ao camarim de uma atriz que se respeita; o arsenal estava completo.
Dali a nada ouviu-se um – Dá licença? — E o diretor de cena entrou no camarim acompanhado por uma mulher já idosa, muito pálida, de aspecto doentio, pobremente trajada.
— Dona Clorinda, aqui tem a sua costureira.
A estrela não conteve um gesto de despeito. O diretor de cena compreendeu-o, e saiu imediatamente, para não entrar em explicações.
— É doente? Perguntou Clorinda à costureira.
— Não, senhora. Tive uma doença grave, mas agora estou boa. Saí há dois dias da Santa Casa.
Clorinda trocou um olhar com o advogado, e este disse-lhe, resfestelando-se no divã:
— Ma chère, il faut se contenter de cette habilleuse; nous ne sommes pas en Europe.
Ele impingiu a frase em francês, para que na a entendesse a costureira, mas a verdade é que Clorinda também não percebeu, o que aliás não a impediu de responder: — Oui.
Despojada da mantilha e da bela capa de pelúcia Clorinda sentou-se entre os dois bicos de gás, e começou a pintar-se dizendo: — Vamos a isto!
E dirigindo-se à costureira:
— Sente-se. Porque está de pé?
A pobre mulher sentou-se a medo, como receosa de macular a palhinha dourada da cadeira com o seu miserável vestido de chita.
— Sabe que me disseram bonitas coisas a seu respeito? Perguntou a atriz ao advogado, olhando-o pelo espelho.
— Deveras?
— Ao que me parece, você tem sido um gajo!
O doutor Pires de Aguiar teve um sorriso inexprimível. Aquele gajo entrou-lhe pela vaidade a dentro como uma grã-cruz.
— Com que então a sua especialidade são as atrizes?
— Sou doido pelo teatro.
— E há quanto tempo dura essa doidice?
— Há muito tempo. Estou velho, bem vê. Orço pelos quarenta.
— Ninguém lhe dará mais de trinta e cinco.
— São os seus olhos.
— Qual foi a sua primeira paixão no teatro?
— Ah, isso…
O advogado levantou o braço e estalou os dedos.
— … isso é pré-histórico; perde-se na noite dos tempos.
— Como se chamava essa colega?
— Chamava-se Marcelina.
— Que fim levou?
Ele encolheu os ombros.
— Sei lá! Provavelmente morreu. Nunca mais ouvi falar dela. Há mulheres que desaparecem como os passarinhos que não foram mortos a tiro nem engaiolados: ninguém lhes vê os cadáveres.
— Gostou dela?
– Foi talvez a paixão mais séria da minha vida.
— Nunca mais a procurou?
— Para quê?
— Tinha talento?
— Talento? Não. Tinha habilidade.
E depois de uma pausa:
— Tinha habilidade e era muito boa rapariga.
— Brasileira?
— Sim. Representava ingênuas em dramalhões de capa e espada, ali, no São Pedro de Alcântara. Um dia – eu já a tinha deixado – um dia patearam-na por motivos que nada tinham que ver com a arte dramática; ela desgostou-se; andou mourejando pelas províncias, e afinal desapareceu. Requiescat in pace!
Entrou o cabeleireiro. Enquanto Clorinda lhe confiou a cabeça, o doutor Pires de Aguiar divagou longamente sobre os méritos da Marcelina; depois falou de outras atrizes, desfiando um interminável rosário das suas mancebias.
Clorinda, a costureira e o cabeleireiro, ouviam sem dizer palavra.
Terminado o serviço do cabeleireiro, que logo se retirou, Clorinda ergueu-se:
— Agora, meu doutor, há de me dar licença, sim? Vou vestir-me.
— Até logo, disse o advogado. O seu penteado ficou esplêndido! Vou aplaudi-la. Bonne chance!
Deu-lhe um beijo – na testa para não desmanchar a pintura, — e saiu do camarim, cuja porta a costureira discretamente fechou.
III
—Minutos depois, Clorinda estava completamente nua.
— A senhora é muito bem-feita de corpo – disse-lhe, num tom adulatório, a costureira, enfiando-lhe pela cabeça uma camisa de seda.
— Acha? Perguntou desdenhosamente a atriz.
— Ah! Eu também já fui bem-feita de corpo, mas… não tive juízo: fiei-me demais nos homens. Se quer aceitar um conselho, filha, preste mais atenção à sua arte do que a todos esses … gajos, que fazem das mulheres um objeto de luxo e nada mais. Só assim a senhora evitará o hospital e a miséria.
— Ora esta! Exclamou Clorinda. Quem é você mulher, para me falar assim?
— Eu sou … a Marcelina.
(Do livro Contos Fora da Moda)
VEM
Arthur Azevedo
VELHA ANEDOTA
Arthur Azevedo
Tertuliano, frívolo peralta,
Que foi um paspalhão desde fedelho,
Tipo incapaz de ouvir um bom conselho,
Tipo que, morto, não faria falta;
Lá um dia deixou de andar à malta,
E, indo à casa do pai, honrado velho,
A sós na sala, diante de um espelho,
À própria imagem disse em voz bem alta:
— Tertuliano, és um rapaz formoso!
És simpático, és rico, és talentoso!
Que mais no mundo se te faz preciso? —
Penetrando na sala, o pai sisudo,
Que por trás da cortina ouvira tudo,
Severamente respondeu: — Juízo. —
A AMA-SECA
Arthur Azevedo
O Romualdo, marido de D. Eufêmia, era um rapaz sério, lá isso era, e tão incapaz de cometer a mais leve infidelidade conjugal como de roubar o sino de São Francisco de Paula; mas – vejam como o diabo as arma! Um dia D. Eufêmia foi chamada, a toda a pressa, a Juiz de Fora, para ver o pai que estava gravemente enfermo, e como o Romualdo não podia naquela ocasião deixar a casa comercial de que era guarda-livros (estavam a dar balanço), resignou-se a ver partir a senhora acompanhada pelos três meninos, o Zeca, o Cazuza, o Bibi, e a ama-seca deste último, que era ainda de colo.
Foi a primeira vez que o Romualdo se separou da família. Custou-lhe muito, coitado, e mais lhe custou quando, ao cabo de uma semana, D. Eufêmia lhe escreveu, dizendo que o velho estava livre de perigo, mas a convalescença seria longa, e o seu dever de filha era ficar junto dele um mês pelo menos.
O Romualdo resignou-se. Que remédio!...
Durante os primeiros tempos saía do escritório e metia-se em casa, mas no fim de alguns dias, entendeu que devia dar alguns passeios pelos arrabaldes, hoje este, amanhã aquele. Era um meio, como outro qualquer, de iludir a saudade.
Uma noite, coube a vez ao Andaraí Grande. O Romualdo tomou o bonde do Leopoldo, e teve a fortuna ou a desgraça de se sentar ao lado da mulatinha mais dengosa e bonita que ainda tentou um marido, cuja mulher estivesse em Juiz de Fora.
Nessa noite fatal a virtude do Romualdo deu em pantanas: tencionando ele ir até o fim da linha, como fazia todas as noites, apeou-se na Rua Mariz e Barros, ali pelas alturas da Travessa de São Salvador. A mulata havia se apeado algumas braças antes.
E ele viu, à luz de um lampião, o vulto dela saltitante e esquivo, e apressou o passo para apanhá-la, o que conseguiu facilmente, porque, pelos modos, ela já contava com isso.
– Boa noite!
– Boa noite.
– Como se chama?
– Antonieta.
– Pode dar-me uma palavra?
– Por que não falou no bonde?
– Era impossível... estava tanta gente... e estes elétricos são tão iluminados.
– Mas o sinhô bolinou que não foi graça! Vamos, diga: que deseja?
– Desejo saber onde mora.
– Não tenho casa minha; tou empregada numa famia ali mais adiente, por siná que não stou satisfeita, e ando procurando outra arrumação.
– Onde poderemos falar em particular?
– Não sei.
– Você sai amanhã à noite?
– Amanhã não, porque saí hoje, e não quero abusá.
– Então, depois de amanhã?
– Pois sim.
– Onde a espero?
– Onde o sinhô quisé.
– Na Praça Tiradentes, no ponto dos bondes. Às oito horas.
– Na porta do armazém do Derby?
– Isso!
– Tá dito! Inté depois d'amanhã às oito hora.
– Não falte!
– Não farto não!
No dia seguinte, o Romualdo contou a sua aventura a um companheiro de escritório, que era useiro e vezeiro nessas cavalarias... baixas, e o camarada levou a condescendência ao ponto de confiar-lhe a chave de um ninho que tinha preparado adrede para os contrabandos do amor.
Antonieta foi pontual; à hora marcada lá estava à porta do Derby, com ares de quem esperava o bonde.
O Romualdo aproximou-se, fez um sinal, afastou-se e ela seguiu-o...
Dez dias depois, estava ele arrependidíssimo da sua conquista fácil, e com remorsos de haver enganado D. Eufêmia, aquela santa! Procurava agora meios e modos de se ver livre da mulata, cuja prosódia era capaz de lançar água na fervura da mais violenta paixão.
Vendo que não podia evitá-la, tomou o Romualdo a deliberação de fugir-lhe, e uma noite deixou-a à porta do ninho, esperando debalde por ele. Lembrou-se, mas era tarde, que havia prometido dar-lhe um anel, justamente nessa noite.
– Diabo! Pensou ele, Antonieta vai supor que lhe fugi por causa do anel!
Voltou, afinal, D. Eufêmia de Juiz de Fora. Veio no trem da manhã, inesperadamente, e já não encontrou o marido em casa.
Estava furiosa, porque a ama-seca de Bibi deixara-se ficar na estação da Barra. Podia ser que não fosse de propósito. O mais certo, porém, era o ter sido desencaminhada por um sujeito que vinha no trem a namorá-la desde Paraibuna.
Quando D. Eufêmia contou isso ao marido, acrescentou indignada:
– Que homens sem-vergonha!... Não podem ver uma mulata!...
O Romualdo perturbou-se, mas disfarçou, perguntando:
– E agora? E preciso anunciar! Não podemos ficar sem ama-seca!
– Já mandei o Zeca pôr um anúncio no Jornal do Brasil.
No dia seguinte, o Romualdo saiu muito cedo; ao voltar para casa, a primeira coisa que perguntou à senhora foi:
– Então? Já temos ama-seca?
– Já; é uma mulatinha bem jeitosa, mas tem cara de sapeca. Chama-se Antonieta.
– Hem? Antonieta?
– Que tens, homem?
– Nada; não tenho nada... E jeitosa?... Tem cara de sapeca?... Manda-a embora! Não serve! Nem quero vê-la!...
– Ora essa! Por quê? Olha, ela aí vem.
Antonieta chegou, efetivamente, com o Bibi ao colo; mas o Romualdo tinha fechado os olhos, dizendo consigo:
– Que escândalo!... Rebenta a bomba!... Este diabo vai reclamar o anel!
Mas, como nada ouvisse, o mísero abriu os olhos e – oh! Milagre! – Era outra Antonieta!
Ele pensou, os leitores também pensaram que fosse a mesma; não era.
Decididamente, há um Deus para os maridos que enganam as suas mulheres.
Artur Azevedo
I
O tenente de cavalaria Remígio Soares teve a infelicidade de ver uma noite dona Andréa num camarote do teatro Lucinda, ao lado do seu legítimo esposo, e pecou, infringindo impiamente o nono mandamento da lei de Deus.
A “mulher do próximo”, notando que a “desejavam”, deixou-se impressionar por aquela farda, por aqueles bigodes e por aqueles belos olhos negros e rasgados.
Ao marido, interessado pelo enredo do dramalhão que se representava, passou completamente despercebido o namoro aceso entre o camarote e a plateia.
Premiada a virtude e castigado o vício, isto é, terminado o espetáculo, o tenente Soares acompanhou a certa distância o casal até o largo de São Francisco e tomou o mesmo bonde que ele –um bonde do Bispo, — sentando-se, como por acaso, ao lado de dona Andreia.
Dizer que no bonde o pé do tenente e o pezinho da moça não continuaram a obra encetada no Lucinda — seria faltar à verdade que devo aos meus leitores. Acrescentarei até que, ao sair do bonde, na pitoresca rua Malvino Reis, dona Andréa, com rápido e furtivo aperto de mão, fez ao seu namorado as mais concludentes e escandalosas promessas.
Ele ficou sabendo onde ela morava...
II
O tenente Remígio Soares foi para casa, em São Cristóvão, e passou o resto da noite agitadíssimo, — pudera! Às dez horas da manhã atravessava já o Rio Comprido ao trote do seu cavalo!
Mas — que contrariedade! — As janelas de Dona Andréa estavam fechadas...
O cavaleiro foi até a rua de santa Alexandrina e voltou — patati, patatá, patati, patatá! — E as janelas não se tinham aberto...
O passeio foi renovado à tarde, — o tenente passou, tornou a passar, — continuavam fechadas as janelas...
Malditas janelas!
Durante quatro dias o namorado foi e veio a cavalo, a pé, de bonde, fardado, à paisana: nada! Aquilo não era uma casa: era um convento!
Mas ao quinto dia — oh, ventura! — Ele viu sair do convento um molecote que se dirigia para a venda próxima. Não refletiu: chamou-o de parte, untou-lhe as unhas e interpelou-o.
Soube nessa ocasião que ela se chamava Andreia. Soube mais que o marido era empregado público e muito ciumento! Proibia expressamente a senhora de sair sozinha e até chegar à janela quando ele estivesse na rua. Soube, finalmente, que havia em casa dois cérberos: uma tia do marido e um jardineiro muito dedicado ao patrão.
Mas o providencial moleque nesse mesmo dia se encarregou de entregar a dona Andreia uma cartinha do inflamado tenente, e a resposta — digamo-lo para vergonha daquela formosa desmiolada — a resposta não se fez esperar por muito tempo:
“Pede-me uma entrevista, e não imagina como desejo satisfazer a esse pedido, porque também o amo. Mas uma entrevista como?... Onde?... Quando?... Saiba que sou guardada à vista por uma senhora de idade, tia dele, e por um jardineiro que lhe é muito dedicado. Pode ser que um dia as circunstâncias se combinem de modo que nos possamos encontrar a sós... Como há um Deus para os
que se amam, esperemos que chegue esse dia: até lá, tenhamos um pouco de paciência. Mande-me dizer onde de pronto o poderei encontrar no caso de ter que preveni-lo de repente. O moleque é de confiança.”
Na esperança que o grande dia chegasse, o tenente Remígio Soares mudou-se imediatamente para perto da casa de dona Andreia: procurou e achou um cômodo de onde se via, meio encoberta pelo arvoredo, a porta da cozinha do objeto amado. Dessa porta dona Andréa fazia-lhe um sinal convencionado todas as vezes que desejava enviar uma cartinha.
III
Diz a clássica sabedoria das nações que o melhor da festa é esperar por ela. Não era dessa opinião o tenente, que há dezoito meses suspirava noite e dia pela mulher mais bonita de todo aquele bairro do Rio Comprido, sem conseguir trocar uma palavra com ela!
Os namorados, graças ao molecote, correspondiam-se epistolarmente, é verdade, mas essa correspondência violenta e fogosa, contribuía para mais atiçar a luta entre aqueles dois desejos e aumentar o tormento daquelas duas almas.
IV
Os leitores — e principalmente as leitoras — me desculparão de não pôr no final deste conto um grão de poesia: tenho de concluí-lo um pouco à Armand Silvestre. Em todo caso, verão que a moral não é sacrificada.
O meu herói andava já obcecado, menos pelo que acreditava ser o seu amor, que pelos dezoito meses de longa expectativa e lento desespero.
Um dia, o Barroso, seu amigo íntimo, seu confidente, foi encontrá-lo muito abatido, sem ânimo de se erguer da cama.
— Que tens tu?
— Ainda mo perguntas...
— Tem paciência: Jacob esperou quatorze anos.
— Esta coisa tem-me posto doente. Bem sabes que eu gozava de uma saúde de ferro... Pois bem, neste momento a cabeça pesa-me uma arroba... tenho tonteiras!...
— Isso é calor: a tua Andreia não tem absolutamente nada que ver com esses fenômenos patológicos. Queres um conselho? Mandas buscar ali à botica uma garrafinha de água de Janos. É o melhor remédio que conheço para aliviar a cabeça.
O tenente aceitou o conselho, e o Barroso despediu-se dele depois que o viu esvaziar um bom copo da benemérita água.
Vinte minutos depois dessa libação desagradável, Remígio Soares viu assomar ao longe, na porta da cozinha, o vulto airoso de dona Andreia, anunciando-lhe uma carta.
Pouco depois entrava o molecote e entregava-lhe um bilhete escrito às pressas.
“A velha amanheceu hoje com febre e não sai do quarto. O jardineiro foi à cidade chamar um médico de confiança dela. Vem depressa, mal recebas este bilhete: há de ser já, ou nunca o será talvez.”
O tenente soltou um grito de raiva: a água de Janos começava a produzir os seus efeitos fatais; era impossível acudir ao doce chamado de dona Andreia! Era impossível também confessar-lhe a causa real do não comparecimento: nenhum namorado faria confissões dessa ordem...
O mísero pegou na pena, e escreveu, contendo-se para não fazer outra coisa:
“Que fatalidade! Um motivo poderosíssimo constrange-me a não ir... Quando algum dia haja certa intimidade entre nós, dir-te-ei qual foi esse motivo, e tenho certeza que me perdoarás.”
Dona Adélia não perdoou. O tenente Remígio Soares nunca mais a viu.
V
Quando, no dia seguinte, ele contou a Barroso a desgraça de que este fora o causador involuntário, o confidente sorriu, e obtemperou:
— Vê tu que grande remédio é a água de Janos: um só copo bastou para aliviar três cabeças!
(Do livro Contos Fora da Moda)
A NÃO-ME-TOQUES!
Arthur Azevedo
I
Passavam-se os anos, e Antonieta ia ficando para tia, – não que lhe faltassem candidatos, mas – infeliz moça! –, naquela capital de província não havia um homem, um só, que ela considerasse digno de ser seu marido.
Ao Comendador Costa começavam a inquietar seriamente as exigências da filha, que repelira, já, com desdenhosos muxoxos, uma boa dúzia de pretendentes cobiçados pelas principais donzelas da cidade. Nenhuma destas se casou com rapaz que não fosse primeiramente enjeitado pela altiva Antonieta.
– Que diabo! – Dizia o Comendador à sua mulher, D. Guilhermina, – estou vendo que será preciso encomendar-lhe um príncipe!
– Ou então, acrescentava D. Guilhermina, esperar que algum estrangeiro ilustre, de passagem nesta cidade...
– Está você bem aviada! Em quarenta anos que aqui estou, só dois estrangeiros ilustres cá têm vindo: o Agassiz e o Herman.
Entretanto, eram os pais os culpados daquele orgulho indomável. Suficientemente ricos, tinham dado à filha uma educação de fidalga, habituando-a desde pequenina a ver imediatamente satisfeitos os seus mais custosos e extravagantes caprichos. Bonita, rica, elegante, vestindo-se pelo último figurino, falando correntemente o francês e o inglês, tocando muito bem o piano, cantando que nem uma prima-dona, tinha Antonieta razões sobejas para se julgar um avis rara na sociedade em que vivia, e não encontrar em nenhuma classe homem que merecesse a honra insigne de acompanhá-la ao altar.
Uma grande viagem à Europa, empreendida pelo Comendador em companhia da esposa e da filha, completara a obra. Ter estado em Paris constituía, naquela boa terra, um título de superioridade. Ao cabo de algum tempo, ninguém mais se atrevia a erguer os olhos para a filha do Comendador Costa, contra a qual se estabeleceu pouco a pouco certa corrente de animadversão.
Começaram todos a notar-lhe defeitos parecidos com os das uvas de La Fontaine, e, como a qualquer indivíduo, macho ou fêmea, que estivesse em tal ou qual evidência, era difícil escapar ali a uma alcunha, em breve Antonieta se tornou conhecida pela "Não-me-toques".
II
Teria sido realmente amada? Não, mas apenas desejada, – tanto assim que todos os seus namorados se esqueceram dela... Todos, menos o mais discreto, o mais humilde, o único talvez, que jamais se atrevera a revelar os seus sentimentos.
Chamava-se José Fernandes, e era o primeiro empregado da casa do Comendador Costa, onde entrara aos dez anos de idade, no mesmo dia em que chegara de Portugal. Por esse tempo, veio ao Mundo Antonieta. Ele vira-a nascer, crescer, instruir-se, fazer-se altiva e bela. Quantas vezes a trouxera ao colo, quantas vezes a acalentara nos braços ou a embalara no berço! E, alguns anos depois, era ainda ele quem todas as manhãs a levava e todas as tardes ia buscá-la no colégio.
Quando Antonieta chegou aos quinze anos e ele aos vinte e cinco, "Seu José" (era assim que lhe chamavam) notou que a sua afeição por aquela menina se transformava, tomando um caráter estranho e indefinível; mas calou-se, e começou de então por diante a viver do seu sonho e do seu tormento Mais tarde, todas as vezes que aparecia um novo pretendente à mão da moça, ele assustava-se, tremia, tinha acessos de ciúmes, que lhe causavam febre, mas o pretendente era, como todos os outros, repelido, e ele exultava na solidão e no silêncio do seu platonismo.
Materialmente, Seu José sacrificara-se pelo seu amor. Era ele, como se costuma dizer (não sei com que propriedade) o "tombo" da casa comercial do Comendador Costa; entretanto, depois de tantos anos de dedicação e amizade, a sua situação era ainda a de um simples empregado; o patrão, ingrato e egoísta, pagava-lhe em consideração e elogios o que lhe devia em fortuna. Mais de uma vez, apareceram a Seu José ocasiões de trocar aquele emprego por uma situação mais vantajosa; ele, porém, não tinha ânimo de deixar a casa onde ao seu lado Antonieta nascera e crescera.
III
Um dia, tudo mudou de repente. Sem dar ouvidos a Seu José, que lhe aconselhava o contrário, o Comendador Costa empenhou a sua casa numa grande especulação, cujos efeitos foram desastrosos, e, para não fechar a porta, viu-se obrigado a fazer uma concordata com os credores. Foi este o primeiro golpe atirado pelo destino contra a altivez da Não-me-toques. A casa ia de novo se levantando, e já estava quase livre dos seus compromissos de honra, quando o Comendador Costa, adoecendo gravemente, faleceu, deixando a família numa situação embaraçosa.
Um verdadeiro deus ex-machina apareceu, então, na figura de Seu José que, reunindo as suadas economias que ajuntara durante trinta anos, e associando-se a D. Guilhermina, fundou a firma Viúva Costa & Fernandes, e salvou de uma ruína iminente a casa do seu finado patrão.
IV
O estabelecimento prosperava a olhos vistos e era apontado como uma prova eloquente de quanto podem a inteligência, a boa fé e a força de vontade, quando o falecimento da viúva D. Guilhermina veio colocar a filha numa situação difícil... Sozinha, sem pai nem mãe, nem amigos, aos trinta e dois anos de idade, sempre bela e arrogante em que pesasse a todos os seus dissabores, aonde iria a Não-me-toques?
Antonieta foi a primeira a pensar que o seu casamento com José Fernandes era um ato que as circunstâncias impunham... Antes da sua orfandade, jamais semelhante coisa lhe passaria pela cabeça. Não que Seu José lhe repugnasse: bem sabia quanto esse homem era digno e honrado; estimava-o, porém, como a um tio, ou a um irmão mais velho, – e ela, que recusara a mão de tantos doutores, não podia afazer-se a ideia de se casar com ele. Entretanto, esse casamento era necessário, era fatal. Demais, a Não-me-toques lembrava-se de que o pai, irritado contra os seus contínuos e impertinentes muxoxos, um dia lhe dissera:
– Não sei o que supões que tu és, ou o que nós somos! Culpa tive eu em dar-te a educação que te dei! Sabes qual é o marido que te convinha? Seu José! Seria um continuador da minha casa e da minha raça!
Tratava-se, por conseguinte, de homologar uma sentença paterna. A continuação da casa já estava confiada a Seu José: era preciso confiar-lhe também a continuação da raça. Assim, pois, uma noite ela chamou-o e, com muita gravidade, pesando as palavras, mas friamente, como se se tratasse de uma simples operação comercial, lhe deu a entender que desejava ser sua mulher, e ele, que secretamente alimentava a esperança desse desenlace, confessou-lhe trêmulo, e com os olhos inundados de pranto, que esse tinha sido o sonho de toda a sua vida.
V
Casaram-se. Nunca um marido amou tão apaixonadamente a sua esposa. Seu José levou à Antonieta um coração virgem de outra mulher que não fosse ela; fora das suas obrigações materiais, amá-la, adorá-la, idolatrá-la, tinha sempre sido e continuava a ser a única preocupação do seu espírito...
Entretanto, não era feliz; sentia que ela o não amava, que se entregara a ele apenas para satisfazer a uma conveniência doméstica: era apática; sem querer, fazia-lhe sentir a cada instante a superioridade terrível das suas prendas. Ninguém melhor que ele, tendo sido, aliás, até então, o único homem que lhe tocara, se convenceu de quanto era bem aplicada aquela ridícula alcunha de Não-me-toques. O pobre diabo tinha agora saudades do tempo em que a amava em silêncio, sem que ninguém o soubesse, sem que ela própria o suspeitasse.
VI
Antonieta aborrecia-se mortalmente naquele casarão onde nascera, e onde ninguém a visitava, porque o seu caráter a incompatibilizara com toda a gente. O marido, avisado e solícito, bem o percebeu. Admitiu um bom sócio na sua casa comercial, que prosperava sempre, e levou Antonieta à Europa, atordoando-a com o bulício das primeiras capitais do Velho Mundo.
De volta, ao cabo de um ano, construiu uma bela casa no bairro mais elegante da cidade, encheu-a de mobílias e adornos trazidos de Paris, e inaugurou-a com um baile para o qual convidou as famílias mais distintas. Começou então uma nova existência para Antonieta, que, não obstante aproximar-se da medonha casa dos quarenta, era sempre formosa, com o seu porte de rainha e o seu colo opulento, de uma brandura de cisne.
As suas salas, profundamente iluminadas, abriam-se quase todas as noites para grandes e pequenas recepções: eram festas sobre festas. Agora já lhe não chamavam a Não-me-toques; ela tornara-se acessível, amável, insinuante, com um sorriso sempre novo e espontâneo para cada visita. Fizeram-lhe a corte, e ela, outrora impassível diante dos galanteios, escutava-os agora com prazer.
Um galã, mais atrevido que os outros, aproveitou o momento psicológico e conseguiu uma entrevista. – Esse primeiro amante foi prontamente substituído. Seguiu-se outro, mais outro, seguiram-se muitos...
VII
E quando Seu José, desesperado, fez saltar os miolos com uma bala, deixou esta frase escrita num pedaço de papel:
"Enquanto foi solteira, achava minha mulher que nenhum homem era digno de ser seu marido; depois de casada (por conveniência) achou que todos eles eram dignos de ser seus amantes. Mato-me."
(Correio da Manhã, 12 de outubro de 1902)
A PEQUETITA
Arthur Azevedo
Como o Bandeira é positivista e não admite a vacina, o Coriolano, que é sobrinho do Bandeira e dirigido por ele, não quis que a Pequetita se vacinasse. Quando D. Isaura, sua esposa, lhe falou nisso, foi como se lhe propusesse uma vergonha.
– Pois tu conheces as minhas ideias e me propões semelhante coisa? Vacinar a Pequetita? Que diria o tio Bandeira?
D. Isaura, que tinha muito bom senso, não costumava contrariar a vontade do marido: submetia - se resignadamente a quanto ele dizia. Por seu gosto, a Pequetita se vacinaria; mas como o Coriolano era de opinião contrária, a Pequetita não seria vacinada. Ora aí está.
Mas veio a varíola, e o bairro em que morava o Coriolano foi o mais experimentado pela epidemia. O pobre-diabo via, aterrorizado, passarem todos os dias enterros de crianças da vizinhança, e tremia pela sorte da Pequetita.
Um dia em que o tio Bandeira lhe apareceu em casa, o Coriolano deu-lhe uma pequena investida em favor da vacinação, mas o positivista foi inflexível: lançou-lhe um olhar severo, pegou no chapéu e na bengala e disse:
– Se você me torna a falar em vacina, saio por aquela porta e nem o Teixeira Mendes será capaz de fazer com que eu aqui ponha mais os pés!
– Bom, não se zangue, meu tio: já cá não está quem falou.
Entretanto, a epidemia aumentava cada vez mais, e o Coriolano, que andava inquieto e sobressaltado, um dia apanhou D. Isaura a jeito e fez-lhe ver os seus receios.
– Se não fosse o tio Bandeira.
– Mandarias vacinar a Pequetita?
– É exato.
– Entretanto, não te aconselho a que o faças sem lhe dizer francamente que tomaste essa resolução. Se lhe mentisses, ele não te perdoaria!
– Ô diabo! Se a Pequetita. Oh! Nem disso me quero lembrar! Eu teria remorso toda a vida!
– Pois vai à casa do tio Bandeira, e dize-lhe com toda a hombridade que vais mandar vacinar a menina! Não és nenhuma criança nem nenhum idiota que se deixe governar pelos outros!
– Tens razão.
O Coriolano foi à casa do tio Bandeira, e voltou amargurado, com lágrimas nos olhos e na voz.
– Então? Falaste-lhe? – Perguntou D. Isaura.
– Não.
– Por quê?
– Encontrei-o morto!
– Morto?!
– De varíola hemorrágica! Foi atacado anteontem, e, hoje ao meio-dia, era cadáver! E eu sem saber de nada! Pobre do Bandeira!...
E o Coriolano desatou em pranto.
Quando serenou, disse a D. Isaura:
– Amanhã, pela manhã... hoje mesmo, ser for possível, vacina-se a Pequetita.
– Não é preciso.
– Por quê?
– Porque a Pequetita há dois meses que está vacinada.
– Há dois meses?!
– Sim! Desde que começou a epidemia!
– E nada me disseste!
-–Para quê? Para te zangares? Se fiz mal, Deus me perdoará porque fui levada pelo meu instinto
de mãe.
UMA VALSA
(Arthur Azevedo)
(...)
Valsa ditosa
Vertiginosa
Que delícia nos fazes gozar!
Débil cintura
Com mão impura
O direito nos dás de apertar!
Túmidos seios,
Cerúleos veios
Junto ao peito sentimos arfar!
Há melhor gosto
Que um lindo rosto
A' distância de um beijo fitar?
Quatro imprudentes
Lábios ardentes
Por acaso se podem tocar...
Eternas horas,
Noites e auroras,
Uma valsa devera durar!
(...)
É agora!
Lá vão,
Embora
Cansados!
Danados
Estão!
O moço
Destroço
Na trança
Causou:
O cravo
— Que agravo! —
Na dança
Roubou!
A trança
Rolou!
E todos
Tais modos
Lamentam,
Comentam:
— Audácia!
— Filáucia!
— Tunante!
— Tratante!
Já chovem
Protestos.
— Que horror! —
E o jovem,
Os restos
Beijando
Da flor,
Pulando,
Suando,
Mostrando
Furor,
Não pára,
E, a cara
Metendo,
Vai tendo
Lugar!
A triste
Resiste
Nos braços
Devassos
Do par.
O esposo,
Furioso,
A banda
Não manda
Calar!
A bela
Senhora
Desmaia:
Na sala,
Sem fala
Descai!
Descaia!
Que, embora
Sem ela,
O ovante
Dançante
Lá vai!
— Mas pare!
— Repare!
— Faz mal!
Aviso
De siso
Não val!
— Pisou-me!
— Matou-me!
— Socorro,
Que eu morro
Papai!
— Borracho
Estará?
— Eu acho
Que está!
E a banda
Tão rara,
Nefanda,
Não pára!
O amigo
Co'as pernas
Ligeiras
E eternas
Levando
Consigo
Cadeiras,
Quebrando
Sofás,
A gente
Pisando
Que frente
Lhe faz,
Não cansa
Na dança,
Zás, traz!
E lhe ouço
— Que moço!
Girando,
Gritando,
Dizer:
— Almejo,
Desejo
Dançando,
Valsando
Morrer! —
(...)
BILHETE 345
Arthur Azevedo
– És o rei dos caiporas, e, além disso, não tens a menor parcela de bom senso! Não fosse eu tua mulher, e não sei o que seria de ti, porque decididamente não te sabes governar!
– Exageras, nhanhã!
– Não! não sabes! Tens deixado estupidamente um rol de vezes passar a fortuna perto de ti, sem a agarrar pelos cabelos! Dizem que ela é cega: cego és tu!
– Já vês que a culpa não é minha…
– Quando houve o Encilhamento, só tu não te arranjaste!
– Mas também não me desarranjei…
– Para seres promovido a 1o oficial da tua Repartição, foi preciso que eu saísse dos meus cuidados e procurasse o ministro.
– Fizeste mal.
– Se o não fizesse, não passarias da cepa torta!
– Não quero obscurecer o mérito da tua diligência, mas olha que estás enganada, nhanhã.
– Deveras?
– Redondamente enganada. A nomeação era minha. Quando fui agradecê-la ao ministro, este disse-me: “Não era preciso que sua senhora se incomodasse: o decreto estava lavrado.”
– Pois sim! isso disse ele… E quando o decreto estivesse, efetivamente, lavrado? Á última hora seriam capazes de substitui-lo por outro! Pois se és tão caipora!
– Perdoa, nhanhã, mas não sou tão caipora assim… Pelo menos tive uma grande felicidade na vida!
– Qual foi, não me dirás?
– A de ter casado contigo…
Nhanhã mordeu os lábios, porque não achou o que responder, e naquele dia as suas impertinências habituais não foram mais longe.
* * *
O pobre Reginaldo – assim se chamava o marido – habituara-se de muito àquelas recriminações insensatas, e era um quase fenômeno de resignação e paciência.
Ela bem sabia que a coisa seria outra, se realmente a fortuna se deixasse agarrar pelos cabelos: o que nhanhã não lhe perdoava era a sua pobreza, – não era o seu caiporismo. Ela não podia ter em casa do marido o mesmo luxo que tinha em casa do pai; não podia rivalizar com alguma amiga em ostentação: era isto, só isto que a afligia, ou antes, que os afligia a ambos, marido e mulher.
* * *
Reginaldo tinha aversão ao jogo; nem mesmo a loteria o tentava.
Entretanto, uma tarde meteu-se num bonde do Catete, para recolher-se à casa, e no Largo do Machado, onde se apeou, pois morava naquelas imediações, foi perseguido por um garoto que à viva força lhe queria impingir um bilhete de loteria, – uma grande loteria de cem contos de réis, cuja extração estava anunciada para o dia seguinte.
Reginaldo resistiu, caminhando apressado sem dar resposta ao garoto, que o acompanhava insistindo; mas de repente lhe acudiu a idéia de que aquele maltrapilho poderia ser a fortuna disfarçada. Era preciso agarrá-la pelos cabelos! Comprou o bilhete, e foi para casa, onde o esperavam os tristes feijões quotidianos.
* * *
Ele bem sabia que, se dissesse a nhanhã que havia feito essa despesa extra-orçamentária, não teria a sua aprovação; mas que querem, – o pobre rapaz era um desses maridos submissos, que não ficam em paz com a consciência quando não contam por miúdo às caras-metades tudo quanto lhes sucede.
Ao saber da compra do bilhete, nhanhã pôs as mãos na cabeça:
– Quando eu digo que tu não tens a menor parcela de bom senso…! Aí está! Dez mil-réis deitados fora, e tanta coisa falta nesta casa!…
E seguiu-se, durante meia hora, a relação dos objetos que poderiam ser comprados com aqueles dez mil-réis perdidos.
Depois disso, nhanhã pediu para ver o bilhete.
Reginaldo, sem proferir uma palavra, tirou-o do bolso e entregou-lho.
– Número 345! exclamou ela. Um número tão baixo numa loteria de cinqüenta mil números! Isto é o que se chama vontade de gastar dinheiro à toa! Algum dia viste, nessas grandes loterias, ser premiado um número de três algarismos?
Reginaldo confessou que nem sequer olhara para o número. Como o garoto se lhe afigurou a fortuna disfarçada, ele aceitou o bilhete que lhe fora oferecido, entendendo que não devia argumentar com a fortuna.
– 345! Pois isto é lá número que se compre!
– Agora não há remédio.
– Como não há remédio? Põe o chapéu e volta imediatamente ao Largo do Machado: o garoto ainda lá deve estar. Dá-lhe o bilhete e ele que te dê o dinheiro.
– Perdoa, nhanhã, mas isso não faço eu: comprei! Nem o garoto desfazia a compra!
– Ao menos vai trocar o bilhete por outro, que tenha, pelo menos, quatro algarismos! Se tiver cinco, melhor!
– Faço-te a vontade: mas olha que sempre ouvi dizer que bilhetes de loteria não se trocam…
– Faze o que eu disse e não resmungues! Tu és o rei dos caiporas e eu tenho muita sorte!
Reginaldo não disse mais nada: pôs o chapéu, saiu de casa, foi ao Largo do Machado, e voltou com outro bilhete.
Desta vez o número tinha cinco algarismos: 38788; nhanhã devia ficar satisfeita.
Não ficou:
– Devias escolher um número mais variado: o 8 fica aqui três vezes.. – Mas, enfim, 38788 sempre inspira mais confiança que 345…
* * *
Pois, senhores, no dia seguinte o n.0 38788 saiu branco, e o n.0 345 foi premiado com a sorte grande.
* * *
Imagine-se o desespero de nhanhã:
– Então, eu não digo que és o rei dos caiporas?
– Perdoa, nhanhã, mas desta vez não fui o rei: tu é que foste a rainha…
– Cala-te! Se não fosses um songamonga, não me terias feito a vontade! Ter-me-ias roncado grosso!
– Ora essa!
– Um marido não se deve deixar dominar assim pela mulher!
– Olha que eu pego na palavra…
– Trocar um bilhete de loteria! Que absurdo!…
– Absurdo aconselhado por ti…
– Mas tu já não estás em idade de receber conselhos!
– Bom; de hoje em diante baterei com o pé e roncarei grosso todas as vezes que me contrariares! Esta casa vai cheirar a homem!…
A boas horas vêm esses protestos de energia!
E exclamando com os punhos cerrados e os olhos voltados para o teto: “Cem contos de réis”!, nhanhã deixou-se cair sentada numa cadeira, e desatou a chorar.
* * *
Mal que a viu naquele estado aflitivo, Reginaldo correu para junto dela, e disse-lhe com muito carinho:
– Sossega. Eu fiz uma coisa… mas vê lá! não ralhes comigo…
– Que foi?
– Não troquei o bilhete!
Não trocaste o bilhete? gritou nhanhã erguendo-se de um salto, com os olhos muito abertos.
– Não! pois eu fazia lá essa asneira! Seria deixar fugir a fortuna, depois de a ter agarrado pelos cabelos!
– Compraste então o outro bilhete?
– Comprei…
– Nesse caso… estamos ricos?
– Temos cem contos.
– Ora, graças que um dia fizeste alguma coisa com jeito!
– Qual! eu continuo a ser o rei dos caiporas.
– Não digas isso!
– Digo, porque se o não fosse, o número 38788 teria apanhado a sorte imediata…
(Correio da Manhã, 16 de outubro de 1904)
Arthur Azevedo
Quando madame D’Arbois chegou ao Rio de Janeiro, escriturada numa troupe parisiense que fez as delícias dos frequentadores do Cassino Franco-Brésilien, muitos rapazes se apaixonaram por ela. Dizia-se que madame D’Arbois resistia heroicamente a todas as seduções, guardando absoluta fidelidade ao marido, um cabotin qualquer, que ficara em França, esperando filosoficamente que ela voltasse da América endinheirada feliz.
O jovem Comendador Cardoso, que não acreditava em Penélopes de bastidores, e era, em questões eróticas, de uma diplomacia insigne, com tanta habilidade soube levar água ao seu moinho, que, ao cabo de dois meses, vivia maritalmente com madame D’Arbois.
Por esse tempo dissolveu-se a troupe, e o jovem Comendador Cardoso aproveitou o ensejo para pedir à amiga que abandonasse o teatro. Nada lhe faltaria em casa dele, que era negociante e rico. Ela aceitou depois de muito hesitar, impondo como condição, que ele estabeleceria ao marido, em Paris, uma pequena mesada de quinhentos francos.
Durante um ano as delícias dessa mancebia não foram perturbadas pela mais leve contrariedade. O jovem Comendador Cardoso e madame D’Arbois pareciam talhados um para o outro. Ele era um homem simpático, de trinta anos, pouco instruído é verdade, mas senhor desses hábitos sociais que até certo ponto dispensam a educação literária. Ela era uma mulher bonita alegre, quase espirituosa, e uma senhora dona de casa, econômica e asseada como todas as francesas. Que mais poderiam desejar?...
******
Tudo cansa. Ao cabo de um ano, madame D’Arbois começou a sentir nostalgia dos bastidores. De mais a mais, aconteceu que o empresário da melhor companha brasileira de operetas, mágicas e revistas, lhe ofereceu um vantajoso contrato convidando-a, nada mais nem menos, para substituir a estrela de maior grandeza que então brilhava no firmamento do teatro fluminense, estrela que se retirava temporariamente para a Europa.
O jovem Comendador Cardos pôs os pés à parede. Que não, que não, que não! A Lolotte – madame D’Arbois chamava-se Charlotte – não precisava trabalhar para viver! Que o não aborrecessem!...
– Mas non, mas non! Il ne s’agite poin d’argent, mon pauvre chéri, obtemperava Lolotte; je sens que je ferais une grosse maladie si je ne rétourne pau au theathre! Eh bien... voyons... sois gentil... Il faut que tu y consentes...
Um negociante, compadre do empresário, foi ter com o jovem Comendador Cardoso, de quem era amigo íntimo e interveio com muito empenho:
– Que diabo! Consente, Cardosinho, consente! Se não lhe fazes a vontade, ela contraria-se, e não há nada pior que uma mulher contrariada. Depois, vê lá; não é nada, não é nada, mas sempre são seiscentos bagarotes que a pequena mete no Banco todos os meses! Não vá tu privá-la deste pecúlio.
Este último argumento foi irresistível. Mês e meio depois, madame d’Arbois estreava-se no papel de protagonista de uma opereta.
Foi completo o seu triunfo. Ela falava um português fantástico, e na cantoria desafinava que era um horror, mas o público, o magnânimo público fluminense, fechou os olhos a esses defeitos, e aplaudiu-a freneticamente. Madame d’Arbois teve que repetir três vezes certas coplas cuja letra ninguém percebia, mas eram cantadas com um movimento de quadris capaz de entontecer um santo.
******
Razão tinha o jovem Comendador Cardoso em não querer que a amiga voltasse para o teatro. Dentro de pouco tempo notou nas suas maneiras uma diferença enorme. A diva contrariava-se visivelmente quando ele, cansado de esperá-la no saguão do teatro, penetrava até o camarim.
Uma vez, encontrou lá dentro, familiarmente sentado, o Lopes, o primeiro ator cômico da companhia. Que logo se retirou, dizendo:
– Adeusinho, Comendador; vim cá restituir à colega o rouge que lhe pedira emprestado.
Ele não podia desconfiar do Lopes. Era este um artista de talento, e o público estimava-o deveras, mas a Lolotte poderia lá gostar de um homem tão feio, tão desdentado e tão pouco cuidadosa da sua roupa!
Entretanto, uma carta anônima, escrita com letra de mulher, tudo lhe disse. A primeira atriz cantora e o primeiro ator cômico encontravam-se quase todos os dias, depois do ensaio, em casa de uma corista perto do teatro.
Um dia, o jovem Comendador Cardoso, depois de se haver posto em observação numa casa que ficava em frente à da hospitaleira corista, saiu, atravessou a rua e entrou na sala das entrevistas. Lolotte estava sentada, de pernas cruzadas, a fumar um cigarro turco; o Lopes de pé, em ceroulas.
O primeiro ator cômico, ao ver o jovem Comendador Cardoso, não perdeu o sangue frio, e começou a fingir que estava a ensaiar:
– É como vos digo, princesa Briolanja; o rei, vosso pai, não acredita nas palavras da Fada das Safiras, e quer absolutamente encontrar nos seus reinos um mancebo, fidalgo ou vilão, que vença o Dragão Vermelho, e vos despose!...
Mas o jovem Comendador Cardoso não engoliu a pílula, e disse, dirigindo-se à princesa Briolanja, que continuava a fumar o seu cigarro turco:
– Bem; estou satisfeito; vi o que queria ver. Fique-se com o senhor Lopes, que realmente é digno da senhora!
E saiu arrebatadamente.
- E agora? perguntou o cômico.
– - Oh! Ele voltará! afirmou ela, carregando os erres, entre uma baforada de fumo.
E foram deitar-se.
******
O jovem Comendador Cardoso não voltou, e madame d’Arbois ficou bastante contrariada, porque o ator Lopes tinha numerosa família – mulher e filhos – e não lhe dava um vintém. Demais, ela bem depressa fartou-se desses amores reles. Que doidice a sua: trocar por aquele tipo um rapaz rico, inteligente, simpático e generoso!
Acresce que a opereta, recebida com grande entusiasmo durante as trinta primeiras representações, já não atraía o público; o teatro ficava agora todas as noites vazio e o empresário já devia um mês de ordenados à companhia...
******
A primeira representação da peça que estava em ensaios, a tal em que entravam a Fada das Safiras e o Dragão Vermelho, devia ser dada em benefício do Lopes, e esse espetáculo era ansiosamente esperado. O beneficiado via-se doido para atender aos numerosos pedidos de bilhetes. Nos jornais apareciam todos os dias grandes reclames à “festa artística”, anunciada também pelas esquinas em vistosos cartazes, onde esse nome – LOPES – se destacava em enormes caracteres vermelhos.
Chegou a noite do espetáculo. As sete horas e meia as torrinhas, os corredores e o jardim do teatro já estavam apinhados. Uma hora depois, a sala transbordava, e todo aquela gente abanava-se com leques, ventarolas, lenços e programas, bufando de calor. Os espectadores das torrinhas batiam com os pés e as bengalas, e dirigiam chufas aos da plateia e dos camarotes, talvez com a ideia de se vingarem de os ver em lugares menos incômodos. Os críticos teatrais estavam a postos. Os músicos afinavam os instrumentos; um garoto apregoava o retrato e a biografia do glorioso Lopes; as conversações cruzavam-se; e todos esses ruídos juntos produziam um barulho ensurdecedor e terrível.
De repente, ouviu-se o agudo som de uma sineta, ao mesmo tempo em que uma campainha elétrica retinia longamente, e a sala, até então quase escura, aparecia numa intensidade de luz, arrancando um prolongado O......o....oh!.... das torrinhas... Eram nove horas.
Restabelecido o silêncio, o regente da orquestra subiu vagarosamente para o seu lugar, abriu a partitura, falou em voz baixa a alguns músicos, bateu três pancadas na estante, levantou a batuta, e fez executar a ouverture.
Terminada esta, naturalmente esperavam todos que o pano subisse, mas não subiu.
Passaram-se alguns minutos.
Começou o público a impacientar-se, batendo com os pés. A pateada cresceu. Uma ordenança foi destacada do camarote da polícia para o palco. O beneficiado, vestido de escudeiro de mágica, surdiu no proscênio e foi recebido com uma salva de palmas. Mas de todos os lados fizeram Psiu! psiu! – E o barulho cessou.
- Respeitável público, disse o primeiro ator cômico – o espetáculo não pode ter começo, porque a atriz madame d’Arbois, incumbida de um dos principais papéis, até agora não apareceu no teatro. Rogo-vos humildemente que espereis alguns minutos mais, e me perdoeis esta falta, inteiramente alheia à minha vontade.
Esse cavaco foi acolhido com outra salva de palmas. O Lopes retirou-se, cumprimentado e agradecendo para a esquerda, para a direita, para cima, para baixo, e os comentários, os risos, as imprecações e os gracejos começaram num vozerio atroador.
De vez em quando saíam da caixa do teatro, ou para lá entravam, correndo pelo corredor, pessoas azafamadas, espavoridas – empregados da contrarregra, costureiras, etc. –, mandadas à procura de madame d’Arbois.
Passava das nove e meia quando o Lopes, coagido pela polícia, veio de novo ao proscênio declarar que, não se achando madame d’Arbois no teatro nem na casa de sua residência, ficava o espetáculo transferido para quando se anunciasse.
Desta vez não houve palmas que saudassem o primeiro ator cômico.
A saída dos espectadores fez-se no meio de uma confusão indescritível. Muitos exigiram que lhes fosse restituído o dinheiro, e promoveram desordem na bilheteria. Foi necessária a intervenção da polícia. Só às onze horas, pôde ser restabelecida a ordem e fechado o teatro.
******
Onde estava madame d’Arbois?
No dia do espetáculo ela acabara de jantar, e, reclinada na sua espreguiçadeira, relia mais uma vez o interessante papel de princesa Briolanja que devia representar essa noite, quando lhe trouxeram uma carta do jovem Comendador Cardoso.
– Ah! Ah! Pensou a francesa com um sorriso de triunfo, voltou ou não voltou?
E abriu a carta:
“Lolotte – Escreveste-me, pedindo que te perdoasse. Perdoo-te, mas sob uma condição: deixarás de
representar hoje no benefício do homem que foi o causador da nossa separação, ou, por outra, nunca mais representarás. Só assim serei para ti o mesmo que já fui. Se aceitas, mete-te no carro que aí te irá buscar às sete horas da noite, e vai ter comigo no Hotel Laroche, no alto da Tijuca, onde estou passando uns dias, e onde ficarás em minha companhia. Se não, não. – Cardoso.”
A princesa Briolanla leu e releu este bilhete. Era o perdão, era o descanso, era a fortuna, que lhe traziam aquelas letras. Deixando de comparecer ao espetáculo, ela praticava uma ação feia, provocava um escândalo inaudito, mas isso que lhe importava, se saía do teatro e ia outra vez estar de casa e pucarinha com aquele homem distinto a quem tantos favores e tanto afeto devia?
Pouco depois da hora aprazada, Lolotte entrou no discreto coupé que a esperava à porta de casa, e chegou ao Hotel Laroche precisamente na ocasião em que o Lopes desesperado, apelava para a paciência do público.
******
Ao entrar no hotel, madame d’Arbois perguntou a um criado:
– O Comendador Cardoso?
– Não está, mas deixou um bilhete para a madame d’Arbois. É a senhora?
- Sim, sou eu.
E a desgraçada leu o seguinte:
“Caíste como um patinho, minha toleirona. Estou vingado de ti e do teu Lopes. Volta para ele; é tão pulha, que talvez te aceite ainda. – Cardoso.”
Arthur Azevedo
Ele aparecera um belo dia na casa de pensão de Dona Eugênia, acompanhado de três baús e um pequeno cofre de ferro. Pedira o aposento mais barato, e regateara o preço da comida, porque, dizia ele, estava habituado a tomar uma única refeição por dia, e parca, muito parca.
Ninguém sabia de onde vinha aquele velho, nem ele o dizia, conquanto não fosse precisamente um taciturno. Gostava de dar à língua, mas quando algum abelhudo o interrogava sobre a sua vida, ele não respondia, dando a entender apenas, por meias palavras, que passara por sérios dissabores, que tinha sofrido muito e mudara de terra para que ninguém lhe lembrasse o passado.
Sabia-se apenas que se chamava Andrade, era português, e emigrara muito criança para uma das nossas províncias onde viveu perto de sessenta anos.
Não consentia entrassem no seu quarto, que ele próprio varria e espanava, deixando-se ficar horas e horas sozinho, fechado à chave, abrindo e remexendo o cofre e os baús.
Um dos hóspedes, o Braguinha, guarda-livros de uma casa importante, afirmou ouvir no aposento do velho o tilintar de moedas de ouro.
– Aquilo é uma espécie de tio Gaspar, dos Sinos de Corneville – afirmava o dito Braguinha, com uma convicção que se comunicou aos outros hóspedes.
***
Mas podia lá ser! O velho Andrade tinha a roupa no fio, o chapéu surrado, os sapatos a rir, e era com um suspiro doloroso e profundo que pagava, no fim do mês, a sua módica pensão.
***
A dona da casa, que era viúva, e tinha três filhos, três bonitos rapazes, o mais velho dos quais contava apenas treze anos, também se convenceu de que o seu novo hóspede era um avarento sórdido; intimá-lo-ia, talvez, a procurar cômodo noutra parte, se ele não se tivesse afeiçoado desde logo aos três meninos, mostrando-lhes uma simpatia fora do comum, contando-lhes histórias que os divertiam. Quem meus filhos beija, minha boca adoça.
– Adoro as crianças - dizia o velho a Dona Eugênia. – Que quer? Não tenho mais ninguém sobre a terra: sou completamente só.
– Só? Pois nem um parente?...
– Nem um aderente, minha senhora! A morte levou-me quantos eu amava, e esqueceu-se de mim neste mundo de atribulações e misérias.
***
Havia um negociante, o Barbosa, sujeito de meia-idade, compadre da Dona Eugênia, que a visitava miúdo e a assistia com os seus conselhos de homem prático. As más línguas diziam que esse amigo do defunto era alguma coisa mais que um simples conselheiro, porém sobre esse ponto não tenho nenhuma indicação exata, nem ele importa à minha narrativa.
A verdade é que, com a morte do marido, Dona Eugênia se achou numa situação muito precária, e foi o compadre quem lhe forneceu o capital necessário para o estabelecimento da casa de pensão, que prosperava.
Um dia em que Dona Eugênia lhe disse que a presença do misterioso velhote a aborrecia, e ela já o teria posto a andar, se ele se não mostrasse tão amigo dos rapazes, o Barbosa retorquiu:
– Pô-lo a andar? Que lembrança! Pelo contrário: conserve-o. Este hóspede foi a fortuna que lhe entrou em casa!
– A fortuna?
– A fortuna, sim! É um velho rico e avarento, que não tem herdeiros... Pô-lo fora! Que ideia! Trate-o com todo o carinho, e faça com que seus filhos o respeitem e o amem.
Naquela casa o Barbosa tinha sempre razão. Poucos dias depois, Dona Eugênia oferecia ao velho Andrade, pelo mesmo preço, um aposento maior, mais espaçoso, mais arejado, com boa mobília, colchão de arame e duas janelas dizendo para o jardim.
Fez mais: obrigou-o, com bons modos, a tomar duas refeições por dia, como os demais hóspedes, e pela manhã mandava-lhe chocolate ou café com leite e biscoitos.
O velho derramava lágrimas de reconhecimento, admirando-se, dizia ele, de tanta bondade para com um pobre diabo inútil, que não tinha onde cair morto.
Dona Eugênia conseguiu, com a habilidade de um diplomata, saber o dia em que fazia anos o velho, e nesse dia o pobre homem foi presenteado pelos menos com roupa e calçado. Agora não lhe faltava nada.
O Braguinha, vendo que o velho simpatizava com ele, e na esperança de ser contemplado por sua morte, começou também a mimoseá-lo com guloseimas, charutos finos, livros interessantes, jornais ilustrados, etc.
Entretanto, o velho não modificou os seus hábitos de solidão. Ninguém lhe entrava no quarto onde continuava diariamente, durante horas e horas – a abrir e fechar o cofre e os baús.
Um dia, quando ele ia pagar a Dona Eugênia a sua pensão, esta disse-lhe:
– Não se ofenda com ~ que lhe vou pedir: guarde o seu dinheiro; não tem que pagar coisa alguma; a sua mensalidade não me faz ficar mais rica nem mais pobre; quero que o senhor seja considerado nesta casa como pessoa da família.
***
A situação durou assim muito tempo. O velho Andrade passava uma vida de lorde, tratado a vela de libra.
Agora, manifestava desejos, apetecia coisas, e bastava a mais leve insinuação para ser logo presenteado tanto pela viúva como pelo Braguinha.
Este foi afastado a conselho do prudente Barbosa. Era um concorrente perigoso. Tanto fizeram, que o guarda-livros foi obrigado a mudar-se, não deixando, contudo, de visitar o velho todas as vezes que o podia fazer, porque a viúva sequestrava o seu precioso hóspede.
***
Já estava o Andrade havia dois anos na casa de pensão, quando uma noite, achando-se a sós com Dona Eugênia, disse-lhe:
– Quero fazer-lhe urna comunicação, minha santa protetora. Estou velho e posso morrer de um momento para outro...
– Não diga isso; o senhor tem para dar e levar!
– Há lá no meu quarto um cofre de ferro cuja chave está sempre comigo. Esse cofre é um absurdo, uma fantasia, porque nada tenho senão quatro patacas e umas bugigangas sem valor. Pois bem; previno-a de que lá dentro está o meu testamento... – O seu testamento! Dirá a senhora; mas você não tem o que deixar! – Pois tenho, sim senhora – tendo naqueles baús muitos objetos, de nenhum valor, é verdade, mas que, se eu fechasse os olhos sem ter feito as minhas disposições testamentárias, seriam arrecadados pelo consulado português e vendidos em hasta pública. É isso que desejo evitar, dando destino ao que é meu.
Essa revelação fez com que redobrassem os carinhos que cercavam o velho. Levavam-no aos teatros, às festas, aos passeios; enchiam-no de marmeladas e vinhos finos. Os meninos habituaram-se a chamar-lhe "vovô Andrade".
E o hóspede tornou-se caro. Só não lhe davam médico e botica, porque tinha uma saúde de ferro, e nunca precisou disso.
E sempre a mesma reserva, sempre o mesmo mistério sobre o seu passado; não havia meio de lhe arrancar uma confidência!
***
Dona Eugênia começou a impacientar-se:
– Este velho é capaz de nos enterrar a todos!
– Tenha paciência; ature-o, que há de receber capital e juros acumulados – dizia o Barbosa. – Naquela idade o homenzinho não pode ir muito longe.
E não foi.
Justamente no dia em que se completavam cinco anos que era hóspede da casa de pensão, vovô Andrade caiu fulminado por uma apoplexia. Para festejar o quinto aniversário das suas relações, Dona Eugênia obsequiara-o com um opíparo jantar, abundantemente regado e ele comeu e bebeu demais.
Os meninos, que já estavam crescidos (o mais velho ia fazer dezoito anos), choraram sinceramente. A viúva, insofrida, quis abrir logo o cofre, e tê-lo-ia feito se o discreto Barbosa lho não obstasse.
– Não mexa em cousa alguma. Vou chamar quem de direito.
Veio a autoridade consular, que abriu o cofre. Este continha, efetivamente, um invólucro subscritado com estas palavras: "Meu testamento", e cerca de trezentos mil réis em notas do Tesouro e moedas de prata e ouro, as tais que tilintavam aos ouvidos do Braguinha.
Dois baús estavam cheios de ferros velhos, trapos, coisas inúteis, e o outro continha objetos que representavam algum valor: a roupa e os demais presentes com que o vovô Andrade tinha sido durante cinco anos obsequiado na casa de pensão.
O testamento dizia:
"Achando-me septuagenário e reduzido à miséria, sem um parente, sem um amigo, depois de uma vida inteira de trabalhos e infortúnios, tinha que optar entre a mendicidade e o suicídio.
Não optei por uma nem por outra coisa: mudei de terra, fingi-me rico e avarento, bastante para isso dois velhos baús e um cofre de ferro, último vestígio de melhores tempos.
Graças a esse ardil, encontrei tudo quanto me faltava, e mais alguma coisa.
Uns dirão que fui tratante; dirão outros que fui filósofo. Para mim é o mesmo.
Dentro do cofre encontrarão a quantia necessária para o meu enterro".
***
Quem se lavou em água de rosas foi o Braguinha.
(Do livro Contos Cariocas)
Arthur Azevedo
Minervino ouviu um toque de campainha, levantou-se do canapé, atirou para o lado o livro que estava lendo, e foi abrir a porta ao seu amigo Salema
– Entra. Estava ansioso.
– Vim, mal recebi o teu bilhete. Que desejas de mim?
– Um grande serviço!
– - Oh, diabo! Trata-se de algum duelo?
– Trata-se simplesmente de amor. Senta-te.
Sentaram-se ambos.
*
Eram dois rapagões de vinte e cinco anos, oficiais da mesma Secretaria do Estado; dois colegas, dois companheiros, dois amigos, entre os quais nunca houvera a menor divergência de opiniões ou sentimentos. Estimavam-se muito, estimavam-se deveras.
*
– Mandei-te chamar, continuou Minervino, porque aqui podemos falar mais à vontade; lá em tua casa seríamos interrompidos por teus sobrinhos. Ter-me-ia guardado para amanhã, na Secretaria, se não se tratasse de uma coisa inadiável. Há se der hoje por força.
– Estou às tuas ordens.
– Bom. Lembras-te de um dia ter te falado de uma viúva bonita, minha vizinha, por quem andava muito apaixonado?
– Sim, lembro-me... um namoro...
– Namoro que se converteu em amor, amor que se transformou em paixão!
– Quê? Tu estás apaixonado?!...
– Apaixonadíssimo... e é preciso acabar com isto!
– De que modo?
– Casando-me; e tu que hás de pedi-la!
– Eu?!...
– Sim, meu amigo. Bem sabes como sou tímido... Apenas me atrevo a fixá-la durante alguns momentos, quando chego à janela, ou a cumprimentá-la, quando entrou ou saio. Se eu mesmo fosse falar-lhe, era capaz de não articular três palavras. Lembras-te daquela ocasião em que fui pedir ao ministro que me nomeasse para a vaga do Florêncio? Pus-me a tremer diante dele, e a muito custo consegui expor o que desejava. E quando o ministro me disse: - Vá descansado, hei de fazer justiça, - eu respondi-lhe: - Vossa Excelência, se me nomear, não chove no molhado! - Ora, se sou assim com os ministros, que dirá com as viúvas!
– Mas tu a conheces?
– Estou perfeitamente informado: é uma senhora digna e respeitável, viúva do senhor Perkins, negociante americano. Mora ali defronte, no número 37. Peço-te que a procures imediatamente e lhe faças o pedido de minha parte. És tão desembaraçado como eu sou tímido; estou certo que serás bem-sucedido. Dize-lhe de mimo melhor que puderes dizer; advoga a minha causa com a tua eloquência habitual, e a gratidão do teu amigo será eterna.
– Mas que diabo! Observou Salema, – isto não é sangria desatada! Por que há de ser hoje e não outro dia? Não vim preparado!
– Não pode deixar de ser hoje. A viúva Perkins vai amanhã para a fazenda da irmã, perto de Vassouras, e eu não queria que partisse sem deixar lavrada a minha sentença.
– Mas, se lhe não falas, como sabes que ela vai partir?
– Ah! Como todos os namorados, tenho a minha polícia... Mas vai, vai, não te demores; ela está em casa e está sozinha; mora com um irmão empregado no comércio, mas o irmão saiu... Deve estar também em casa a dama de companhia, uma americana velha, que naturalmente não aparecerá na sala, nem estorvará a conversa.
E Minervino empurrava Salema para a porta, repetindo sempre:
– Vai! Vai! Não te demores!
Salema saiu, atravessou a rua, e entrou em casa da viúva Perkins.
No corredor pôs-se a pensar na esquisitice da embaixada que o amigo lhe confiara.
– Que diabo! Refletiu ele; não sei quem é esta senhora; vou falar-lhe pela primeira vez... Não seria mais natural que Minervino procurasse alguém que a conhecesse e o apresentasse?... Mas, ora adeus!... Eles namoram-se; é de esperar que o embaixador seja recebido de braços abertos.
Alguns minutos depois, Salema achava-se na sala da viúva Perkins, uma sala mobiliada sem luxo, mas com certo gosto, cheia de quadros e outros objetos de arte. Na parede, por cima do divã de reps, o retrato de um homem novo ainda, muito louro, barbado, de olhos azuis, lânguidos e tristes. Provavelmente o americano defunto.
Salema esperou uns dez minutos.
Quando a viúva Perkins entrou na sala, ele agarrou-se a um móvel para não cair; paralisaram-se-lhe os movimentos, e não pode reter uma exclamação de surpresa.
*
Era ela! Ela!.. A misteriosa mulher que encontrara, havia muitos meses, num bonde das Laranjeiras, e meigamente lhe sorrira, e o impressionara tanto, e desaparecera, deixando-lhe no coração um sentimento indizível, que nunca soubera classificar direito.
Durante muitos dias e muitas noites a imagem daquela mulher perseguiu-o obstinadamente, e ele debalde procurou tornar a vê-la nos bondes, na rua do Ouvidor, nos teatros, nos bailes, nos passeios, nas festas. Debalde!...
*
– Oh!, disse a viúva, estendendo-lhe a mão, muito naturalmente, como se fosse a um velho amigo; era o senhor?
– Conhece-me? Balbuciou Salema.
– Ora essa! Que mulher poderia esquecer-se de um homem a quem sorriu? Quando aquele dia nos encontramos no bonde das Laranjeiras, já eu o conhecia. Tinha-o visto uma noite no teatro, e, não sei por que... por simpatia, creio... perguntei quem o senhor era, não me lembro a quem.... Lembra-me que o puseram nas nuvens. Por que nunca mais tornei a vê-lo?
Diante do desembaraço da viúva Perkins, Salema sentiu-se mais tímido que Minervino, - mas cobrou ânimo, e respondeu:
– Não foi porque não a procurasse por toda a parte...
– Não sabia onde eu morava?
– Não; supus que nas Laranjeiras. Via-a entrar naquele sobrado... e debalde passei por lá um milhão de vezes, na esperança de tornar a vê-la.
– Era impossível; aquela é a casa de minha irmã; só se abre quando ela vem da fazenda. O sobrado está fechado há oito meses. Mas sente-se... aqui... mais perto de mim... Sente-se, e diga o motivo de sua visita.
De repente, e só então, Salema lembrou-se do Minervino.
– O motivo da minha visita é muito delicado; eu...
– - Fale! Diga sem rebuço o que deseja! Seja franco! Imite-me!... Não vê como sou desembaraçada? Fui educada por meu marido...
E apontou para o retrato.
– Era americano; educou-me à americana. Não há, creia, não há educação como esta para salvaguardar uma senhora. Vamos fale!...
– Minha senhora, eu sou...
Ela interrompeu...
– É o senhor Nuno Salema, órfão, solteiro, empregado público, literato nas horas vagas, que vem pedir a minha mão em casamento.
Ela estendeu-lhe a mão, que ele apertou.
– É sua! Sou a viúva Perkins, honesta como a mais honesta, senhora das suas ações e quase rica. Não tenho filhos nem outros parentes por meu marido, e uma irmã fazendeira, igualmente viúva. Não percamos tempo!
Salema quis dizer alguma coisa; ela não o deixou falar.
– Amanhã parto para a fazenda da minha irmã. Venha comigo, à americana, para lhe ser apresentado.
Nisto entrou na sala, vindo da rua, apressado, o irmão da viúva Perkins, um moço de vinte anos, muito correto, muito bem trajado.
– Mano, apresento-lhe o senhor Nuno Salema, o meu noivo.
O rapaz inclinou-se, apertou fortemente a mão do futuro cunhado, e disse:
– - All right!...
Depois inclinou-se, de novo e saiu da sala, sempre apressado.
– Mas, minha senhora, tartamudeou o noivo muito confundido, imagine que o meu colega Minervino que mora ali defronte...
A viúva aproximou-se da janela. Minervino estava na dele, defronte, e, assim que viu, deu um pulo para trás e sumiu-se.
– Ah! Aquele moço?... Coitado! Não posso deixar de sorrir quando olho para ele... É tão ridículo com o seu namoro à brasileira!...
– Mas... ele... tinha-me encarregado de pedi-la em casamento, e eu entrei aqui sem saber quem vinha encontrar...
– Deveras?! Exclamou a viúva Perkins.
E ei-la acometida de um ataque de riso:
– Ah! Ah! Ah! Ah! Ah!
– E deixou-se cair no divã.
– Ah! Ah! Ah! Ah! Ah!
Salema aproximou-se da viúva, tomou-lhe as mãozinhas, beijou-as, e perguntou:
– Que hei de dizer ao meu amigo?
Ela ficou muito séria, e respondeu:
– Diga-lhe que quem tem boca não manda assoprar.
******
(Do livro Contos Fora da Moda)
UMA CARGA DE SONO
Arthur Azevedo
Como o Alfredo tinha que partir para Minas às 5 horas da manhã, entendeu que o meio mais seguro de não perder o trem, o que mais de uma vez lhe sucedera, era passar a noite em claro.
Assim foi. Esteve no teatro até meia-noite, foi cear com alguns amigos, demorou-se no restaurante até as 2 horas, deu um passeio de carro pela Avenida Beira-Mar e, às 5 horas, estava comodamente sentado no trem, de guarda-pó e boné de viagem.
Partiu o carro ainda ao lusco-fusco, só ali pelas alturas do Encantado o sol resolveu entrar lentamente pelas portinholas.
O Alfredo começou então a examinar um casal que estava sentado diante dele. Começou pelo marido: era um sujeito vulgaríssimo, que se parecia com todo o mundo, e tanto poderia ser negociante como empregado público, industrial, etc. Tinha uma dessas caras inexpressivas, que se adaptam a todas as profissões.
Passou o Alfredo a examinar a senhora e não pôde conter um gesto de surpresa reconhecendo nela uma bonita mulher que um dia encontrara num bonde das Laranjeiras, e o namorara escandalosamente.
Havia oito meses que o Alfredo a procurava por toda a parte, passando em vão repetidas vezes pela casa daquele bairro onde ela entrara quando saiu do bonde.
O não tê-la encontrado nunca mais lhe exacerbara a impressão amorosa deixada no seu espírito, mais que no seu coração, por aquela formosa mulher, e não se pode exprimir a alegria que lhe produziu a presença dela naquele trem, embora acompanhada por um indivíduo que, pelos modos, tinha direitos adquiridos sobre ela.
A desconhecida animou o rapaz com um desses sorrisos com que as mulheres, num segundo, se entregam de corpo e alma a um homem, e como os dois namorados não podiam apertar a mão um do outro, serviram-se dos pés como intérpretes dos seus sentimentos. Felizmente o Alfredo não tinha calos, que, se os tivesse, ficariam em petição de miséria.
Era impossível qualquer outra correspondência que não fosse aquela, porque o marido não arredava pé dali. O Alfredo alimentava uma vaga esperança de que ele descesse na estação de Belém para tomar café, mas qual, o homenzinho era inamovível.
Na Barra do Pirai o casal subiu ao restaurante para almoçar, e o Alfredo subiu também, mas não lhe foi possível chegar à fala.
Depois do almoço, o pobre namorado começou a sentir os efeitos da noite passada em claro: as pálpebras pesavam-lhe como se fossem de chumbo, e ele fazia esforços heróicos para não dormir; mas o sono foi implacável, e, quando o trem passou por Juiz de Fora, já ele dormia a sono solto, esquecido dos olhos e do pé da sua bela companheira de viagem.
Foi perto de Palmira que o desgraçado acordou, e - oh, desgraça! - estavam vazios os dois lugares defronte dele. A moça desaparecera... quando?... onde?... em que estação?... Era impossível sabê-lo!
O Alfredo passou os olhos estremunhados por todo o vagão, na esperança de que ela e o marido houvessem simplesmente mudado de lugar. Nada!.
Só então reparou que tinha na mão um anúncio de hotel, desses que em cada estação atiram aos passageiros.
Ele dispunha-se a deitar fora esse pedaço de papel inútil, quando reparou que nas costas d0 anuncio havia qualquer coisa escrita a lápis, com letra de mulher.
E o Alfredo leu: "Quem ama não dorme."
Nunca mais a viu.
UMA APOSTA
Arthur Azevedo
Se o Simplício Comes não fosse um rapaz do nosso tempo, se não usasse calças brancas, paletó de alpaca, chapéu de palha e guarda-chuva, daria idéia de um desses quebra-lanças que só se encontram nos romances de cavalaria. De outro qualquer diríamos:
"Ele gostava de Dudu"; tratando-se, porém, do Simplício Comes, empregaremos esta expressão menos familiar: 'Ele amava Edviges."
O seu amor tinha, realmente, alguma coisa de puro e de ideal, que não se compadecia com os costumes de hoje.
Começava por ser discreto; Dudu adivinhou, ou antes, percebeu que era amada, mas ele nunca lho disse, nunca se atreveu a dizer-lhe, não por timidez ou respeito, mas simplesmente porque não tinha confiança no seu merecimento.
Estava bem empregado, poderia casar-se e viver modestamente em família - mas era tão feio, tão pequenino, tão insignificante e ela tão linda e tão esbelta, que o casamento lhe parecia desproporcionado.
Ele não se sentia digno dela, não acreditava que a pudesse fazer feliz, e isso o desgostava profundamente. Ela, por seu lado, não concorria para que a situação se modificasse: fingia ignorar que ele a amava, e atribuía toda aquela solicitude a um afeto desinteressado.
Dudu vivia com a mãe, uma pobre viúva sem outro recurso que não fosse o do meio soldo e o montepio deixados pelo marido, brioso oficial do Exército que viveu sempre desprotegido, porque não sabia lisonjear nem pedir; mas o Simplício Gomes, sem fumaças de protetor, e dando a esmola com ares de quem a recebia, achava meios e modos de fazer com que naquela casa faltasse apenas o supérfluo.
Como era parente, embora afastado, das duas senhoras, estas consideravam os seus favores simples atenções de família.
O caso é que o Simplício Comes parecia adivinhar os menores desejos de Dudu e nessas ocasiões recorria ao ardil de uma aposta:
- Aposto que hoje chove!
- Que idéia! O dia está bonito!
- Pois sim, mas o calor é excessivo: temos água com toda a certeza!
- Não temos!
- Façamos uma aposta!
- Valeu! Se chover eu perco uma caixa de charutos.
- E eu aquela blusa que você viu na vitrina da Notre-Dame e cobiçou tanto.
- Quem lhe disse que cobicei?
- Ora, esses olhos não me enganam.
No dia seguinte Dudu recebia a blusa.
A velha costumava dizer com muita ingenuidade:
- Você faz mal em apostas, Simplício! ~ muito caipora, perde sempre, e então, em se tratando de mudança de tempo, é uma lástima!
Conquanto não se atrevesse a falar em casamento, o pobre rapaz sofria, oprimido pela idéia de que, quando menos se pensasse, Dudu teria um namorado... um noivo... um marido. E, efetivamente, não se passou muito tempo que os seus receios não se realizassem.
Dudu impressionou-se por um cavalheiro muito bem trajado, que começou a rondar-lhe a porta quase todos os dias, cumprimentando-a, depois sorrindo-lhe, e finalmente escrevendo-lhe, graças à cumplicidade de um molecote da casa.
Depois de receber três cartas, Dudu contestou, convenceu-se de que as intenções do namorado eram as melhores e mostrou a correspondência à mãe, que imediatamente consultou o Simplício Gomes sem saber o desgosto que lhe causava. Este, que já havia notado as idas e vindas do transeunte suspeito, disfarçou o mais que pôde os seus sentimentos, limitando-se a dizer que Dudu não deveria casar-se com aquele homem sem ter primeiramente certeza de que ele a amava deveras.
A velha, com toda a sua simplicidade, pediu-lhe que se informasse da idoneidade do pretendente, e o mísero logo se transformou de quebra-lanças em quebra-esquinas.
Foram desanimadoras (para ele) as informações que obteve: o rival chamava-se Bandeira, era de boa família, de bons costumes, funcionário público de certa categoria, estimado, e tinha alguma coisa. O seu único defeito era ser um pouco genioso.
O Simplício, que não tinha o altruísmo heróico de Cirano de Bergerac, não avolumou as qualidades do outro, mas foi leal: não as diminuiu. Em suma: o Bandeira pediu a mão de Dudu, e começou a freqüentar a casa.
O coitado não articulou uma queixa, mas começou desde logo a emagrecer a olhos vistos; perdeu o apetite, ficou macambúzio, fúnebre... Dudu, que tudo compreendeu, teve muita pena, teve quase remorsos, mas a velha nem mesmo assim desconfiou que a filha fosse adorada pelo infeliz parente.
Entretanto, o Simplício Gomes começou a ser assíduo em casa de Dudu; o seu desejo oculto era não deixá-la sozinha com o tal Bandeira enquanto não se casassem.
O noivo tinha, efetivamente, boas qualidades, mas era não só genioso, mas de uma arrogância, de uma empáfia, de um autoritarismo que começaram a inquietar Dudu.
Uma bela tarde em que se achavam ambos sentados no canapé, e o Simplício Gomes afastado, num canto da sala, folheava um álbum de retratos, o Bandeira levantou-se dizendo:
- Vou-me embora; tenho ainda que dar umas voltas antes da noite.
- Ora, ainda é cedo; fique mais um instantinho - replicou Dudu, sem se levantar do canapé.
- Já lhe disse que tenho o que fazer! Peço-lhe que vá desde já se habituando a não contrariar as minhas vontades! Olhe que, depois de casado, hei de sair quantas vezes quiser sem dar satisfações a ninguém
- Bom; não precisa zangar-se.
- Não me zango, mas contrario-me! Não me escravizei; quero casar-me com a senhora, mas não perder a liberdade!
- Faz bem. Adeus. Até quando?
- Até amanhã ou depois.
O Bandeira apertou a mão de Dudu, despediu-se com um gesto do Simplício Comes e saiu batendo passos enérgicos, de dono de casa.
Dudu ficou sentada no canapé, olhando para o chão.
O Simplício Gomes aproximou-se de mansinho, e sentou-se ao seu lado.
Ficaram dez minutos sem dizer nada um ao outro.
Afinal Dudu rompeu o silêncio. Olhou para o céu iluminado por um crepúsculo esplêndido, e murmurou:
- Vamos ter chuva.
- Não diga isso, Dudu: o tempo está seguro!
- Apostemos!
- Pois apostemos! Eu perco... perco uma coisa bonita para o seu enxoval de noiva. E você?
- Eu... perco-me a mim mesma, porque quero ser tua mulher!
E Dudu caiu, chorando, nos braços de Simplício Gomes.
DON JUAN DE PROVÍNCIA
Arthur Azevedo
Quando fui pela primeira vez àquela patriarcal cidade de província, o Linhares, que eu chamava primo, por ser filho da primeira mulher de meu pai, não quis que eu ficasse no hotel, e levou-me para sua casa, onde havia um quarto de hóspedes.
Durante os dias que ali me demorei fui carinhosamente tratado, e ainda hoje sou reconhecido aos favores do primo Linhares e de sua família, senhora e cinco senhoritas casadeiras.
Eu não fazia outra coisa todos os dias senão passear pela cidade, e à tarde, depois de jantar, o primo Linhares mandava colocar sete cadeiras no passeio, à porta da rua, e ele, a senhora, as senhoritas e eu sentavam-nos ao ar livre, e conversávamos até ao escurecer. Era muito divertido.
Numa das tardes em que estávamos assim, perambulando sobre os mais variados assuntos, surgiu de uma esquina, a cem passos do lugar em que nos achávamos, o vulto esguio de um rapaz moreno, de grandes bigodes, envolto numa capa espanhola e com a cabeça coberta por um grande chapéu desabado.
O primo Linhares, mal que o viu, ergueu-se e disse imperiosamente às senhoritas:
- Meninas, vão para dentro: vem ali o Flávio Antunes!...
As cinco senhoritas levantaram-se e desapareceram, correndo no interior da casa.
E o primo Linhares explicou-me:
- Aquele Flávio Antunes é um patife, um sedutor de senhoras casadas, um Don Juan!... Não consinto que as pequenas olhem para ele!... Não há nesta cidade sujeito mais desmoralizado! Nenhum pai de família honrado o recebe em casa!
E como o tal Flávio Antunes se aproximasse:
- Olhe para aquele tolo! Veja! - o tipo completo do conquistador!...
E o transeunte, que era, efetivamente, um rapagão, passou fazendo ao primo Linhares um cumprimento, que não foi correspondido.
= = = = = = = = = = =
Um ano depois, o primo veio ao Rio de Janeiro. Fui recebê-lo na estação da Estrada de Ferro, e tratei logo de perguntar pela família.
- Estão todos bons. A minha pequena mais velha foi pedida à semana passada.
- Por quem?
- Por um excelente rapaz - o Flávio Antunes.
- Perdão... mas o Flávio Antunes não era...
- Era sim! mas que quer você? Com aquela coisa de mandar as meninas para dentro todas as vezes que ele passava lá por casa, fiz-lhe um extraordinário reclame! Todas elas gostavam dele, e ele gostou da mais velha!
- Ora! Hão de ser muito felizes.
- Sim, mesmo porque, melhor informado, me convenci de que a má reputação do pobre rapaz era unicamente devida àquela capa espanhola e aquele chapéu desabado!
- Deveras?
- Eram mais as nozes que as vozes, e se algumas falcatruas fez ele, coitado, foi em consequência do reclame que lhe fazíamos, eu e outros pais de família.
UM CAPRICHO
Arthur Azevedo
Em Mar de Espanha havia um velho fazendeiro, viuvo que tinha uma filha muito tola, muito mal-educada, e, sobretudo. muito caprichosa. Chamava-se Zulmira.
Um bom rapaz, que era empregado no comércio da localidade, achava-a bonita, e como estivesse apaixonado por ela, não lhe descobria o menor defeito.
Perguntou-lhe uma vez se consentia que ele fosse pedi-la ao pai.
A moça exigiu dois dias para refletir.
Vencido o prazo, respondeu:
- Consinto, sob uma pequena condição.
- Qual?
- Que o seu nome seja impresso.
- Como?
- É um capricho.
- Ah!
- Enquanto não vir o seu nome em letra redonda, não quero que me peça.
- Mas isso é a coisa mais fácil...
- Não tanto como supõe. Note que não se trata da assinatura, mas do seu nome. É preciso que não seja coisa sua.
Epidauro, que assim se chamava o namorado, parecia ter compreendido. Zulmira acrescentou:
- Arranje-se!
E repetiu:
- É um capricho.
Epidauro aceitou, resignado, a singular condição, e foi para casa.
Aí chegado, deitou-se ao comprido na cama, e, contemplando as pontas dos sapatos, começou a imaginar por que meios e modos faria publicar o seu nome.
Depois de meia hora de cogitação, assentou em escrever uma correspondência anônima para certo periódico da Corte, dando-lhe graciosamente notícias de Mar de Espanha.
Mas o pobre namorado tinha que lutar com duas dificuldades: a primeira é que em Mar de Espanha nada sucedera digno de menção; a segunda estava em como encaixar o seu nome na correspondência.
Afinal conseguiu encher duas tiras de papel de notícias deste jaez!
"Consta-nos que o Rev.mo Padre Fulano, vigário desta freguesia, passa para a de tal parte."
"O Ilmo Sr. Dr. Beltrano, juiz de direito desta comarca, completou anteontem 43 anos de idade. S. Sª, que se acha muito bem conservado, reuniu em sua casa alguns amigos."
"Tem chovido bastante estes últimos dias", etc.
Entre essas modestas novidades, o correspondente espontâneo, depois de vencer um pequenino escrúpulo, escreveu:
"O nosso amigo Epidauro Pamplona tenciona estabelecer-se por conta própria."
Devidamente selada e lacrada, a correspondência seguiu, mas...
Mas não foi publicada.
* * *
O pobre rapaz resolveu tomar um expediente e o trem de ferro.
- À Corte! à Corte! dizia ele consigo; ali, por fás ou por nefas, há de ser impresso o meu nome!
E veio para a Corte.
Da estação central dirigiu-se imediatamente ao escritório de uma folha diária, e formulou graves queixas contra o serviço da estrada de ferro. Rematou dizendo:
- Pode dizer, Sr. redator, que sou eu o informante.
- Mas quem é o senhor? perguntou-lhe o redator, molhando uma pena; o seu nome?
- Epidauro Pamplona.
O jornalista escreveu; o queixoso teve um sorriso de esperança.
- Bem. Se for preciso, cá fica o seu nome.
Queria ver-se livre dele; no dia seguinte, nem mesmo a queixa veio a lume.
Epidauro não desesperou.
Outra folha abriu uma subscrição não sei para que vítimas; publicava todos os dias a relação dos contribuintes.
- Que bela ocasião! murmurou o obscuro Pamplona.
E foi levar cinco mil-réis à redação.
Com tão má letra, porém, assinou, e tão pouco cuidado tiveram na revisão das provas, que saiu:
Epifânio Peixoto 5$OOO
Epidauro teve vergonha de pedir errata, e assinou mais 2$OOO.
Saiu:
"Com a quantia de 2$, que um cavalheiro ontem assinou, perfaz a subscrição tal a quantia de tanto que hoje entregamos, etc.
Está fechada a subscrição."
* * *
Uma reflexão de Epidauro:
Oh! Se eu me chamasse José da Silva! Qualquer nome igual que se publicasse, embora não fosse o meu, poderia servir-me! Mas eu sou o único Epidauro Pamplona...
E era.
Daí, talvez, o capricho de Zulmira.
* * *
Uma folha caricata costumava responder às pessoas que lhe mandavam artigos declarando os respectivos nomes no Expediente.
Epidauro mandou uns versos, e que versos! A resposta dizia: "Sr. E. P. Não seja tolo."
* * *
Como último recurso, Epidauro apoderou-se de um queijo de Minas à porta de uma venda e deitou a fugir como quem não pretendia evitar os urbanos, que apareceram logo. O próprio gatuno foi o primeiro a apitar.
Levaram-no para uma estação de polícia. O oficial de serviço ficou muito admirado de que um moço tão bem trajado furtasse um queijo, como um reles larápio.
Estudantadas... refletiu o militar; e, voltando-se para o detido:
- O seu nome?
- Epidauro Pamplona! bradou com triunfo o namorado de Zulmira.
O oficial acendeu um cigarro e disse num tom paternal:
- Está bem, está bem. Sr. Plampona. Vejo que é um moço decente--- que cedeu a alguma rapaziada.
Ele quis protestar.
- Eu sei o que isso é! atalhou o oficial. De uma vez em que saí de súcia com uns camaradas meus pela Rua do Ouvidor, tiramos à sorte qual de nós havia de furtar uma lata de goiabada à porta de uma confeitaria. Já lá vão muitos anos.
E noutro tom:
- Vá-se embora, moço, e trate de evitar as más companhias.
- Mas...
- Descanse, o seu nome não será publicado.
Não havia réplica possível; demais, Epidauro era por natureza tímido.
O seu nome, escrito entre os dos vagabundos e ratoneiros, era uma arma poderosíssima que forjava contra os rigores de Zulmira; dir-Ihe-ia:
- Impuseste-me uma condição que bastante me custou a cumprir. Vê o que fez de mim o teu capricho!
* * *
Quando Epidauro saiu da estação, estava resolvido a tudo!
A matar um homem, se preciso fosse, contanto que lhe publicassem as dezesseis letras do nome!
* * *
Lembrou-se de prestar exame na Instrução Pública.
O resultado seria publicado no dia seguinte.
E, com efeito, foi: "Houve um reprovado."
Era ele!
Tudo falhava.
* * *
Procurou muitos outros meios, o pobre Pamplona, para fazer imprimir o seu nome; mas tantas contrariedades o acompanharam nesse desejo que jamais conseguiu realizá-lo.
Escusado é dizer que nunca se atreveu a matar ninguém.
A última tentativa não foi a menos original.
Epidauro lia sempre nos jornais:
"Durante a semana finda, S.M. ,,o Imperador foi cumprimentado pelas seguintes pessoas, etc.
Lembrou-se também de ir cumprimentar Sua Majestade.
- Chego ao paço, pensou ele, dirijo-me ao Imperador, e digo-lhe: - Um humilde súdito vem cumprimentar Vossa Majestade, - e saio.
Mandou fazer casaca; mas, no dia em que devia ir a Cristóvão, teve febre e caiu de cama.
* * *
Voltemos a Mar de Espanha:
Zulmira está sentada ao pé do pai. Acaba de contar-lhe a que impôs a Epidauro. O velho fazendeiro ri-se a bandeiras despregadas.
Entra um pajem.
Traz o Jornal do Comércio, que tinha ido buscar à agência de correio.
A moça percorre a folha, e vê, afinal, publicado o nome de Epidauro Pamplona.
- Coitado! murmura tristemente, e passa o jornal ao velho.
- É no obituário:
"Epidauro Pamplona, 23 anos, solteiro, mineiro. - Febre perniciosa."
O fazendeiro, que é estúpido por excelência, acrescenta:
- Coitado! foi a primeira vez que viu publicado o seu nome.
TOC, TOC, TOC, TOC
Arthur Azevedo
O Borges não a tinha visto nunca senão à janela da casa paterna: só lhe conhecia o busto, e não era preciso mais nada para encantá-lo, porque na verdade ela possuía o palmo da cara mais simpático e ao mesmo tempo mais lindo que era possível imaginar.
Chamava-se Idalina, e era filha natural de um vidraceiro estabelecido na loja do prédio em que ambos moravam. Não iam a parte alguma.
Havia uma circunstância, uma só, que contrariava o Borges; a mãe da pequena tinha sido mulher da vida alegre; dera em público toda a espécie de escândalos, e fora, afinal, assassinada, durante uma pândega, por um dos seus inúmeros e sucessivos amantes. É verdade que Idalina desde a mais tenra idade fora subtraída ao contato dessa mulher, e nunca mais a viu: mas o Borges preferia, naturalmente, que ela fosse filha de outra mãe; entretanto, não se lhe dava de ligar o seu destino ao dela, tão forte era a simpatia que a moça lhe inspirava.
A filha do vidraceiro parecia não ser indiferente ao afeto que se formara no coração de Borges; todas as vezes que ele passava, pela manhã ou à tarde, caminho da repartição ou caminho de casa, ela correspondia ao seu cumprimento respeitoso com um sorriso afável, que não era o sorriso de uma janeleira vulgar, e tinha alguma coisa de triste e de reservado.
Estava o Borges impressionado ao último ponto, quando um feliz acaso lhe revelou que o Ventura, um dos seus melhores amigos, conhecia intimamente o pai e a filha. Ele, o Borges não sabia outra coisa senão a lamentável particularidade do nascimento de Idalina; soubera-o por casualidade, no bonde, ouvindo a conversa de dois passageiros que a viram à janela e a conheciam.
O Ventura, quando o amigo pediu as desejadas informações, desfez-se em calorosos elogios.
- É a criatura mais doce, mais bondosa que o céu cobre! É uma santa; uma verdadeira santa; mas, meu amigo... sim, infelizmente há um mas...
O Borges adivinhou que o amigo se referia à mãe de Idalina, e atalhou:
- Sei o que é, mas não importa... Coitada! Que culpa tem ela dessa desgraça?
- Nenhuma culpa tem, mas dificilmente encontrará marido. Se fosse rica, não digo nada; há homens que por dinheiro fecham os olhos a tudo, mas o Lemos, o pai, não tem por onde se lhe pegue...
- Pois fica sabendo que não se me dava de ser seu marido.
- Tu?... Apesar de...?
- Apesar de tudo!
- Mas olha que não poderias levar tua mulher a parte alguma!
- Por quê?
- Seria ridículo!
- Deixá-lo ser! Ela é boa, é digna, é honesta, não é?
- Ah! Por esse lado, não conheço outra que mais o seja!
- Neste caso, exijo de ti um grande serviço: rogo-te que vás ter com o pai e que a peças em meu nome.
- Alto lá! Essas coisas não se fazem assim! Deves primeiramente consultá-la, e só depois de autorizado por ela, pedi-la ao pai, mas tu, pessoalmente, e não eu. O mais que posso fazer é apresentar-te ao velho.
- Pois está dito!
No mesmo dia o Borges encontrou meios e modos de fazer com que um bilhete seu chegasse às mãos de Idalina:
"Minha senhora", dizia esse bilhete, "eu chamo-me Laurindo Borges, sou de família honrada, tenho perto de trinta anos, exerço um emprego público, não tenho ligações nem compromissos de espécie alguma, e ganho o necessário para constituir família. Julgo que não lhe sou de todo indiferente; portanto, rogo-lhe a necessária autorização para pedi-la em casamento a seu pai. O obstáculo que de alguma forma se poderia opor a nossa união desaparece diante do amor profundo e da sincera estima que a senhora me inspirou."
A resposta não se fez esperar:
"Uma vez que o sr. fecha os olhos a um obstáculo que parecia condenar-me ao celibato, e uma vez que, não sendo ingrata, retribuo largamente os sentimentos que despertei no seu coração, autorizo-o a pedir a minha mão a papai. Venha domingo, ao meio-dia: ele estará em casa, e prevenido por mim."
À vista desse bilhete, o Borges poderia apresentar-se sozinho, mas foi ter com o Ventura e pediu-lhe que o acompanhasse.
No domingo aprazado, ao meio-dia em ponto, entravam ambos na sala do Lemos, que os recebeu de braços abertos.
- Aqui tem - disse-lhe o Ventura - o meu amigo Laurindo Borges, que lhe vem fazer um pedido muito sério, e cá estou eu para aboná-lo.
- Queiram sentar-se - disse o velho; e, depois de sentados os três, continuou: - Já sei do que se trata. Minha filha, que não tem segredos para mim, mostrou-me o bilhete do sr. Borges e o que dirigiu em reposta. Mas fiquei surpreso, surpreso e ao mesmo tempo jubiloso, quando vi que o senhor não considera um obstáculo a...
- Não! - interrompeu o Borges. - E peço-lhe, sr. Lemos, que não me fale mais nisso. Dona Idalina possui qualidades morais que tudo compensam.
- Então o amigo fecha os olhos àquele defeito?
- Já lhe disse que sim.
- Bom; nesse caso, vou chamá-la.
E erguendo a voz:
- Idalina?
- Papai? - respondeu lá de dentro uma voz argentina e sonora que soou aos ouvidos de Borges como um hino de amor.
- Vem cá, minha filha!
Não se ouviram passos, mas um toc, toc, toc, toc, que intrigou seriamente o namorado, e quando Idalina, radiante de beleza, entrou na sala, ele verificou, à primeira vista, que a moça tinha uma perna de pau!
Foi tal o espanto do pobre rapaz, que todos adivinharam logo que ele ignorava aquela ausência de perna. Idalina caiu sentada numa cadeira, cobrindo o rosto com as mãos, debulhada em pranto.
- Pois o senhor não disse que conhecia o obstáculo? - perguntou o vidraceiro.
- Eu referia-me à mãe de D.Idalina...
- Ora, meu caro, isso jamais seria um obstáculo, porque ela é o contrário do que foi aquela infeliz mulher; é uma pérola, que saiu do lodo, como todas as pérolas.
Mas o Borges estava dominado pela beleza de Idalina, e as lágrimas da moça acabaram de subjugá-lo. Ele ergueu-se e, num generoso ímpeto de amor, correu para ela, ajoelhou-se aos seus pés - quero dizer: ao seu pé - tomou-lhe as mãos ambas, e beijou-as dizendo:
- Que me importa que tenhas uma perna de pau, se tens um coração de ouro?
- Ora, ainda bem! - exclamou o velho. - Case-se, e creia que leva uma mulher completa, apesar de lhe faltar uma perna!
Casaram-se e foram muito felizes. O pai tinha razão.
O Borges, para consolar-se do aleijão da esposa, muitas vezes dizia aos seus botões:
- Idalina talvez não fosse tão boa, tão carinhosa, tão submissa, tão fiel, se tivesse ambas as pernas...
SOVA BEM MERECIDA
Arthur Azevedo
Numa das ruas de uma das estações dos subúrbios vivia, não há muito tempo, numa casa térrea, edificada no meio de um terreno bem plantado, uma família composta de uma senhora quarentona e três rapazes, seus filhos.
A senhora, que se chamava D. Eulália, e era conhecida no bairro pela sua extrema bondade, passava por viúva, mas a verdade é que tinha marido vivo, o Araújo, o maior desordenado que Deus deitou ao mundo.
Durante os cinco primeiros anos de casado, o Araújo, apesar de jogador, foi um marido como outro qualquer - cumpria satisfatoriamente as obrigações conjugais e não dava à esposa motivo para grandes queixas, mas depois do quinto ano, quando já lhe haviam nascido dois rapazes e estava para nascer o terceiro, enrabichou-se por uma atriz de terceira ordem, desapareceu de casa de família e nunca mais lá voltou.
Por mais estranho que pareça ao leitor habituado à tranquilidade e boa harmonia do lar, o caso é que se passaram vinte anos sem que esse extraordinário marido tornasse a ver mulher e filhos.
Os rapazes cresceram e se empregaram sem conhecer o pai senão de nome. Felizmente eram bons filhos: moravam todos três com D. Eulália, a quem nada faltava.
Releva dizer que o marido - justiça se lhe faça! - desde que desapareceu de casa mandava à família todos os meses dinheiro pelo correio, estivesse onde estivesse, e lá uma vez por outra, quando o jogo lhe proporcionava uma boa boiada, lá ia mais uma lambuja.
Jogador de profissão, o Araújo percorria o Brasil inteiro, de norte a sul, bancando ou apontando, perdendo aqui para ganhar acolá, ora, muito por cima, ora muito por baixo, mas sempre ativo, alegre e sadio, como se lhe não doesse nada na consciência.
De vez em quando aparecia com uma nova mulher ao seu lado. A atriz pela qual desprezara a esposa tinha sido cem vezes substituída.
Entretanto, aconteceu-lhe o mesmo que o Aretino: apaixonou-se deveras pela ultima das suas amantes, e teve um sério desgosto quando, entrando em casa uma noite, não a encontrou, mas uma carta em que ela lhe comunicava que, estando farta da companhia de um jogador tresnoitado, tinha encontrado outro amante menos anormal.
O Araújo, que, aliás, tinha ganho alguns contos de réis aquela noite, julgou enlouquecer, e teve um acesso de lágrimas. Todavia, passada a crise, serenou, e veio-lhe à lembrança, aguilhando-o pela primeira vez como um remorso, a família que abandonara havia vinte anos.
Não sei que resolução se passou então na alma daquele homem, o que sei é que ele resolveu ir ter, mesmo àquela hora, com a sua infeliz mulher e pedir-lhe perdão de todos os seus erros.
Saiu de casa, tomou um tilburi, que o fez chegar à estação da central a tempo de apanhar o último trem dos subúrbios.
Na estação ficou embaraçado por não saber onde era a casa. Encontrou, porém, um polícia que o orientou, depois de interrogá-lo com desconfiança.
- Eu sou o marido de D. Eulália.
- D. Eulália é viúva.
- Todos assim pensam. É casada comigo, mas não nos vemos há vinte anos!
- O senhor chegou de viagem?
- Cheguei. Cheguei de uma longa viagem.
- Então desculpe, mas como andam muitos ladrões aqui no bairro... Da própria casa de D. Eulália roubaram uma noite destas não sei quantas galinhas.
E o rondante ensinou ao Araújo onde era a casa de D. Eulália.
O marido entrou com precaução, mas quando ia no meio do terreno, entre o portão e a casa, saltaram-lhe lá de dentro os três rapazes, armados de cacetes, e deram-lhe uma sova tremenda.
- Eu sou o marido de D. Eulália - gritava o desgraçado.
Felizmente D. Eulália, reconhecendo-lhe a voz, gritou aos rapazes:
- Basta, meninos, basta! É vosso pai!.
Cessou a pancadaria, mas o Araújo estava prostrado no chão, descadeirado, sem se poder levantar.
Os rapazes, pedindo-lhe muitas desculpas de o haverem tomado por ladrão, carregaram-no a pulso para dentro de casa, onde o deitaram na cama de um deles.
Ora, aí está como o Araújo voltou à casa depois de uma ausência de vinte anos.
É verdade que desta vez ficou.
SABINA
Arthur Azevedo
I
Havia três anos que o Bacharel Figueiredo era o amante da viúva Fontes. E marido seria se ela quisesse; mas Sabina - Sabina era o seu nome - dera-se mal com o casamento, e não queria experimentá-lo de novo.
Um mês depois do seu primeiro encontro com o Bacharel Figueiredo, este dizia-lhe:
- Eu amo-te, tu amas-me, eu sou livre, tu livre és: case-mo-nos!
- Não! respondia ela, não! não! não!...
- Por quê, meu amor?
- Porque esse fogo, esse ímpeto, esse entusiasmo que te lançou nos meus braços, tudo isso desapareceria desde que eu fosse tua mulher!
- Mas a sociedade...
- Ora a sociedade! Sou bastante independente para me não importar com ela.
- Tua filhinha...
- Tem apenas quatro anos! está na idade em que se olha sem ver. Demais, não quero dar-lhe um padrasto. Amemo-nos, e deixemos em paz o padre e o pretor.
II
Ficaram efetivamente em paz o ministro de Deus e o representante da lei, mas nem por isso o bacharel deixou de enfarar-se ao cabo de dois anos, agradecendo aos céus o haver a viúva recusado o casamento que ele lhe propusera num momento de verdadeira alucinação.
Havia muitos meses já que o moço ruminava um plano de separação definitiva, mas não sabia de que pretexto lançar mão para chegar a esse resultado. Sabina guardava-lhe, ou, pelo menos, parecia guardar-lhe absoluta fidelidade, e nunca lhe dera motivo de queixa.
Nestas condições lembrou-se o bacharel de consultar o velho Matos, que o honrava com a sua amizade.
III
O velho Matos era um solteirão rico e viajado, que na sua tempestuosa mocidade tivera um número considerável de aventuras galantes, e era ainda considerado um oráculo em questões de amor. Muitos mancebos inexperientes recorriam aos seus conselhos, e tais e tão discretos eram estes, que eles alcançavam quanto pretendiam.
O Bacharel Figueiredo foi ter a uma velha chácara da Gávea, onde o avisado conselheiro vivia das suas recordações e de alguns prédios e apólices milagrosamente salvos do naufrágio dos seus haveres.
O moço foi recebido com muita amabilidade, e sem preâmbulos expôs a situação:
- Há três anos sou o amante de uma senhora viúva, distinta e bem educada; quero acabar com essa ligação; que devo fazer?
- Antes de mais nada, é preciso que eu saiba o motivo que o desgostou. Tem ciúmes dela?
- Ciúme... - Oh! se a conhecesse!... É um modelo de meiguice, fidelidade e constância!
- Existe alguma particularidade que o afaste desse modelo?... quero dizer: uma enfermidade... - um defeito físico... o mau hálito, por exemplo?
- Pelo amor de Deus!... É uma mulher sadia, limpa, cheirosa.
- Então, é feia?
- Feia?! Uma das caras mais bonitas do Rio de Janeiro!
- Tem mau gênio?
- Uma pombinha sem fel!
- Então é tola, vaidosa, pedante, presumida, afetada, asneirona...?
- Nada disso! é uma mulher de espírito, instruída e perfeitamente educada.
- É devota? Anda metida nas igrejas?... passa horas esquecidas a rezar diante de uni oratório?...
- Apenas vai ouvir missa aos domingos.
- Talvez abuse do piano, ou desafine a cantar...
- Não canta; toca piano, mas não abusa. Digo-lhe mais: interpreta admiravelmente Chopin.
- Você gosta de outra mulher?
- Juro-lhe que não.
- Bom; sei o que isso é; você aborreceu-se dela porque nunca lhe descobriu defeitos. É boa demais.
- Talvez. O caso é que esta ligação já durou mais tempo do que devia, e urge acabar com ela. A Sabina tem uma filha que está crescendo a olhos vistos, e não é conveniente fazer com que essa criança algum dia a obrigue a corar.. . Depois, eu sou moço.. . tenho um grande horizonte diante de mim... enceto agora a minha carreira de advogado... esta ligação pode prejudicar seriamente o meu futuro - não acha?
O velho Matos calou-se, e, passados alguns momentos, perguntou:
- Quer então você separar-se dessa mulher ideal?
- Quero.
- A sua resolução é inabalável?
- Inabalável.
- Só há um meio de o conseguir.
- Qual?
- Desapareça.
- Ela irá procurar-me onde quer que eu esteja.
- Boa dúvida, mas faça-se invisível, vá para a roça, e volte ao cabo de oito dias. Naturalmente ela aparece, e pergunta em termos ásperos, ou sentidos, o motivo do seu procedimento. Muna-se então de um pouco de coragem, e responda-lhe o seguinte: "Á vista de um fato que chegou ao meu conhecimento, nada mais pode haver de comum entre nós. Nã0 me peça explicações: meta a mão na consciência, e meça a extensão do meu ressentimento!"
- Mas que fato? Pois eu já não lhe disse que a Sabina e um modelo de...
- Meu jovem amigo, interrompeu o velho Matos, não há mulher, por mais amante, por mais dedicada, por mais virtuosa que seja, que não tenha alguma coisa de que a acuse a consciência. A sua Sabina, em que pese às aparências, não deve, não pode escapar à lei comum; desde que você se refira positivamente a um fato, embora não declare que fato é, ela ficará persuadida de que o seu amante veio ao conhecimento de alguma coisa que se passou, e que a pobrezinha supunha coberta pelo véu de impenetrável mistério.
- Mas a Sabina, quando mesmo tenha algum pecadinho na consciência (eu juro-lhe que o não tem!) com certeza há de protestar energicamente e exigir que eu ponha os pontos nos ii; há de querer que eu diga francamente a que fato aludo, e... - e vamos lá! como acusá-la sem consentir que ela se defenda?
- Ah! meu amigo! se você pretende aplicar razões jurídicas ao caso, não arranja nada. A jurisprudência do amor e extravagante e absurda. Acuse, retire-se, e não entre em explicações. Afianço-lhe que o êxito é seguro.
IV
Se bem o disse o velho Matos, melhor o fez o Bacharel Figueiredo. Retirou-se durante alguns dias para uma fazenda sem dizer adeus nem dar satisfações a viuva.
Imagine-se o desespero dela. Quando soube que o seu amante voltara dessa misteriosa viagem, foi - e era a primeira vez que lá ia - foi à casa de pensão em que ele morava e entrou como uma doida no seu quarto.
- Então? que quer isto dizer?... exclamou a mísera caind0 numa cadeira, a soluçar desesperadamente.
Ele até então nunca a tinha visto chorar. A viúva apresentava-se-lhe sob um aspecto estranho; parecia-lhe agora mais apetitosa.
Entretanto, fazendo um esforço violento sobre si mesmo, o bacharel franziu os sobrolhos e repetiu as palavras d0 velho Matos:
- Á vista de um fato que chegou ao meu conhecimento, nada mais pode haver de comum entre nós!...
Sabina ergueu-se como tocada por uma mola. Ele continuou:
- Não me peça explicações; eu não lhas daria! Meta a mão na consciência, e compreenda o meu eterno ressentimento...
Dizendo isto, saiu do quarto batendo com estrondo a porta, e deixando a pobre Sabina aparvalhada.
V
No dia seguinte o bacharel recebeu uma carta concebida nos seguintes termos:
"Figueiredo - Tens razão: nada mais pode haver de comum entre nós; aprecio e respeito a delicadeza dos teus sentimentos.
"Eu vivia na ilusão de que tudo ignorarias, de que jamais virias ao conhecimento de uma fraqueza que tão desgraçada me faz neste instante. Vejo que o miserável não guardou segredo, e fez chegar aos teus ouvidos a história de uma vergonhosa aventura a que fui arrastada num momento de desvario e de que logo me arrependi amargamente.
"Não me perdoes, porque o teu perdão seria um atestado de péssimo caráter, mas ao menos sabe que foi a tua frieza, o teu desprendimento, o pouco caso com que então começavas a tratar-me, que me determinaram a dar o mau passo que dei e que tantas lágrimas me tem custado.
"Adeus; lembra-te sempre da infeliz Sabina, que te ama ainda como sempre te amou, mas não procures tornar a vê-la, porque ela é a primeira a confessar que não é digna de ti. Console-te a certeza de que a minha vida vai ser de agora em diante um inferno de remorsos e de saudades. Adeus para sempre... - Sabina."
VI
Essa carta produziu terrível efeito no espírito do Bacharel Figueiredo.
Era então certo?... ela pertencera a outro homem?...
E o seu amor extinto despertou mais violento, mais impetuoso que nunca. Passavam-lhe rapidamente pela memória, num turbilhão demoníaco, todos os deliciosos momentos que lhe proporcionara a meiga viúva, e o ciúme, um ciúme implacável, que o aniquilava e embrutecia, excitava-o tiranicamente.
Ele correu à casa de Sabina, e encontrou fechadas todas as portas e janelas. Informou-o um vizinho de que a viúva se retirara na véspera, com a menina e as criadas, levando malas e embrulhos.
Durante oito dias o bacharel, desesperado, enfurecido, mortificado pela insônia, pelos ciúmes, pelas saudades, correu á casa dela: tudo fechado!...
Ninguém lhe dava notícias de Sabina! Aonde iria ela?.. - onde estava?...
Afinal, um dia encontrou a porta aberta e entrou como um doido, tal qual Sabina entrara na casa de pensão. Encontrou-a no seu quarto, e, sem dizer palavra, sufocado pelo pranto, beijou-lhe sofregamente a boca, os olhos, o nariz, as orelhas, beijou-a toda, e, rasgando-lhe o vestido, atirou-a brutalmente sobre o leito, sequioso por entrar de novo na posse daquele corpo e daquele sangue.
Mas a viúva, debatendo-se heroicamente, conseguiu repeli-lo, e pôs-se de pé, gritando:
- Não! não! não, Figueiredo!... Tudo acabou entre nós! Eu não sou digna de ti!...
- Não digas isso pelo amor de Deus! Eu perdôo-te! Eu amo-te! Eu adoro-te!...
- Se realmente me amas, se me adoras, então és tu que não és digno de mim!
Dizendo isto, fugiu do quarto e foi para junto da filha, onde se julgou a coberto das perseguições do bacharel. Efetivamente, este deixou-se ficar no quarto, atirado sobre o leito e soluçando convulsivamente.
VII
Durante alguns dias a mesma cena se reproduziu, mas afinal restabeleceram-se as pazes.
Sabina cedeu sob duas condições: primeira, - o bacharel só entraria no quarto dela com escala pela pretoria e pela igreja: segunda, - jamais lhe pediria explicações sobre o fato que determinara a crise.
VIII
Três meses depois do casamento, o velho Matos, que se tornara íntimo da casa, achando-se a sós com Sabina, contou-lhe a história do conselho dado ao bacharel, conselho que foi a causa imediata de tão extraordinários acontecimentos, e que tão negativo efeito produzira.
- Mas o que o senhor não sabe, disse ela, é que eu nunca tive outro amante senão o Figueiredo.
- Que me diz, minha senhora?
- Juro-lhe pela vida de minha filha que falo verdade.
- Mas valha-me Deus! o pobre rapaz está convencido de...
- Deixá-lo estar. É um pobre-diabo, feito da mesma lama que os outros homens. Confessei-lhe uma culpa que não tinha, porque adivinhei que só assim poderia reconquistá-lo.
- Mas agora estão casados e muito bem casados; é preciso dissuadi-lo.
- Não; ainda é cedo; mais tarde.. . Esse homem que ele não sabe quem é... essa aventura misteriosa.... essa ignóbil mentira é a garantia da minha felicidade. Enquanto ele supuser que não fui dele só, será só meu.
- Parabéns, minha senhora; pode gabar-se de ter embrulhado o velho Matos.
- Ora, o velho Matos! Quem é o velho Matos? Quem é o senhor? Algum psicólogo? Saiba que uma mulher inteligente é capaz de embrulhar Paul Bourget...
- Upa! upa! É capaz de enfiar pelo fundo de uma agulha o próprio Balzac! Repito: parabéns, minha senhora!
QUESTÃO DE HONRA
Arthur Azevedo
Eram sete horas da manhã. Braga Lopes, sentado numa deliciosa chaise-longue, brunia as unhas e contemplava, pela janela do gabinete, o Pão de Açúcar, que por um belo efeito de luz parecia de madrepérola.
Angélica entrou no gabinete e bateu de leve no ombro do marido.
- Preciso de quinhentos mil-réis.
- Já?
- Já.
Por única resposta, Braga Lopes apontou para uma carta aberta sobre a secretária de pau-rosa.
Angélica leu: o senhorio reclamava, em termos violentos, não sei quantos meses atrasados do aluguel do prédio nobre.
A moça encolheu os ombros, saiu arrebatadamente e mandou atrelar.
Fez ligeira, mas elegante toilette de passeio e, calçando as luvas de pele da Suécia, recomendou ao engravatado copeiro que não a esperasse para almoçar.
O marido ouviu rodar o coupé e chegou à janela. Acompanhou com a vista o trajeto do carro em quase toda a curva da praia de Botafogo, até que o viu desaparecer na rua Marquês de Abrantes.
"Aonde irá ela arranjar quinhentos mil-réis a estas horas?" pensou, e, sentando-se de novo, recomeçou a sua ocupação predileta - brunir as unhas.
Ao entrar no coupé, Angélica dissera ao boleeiro:
- Vamos à baronesa.
A baronesa ainda estava no leito. Angélica foi introduzida no dormitório.
- Preciso de quinhentos mil-réis.
- Já?
- Já.
- Impossível, minha amiga; o barão está em Petrópolis.
- Petrópolis em junho!
- Foi a negócio e não a passeio. O dinheiro está com ele, bem sabes. Sinto não te poder servir neste momento, como noutras ocasiões o tenho feito. Não é a primeira vez que tu...
- Bem... desculpe... Adeus, baronesa.
Angélica a sair e o barão a entrar.
- Oh! madame Braga Lopes! A que acaso devemos tão feliz matinal visita?
- Não tinha ido para Petrópolis, barão?
- Petrópolis em junho! Jamais de la vie! Seria ridículo! Saí muito cedo por necessidade e só contava estar de volta ao meio-dia. Esteve com a baronesa?
- Sim, senhor barão; passe bem.
E Angélica, mordendo os beiços de raiva, entrou rapidamente no coupé cuja portinhola o barão abriu pressuroso com a mão esquerda, enquanto a direita fazia o chapéu descrever uma pequena reta, muito graciosa, à inglesa.
O boleeiro voltou-se para receber as ordens da patroa.
- Vamos às Guedes.
O barão fechou a portinhola, e o carro pôs-se em movimento.
As Guedes eram três irmãs solteironas. Moravam na rua do Conde, perto de Catumbi.
Angélica esperou por elas durante quarenta minutos. Empregou todo esse tempo a passear de um lado para outro, muito contrariada por se ver ali, numa rua tão burguesa, naquela velha sala sem tapeçarias, nem reposteiros, nem bibelôs, fastidiosa com a sua esmagadora mobília de jacarandá e os seus venerandos castiçais de prata, resguardados em monstruosas mangas de vidro.
Numa velhíssima tela, o pai das Guedes, pintado a óleo, muito sério, inteiramente barbeado, de óculos, o pescoço escondido numa abundante gravata de cinco voltas, as mangas da casaca muito apertadas, as mãos a emergirem das rendas dos manguitos, olhava fixamente para Angélica, e. parecia dizer-lhe:
- Que vens aqui fazer? Não arranjas nada!
Afinal apareceram as Guedes. Entraram as três ao mesmo tempo, com pequeninos gritos de surpresa alegre, fazendo um gasto enorme de beijos, abraços, pancadinhas de amor e frases candongueiras: Mas que milagre é este? Por isso é que o dia está tão bonito! Vou mandar repicar os sinos!
- Sente-se, dona Angélica.
- Não; a demora é pequena. Vinha pedir-lhes um grande obséquio. Preciso de quinhentos mil-réis.
As Guedes entreolharam-se estupefatas.
A recusa foi categórica e formal. Não podiam naquela ocasião dispor nem de quinhentos réis, quanto mais de quinhentos mil-réis. A "pouca vergonha" de 13 de maio deixara-as quase na miséria. Se possuíssem aquela "humilde choupana" e mais dois sobrados na rua dos Pescadores, estariam reduzidas a miséria.
Angélica saiu despeitadíssima; entretanto, não desanimou. O passivo e solícito cocheiro. levou-a ainda à presença de seis amigas ricas, e todas lhe disseram não! Em toda parte a mísera encontrava esse monossílabo terrível!
Ao meio-dia, humilhada, indisposta, em jejum, com os nervos excitados por aquela violenta caçada, por aquele perseguir uma quantia miserável, que lhe fugia das mãos obstinadamente, a pobre Angélica teve um gesto expressivo e supremo de resolução e coragem.
Alguns minutos depois, o coupé deixava-a no Largo de São Francisco. Ela tomou a pé a rua do Rosário, atravessou a da Quitanda, dobrou a da Alfândega e, sobressaltada, palpitante, com muito medo de que a vissem, entrou precipitadamente num casarão de dois andares.
No corredor hesitou alguns segundos antes de subir; mas, enchendo-se de ânimo, galgou ligeiramente as escadas até o segundo andar. Abriram-lhe logo a porta, e ela, trêmula, ofegante, com as mãos muito frias, sem poder proferir uma palavra, caiu nos braços de um homem, que a recebeu com um beijo e lhe disse:
- Estava escrito que mais dia menos dia a senhora se compadeceria dos meus tormentos...
- O que me traz à sua casa é uma questão de honra; conto com a sua discrição e o seu cavalheirismo. Preciso de...
Angélica envergonhou-se de se vender por tão pouco e quadriplicou a quantia:
- Preciso de dois contos de reis.
- Já?
- Já.
O relógio da Candelária batia duas horas quando mme. Braga Lopes, perfeitamente almoçada, desceu as escadas da casa da rua da Alfândega.
Pode ser que o arrependimento aparecesse mais tarde; naquele momento ela era toda satisfação e triunfo.
A gentil pecadora entrou radiante na rua do Ouvidor, e foi ter ao Palais-Royal.
- Ainda aí está? - perguntou a um dos caixeiros da loja, com receio de que mais uma vez lhe dissessem não.
- Ainda, e às suas ordens.
- Bom - acrescentou ela, depois de um prolongado suspiro - aqui estão os quinhentos mil-réis. Mande-mo a casa.
- Com efeito! - exclamou Braga Lopes quando Angélica lhe apareceu às três horas. - Com efeito! Passaste o dia inteiro na rua!
- Sim, vê lá se achas que uma mulher, que só tem brilhantes falsos e jóias de pechisbeque, possa facilmente arranjar quinhentos mil-réis...
- Mas para que precisavas tu desse dinheiro? - perguntou indiferentemente o extraordinário marido.
- Uma questão de honra, meu amigo. Imagina que me apaixonei por um vestido que vi ontem na vitrine do Palais-Royal; imagina que a Laurita Lobo queria por força ficar com ele; imagina que o dono da loja declarou que o entregaria à primeira das duas que lhe levasse quinhentos mil-réis!...
- Ah! Bom! Assim, sim - obtemperou Braga Lopes, que recomeçou fleumaticamente a sua ocupação predileta: brunir as unhas.
33 GRAUS À SOMBRA
Arthur Azevedo
(Arthur Azevedo)
Foi no tempo do Império.
O notável político Dr. Francelino Lopes, sendo presidente de uma província cujo nome não mencionarei para não ofender certas suscetibilidades, aliás mal entendidas, resolveu, aquiescendo ao desejo dos chefes mais importantes do partido conservador (era o que estava de cima), fazer uma grande excursão por todo o interior da província, visitando as principais localidades.
A notícia dessa resolução abalou necessariamente a população inteira, e por toda a parte, não só as câmaras municipais como os cidadãos mais importantes, correligionários do governo, se prepararam para receber condignamente o ilustre delegado do gabinete imperial.
Na primeira cidade visitada pelo Dr. Francelino, foi S. Exa. Recebido na estação da estrada de ferro, que se achava ricamente adornada, ao som do Hino Nacional, executado por uma indisciplinada charanga, e das bombas dos foguetes estourando no ar e das aclamações do povo, cujo entusiasmo, se não era real, era, pelo menos, espalhafatoso e turbulento.
Estavam presentes todas as autoridades locais. Houve três discursos, cada qual mais longo, a que S. Exa. respondeu com poucas, mas eloquentes palavras.
Da estação da estrada de ferro, seguiu o presidente, a carro, acompanhado sempre pelas autoridades e grande massa de povo, para a câmara municipal, onde o esperava opíparo banquete, a que fez honra o estômago de S. Exa., o qual estava a dar horas como se fosse o estômago de um simples mortal.
À mesa, defronte do presidente, sentou-se a Baronesa de Santana, esposa do chefe do partido dominante, abastado fazendeiro, que se reservara a honra e o prazer de hospedar o grande homem.
Este, que era bem parecido, que não tinha ainda 40 anos, e gozava na capital do império de uma reputação um tanto donjuanesca, sentia-se devorado pelos olhares ardentes da baronesa, de idade digna de um príncipe.
Eram 9 horas da noite quando terminou o banquete pelo brinde de honra, erguido por S. Exa. à Sua Majestade, o Imperador.
Como a charanga estivesse presente e as moças manifestassem o desejo de dançar, improvisou-se um baile, e o Dr. Francelino Lopes dançou uma quadrilha com a baronesa, apertando-lhe os dedos de um modo que nada tinha de presidencial. A essa inócua manifestação muscular limitou-se, entretanto, o esboçado namoro, que não prosseguiu por falta absoluta de ocasião.
Como o presidente se queixasse da fadiga produzida pela viagem, a festa foi interrompida, e as autoridades conduziram S. Exa. aos aposentos que lhe estavam reservados em casa do barão, na mesma praça onde se achava o edifício da Câmara.
Nessa casa que, apesar de baixa, era a melhor da cidade, haviam sido preparadas duas salas e uma alcova para o ilustre hóspede.
Qualquer dos três compartimentos estava luxuosamente mobiliado e o leito era magnífico.
Os donos da casa, o presidente da Câmara, o juiz de direito, o juiz municipal, o vigário, o delegado de polícia e outras pessoas gradas, mostraram a S. Exa. os seus cômodos, pedindo-lhe mil desculpas por não ter sido possível arranjar coisa melhor, e todos se retiraram fazendo intermináveis mesuras.
O último a sair foi o bacharel Pinheiro, proprietário e redator principal d'A Opinião Pública, órgão do partido conservador.
– Peço permissão para oferecer a V. Exa. o número do meu jornal publicado hoje. Traz a biografia e o retrato de V. Exa. V. Exa. me desculpará, se não achar essa modesta manifestação de apreço à altura dos merecimentos de V. Exa.
O Dr. Francisco Lopes agradeceu, fechou a porta e soltou um longo suspiro de alívio.
* * *
Logo que se viu sozinho, o presidente lembrou-se do seu criado de quarto, que ali devia estar... Onde se meteria ele? Provavelmente adormecera noutro cômodo da casa.
Felizmente o dorminhoco tivera o cuidado de desarrumar a mala de S. Exa. e pusera à mão a sua roupa de cama e os seus chinelos.
O hóspede descalçou-se, despiu-se, envergou a camisola de dormir, deitou-se, e abriu A Opinião Pública, disposto a ler a sua biografia antes de apagar a vela.
Apenas acabara de examinar o retrato, detestavelmente xilografado, sentiu S. Exa. uma dolorosa contração no ventre, e logo em seguida a necessidade imperiosa de praticar certo ato fisiológico de que nenhum indivíduo se pode eximir, nem mesmo sendo presidente da província.
Ele saltou do leito e começou a procurar o receptáculo sem o qual não poderia obedecer à natureza; mas nem no criado-mudo nem debaixo da cama encontrou coisa alguma. Farejou todos os cantos: nada!
O barão, a baronesa, o presidente da Câmara, os juízes, o vigário, o delegado de polícia, o redator d’A Opinião Pública, ninguém se lembrara de que S. Exa. era um homem como os outros homens!
O Dr. Francelino Lopes quis bater palmas, chamar alguém, pedir que o socorressem; mas esbarrou num preconceito ridículo da nossa educação; envergonhou-se de confessar o que lhe parecia uma fraqueza e era, aliás, a coisa mais natural deste mundo; receou perder a sua linha de primeira autoridade da província, desabar do pedestal de semideus aonde o guindaram durante a festa da recepção.
Além disso, que diria a formosa provinciana, a bela baronesa cujos dedinhos apertara, e cujos olhos pecaminosos o haviam devorado? Como dona da casa seria ela a primeira a saber, e achá-lo-ia ridículo e grosseiro!
Entretanto, o momento era crítico. O delegado do governo imperial começava a suar frio...
Mas de repente olhou para A Opinião Pública e lembrou-se não sei de que aventura sucedida a outro hóspede, que se achava em semelhante emergência. Não refletiu nem mais um segundo: o jornal do Bacharel Pinheiro, desdobrado sobre o soalho, substituiu o receptáculo ausente.
Desobrigada a natureza, S. Exa. foi de mansinho, cautelosamente, abrir uma janela.
A praça estava deserta e silenciosa. Nas sacadas da Câmara Municipal morriam as últimas luminárias. A cidade inteira dormia.
Ele agarrou cuidadosamente A Opinião Pública pelas quatro pontas e atirou tudo fora. – Depois fechou a janela, lavou-se, perfumou-se, deitou-se, e, com muita pena de não poder ler a sua biografia, apagou a vela.
Pouco depois dormia o sono do justo, que tem igualmente desembaraçado o ventre e a consciência.
* * *
O Dr. Francelino Lopes despertou, ou antes, foi despertado de manhã, por um rumor confuso, que se fazia ouvir na praça, aumentando gradualmente.
Prestou o ouvido, e começou a distinguir, entre aquela estranha vozeira, frases de indignação, como:
– É uma infâmia! – Que pouca vergonha! – A vingança será terrível! etc.
E o barulho aumentava!
Não podia haver dúvida: tratava-se de uma perturbação da ordem pública.
O presidente vestiu-se à pressa, abriu a janela, e foi recebido por uma estrondosa ovação. Na praça estavam reunidas mais de quinhentas pessoas.
– Viva o Sr. Presidente da Província!
– Vivou!
E a charanga executou o Hino.
Terminado este, o Bacharel Pinheiro aproximou-se da janela presidencial, e pronunciou as seguintes palavras:
– Numerosos habitantes desta cidade, admiradores das altas virtudes e dos talentos de V. Exa., vieram hoje aqui, ao romper d'alva, no intuito de dar os bons dias a V. Exa., acompanhados de uma banda de música para tocar a alvorada; mas, aqui chegando, foram surpreendidos pelo espetáculo de uma injúria ignóbil, cometida contra a pessoa de V. Exa. e contra a imprensa livre!
– Apoiado! regougaram aquelas quinhentas gargantas como se fossem uma só.
– Deixamos a injúria no lugar em que foi encontrada, isto é, debaixo da janela de V. Exa., a fim de que V. Exa. veja a que desatinos pode levar nesta cidade o ódio político e do que são capazes os liberais!
– Apoiado! vociferou a turba.
– Sim, foram os liberais! Só essa gente imunda poderia encher de imundícies a respeitável efígie e a biografia de V. Exa.!
– Apoiado!
– Mas fique certo, excelentíssimo, de que, se foi grande a ofensa, maior será o desagravo!
O presidente respondeu assim:
– Meus senhores, o acaso tem mistérios impenetráveis... tudo pode ser obra do acaso, e não dos liberais. (À parte) Pobres liberais! (Alto) Todavia, se ofensa houve, foi uma ofensa anônima, tudo quanto pode haver de mais anônimo... E as ofensas anônimas desprezam-se! Viva sua majestade o imperador!
– Vivou!
–Viva a religião do Estado!
– Vivou!
– Viva a constituição do Império!
– Vivou!
E a charanga atacou o Hino.
(Do livro Contos Cariocas)
Raimundo Floriano
Arthur Azevedo é o maior vulto do Teatro Brasileiro!
Arthur Nabantino Gonçalves de Azevedo, nascido em São Luís do Maranhão, a 7 de julho de 1855, e falecido no Rio de Janeiro a 22 de outubro de 1908, com apenas 53 anos, dramaturgo, contista, poeta comediógrafo e jornalista, irmão mais velho de Aluísio Azevedo, este autor de O Cortiço e O Mulato, é uma das grandes figuras da Literatura Brasileira, em cuja obra campeia um fino e gracioso humorismo.
Seguiu para o Rio de Janeiro em 1873, aos 18 anos de idade, onde foi tradutor de folhetins e revisor de A Reforma, tornando-se conhecido por seus versos humorísticos. Escrevendo para o teatro, alcançou enorme sucesso com as peças Véspera de Reis e A Capital Federal, esta musical.
Dentre seus trabalhos, destacam-se Contos Possíveis, Contos Efêmeros, Contos Fora de Moda, Contos em Verso, Contos Cariocas e Vida Alheia. Espalhou também sua verve em dezenas de revistas teatrais e de esfuziantes comédias, entre as quais sobressaem O Dote, A Almanjarra, O Oráculo, Vida e Morte, Entre a Missa e o Almoço, Entre o Vermute e a Sopa, Retrato a Óleo e O, Amor por Anexins. Trabalhou nos principais jornais da época, no Rio de Janeiro, tendo fundado e dirigido A Gazetinha, Vida Moderna e O Álbum.
Foi Fundador da Academia Brasileira de Letras e titular da Cadeira número 29, para a qual tomou Martins Penna como patrono.
No final dos Anos 1960, foi apresentada aqui em Brasília a peça musical de sua autoria, A Capital Federal, com produção de Cleyde Yaconis e grande elenco de 27 artistas, dentre os quais Etty Fraser, Suely Franco, Neuza Borges, Tamara Taxman e Carlos Alberto Riccelli, além de excelente orquestra, que considero o melhor espetáculo musical a que assisti em toda minha vida. A peça causou tal impressão em mim que, ao fundar a primeira banda carnavalesca brasiliense, em 1972, dei-lhe o nome de Banda da Capital Federal.
Possuo em meu acervo literário toda a obra desse grande gênio intelectual conterrâneo e, para fazê-la um pouco conhecida por todos vocês, meus diletos leitores, estarei, vez em quando, aqui neste Almanaque, trazendo à baila uma de suas magistrais criações, começando a partir de agora, com tema muito em voga nos tempos atuais.
O texto a seguir foi extraído do livro Contos Fora da Moda, encontrável hoje em sebos virtuais, assim como diversas itens de sua vasta produção literária.
PLEBISCITO
A cena passa-se em 1890.
A família está toda reunida na sala de jantar.
O Senhor Rodrigues palita os dentes, repimpado numa cadeira de balanço. Acabou de comer como um abade.
Dona Bernardina, sua esposa, está muito entretida a limpar a gaiola de um canário belga.
Os pequenos são dois, um menino e uma menina. Ela distrai-se a olhar para o canário. Ele, encostado à mesa, os pés cruzados, lê com muita atenção uma das nossas folhas diárias.
Silêncio!
De repente, o menino levanta a cabeça e pergunta:
– Papai, que é plebiscito?
O Senhor Rodrigues fecha os olhos imediatamente para fingir que dorme.
‘ O pequeno insiste:
– Papai?
Pausa!
– Papai?
Dona Bernardina intervém:
– Ó Seu Rodrigues, Manduca está lhe chamando. Não durma depois do jantar, que lhe faz mal.
O Senhor Rodrigues não tem remédio, senão abrir os olhos.
– Que é? Que desejam vocês?
– Eu queria que papai me dissesse o que é plebiscito.
– Ora essa, rapaz! Então tu vais fazer doze anos e não sabes ainda o que é plebiscito?
– Se soubesse, não perguntava.
O Senhor Rodrigues volta-se para Dona Bernardina, que continua muito ocupada com a gaiola:
– Ó senhora, o pequeno não sabe o que é plebiscito!
– Não admira que ele não saiba, porque eu também não sei.
– Que me diz?! Pois a senhora não sabe o que é plebiscito?
– Nem eu, nem você; aqui em casa ninguém sabe o que é plebiscito.
– Ninguém, alto lá! Creio que tenho dado provas de não ser nenhum ignorante!
– A sua cara não me engana. Você é muito prosa. Vamos: se sabe, diga o que é plebiscito! Então? A gente está esperando! Diga!...
– A senhora o que quer é enfezar-me!
– Mas, homem de Deus, para que você não há de confessar que não sabe? Não é nenhuma vergonha ignorar qualquer palavra. Já outro dia foi a mesma coisa quando Manduca lhe perguntou o que era proletário. Você falou, falou, falou, e o menino ficou sem saber!
– Proletário – acudiu o Senhor Rodrigues – é o cidadão pobre que vive do trabalho mal remunerado.
– Sim, agora sabe porque foi ao dicionário; mas dou-lhe um doce, se me disser o que é plebiscito sem se arredar dessa cadeira!
– Que gostinho tem a senhora em tornar-me ridículo na presença destas crianças!
– Oh! Ridículo é você mesmo quem se faz. Seria tão simples dizer: – Não sei, Manduca, não sei o que é plebiscito; vai buscar o dicionário, meu filho!
O Senhor Rodrigues ergue-se de um ímpeto e brada:
– Mas se eu sei!
– Pois se sabe, diga!
– Não digo para me não humilhar diante de meus filhos! Não dou o braço a torcer! Quero conservar a força moral que devo ter nesta casa! Vá para o diabo!
E o Senhor Rodrigues, exasperadíssimo, nervoso, deixa a sala de jantar e vai para o seu quarto, batendo violentamente a porta.
No quarto, havia o que ele mais precisava naquela ocasião: algumas gotas de água de flor de laranja e um dicionário...
A menina toma a palavra:
– Coitado de papai! Zangou-se logo depois do jantar! Dizem que é tão perigoso!
– Não fosse tolo – observa Dona Bernardina – e confessasse francamente que não sabia o que é plebiscito!
– Pois sim – acode Manduca, muito pesaroso por ter sido o causador involuntário de toda aquela discussão – pois sim, mamãe; chame papai e façam as pazes.
– Sim! Sim! façam as pazes! – diz a menina em tom meigo e suplicante. – Que tolice! Duas pessoas que se estimam tanto zangaram-se por causa do plebiscito!
Dona Bernardina dá um beijo na filha, e vai bater à porta do quarto:
– Seu Rodrigues, venha sentar-se; não vale a pena zangar-se por tão pouco.
O negociante esperava a deixa. A porta abre-se imediatamente.
Ele entra, atravessa a casa, e vai sentar-se na cadeira de balanço.
– É boa! – brada o Senhor Rodrigues depois de largo silêncio – é muito boa! Eu! Eu ignorar a significação da palavra plebiscito! Eu!...
A mulher e os filhos aproximam-se dele.
O homem continua num tom profundamente dogmático:
– Plebiscito...
E olha para todos os lados a ver se há ali mais alguém que possa aproveitar a lição.
– Plebiscito é uma lei decretada pelo povo romano, estabelecido em comícios.
– Ah! – suspiram todos, aliviados.
– Uma lei romana, percebem? E querem introduzi-la no Brasil! É mais um estrangeirismo!...
PIEDADE FILIAL
Arthur Azevedo
O Brochado veio rapazito para o Rio de Janeiro e saltou aqui com o pé direito, porque arranjou logo emprego, e dois anos depois estava primeiro caixeiro, com magnífico ordenado e caderneta na Caixa Econômica.
Considerava-se feliz; só uma coisa o afligia: as saudades do pai, que deixara na aldeia.
Um dia em que, passando por uma loja da Rua do Ouvidor, viu exposto um retrato a óleo, lembrou-se de mandar pintar o do velho, a fim de pendurá-lo defronte da cama. Não podendo ter perto de si a pessoa, teria ao menos a imagem de seu pai!
O Brochado informou-se da residência do pintor e foi ter com ele.
- Vinha pedir-lhe que me pintasse o retrato de meu pai.
- Com todo o gosto.
- Mas não queria coisa que me custasse mais de trezentos mil-réis. ~ quanto posso pagar.
- Está dito! Esse não é o meu preço, é muito barato; mas como o senhor não pode pagar mais, paciência! Onde está o senhor seu pai?
- Em Portugal.
- Ah! está ausente? É pena, porque não gosto de fazer retratos senão diante dos respectivos modelos. Enfim, como não há remédio...
- Faz o retrato?
- Faço. Queira mandar-me a fotografia.
- Que fotografia?
- Do senhor seu pai.
- Não tenho.- Ah! não tem fotografia? Tem então um desenho?
- Que desenho?
- Um retrato qualquer do senhor seu pai.
- O retrato vai o senhor fazer-mo.
- Mas o senhor não tem outro, do qual eu possa copiar o meu?
- Não, senhor; se eu tivesse o retrato de meu pai, não lhe encomendava outro; bastava-me um!...
- O senhor supõe que eu seja um telefotógrafo?
- Um quê?
- Como quer o senhor que eu faça o retrato de uma pessoa que não conheço, que nunca vi, e que não está presente?
- Dar-lhe-ei todas as informações necessárias.
O pintor compreendeu então que espécie de homem tinha diante de si e logo pensou em não perder os trezentos mil-réis que estavam ganhos.
- Pois bem - disse ele - vamos às informações...
- Meu pai chama-se Francisco Brochado.
- O nome não é preciso.
- É viúvo.
- Adiante.
- Tem coisa de cinqüenta anos. É alto, magro, barbado, louro, e corta cabelo à escovinha. Eu pareço-me com ele.
- É quanto basta - disse o pintor. - Daqui a três dias pode mandar buscar o retrato.
O Brochado Filho saiu, e no dia aprazado lá estava em casa do artista.
- Ali tem seu pai! - disse este apontando para um retrato que estava no cavalete.
O Brochado aproximou-se, teve um gesto de surpresa e levou muito tempo a olhar para a pintura.
Depois, as lágrimas começaram a deslizar-lhe pela face.
- Que tem o senhor?... Por que chora? - perguntou o pintor.
E o pobre diabo, com a voz embargada pelos soluços, exclamou:
- Como meu pai está mudado!...
PAULINO E ROBERTO
Arthur Azevedo
O Paulino toda a vida remou contra a maré! Para cúmulo da desgraça, o destino atirou-lhe nos braços uma esposa que não era precisamente o sonhado modelo de meiguice e dedicação.
Adelaide não lhe perdoava o ser pobre, o ganhar apenas o necessário para viver. O seu desejo era ter um vestido por semana e um chapéu de quinze em quinze dias, - possuir um escrínio de magníficas jóias, - deslumbrar a Rua do Ouvidor, - freqüentar bailes e espetáculos, - tornar-se a rainha da moda. Não se podia conformar com aquela vida de privação e trabalho.
O Paulino, que era a bondade em pessoa, afligia-se muito por não poder proporcionar à sua mulher a existência que ela ambicionava. Fazendo um exame de consciência, o mísero acusava-se de haver sacrificado a pobre moça, que, bonita e espirituosa como Deus a fizera, teria facilmente encontrado um marido com recursos bastantes para satisfazer todos os seus caprichos de Frou-frou sem dote.
Ele só tinha um amigo, um amigo íntimo, seu companheiro de infância, o Vespasiano, que um dia lhe disse com toda a brutalidade:
- Tua mulher é insuportável! Eu, no teu caso, mandava-a para o pasto!
- Oh! Vespasiano! não digas isso!...
- Digo, sim!, senhor! digo e redigo... - Vocês não têm filhos; portanto, não há consideração nenhuma que te obrigue a aturar um diabo de mulher que todos os dias te lança em rosto a tua pobreza, como se ela te houvesse trazido algum dinheiro, e o esbanjasses!.
- Isso não é conselho que se dê a um amigo, nem eu tenho razões para me separar de Adelaide.
- Pois não te parece razão suficiente essa eterna humilhação a que ela te condena?
- Pois sim, mas quem me manda ser tão caipora?
- Não creias que, se melhorasses de posição, ela melhoraria de gênio. Aquela é das tais que nunca estão contentes com a sorte, nem se lembram de que Deus dá o frio conforme a roupa. Se algum dia chegasses a ministro, ela não te perdoaria não seres presidente da República!
- Exageras.
Pode ser; mas afianço-te que mulher assim não a quisera eu nem pesada a ouro! Prefiro ficar solteiro.
Efetivamente, Vespasiano, apesar de ser muito amigo de Paulino, não o freqüentava, tal era a aversão que lhe causava a presença de Adelaide. Não a podia ver.
* * *
Paulino em vão procurava por todos os meios e modos melhorar de vida, aumentando o parco rendimento, quando um comerciante, seu conhecido, lhe propôs uma pequena viagem ao Rio Grande do Sul, para a liquidação de certo negócio. Era empresa que lhe poderia deixar um par de contos de réis, se fosse bem sucedida.
Instigado pela mulher, a quem sorria a perspectiva de alguns vestidos novos, Paulino partiu para o Rio Grande a bordo do Rio Apa; tendo, porém, desembarcado em Santa Catarina, perdeu, não sei como, o paquete, e foi obrigado a esperar por outro.
Antes que esse outro chegasse, recebeu a notícia de que o Rio Apa naufragara, não escapando nenhum homem da tripulação, nem passageiro algum. Do próprio paquete não havia o menor vestígio. Sabia-se que naufragara porque desaparecera.
Paulino agradeceu a Deus o ter escapado milagrosamente ao naufrágio.
* * *
Ao ver o seu nome impresso, nos jornais, entre os das vítimas, atravessou-lhe o espírito a idéia de calar-se, fazendo-se passar por morto. Não sei se ele teria lido o Jacques Amour, de Zola, ou a Viuvinha, do nosso Alencar.
- Em vez de me livrar da Adelaide, como aconselhava o Vespasiano, livrá-la-ei de mim. Ora está dito! Seremos ambos assim mais felizes... - Ninguém o conhecia em Santa Catarina, e ele, de ordinário taciturno e reservado, a ninguém se queixara de haver perdido a viagem, de modo que pôde executar perfeitamente o seu plano. Calou-se, muito caladinho, e deixou que a notícia da sua morte circulasse livremente, como a dos demais passageiros do Rio Apa.
Escusado é dizer que mudou de nome.
Tendo feito conhecimento com um rico industrial teuto-brasileiro, ex-colono de Blumenau, foi com este para o interior da província, e, como era inteligente e trabalhador, não tendo mulher que o "encabulasse", arranjou muito bem a vida, conseguindo até pôr de parte algum pecúlio.
* * *
Passaram-se anos sem que Roberto, o ex-Paulino, tivesse notícias de Adelaide.
Resolveu um dia ir ao Rio de Janeiro, a passeio, convencido de que ninguém mais se lembrava dele, nem o reconheceria, pois deixara crescer a barba, engordara extraordinariamente, e tinha um tipo muito diverso do de outrora.
O seu primeiro cuidado foi passar pela casinha de porta e janela onde morava, na Rua do Alcântara, quando embarcou para o Sul. Não a encontrou: tinham erguido um prédio no local outrora ocupado pelo ninho dos seus amores sem ventura.
Informou-se na venda próxima que fim levara a viúva de um tal Paulino, morador naquela rua, náufrago do Rio Apa; ninguém se lembrava dessa família, e ele tevei a sensação de que era realmente um defunto.
Procurou ver Vespasiano, e viu-o, quando saía da Alfândega, onde era empregado. O seu movimento foi correr para o amigo e dizer-lhe: - Olha! sou eu! não morri! venha de lá um abraço! -; mas conteve-se, e deixou-o passar, saboreando um cigarro.
- Como está velho! pensou Paulino; eu decerto não o reconheceria, se o supusesse tão morto como ele me supõe a mim! Deixá-lo! Eu morri deveras, e nada lucraria em ressuscitar, mesmo para ele, que era o meu único amigo.
* * *
Bem inspirado andou o morto em não se dar a conhecer, porque, alguns dias depois, achando-se num bondinho da Praça Onze, atravessando a Rua do Riachuelo, viu entrar no carro o Vespasiano acompanhado por uma senhora que era Adelaide sem tirar nem pôr.
Paulino conteve o natural sobressalto que lhe causou aquela aparição.
Ela vinha muito irritada. Logo que se sentou, voltou-se com mau modo para Vespasiano, e disse-lhe:
- Eu logo vi que você me dizia que não!
Paulino reconheceu a voz da sua viúva.
- Mas, reflete bem, Adelaide; aquele dinheiro está destinado para o aluguel da casa, e tu não tens assim tanta necessidade de uma capa de seda!
Adelaide soltou um longo suspiro, e expectorou esta queixa bem alto para que todos a ouvissem:
- Meu Deus! que sina a minha de ter maridos pingas! Você ainda é pior que o outro!
- Ah! se ele pudesse ver-nos lá do outro mundo, murmurou entre os dentes Vespasiano, como se riria de mim!
Roberto ficou muito sério, olhando com indiferença para a rua, mas Paulino riu-se, efetivamente, no fundo do oceano.
PAN-AMERICANO
Arthur Azevedo
Na venda. Manuel, o vendeiro, está ao balcão. O Chico Facada acaba de beber dois de parati.
CHICO (limpando os beiços)
Ó seu Manuel?
MANUEL
Diga!
CHICO
Eu sou um cabra vigiado: já fui atá ao Acre mas sou inguinorante. Você, que é todo metido a sebo, me explique o que vem a ser isso de pan-americano.
MANUEL
Sei lá! Pois se a coisa é americana, como quer você que eu saiba? Tenho os meus estudos, isso tenho, mas só entendo do que é nosso. Lá o americano sei o que é; o pan é que me dá volta ao miolo!
CHICO
Você tem aquele livro que ensina tudo, e que o copeiro do doutor Furtado lhe vendeu para papel de embrulho?
MANUEL
Ah! Tenho! Tenho! Lembra você multo bem! E é justamente o volume que tem a letra p. (vai buscar numa prateleira o segundo volume do dicionário de Eduardo Faria) Ora, vamos ver! Isto é um livro, "seu" Chico, comprado a peso, aqui no balcão, por uma bagatela, mas que não dou por dinheiro nenhum. É obra rara! (depois de folhear o dicionário) Cá está! (lendo) "Pan: deus grego..."
CHICO (interrompendo)
Grego ou americano?
MANUEL
Aqui diz grego. Talvez seja erro de imprensa. (continuando a leitura) "Filho de Júpiter e de Calisto."
CHICO
Que diabo! Então ele tem dois pais?
MANUEL
Naturalmente Júpiter é a mãe. O nome é de mulher. (lendo) "Presidia ao rebanho e aos pastos, e passava pelo inventor da charamela."
CHICO
Charamela? Que vem a ser isso?
MANUEL
Lá na terra chamamos nós charamela a uma espécie de flauta.
CHICO
De flauta? Então já sei! Isso de pan-americano é uma flauteação!
MANUEL (fechando o dicionário)
Diz você muito bem, "seu" Chico: são uns flauteadores! Ora, que temos nós com os pastos e os rebanhos? (vai guardar o dicionário) Coisas que eles inventam para gastar dinheiro, como se o dinheiro andasse a rodo! (em tom confidencial) Olhe, aqui para nós, que ninguém nos ouve, o filho de Calisto deve ser o tal Rute, que andou por aí a fazer discursos e a encher o pandulho...
CHICO
Por falar em calistos, venha mais um de parati, "seu" Manuel!
OS DOIS ANDARES
Arthur Azevedo
OS COMPADRES
Arthur Azevedo
Arthur Azevedo
O velho Lima, que era empregado – empregado antigo – numa das nossas repartições públicas, e morava no Engenho de Dentro, caiu de cama, seriamente enfermo, no dia 14 de novembro de 1889, isto é, na véspera da proclamação da República dos Estados Unidos do Brasil.
O doente não considerou a moléstia coisa de cuidado, e tanto assim foi que não quis médico: bastaram-lhe alguns remédios caseiros, carinhosamente administrados por uma nédia mulata que há vinte e cinco anos lhe tratava com igual solicitude do amor e da cozinha. Entretanto, o velho Lima esteve de molho oito dias.
O nosso homem tinha o hábito de não ler jornais, e, como em casa nada lhe dissessem (porque nada sabiam), ele ignorava completamente que o Império se transformara em República.
No dia 23, restabelecido e pronto para outra, comprou um bilhete, segundo o seu costume, e tomou lugar no trem, ao lado do comendador Vidal, que o recebeu com estas palavras:
– Bom dia, cidadão.
O velho Lima estranhou o cidadão, mas de si para si pensou que o comendador dissera aquilo como poderia ter dito ilustre, e não deu maior importância ao cumprimento, limitando-se a responder:
– Bom dia, comendador.
– Qual comendador! Chama-me Vidal! Já não há comendadores!
– Ora essa! Então por quê?
– A República deu cabo de todas as comendas! Acabaram-se!
O velho Lima encarou o comendador, e calou-se, receoso de não ter compreendido a pilhéria.
Passados alguns segundos, perguntou-lhe o outro:
– Como vai você com o Aristides?
– Que Aristides?
– O Silveira Lobo.
–Eu! Onde? Como?
– Que diabo! Pois o Aristides não é o seu ministro? Você não é empregado de uma repartição do Ministério do Interior?
Desta vez não ficou dentro do espírito do velho Lima a menor dúvida de que o comendador houvesse enlouquecido.
–Que estará fazendo a estas horas o Pedro II? Perguntou Vidal passados alguns momentos. Sonetos, naturalmente, que é o que mais se ocupa aquele tipo!
– Ora vejam, refletiu o velho Lima, ora vejam o que é perder a razão: este homem quando estava no seu juízo era tão monarquista, tão amigo do imperador!
Entretanto, o velho Lima indignou-se vendo que o subdelegado de sua freguesia, sentado no trem, defronte dele, aprovava com um sorriso a perfídia do comendador.
– Uma autoridade policial! Murmurou o velho Lima.
E o comendador acrescentou:
– Eu só quero ver como o ministro brasileiro recebe o Pedro II em Lisboa; ele deve lá chegar no princípio do mês.
O velho Lima comovia-se:
– Não diz coisa com coisa, coitado!
– E a bandeira? Que me diz você da bandeira?
– Ah, sim... a bandeira... sim... repetiu o velho Lima para o não contrariar.
– Como a prefere: com ou sem lema?
– Sem lema, respondeu o bom homem num tom de profundo pesar; sem lema.
– Também eu; não sei o que quer dizer bandeira com letreiro.
Como o trem se demorasse um pouco mais numa das estações, o velho Lima voltou-se para o subdelegado, e disse-lhe:
– Parece que vamos ficar aqui! Está cada vez pior o serviço da Pedro II!
– Qual Pedro II! Bradou o comendador. Isto já não é de Pedro II! Ele que se contente com os cinco mil contos!
– E vá para casa do diabo! Acrescentou o subdelegado.
O velho Lima estava atônito. Tomou a resolução de calar-se.
Chegado à praça da Aclamação, entrou num bonde e foi até à sua secretaria sem reparar em nada nem nada ouvir que o pusesse ao corrente do que se passara.
Notou, entretanto, que um vândalo estava muito ocupado a arrancar as coroas imperiais que enfeitavam o gradil do parque da Aclamação...
Ao entrar na secretaria, um servente preto e mal trajado não o cumprimentou com a costumeira humildade; limitou-se a dizer-lhe:
– Cidadão!
– Deram hoje para me chamar cidadão! Pensou o velho Lima.
Ao subir, cruzou na escada com um conhecido de velha data.
– Oh! Você por aqui! Um revolucionário numa repartição do Estado!
O amigo cumprimentou-o cerimoniosamente:
– Querem ver que já é alguém! Refletiu o velho Lima.
– Amanhã parto para a Paraíba, disse o sujeito cerimonioso, estendendo-lhe as pontas dos dedos; como sabe, vou exercer o cargo de chefe da polícia. Lá estou ao seu dispor.
E desceu.
– Logo vi! Mas que descarado! Um republicano exaltadíssimo!
Ao entrar na sua seção, o velho Lima reparou que haviam desaparecido os reposteiros.
– Muito bem! Disse consigo; foi uma boa medida suprimir os tais reposteiros pesados, agora que vamos entrar na estação calmosa.
Sentou-se, e viu que tinham tirado da parede uma velha litografia representando D. Pedro de Alcântara. Como na ocasião passasse um contínuo, perguntou-lhe:
– Por que tiraram da parede o retrato de Sua Majestade?
O contínuo respondeu num tom lentamente desdenhoso:
– Ora, cidadão, que fazia ali a figura do Pedro Banana?
E, sentando-se, pensou com tristeza:
– Não dou três anos para que isto seja república!
(Do livro Contos Fora da Moda)
O conselheiro Lapa era o chefe de família mais austero que naquele tempo havia no Rio de Janeiro. Funcionário de elevada categoria, nunca ninguém o viu por essas ruas senão de sobre-casaca preta e chapéu alto. Creio que foi por isso, e pelos óculos, uns óculos de aro de ouro, terrivelmente solenes, que o imperador lhe deu a carta de conselho, pois ninguém lhe conhecia outros méritos.
O conselheiro Lapa era casado e tinha uma filha, que passara dos vinte anos sem que nenhum rapaz a namorasse, não porque fosse feia ou antipática, vaidosa ou mal educada, mas porque ninguém se atrevia a levantar os olhos para a filha de um conselheiro tão grave e tão conspícuo.
Entretanto, um simples escriturário do Tesouro teve um dia a ventura de fazer falar o coração da moça.
Animado pelas intenções mais puras, e competentemente autorizado pela sua bela, o escriturário um dia fez provisão de coragem, subiu a escada do conselheiro, pediu para falar a sua excelência, e quando se viu diante daqueles óculos, sabe Deus como formulou, ou antes, balbuciou um pedido de casamento.
O conselheiro não se dignou responder; limitou-se a medir o insolente de alto a baixo, e a apontar-lhe a porta, dizendo-lhe secamente: - Não admito esses gracejos em minha casa! Rua!. .
* * *
Este procedimento afligiu bastante os dois namorados, e fez naturalmente com que eles se apaixonassem deveras um pelo outro.
A menina teve tal desgosto, e deixou de alimentar-se durante tantos dias consecutivos que adoeceu gravemente.
A esposa do conselheiro, boa senhora, mas muito fraca, muito achacada de asma, esgotou diante do implacável marido todos os argumentos que acudiram ao seu coração de mãe; mas a melhor e mais eloqüente advogada de Rosalina e Alberto, que assim se chamavam os namorados, foi a Teresa, uma bonita mulata que, em pequena, aos doze anos, tinha sido contratada para ama-seca de Rosalina, e ali se fizera mulher, sem ter querido nunca abandonar a casa, recusando até o casamento que lhe oferecera um português apatacado, dono da casa de pasto da esquina.
A Teresa tinha trinta e três anos, mas ninguém lhe daria mais de vinte e cinco.
* * *
Apesar de toda a sua austeridade, o nosso conselheiro há quinze anos que não perdia ocasião de fazer declarações de amor à agregada, e não perdia a esperança de que ela um dia cedesse.
A mulata resistia a todas as investidas libidinosas do amo; dizia-lhe que tomasse juízo, que respeitasse o seu lar doméstico, que a senhora e a menina podiam reparar, etc., e, naturalmente, o conselheiro andava em tudo isso com tanta manha e hipocrisia que ninguém suspeitava daquele trabalhinho de quinze anos.
* * *
A Teresa, que estimava deveras a Rosalina, lembrou-se (de que não se lembram as mulheres!) de utilizar em beneficio da menina os maus sentimentos do pai, e, um dia, fingindo-se cansada de tanta perseguição, concedeu ao conselheiro a entrevista que há tanto tempo solicitava.
Na madrugada seguinte, o austero pai de família, de robe de chambre e chinelos, mas sem óculos, entrou devagarinho no quarto da mulata, e esta, mal que o apanhou lá dentro, começou a gritar com todas as forças dos seus pulmões:
- Sinhazinha! Sinhazinha! Parabéns! Parabéns!...
A velha, apesar de sua asma, e Rosalina saltaram imediatamente das camas, envolveram-se nas colchas, e foram ter, assustadas, ao quarto da Teresa, onde encontraram o conselheiro sem pinga de sangue.
- Parabéns, sinhazinha! - continuou a gritar a boa mulata. - O patrão teve um sonho tão esquisito, e ficou tão impressionado, que resolveu consentir no seu casamento com o Sr. Alberto! Ele veio acordar-me para eu levar a notícia à sinhazinha.
O conselheiro não teve o que dizer.
O RERATO
Arthur Azevedo
O meu querido amigo Emílio Rouède, que há dias faleceu, foi um homem espirituoso, que forneceria matéria para muitos contos ligeiros.
Em vez de inventar uma anedota, vou contar-vos uma historieta em que ele figurou, e que tem, por conseguinte, o mérito de ser autêntica.
A coisa passou-se há um quarto de século pouco mais ou menos. Emílio Rouède tinha se casado havia poucos meses, e estava estabelecido com fotografia na Rua dos Ourives, numa casa que foi demolida quando se tratou de construir a Avenida Central.
Um dia Mme. Rouède, que era uma linda senhora, saiu sozinha à rua, e foi acompanhada por um impertinente que, vendo-a sorrir, supôs que ela sorrisse não dele mas para ele.
Ela entendeu que o mais prudente era voltar para casa, e assim fez; o conquistador, porém, continuou a segui-la imperturbavelmente.
Chegando à porta da casa, a moça olhou para trás, a fim de verificar se continuava a perseguição, e esse movimento animou o homenzinho, ao que parece: quando ela entrou, ele entrou também; ela subiu a escada, ele também subiu.
Emilio Rouède estava no atelier, de blusa, a trabalhar, e, ouvindo os passos de sua esposa, foi esperá-la no topo da escada.
O sujeito, quando reparou que havia ali um homem, não teve mais tempo de fugir. Mme. Rouède apresentou-o ao marido:
— Aqui tens este senhor que me tem acompanhado por toda parte, e entrou comigo. Não sei o que pretende.
— Sei eu, acudiu prontamente o fotógrafo. - Pretende tirar o retrato; não pode ser outra coisa.
E voltando-se para o desconhecido, perguntou-lhe olhando por cima dos óculos, segundo o seu costume.
— Busto ou corpo inteiro?
O pobre diabo, que não sabia mais de que freguesia era, gaguejou:
— Busto... busto...
— Faça favor.
E levou uma hora a tirar-lhe o retrato que foi pago, ficando o retratado de ir buscá-lo daí a três ou quatro dias. Este queria apenas meia dúzia, mas Emílio Rouêde convenceu-o de que devia encomendar duas dúzias e meia.
Quando o freguês saiu, Emílio Rouède disse à esposa, que ria a bandeiras despregadas:
— Tenho pena de não ser dentista, em vez de fotógrafo!
Escusado é dizer que os retratos ficaram na fotografia.
O PALHAÇO
Arthur Azevedo
(HISTÓRIA TRISTE PARA UM DIA ALEGRE)
Como se explica que o Saraiva, um homem que tomava a sério as coisas mais cômicas da vida, e, segundo afirmavam as pessoas que o conheciam mais de perto, nunca ninguém viu rir, como se explica que o Saraiva, na terça-feira gorda de 1885, saísse de casa depois de jantar e, sem dizer nada à senhora, comprasse uma vestimenta de palhaço, uma cabeleira e uma máscara, e com tais objetos se metesse no seu escritório na Rua do Hospício, de onde saiu disfarçado? Ninguém diria que escondido naquela roupa alegre, muito branca e semeada de rodinhas vermelhas, e por baixo daquela cabeleira azul, encimada por um chapeuzinho minúsculo e pontiagudo, e por trás daquela carranca jocosa, que ria de um rir comunicativo, estivesse o grave comerciante, que parecia haver nascido para vida monástica.
A esposa desse urso, D. Balbina, era, quando se casou, uma rapariga expansiva e risonha; teve, porém, que se submeter ao feitio dele: tornou-se tão séria e tão sensaborona como o Saraiva, e, sozinha em casa, sem filhos, sem amigas, porque o marido não queria visitas, aborrecia-se muito.
Aborrecia-se tanto que procurou uma distração, e encontrou-a num belo rapaz, seu vizinho, que, de vez em quando, pulava o muro do quintal para fazer-lhe companhia, e consolá-la daquele silêncio e daquela solidão.
Infelizmente para ela, outro vizinho, por inveja ou simplesmente por maldade, escreveu uma carta anônima ao Saraiva, de que ele tinha um sócio de cuja existência não suspeitava – e ora aí está como se explica que naquela terça-feira gorda, depois de dizer a D. Balbina que ia para o escritório, onde se demoraria até tarde da noite, fechando uma correspondência que devia partir no dia seguinte, o austero e sisudo negociante foi se vestir de palhaço para apanhar a esposa em flagrante delito.
– Eu saio, os criados saem, pensou ele; se ela tem realmente um amante, é de supor que aproveite a ocasião para metê-lo em casa.
Bem pensado, porque, um quarto de hora depois de sair de casa o marido, o amante saltava o muro, e, naquela terça-feira gorda, apesar de ter ficado em casa, D. Balbina divertiu-se mais que muitos foliões, nas patuscadas dos préstitos e dos bailes.
Havia já duas horas que o vizinho fazia companhia à solitária vizinha, quando a campainha do portão do jardim foi violentamente agitada. D. Balbina chegou à janela e avistou um tilburi, cujo cocheiro, mal que a viu, gritou:
– Mande cá uma pessoa, minha senhora!
Não havia um criado em casa. D. Balbina teve que ir pessoalmente abrir o portão.
– Que é? – Perguntou ela.
– Minha senhora, este palhaço tomou o meu tilburi, e mandou tocar para esta casa; mas, em caminho, parece que teve uma apoplexia e morreu!
Efetivamente, o Saraiva, homem sanguíneo, que não pensou nas consequências de pôr aquela cabeleira e aquela máscara depois de jantar, tinha morrido no tilburi.
Deixo ao leitor o cuidado de pensar no espanto e na confusão que isso causou, e na tragicômica anomalia daquele negociante austero, estendido morto num canapé, e amortalhado em vestes de palhaço.
Só direi que D. Balbina, passado o período do luto, esposou o solicito vizinho que a consolava naquele silêncio e naquela solidão.
E até hoje, e lá se vão mais de vinte anos, ela não atinou com o motivo que levou o seu primeiro marido a vestir-se de palhaço... para morrer.
Arthur Azevedo
No dia em que ele me apareceu, recomendado por uma senhora a quem me queixara da falta de um bom criado, fiz-lhe as perguntas usuais:
– Como se chama?
– João.
– É português?
– Não, senhor; sou da Ilha da Madeira.
– Ora esta! Se é da Madeira, é português!
– Não, senhor: sou ilhéu.
– Bom; quanto quer ganhar por mês?
– Contento-me com que o patrão me der, contanto que não seja menos de cinquenta mil-réis, casa e comida.
Fiquei com o João.
Nesse mesmo dia, encontrei-o a lavar as mãos com o meu sabonete fino, que eu reservava, naturalmente, para o meu uso exclusivo.
– Que é isso? Você serve-se do meu sabonete?
– Não, senhor, não me estou servindo dele; estou a lavá-lo, porque estava sujo de espuma.
A minha vontade foi mandá-lo embora, mas não o fiz.
Não o fiz e, dali a três dias, entrando em casa, encontrei em cacos, na cesta dos papéis inúteis, uma estatueta da Vênus de Milo, que era de gesso, pouco valia, mas eu estimava muito por ser uma reprodução muito fiel do famoso mármore do Louvre.
Fiquei furioso:
– Quem quebrou isto?
– Fui eu, sim senhor, mas não foi por querer, respondeu-me ele a rir-se.
– E você ainda em cima se ri!
– Ora, patrão! Já faltavam os dois braços à boneca!
Não o mandei embora.
Uma ocasião, os marinheiros de um dos nossos navios de guerra recolheram a bordo um pobre cão naufragado, exausto já de tanto lutar com as ondas. Como já houvesse cão a bordo, e ninguém o quisesse, veio o animal para a terra, trazido por um oficial de Marinha que mo ofereceu.
Era um cão ordinário, mas inteligentíssimo. Os seus primitivos donos tinham-lhe ensinado umas tantas habilidades; ele comprazia-se em mostrar-mas, e ficava muito satisfeito, agitando vertiginosamente a cauda e pondo a língua de fora, quando eu lhas aplaudia, acariciando-lhe o pelo. Era muito mais inteligente que o João.
Uma vez, achavam-se reunidos em minha casa alguns amigos, e encantavam-nos as habilidades do cão, que estava presente. O João ouvia calado, mas notava-se na sua fisionomia o desejo de intervir na conversa. Afinal interveio:
– O patrão esqueceu-se de contar aos senhores a maior habilidade deste cão!
– Qual é? Qual é? Perguntaram todos em coro.
– Este cão que aqui estão vendo, senhores, sabe nadar!
Ao jantar, como ele nos viesse dizer, muito compungido, que na venda não havia nem mais uma pedrinha de gelo, para remédio, um dos rapazes exclamou, gracejando:
- Oh, senhor! Pois nessa venda não há nem do tal gelo em latas, que hoje se encontra em toda a parte?
O João disfarçou, saiu, e pouco depois voltou com esta notícia:
– O dono da venda diz que tinha, mas acabou-se.
– O quê?
– Gelo em latas.
Imaginem que risota!
Eu recomendara terminantemente ao meu criado que me não deixasse dormir além das oito horas da manhã; ele, porém, não tinha tido jamais ocasião de cumprir essa ordem, porque às sete já eu estava de pé. Certa manhã, tendo-me deitado bastante tarde, acordei e, consultando o relógio, vi que eram já nove horas.
– Ó, João!
– Patrão?
– Pois não lhe tenho eu dito um milhão de vezes que não me deixe dormir além das oito horas?
O João sorriu – o mesmo sorriso de quando quebrou a Vênus de Milo –, coçou a cabeça e respondeu:
– Eu vim acordar o patrão, vim.
– E então?
– Mas não acordei o patrão porque o patrão estava a dormir!
Mas a melhor foi esta: Uma noite em que lhe mandei oferecer cerveja às visitas, ele apareceu na sala com uma bandeja em que havia seis copos cheios e dois vazios.
– Para que esses copos vazios, João?
– É para alguém que não queira.
Dessa vez, pu-lo no olho da rua!
O LENCINHO
Arthur Azevedo
O Juvêncio, explicador de matemáticas, era um homem lúgubre. Nunca ninguém o viu rir, nunca ninguém lhe apanhou a expressão do olhar através dos óculos escuros.
Tinha as faces encovadas, o nariz adunco, a barba crescida. Trajava sempre de preto e usava chapéu alto. Era distraído e parecia estar sempre vagando pelos intermúndios do infinito, levado sobre uma nuvem de algarismos.
Numa dessas belas tardes cariocas, em que todas as mulheres bonitas vão assoalhar na Avenida a sua beleza e as suas toilettes, o explicador Juvêncio tomou, com alguma dificuldade, o bonde no Largo da Carioca, para ir dar uma explicação no Catete. Era à hora de mais afluência. Os lugares eram conquistados à força de agilidade e destreza.
O explicador Juvêncio ficou, por acaso, num bonde cheio de mulheres, num bonde que parecia antes a barca de Citera, pintada por um Watteau moderno. Que pena! O explicador Juvêncio, que era um viúvo positivista, não tinha olhos para a porção mais bela da humanidade. No banco em que ele se sentou estavam três cocottes espaventosas, que o embriagavam com uma porção de capitosos perfumes.
O banco da frente estava ocupado por uma família: três elegantes senhoritas, acompanhadas pela mãe, que poderia passar pela irmã mais velha. As três senhoritas falavam pelos cotovelos, comentando tudo quanto tinham visto durante o passeio.
Uma delas, por sinal que a mais bonita, agitava entre os dedos um pequenino lenço branco, um mimo de lenço em que nariz algum se atreveria a assoar-se. No calor da conversa, a senhorita fez um gesto, e o lenço, escapando-lhe da mão, foi cair – vejam que fatal casualidade! – Foi cair mesmo em cima da braguilha do explicador Juvêncio.
Este, que ia entretido a ler um livro de matemáticas, não deu absolutamente pela coisa. As cocottes riram a bom rir, mas nenhuma se atreveu a ir buscar o lenço onde caíra para entregá-lo à dona. Entretanto, a que estava junto do explicador Juvêncio deu-lhe uma cotovelada e, com um olhar, chamou-lhe a atenção para o lenço.
O que se passou então foi extraordinário. O explicador Juvêncio disse consigo: – Quando me hei de corrigir das minhas distrações? Pois não é que deixei ficar de fora um pedaço da fralda da camisa? E imediatamente, cobrindo com o livro o que estava fazendo, empurrou o lencinho para dentro da braguilha.
Depois, tirou o chapéu à cocotte, dizendo: – Muito obrigado, minha senhora – e continuou a ler imperturbavelmente.
Arthur Azevedo
Numa noite em que estávamos quatro ou cinco amigos reunidos em casa do Novais, vieram à baila os meus contos, e não houve na assistência quem se não gabasse de saber casos que forneceriam magníficos assuntos para este gênero de literatura amena.
– Pode ser – disse eu – mas devo confessar-lhes que até hoje não pude aproveitar para os meus trabalhos um único assunto oferecido nessas condições. Os contos inventaram-se, o que não quer dizer que não sejam também o produto do que se vê e observa na vida real, ou o renovamento de qualquer anedota que corra mundo desde tempos imemoriais.
– Ora! Eu sei a história de um jaó, que te poderia servir, disse-me o Novais, e vou contá-la enquanto minha mulher apronta o chá!
– Conta, que ele há de gostar – disse D. Emília, desaparecendo da sala.
– Vamos à história do jaó! – Exclamei, fingindo-me entusiasmado, para dar ânimo ao dono da casa.
A cena passa-se em Cataguases, no Estado de Minas, ainda nos ominosos tempos da monarquia, começou o Novais, acomodando-se numa poltrona.
Houve um movimento geral de atenção, e todos nós aproximamos as nossas cadeiras.
– A um quarto de légua da localidade, havia "um situante", como lá dizem, homem já maduro, honrado e trabalhador, que, tendo perdido a mulher, morava sozinho com a filha.
Esta chamava-se Mimi, e era um encanto, uma perfeição; morena, esbelta, cabelos negros, e ondeados, olhos de fogo, lábios rubros e magníficos dentes. De mais não era estúpida nem de todo ignorante: fazia as quatro operações; cosia admiravelmente e no governo da casa mostrava-se expedita e asseada.
Era agente da estação da estrada de ferro um bonito rapaz de 25 anos, que tinha a paixão da caça, e, nos lazeres do seu emprego, não fazia outra coisa senão caçar.
Um dia em que as suas diligências cinegéticas o levaram lá para as bandas do sitio do velho Serrano, que assim se chamava o pai da moça, ele encontrou Mimi numa volta de estrada, e ficou impressionadíssimo por aquela surpreendente formosura do campo.
Pelos modos, o efeito foi recíproco: eles cumprimentaram-se, o que era muito natural, porque na roça não se encontram duas pessoas que não se cumprimentem, embora não se conheçam; mas sorriam um para o outro, e isso já não estava nos usos e costumes indígenas.
Durante três dias a fio houve novos encontros e novos sorrisos. O moço nunca mais caçou noutro lugar.
Afinal, chegaram à fala, e ele que talvez levasse más intenções, foi desarmado pela candura e pela ingenuidade de Mimi.
Amaram-se, amaram-se deveras; entretanto, aquelas entrevistas na estrada eram perigosas; podia passar alguém...
– Ficaremos à vontade – disse ela com uma adorável confiança no seu amado – à sombra de uma caneleira que há nos fundos lá de casa. Entra-se por aquele atalho, e vai-se dar mesmo lá.
– E teu pai?
– Meu pai está da outra banda, fazendo o roçado; só vai pros lados da caneleira uma vez na vida e outra na morte. Estou sozinha em casa. Você dá um sinal, e eu vou ter com você.
– Qual há de ser o sinal?
– Você é caçador; deve saber piar.
– Naturalmente! Pio macuco, inhambu, jaó...
– Jaó, prefiro jaó, é triste, mas é bonito.
O namorado piou, para dar uma amostra da sua habilidade; o pio não podia ser mais perfeito.
No dia seguinte o velho Serrano sentiu-se um tanto indisposto e não quis sair de casa, o que bastante contrariou Mimi.
– Hoje nada de sol! – Disse ele; – tenho a cabeça pesada, e nesta idade o sangue sobe com facilidade. Ontem se me não engano, ouvi cantar um jaó, e tomei a coisa como agouro, porque há muito tempo esse pássaro não aparecia por cá.
– Ora, papai, isso agora é tolice!
– Será, mas não vou ao roçado. Nada, que teu avô não faz outro!
E dirigindo-se a um alpendrado, que ficava na parte superior da casa, o velho Serrano tirou da parede a sua espingarda, dizendo:
– Para não ficar com as mãos vadias, vou limpar esta sujeita, que está criando ferrugem.
E, depois de descarregar a espingarda para o ar, o velho sentou-se num banco e começou a limpá-la.
O tiro foi um alívio para Mimi – em primeiro lugar, porque ouvindo-o, o rapaz saberia que o velho estava em casa, e em segundo lugar, porque uma arma carregada na mão do pai era um perigo iminente para o namorado.
Mas – oh! Contrariedade! – Concluindo o trabalho, o velho foi buscar o polvarinho e carregou de novo a espingarda.
No momento de pendurá-la, ouviu-se o pio do jaó.
– Ouviste, Mimi? – Perguntou Serrano, empalidecendo de súbito, com a arma ainda na mão; ouviste?
– Não, senhor; que foi?
– O jaó! – Não ouvi nada; vocem'cê enganou-se.
– Não! Estes ouvidos de velho caçador não se enganam... E aquilo é agouro!...
– Que agouro, que nada!
– Há dois anos piou um jaó no sitio do João Bernardo... lembras-te?... E três dias depois o João Bernardo esticou a canela...
– Coincidência.
– Eu nunca te quis dizer nada, mas quando tua mãe morreu, tinha piado um jaó na véspera, ali mesmo, do lado da caneleira. É um pássaro da morte, pior que a coruja!
Palavras não eram ditas, ouviu-se de novo o jaó.
Serrano estremeceu dos pés à cabeça:
– Ouviste agora? Vê, minha filha, vê como tenho as mãos frias! Vou matar aquele diabo!
– Ora, papai, deixe o pobre jaó! Ele não é o que vocem'cê pensa!
– Pois sim! Aquele não há de cá voltar! Vá agourar lá pro inferno.
O velho ia sair, mas a filha, desesperada agarrou-o pelo braço:
– Não! Não faça isso, papai! Pelo bem que me quer!
E vendo que o velho forcejava para desvencilhar-se, Mimi pôs-se a gritar com toda a força dos seus pulmões:
– Jaó! Jaó! Vai te embora, que papai quer te matar!
– Espera que ele te entenda?
E, com um arremesso, o velho saltou para o terreiro e encaminhou-se para o lado da caneleira.
Mimi continuou a gritar:
– Jaó! Meu jaozinho! Foge, foge que papai lá vai à tua procura para matar-te!...
O velho voltou ao cabo de meia hora sem ter encontrado o pássaro.
–Que diabo, menina! Parece que ele te entendeu...
E pendurou tranquilamente a espingarda.
O Novais calou-se.
– Está terminado o conto? – Perguntei depois de uma pausa.
– Está; não o achas interessante?
– Não é mau, mas falta-lhe a conclusão. Que fim levou o jaó?
– Aqui o tens na tua presença, meu amigo; o jaó era eu.
– E a Mimi, esta sua criada – acrescentou D. Emília, que voltava com a bandeja do chá.
(Do livro Contos Cariocas)
O GRAMÁTICO
Arthur Azevedo
Havia na capital de uma das nossas províncias menos adiantadas certa panelinha de gramáticos, sofrivelmente pedantes. Não se agitava questão de sintaxe, para cuja solução não fossem tais senhores imediatamente consultados. Diziam as coisas mais simples e rudimentares num tom pedantesco e dogmático, que não deixava de produzir o seu efeito no espírito das massas boquiabertas. Dessa aluvião de grandes homens destacava-se o Dr. Praxedes, que almoçava, merendava, jantava e ceava gramática portuguesa.
Esse ratão, bacharel formado em Olinda, nos bons tempos, era chefe de seção da Secretaria do Governo, e andava pelas ruas a fazer a análise lógica das tabuletas das lojas e dos cartazes pregados nas esquinas. "Casa do Barateiro, – sujeito: esta casa; verbo, é; atributo, a casa; do barateiro, complemento restritivo." O Dr. Praxedes despedia um criado, se o infeliz, como a soubrette das Femmes Savantes, cometia um erro de prosódia.
E quando submetia os transeuntes incautos a um exame de regência gramatical? Por exemplo: encontrava na rua um menino, e este caía na asneira de perguntar muito naturalmente:
– Sr. Dr. Praxedes, como tem passado?
– Venha cá, respondia ele, agarrando o pequeno por um botão do casaco: "Sr. Dr. Praxedes, como tem passado?" – Que oração é esta?
– Mas... é que estou com muita pressa...
– Diga!
– É uma oração interrogativa.
– Sujeito?
– Sr. Dr. Praxedes.
– Verbo?
– Ter.
– Atributo?
– Passado.
– Bom. Pode ir. Lembranças a seu pai.
E, com uma ideia súbita, parando:
– Ah! Venha cá! Venha cá! Lembranças a seu pai – que oração é esta?
– É uma oração... uma oração imperativa.
– Bravo! – Sujeito?
– Está oculto... é você.... Você dê lembranças a seu pai.
– Muito bem. Verbo?
– Dar.
– Atributo?
– Dador.
– Lembranças é um complemento...?
– Objetivo.
– A seu pai...?
– Terminativo.
– Muito bem. Pode ir. Adeus.
* * *
Depois de aposentado com trinta anos de serviço, o Dr. Praxedes recolheu-se ao interior da província, escolhendo, para passar o resto dos seus gloriosos dias, a cidadezinha de ***, seu berço natal. Aí, advogava por muito empenho, continuando a exercer a sua missão de oráculo em questões gramaticais.
Raramente saia à rua, pois todo o tempo era pouco para estar em casa, respondendo às numerosas consultas que lhe dirigiam da capital e de outros pontos da província.
* * *
A cidadezinha de *** dava-se ao luxo de uma folha hebdomadária, o Progresso, propriedade do Clorindo Barreto, que acumulava as funções de diretor, redator, compositor, revisor, paginador, impressor, distribuidor e cobrador. Ninguém se admire disso, porque o Barreto – justiça se lhe faça – dava mais uso à tesoura do que à pena. O vigário, que tinha sempre a sua pilhéria aos domingos, disse um dia que aquilo não era uma tesoura, mas um tesouro.
Entretanto, se no escritório do Progresso a goma arábica tinha mais extração que a tinta de escrever, não se passava caso de vulto, dentro ou fora da localidade, que não viesse fielmente narrado na folha.
Por exemplo.
"O Sr. Major Hilarião Gouveia de Araújo acaba de receber a grata nova de que seu prezado filho, o jovem Tancredo, acaba de concluir os seus preparatórios na Corte, e vai matricular-se na Escola Politécnica, da referida Corte.
"Cumprimentamos cheios de júbilo o Sr. Major Hilarião, que é um dos nossos mais prestimosos assinantes, desde que se fundou a nossa folha."
* * *
Em fins de maio de 1885, a notícia do falecimento de Victor Hugo chegou à cidadezinha de ***, levada por um sujeito que saíra da capital justamente na ocasião em que o telégrafo comunicara o infausto acontecimento.
O Barreto, logo que soube da notícia, coçou a cabeça e murmurou:
– Diabo! Não tenho jornais.... Como hei de descalçar este par de botas? A notícia da morte de Victor Hugo deve ser floreada, bem escrita, e não me sinto com forças para desempenhar semelhante tarefa!
Todavia, molhou a pena, que se parecia um tanto com a espada de certos generais, e rabiscou: Víctor Hugo.
Ao cabo de duas horas de cogitação, o jornalista não escrevera nem mais uma linha...
* * *
Mas, oh! Providência! Nesse momento passou pela porta da tipografia o sábio Dr. Praxedes, a passos largos, medidos e solenes, e uma ideia iluminou o cérebro vazio de Clorindo Barreto.
– Doutor Praxedes! Doutor Praxedes! Exclamou ele. Tenha vossa senhoria a bondade de entrar por um momento. Preciso falar-lhe.
O Dr. Praxedes empacou, voltou-se gravemente e, conquanto embirrasse com o Barreto, por causa dos seus constantes solecismos, entrou na tipografia.
– Que deseja?
O redator do Progresso referiu a notícia da morte do grande poeta, confessou o vergonhoso embaraço em que se achava, e apelou para as luzes do Dr. Praxedes.
Este, com um sorriso de lisonjeado, sorriso que logo desapareceu, curvando-se-lhe os lábios em sentido oposto, sentou-se à mesa com a gravidade de um juiz, tirou os óculos, limpou-os com muito vagar, bifurcou-os no nariz, pediu uma pena nova, experimentou-a na unha do polegar, dispôs sobre a mesa algumas tiras de papel, cujas arestas aparou cuidadosamente com a... com o tesouro, chupou a pena, molhou-a três vezes no tinteiro infecundo, sacudiu-a outras tantas, e, afinal escreveu:
"Falecimento. – Consta, por pessoa vinda de *** ter falecido em Paris, capital da França, o Sr. Victor Hugo, poeta insigne e autor de várias obras de mérito, entre as quais um drama em verso, Mariquinhas Delorme (Marion Delorme) e uma interessante novela intitulada Nossa Senhora de Paris (Notre-Dame de Paris).
"O ilustre finado era conde e viúvo.
"O seu falecimento enluta a literatura da culta Europa.
"Nossos sinceros pêsames à sua estremecida família."
* * *
O Dr. Praxedes saiu da tipografia do Progresso, e continuou o seu caminho a passos largos, medidos e solenes.
Ia mais satisfeito e cheio de si do que o próprio Sr. Victor Hugo quando escreveu a última palavra da sua interessante novela.
O Barreto ficou radiante, e, examinando a tira de papel escrita pelo gramático, exclamou, comovido pela admiração:
– Nem uma emenda!
O GALO
Arthur Azevedo
A cena passa-se na roça, a uma légua da estação menos importante da Estrada de Ferro Leopoldina, lugarejo sem denominação geográfica, mas que pertence ao município do Rio Bonito, e aqui o digo, para que os leitores não suponham que estou inventando uma historieta.
Havia no lugarejo em questão uma palhoça habitada por dois roceiros, marido e mulher, que todos os domingos iam à povoação mais próxima vender os produtos da sua pequena roça e ouvir missa. Assim atamancavam eles a vida, pedindo a Deus que não lhes desse muita fazenda mas lhes conservasse a saúde.
Ora, um belo dia a saúde desapareceu: o marido, apesar de ter a resistência de um touro, foi para a cama atacado por umas cólicas terríveis, que o faziam ver estrelas.
A mulher, coitada!, estava sem saber o que fizesse, pois que já havia em vão experimentado todas as mesinhas caseiras, quando ali passou por acaso, ao trote do seu jumento, o Dr. Marcolino, que exercia a medicina ambulante numa zona de muitas léguas. A roceira agradeceu a Providência que lhe enviava o doutor e pediu a este que examinasse o doente e o pusesse bom o mais baratinho que lhe fosse possível.
O Dr. Marcolino apeou-se, entrou na palhoça, examinou o enfermo, auscultou-o, martelou-lhe o corpo inteiro com o nó do dedo grande e explicou a moléstia com palavras difíceis que aquela pobre gente não entendeu. Depois, abriu o saco de viagem que levava à garupa do animal, tirou alguns vidros, de cujo conteúdo derramou algumas gotas num copo d'água, e disse doutoralmente:
- Aqui fica esta poção para ser tomada de três em três horas.
- Ah! seu doutor, nós aqui não podemos contar as horas, porque não temos relógio!
- Regulem-se pelo sol. O sol é um excelente relógio quando não chove e o tempo está seguro.
- Não sei disso, seu doutor, não entendo do relógio do sol...
- Nesse caso não sei como... Ah!...
Este ah!, com que o doutor interrompeu o que ia dizendo, foi produzido pela presença de um galo que passava no terreiro, majestosamente.
- Ali está um relógio, continuou o doutor: aquele galo. Todas as vezes que ele cantar, dê-lhe uma colher do remédio. E adeus! Não será nada: Depois de amanhã voltarei para ver o doente.
Foi-se o médico, e daí a dois dias voltou ao trote do seu jumento.
Quem o recebeu foi o marido:
- Que é isto?... já de pé...
- Sim, senhor: estou completamente bom, não tenho mais nada. E não sei como agradecer...
Mas a mulher interveio com ar magoado:
- Sim, ele não tem mais nada, mas o pobre galo morreu.
- Morreu? Por quê?.
- Não sei, doutor... ele bebeu todo o remédio.
- Quem?... o galo?...
- Sim, senhor; todas as vezes que ele cantava, eu, segundo a recomendação do doutor, abria-lhe o bico, e derramava-lhe uma colher da droga pela goela abaixo! Que pena! Era um galo tão bonito!
O GALÃ
Arthur Azevedo
Um belo dia, naquela pacata e honesta capital da província de segunda ordem, apareceram, pregados nas esquinas, enormes cartazes anunciando a próxima estreia de uma excelente companhia dramática, vinda do Rio de Janeiro.
Há muito tempo o velho teatro não abria as portas ao público, e este, enfarado de peloticas e cavalinhos, andava sequioso de drama e comédia. Havia, portanto, na cidade uma animação e rebuliço desusados.
Falara-se na vinda da companhia, mas ninguém tinha absoluta certeza de que ela viesse, porque o empresário receava não fazer para as despesas. Agora, os cartazes, impressos em letras garrafais, confiram a auspiciosa notícia, provocando um entusiasmo indizível. Muita gente saía de casa só para os ver, certificando-se, pelos próprios olhos, de tão grata novidade.
A companhia anunciada era, efetivamente, a melhor, talvez, de quantas até então se tinham aventurado às incertezas de uma temporada naquela tranquila cidade. Dois artistas, pelo menos, a primeira-dama e o galã, vinham precedidos de grande fama. Ela já lá tinha estado, quando menos célebre, porém, era a primeira vez que lá ia, e por isso o esperavam com uma ansiedade fácil de imaginar.
Quando a companhia chegou, foi uma verdadeira festa. Grande massa de povo aguardava-a no cais de desembarque; houve música, foguetes e aclamações. Tanto a primeira-dama como o galã foram acompanhados ao hotel por inúmeros admiradores – e ele, solicitado pelo povo, teve que aparecer à janela, onde, visivelmente comovido, expectorou algumas palavras com mais entusiasmo que sintaxe.
A estreia foi um delírio. O teatro encheu-se completamente: não havia um lugar desocupado. O presidente da província (era no tempo do Império) estava presente, e os camarotes, ocupados pelas primeiras famílias, apresentavam magnífico aspecto.
Representou-se A Morgadinha de Valflor.
A primeira-dama agradou muito, mas sem causar grande impressão, porque já tinha sido vista no papel da protagonista e não parecia agora superior ao que dantes fora. Quem triunfou verdadeiramente, quem teve as honras da noite, foi o galã, o melhor Luís Fernandes que até então pisara naquele palco.
Era um artista experimentado, com todas as qualidades e defeitos indispensáveis para agradar às plateias provincianas; bom órgão, gesto largo e abundante, porte esbelto, grande cabeleira encaracolada, bigodes fartos e retorcidos, olhos pisados, bons dentes – nada faltava a Luís Fernandes para ser desejado, não só pela Morgadinha de Valflor, como por todas as espectadoras sentimentais.
Entre estas, havia uma, Sinhazinha Brites, cujo espírito enfermiço aquele formoso intérprete de Pinheiro Chagas impressionou singularmente.
Ela sentia-se fascinada pela figura garbosa e varonil do palavroso pintor, em quem tão bem assentavam os calções e as botas do tempo do diretório – e, por mais que tentasse disfarçar, não pôde encobrir ao marido os violentos resultados daquela fascinação. Ele, o marido, o Brites, era um sujeito observador e inteligente, a quem não deixava de inquietar o caráter romanesco de sinhazinha. Estudara-a a fundo, atentando nas suas longas cismas em noites de luar, ou examinando cuidadosamente os livros cuja leitura ela preferia.
Houvera certa desigualdade naquele casamento: o marido era quinze anos mais velho que a mulher; ele, um homem positivo, encarando a vida como a vida é, procurando o lado prático de todas as coisas; ela, com uns ares vaporosos de femme incomprise, divagando continuamente pelos intermúndios da quimera e do sonho. Ele, criatura comum, homem feio como todos os homens sem educação física; ela, uma das moças mais bonitas da terra. Demais, faltava-lhes a maior ventura dos casais felizes: faltava-lhes um filho que reprimisse na senhora as fantasias da senhorita.
Com uma boa posição no comércio, rico ou, pelo menos, remediado, honesto, escrupuloso, solícito, amável, e, como já ficou dito, inteligente, o Brites era, entretanto, um marido ideal. O segundo espetáculo da companhia foi com O Romance de Um Moço Pobre.
Observou o sobressaltado marido que Máximo Odiot causava à sinhazinha uma impressão ainda mais pecaminosa que a produzida por Luís Fernandes. Quando o pano desceu depois da famosa cena das ruínas do castelo abandonado, em que o herói de Octave Feuillet se atira num precipício, exclamando: – Vou salvar a honra! – sinhazinha ficou uns bons cinco minutos estática, sem articular um som, os lábios entreabertos num quase sorriso voluptuoso, o olhar úmido perdido no vago.
O público aplaudiu calorosamente, chamando três vezes os artistas à cena, e ela não saiu daquele êxtase.
– Que tens?... Estás incomodada?... – Perguntou o Brites.
A moça estremeceu, passou as mãos pelos olhos, como se despertasse de um sonho, e suspirou, dizendo:
– Não, não tenho nada.
Na manhã seguinte, o Brites experimentou o maior desgosto da sua vida conjugal: ouviu perfeitamente sinhazinha, dormindo, pronunciar o nome do galã. Isto resolveu-o a atacar de frente o minotauro. Não deixou perceber coisa alguma. Almoçou alegremente e foi para o trabalho à hora costumada. Quando voltou à tarde, aproximou-se de sinhazinha, deu-lhe um beijo, e disse-lhe:
– Trago-te uma notícia que talvez te contrarie...
– Qual?
– O galã da companhia dramática vem cá jantar amanhã.
– O galã!
– Sim; aquele que ontem fez com tanto talento o papel do moço pobre. Foi hoje levar-me ao escritório uma carta de recomendação, e eu, não sabendo como obsequiá-lo, convidei-o para jantar. Amanhã, não há espetáculo: ele está livre.
Sinhazinha, que, enquanto o marido falava, tivera tempo de preparar a dissimulação, limitou-se a responder:
– Que maçada!
Ela mal dormiu durante a noite e, no dia seguinte, agitada pela ideia de que ia ver de perto, apertar a mão e falar ao irresistível galã, passou as horas febricitante, nervosa, mudando de lugar a cada momento. Felizmente, os preparativos do jantar ofereceram uma espécie de derivativo àquele acesso nervoso.
Quando, às seis horas da tarde, chegou o galã, ela não quis acreditar que fosse ele: olhou para a porta como se esperasse outra visita; mas o marido, que lhe percebeu a surpresa, insistiu na apresentação e sinhazinha dobrou-se à evidência.
Tinha diante de si um homem feio, marcado de bexigas, os dentes postiços, o cabelo cortado à escovinha e a cara inteiramente raspada... de véspera. A alvura da camisa era suspeita, as botinas eram cambraias, as unhas não eram irrepreensíveis, a sobrecasaca tinha nódoas, e as calças, joelheiras.
A desilusão continuou durante o jantar. O galã, aliás boa pessoa, não tinha absolutamente conversação, nem de outro assunto que não fosse da sua vida de teatro. Disse mal dos colegas, arrastou a primeira-dama pela rua da amargura, e afirmou que não faria parte daquela tropa fandanga, se não tivesse que sustentar mulher e cinco filhos, em véspera de seis.
E não sabia estar à mesa: repetia todos os pratos, metia a faca na boca, palitava os dentes, limpava a testa no guardanapo, escarrava, cuspia! Sinhazinha estava pasmada, e o Brites, radiante.
Quando o galã saiu, logo depois do café, a mulher do engenhoso Brites sentia-se curada de todos os devaneios da sua imaginação doentia.
– Que diferença!... Não parece o mesmo!...
– Pudera! Quem tu viste no teatro não foi ele: foi o Luís Fernandes, foi o Máximo Odiot.
Alguns meses depois, havia naquela casa o que até então lhe faltava: um filho que reprimisse na senhora todas as fantasias da senhorinha.
O ESPÍRITO
Arthur Azevedo
O caso que vou contar passou-se há um bom par de anos, quando no Rio de Janeiro o espiritismo não tinha ainda o caráter de seriedade nem os ilustres prosélitos que hoje tem, mas começava a ocupar a atenção e a roubar o tempo a algumas pessoas de boa fé. Entre essas figurava o Garcia, bom homem, cujo único defeito era ser fraco de inteligência, defeito que todos lhe perdoavam por não ser culpa dele.
O nosso herói não se empregava absolutamente noutra coisa que não fosse comer, beber, dormir e trocar as pernas pela cidade. Tinha herdado dos pais o suficiente para levar essa vida folgada e milagrosa, e só gastava o rendimento do seu patrimônio. Casara-se com d. Laura que, não sendo formosa que o inquietasse, nem feia que lhe repugnasse, era mais inteligente e instruída que ele. Esta superioridade dava-lhe certo ascendente, de que ela usava e abusava no lar doméstico, onde só a sua vontade e a sua opinião prevaleciam sempre.
O Garcia não se revoltava contra a passividade a que era submetido pela mulher: reconhecia que d. Laura tinha sobre ele grandes vantagens intelectuais e, se era honesta e fiel aos seus deveres conjugais, que lhe importava a ele o resto? Sim, que d. Laura já não lembrava do Frederico...
Quem era esse Frederico? Um elegante guarda-livros, que a namorava quando o Garcia apareceu iluminado pela sua auréola de capitalista, pondo-o imediatamente fora de combate.
Ou fosse para melhorar de situação ou porque realmente o magoasse a vitória fácil do dinheiroso rival, o guarda-livros, ainda d. Laura não se tinha casado, mudara-se para São Paulo, e nunca mais souberam dele, nem ela, nem o Garcia. Num dia em que este, ano e meio depois de casado, perguntou, a gracejar, pelo primeiro namorado de sua mulher, d. Laura, no generoso intuito de o tranquilizar, respondeu, simulando indiferença:
– Não sei... Parece que morreu...
– Morreu?...
– Pelo menos disseram-me que sim... em São Paulo... Não sei ao certo, nem isso me interessa.
Por esse tempo, já o Garcia tinha sido iniciado, por algum amigo, nos mistérios do espiritismo, e fazia parte de um grupo, um dos primeiros que organizaram nesta cidade, para estudar os fenômenos revelados nos livros de Allan-Kardec.
Os associados reuniam-se todos os sábados para consultar a mesa giratória, evocar espíritos e conversar com defuntos célebres. Produziam-se, realmente, alguns fenômenos, que impressionaram profundamente o espírito débil de Garcia, a ponto de fazer com que ele não pensasse mais noutra coisa a não ser em almas de outro mundo. Tinha o nosso espírita grande curiosidade de evocar por meio de tal mesa giratória o espírito de Frederico, apenas para verificar se estava morto o seu antigo rival; abstinha-se, porém, de o fazer pelo receio de que os colegas do grupo, sabendo do namoro da sua mulher, o tomassem por ciumento e ridículo.
Mas, uma noite, em que a sessão ainda não começara, e estavam presentes apenas dois companheiros, que mal o conheciam, o Garcia pediu-lhes que o ajudassem a evocar o espírito de um amigo. Os outros aquiesceram. Sentaram-se os três e espalmaram as mãos sobre uma pequena mesa de três pés, que em poucos minutos começou a mexer-se como um ser animado.
– Está presente o espírito que evoquei? – Perguntou o Garcia em voz sinistra e cavernosa. – Se está presente, dê duas pancadas!
A mesa inclinou-se duas vezes, e obedeceu.
– Faça o favor de dizer o seu nome por letras do alfabeto! – Continuou o Garcia, no mesmo tom.
A mesa deu seis pancadas.
– F – disseram os dois companheiros.
– Adiante!
A mesa deu dezoito pancadas.
– R – repetiram os espíritas.
– Adiante!
A mesa deu cinco pancadas.
– E – explicou um dos três.
– F, R, E – disse o outro.
E em tom de comando, acrescentou:
– Se é Frederico, dê uma pancada forte!
A mesa deu uma pancada tão violenta, que partiu a perna.
O Garcia ergueu-se lívido e assombrado, gaguejando:
– Estou satisfeito.
– Mesmo porque é preciso consertar a mesa – concluiu um dos companheiros.
– Com duas pernas é impossível fazê-la trabalhar.
O que preocupava o grupo já não eram os espíritos invisíveis nem os fenômenos da mesa, que se poderiam atribuir a simples efeitos do magnetismo animal; o que todos ali desejavam era ver um espírito materializado, e para isso tinham empregado grandes esforços, mas sempre vãos. Nessa ocasião, estavam presentes no Rio de Janeiro não só o espírito como o corpo, em carne e osso, do Frederico, vindo de São Paulo para tratar de um negócio urgente, de três a quatro dias.
Apesar da pressa que trazia, o guarda-livros achou um momento disponível para passar pela casa do Garcia, na esperança de ver – apenas ver – d. Laura. Poupem-me os leitores explicar-lhes como não só a viu, como lhe falou; e até entrou para a sala. O caso é que, naquela noite, a mesma da evocação, voltando o Garcia para os seus penates mais cedo que de costume, pois que a sessão não se realizara por falta de número, encontrou o Frederico no corredor, saindo para a rua, e ficou tão estupefato que o deixou sair sem lhe dirigir a palavra.
O pobre-diabo foi direto ao quarto de sua mulher, que, ouvindo-lhe os passos apressados, se sentara mais que depressa numa cadeira de balanço, a ler um livro, fingindo a maior tranquilidade.
– Que quer isto dizer?
– Isto quê?
– Esse homem que acaba de sair daqui?
– Um homem?! Daqui?! Tu estás doido!
– Oh, senhora! Pois não esteve aqui um homem?
– Estás doido, repito.
– Eu vi-o!
– Não podias ter visto.
– Vi-o, e era o Frederico!
– Ora o Frederico! Um morto! Olha, sabes que mais? O tal espiritismo transtorna-te o miolo! O melhor é deixares-te disso!
O Garcia pensou:
–- Um morto... Sim, ele está' morto... e ele então materializou-se para aparecer-me... Não foi outra coisa!
No sábado seguinte, o Garcia apareceu radiante ao grupo:
–- Meus amigos, tenho que lhes fazer uma comunicação muito importante: sou médium vidente!
– Deveras? – Exclamaram todos em coro.
– É o que lhes digo! Sábado passado, ao entrar em casa, encontrei no corredor uma pessoa que morreu em são Paulo.
– Conte-nos isso – ordenou o presidente do grupo – você não teve medo?
– Eu? Nenhum! O espírito, sim, o espírito é que, pelos modos, teve medo de mim, porque assim que me viu deitou a fugir.
O EPAMINONDAS
Arthur Azevedo
Conquanto exercesse a profissão de advogado, e como tal fosse muitas vezes coagido a mentir, o Dr. Lacerda abominava mentirosos, e tudo perdoava ao filho, ao Epaminondas, menos falir à verdade; por isso lhe dera o nome do famoso general tebano, que nem brincando mentia.
Releva dizer que, em solteiro, no tempo em que andou de casa e pucarinha com a Esmeralda, que deixou fama nas rodas alegres da vida carioca, o Dr. Lacerda foi mais enganado por essa mulher que Cláudio por Messalina; desse amargo período da sua existência lhe ficou talvez, aquele sentimento de repulsão aliás muito louvável, por tudo quanto não fosse a expressão exata e cristalina da verdade.
Depois que a Esmeralda partiu para a Europa, e serenou a vida do seu amante, gravemente perturbada por aqueles amores infelizes e ridículos, o Dr. Lacerda, desejoso de constituir família encontrou D. Sidônia, uma excelente moça e formosa, de quem se enamorou, e que aceitou satisfeita a sua mão de esposo, porque o amava. Casaram-se.
Eram felizes, mas na sua felicidade havia uma nuvenzinha: a Esmeralda. Com o seu estimável, mas inconvenientíssimo sistema de não encobrir a verdade, fosse qual fosse, o Dr. Lacerda contara lealmente, ainda noivo, todo o seu tempestuoso passado àquela que deveria ser sua esposa.
Imprudência foi, porque D. Sidônia ficou ciumenta desse passado. A Esmeralda ainda vivia; apenas mudara de terra; poderia de um momento para outro aparecer inopinadamente, e perturbar a ventura do amoroso casal. Talvez não estivesse de todo extinta a chama antiga; bastaria, talvez, a presença daquela mulher perigosa para reacendê-la no coração do advogado.
Esses receios não se modificaram profundamente com o nascimento do Epaminondas, nem mesmo com o deslizar do tempo.
Havia já nove anos que viera ao mundo o homônimo do estadista de Tebas, quando um belo dia D. Sidônia soube, pelo próprio marido, que a Esmeralda voltara da Europa, e mais bela, mais atraente que nunca. Era a verdade, a verdade implacável, que ele não podia esconder.
A esposa sobressaltou-se, coitada, – mas o marido tranquilizou-a com estas palavras:
– Não é justo que me tenhas na conta de um homem desprezível. Não sinto por essa mulher senão asco.
– Não, não és, bem sei, um homem desprezível; és, pelo contrário, o modelo dos homens de bem; mas a natureza é fraca, e essa mulher um demônio capaz de transformar o teu caráter!
– Não creias.
– Olha, Lacerda, se eu souber que estiveste com ela... que lhe falaste... eu... nem sei que desatino farei!... Sou capaz de suicidar-me!...
– Cala-te! Não digas tolices!...
– Em todo caso, se te encontrares com esse diabo, se lhe falares, por amor de Deus não me digas nada! Ao menos por esta vez, só por esta vez, encobre-me a verdade!... Podes causar uma desgraça!... Vê como estou nervosa!...
– Isso passa.
Poucos dias depois, seriam três horas da tarde, estava o advogado no seu consultório da rua da Quitanda, em companhia do Epaminondas, que viera ter com o pai a fim de preveni-lo que D. Sidônia, viria buscá-lo para ir com ele ao dentista.
De repente, abriu-se a porta do consultório, e a Esmeralda entrou como um raio.
– Ah! Lacerda, meu Lacerda, em fim te encontro!...
E, sem fazer caso do menino, a turbulenta cocotte abraçou com veemência e beijou repetidas vezes o seu ex-amante que, em vão, forcejava por se ver livre daquela intempestiva e escandalosa expansão.
– Deixe-me, senhora! Que é isto? Olhe o pequeno! É meu filho!
Mas qual! A Esmeralda, chorando e rindo ao mesmo tempo, continuava a abraçá-lo e beijá-lo cada vez com mais efusão, e o Epaminondas, atônito, pasmado, arregalava os olhos, sem se atrever a erguer-se da cadeira em que estava sentado.
Nisto, o Dr. Lacerda ouviu um frufru de saias na escada, e reconheceu os passos de sua mulher, que subia.
O pobre diabo soltou um grito de terror e, com um gesto enérgico e brutal, afastou de si a inconsequente Esmeralda.
– É minha mulher! Esconda-se!...
A cocotte compreendeu tudo, e, sem dizer palavra, meteu-se numa alcova cuja porta o advogado fechou.
Todos esses movimentos se realizaram num abrir e fechar d'olhos.
– Que foi?... Que se passou?... Com quem falavas tu?... Quem estava aqui?...
– Ninguém... nada... bem vês, – balbuciou o Dr. Lacerda.
Houve uma pausa.
O consultório estava impregnado do perfume da Esmeralda, um perfume indiscreto e capitoso que a anunciava de longe; felizmente, porém, D. Sidônia achava-se naquele dia atacada por um defluxo providencial, que lhe tirava completamente o olfato.
Ela voltou-se para o filho:
– Epaminondas, teu pai ensinou-te a não mentir em nenhuma circunstância da vida: dize-me a verdade: quem estava aqui?
– Uma senhora?
– Que senhora?
– Não a conheço.
– Que fez ela?
– Entrou como uma doida, e deu muitos beijos e muitos abraços em papai!
– Que senhora é essa? – Interrogou ela com os lábios trêmulos.
O Epaminondas respondeu pelo pai:
– Uma senhora muito bonita, muito bem vestida, com um chapéu muito grande!
– Onde está essa mulher?
– Papai disse-lhe que se escondesse, e ela escondeu-se...
– Onde?
– Naquele quarto.
Vendo a situação bem encaminhada, o Dr. Lacerda recobrou o sangue-frio, e, enquanto D. Sidônia revistava a alcova, disse baixinho ao filho:
– Epaminondas, é preciso mentir; senão, tua mãe mata-se!
E quando D. Sidônia voltou da alcova, recebeu-a com uma gargalhada:
– Ah! Ah! Ah! Ah!...
– Que quer isso dizer? – Perguntou ela.
– Quer dizer que caíste como um patinho!
– Hem?
– Isto foi uma comédia arranjada por mim, com o auxílio do Epaminondas. Fui eu que lhe ensinei aquela história de moça bonita, de chapéu grande!
– Mas... para quê?
– Como disseste que te suicidaria se eu falasse à Esmeralda, queria ver o que farias! Mas tenho pena de te ver aflita, e não espero pelo resultado da pilhéria...
– Isso é verdade, Epaminondas?
– É mamãe, – respondeu o pequeno, com um tom de convicção de quem jamais fizera outra coisa, senão mentir.
– E este colarinho amarrotado?... E esta gravata?
– Foi de propósito, minha tola, para dar um quê de verossimilhança à coisa.
– Achas então que sou tola? – Disse D. Sidônia sorrindo e sentando-se tranquilamente. – Tolo és tu!
– Por quê?
– Não te lembras de que não me poderia entrar na cabeça que estivesse aos beijos com essa mulher em presença do Epaminondas!
– É verdade! Que queres? Para mim, bem sabes, não há nada mais difícil do que inventar uma peta. Vamos ao dentista!
Dali por diante, o Epaminondas começou a mentir por quantas juntas tinha.
O CUCO
Arthur Azevedo
Não havia meio de conseguir que o Roberto ficasse uma noite em casa, fazendo companhia à senhora: havia de sair por força depois de jantar, sozinho, e só voltava às dez, às onze horas, e mesmo algumas vezes depois da meia-noite.
A senhora, que era uma santa, como todas as mulheres de maridos notívagos, não se lastimava, não pedia ao Roberto que a levasse consigo, não lhe perguntava, sequer, por onde tinha andado, quando o via chegar um pouco mais tarde, o que raras vezes acontecia, porque em regra, quando o cuco da sala de jantar dava dez horas, já ela, coitadinha!, estava ferrada no sono.
* * *
O cuco da sala de jantar era um dos mais curiosos que ficaram no Rio de Janeiro, do tempo em que foram moda: pertencera à avó de Roberto, e este por dinheiro nenhum se desfaria de tão preciosa relíquia de família, que era ao mesmo tempo saudosa recordação da infância.
As horas eram dadas por um pássaro mecânico. Saía este da sua gaiola, abria o bico e punha-se a cantar lentamente: – "Cuco, cuco, cuco..." O Roberto, em criança, imitava-o a ponto de enganar as pessoas de casa.
* * *
Uma noite, foi o nosso herói ao Cassino Nacional e deixou-se tentar por um amigo, que o convidou para cear com ele e duas chanteuses, uma gommeuse e outra excentrique.
Depois da ceia, o amigo partiu com uma delas para Citera, vulgo Copacabana, e o Roberto foi obrigado a acompanhar a outra a uma pensão da Praia do Russel.
Quando ele deu por si, eram quase quatro horas da madrugada! Oh, diabo!, a essa hora nunca entrara no lar doméstico!
Meteu-se num tílburi, que lhe apareceu providencialmente, e voou para casa. Abriu a porta com toda a cautela e, antes de subir a escada, tirou as botinas, para não fazer bulha.
O seu quarto – seu e de sua esposa – era contíguo à sala de jantar e tornava-se preciso atravessar esta para lá entrar.
Ele atravessou, mas, como estivesse no escuro, esbarrou numa cadeira, que caiu com estrondo.
Logo ouviu o Roberto, a senhora remexer-se na cama e disse consigo:
– Sebo! Lá acordei minha mulher!
Ela perguntou:
– És tu, Roberto?
– Sim, sou eu, sinhazinha.
E o marido acrescentou para si:
– Felizmente não sabe que horas são.
Mas, nisto, o cuco saiu da gaiola, e começou a cantar lentamente: "Cuco... cuco... cuco... cuco..."
– Estou perdido! – Pensou o Roberto, mas uma ideia luminosa lhe atravessou de repente o cérebro, e, quando o pássaro cantou pela quarta vez e voltou para a gaiola, ele continuou: "Cuco... cuco... cuco..." até completar onze cucos.
O próprio Roberto não sabia que ainda imitasse o pássaro com tanta perfeição.
– Onze horas – disse ele depois do décimo primeiro cuco –. Julguei que fosse mais cedo!
E começou a despir-se.
A santa senhora voltou-se para o outro lado e adormeceu de novo. Não deu pela coisa.
O CHAPÉU
Arthur Azevedo
O Ponciano, rapagão bonito,
Guarda-livros de muita habilidade,
Possuindo o invejável requisito
De uma caligrafia
A mais bela, talvez, que na cidade
E no comércio havia,
Empregou-se na casa importadora
De Praxedes, Couceiro & Companhia,
Casa de todo Maranhão credora,
Que, além de importadora, era importante,
E, se quebrasse um dia,
Muitas outras consigo arrastaria.
Do comércio figura dominante,
Praxedes, sócio principal da casa,
Tinha uma filha muito interessante.
O guarda-livros arrastava-lhe a asa.
Começara o romance, o romancete
Num dia em que fez anos
E os festejou Praxedes co'um banquete,
Num belo sítio do Caminho Grande,
Sob os frondosos galhos veteranos
Que secular mangueira inda hoje expande.
A mesa circular, sem cabeceira,
Rodeando o grosso tronco da mangueira,
Um belíssimo aspecto apresentava:
Reluzindo lá estava
O leitão infalível,
Com o seu sorriso irônico,
Expressivo, sardônico.
Sabeis de alguma coisa mais terrível
Do que o sorriso do leitão assado?
E nos olhos, coitado!
Lhe havia o cozinheiro colocado
Duas rodelas de limão, pilhéria
Que sempre faz sorrir a gente séria.
Dois soberbos perus de forno; tortas
De camarão, e um grande e majestoso
Camorim branco, peixe delicioso,
Que abre ao glutão do paraíso as portas;
Tainhas ouríchocas recheadas,
Magníficas pescadas,
E um presunto, um colosso,
Tendo enroladas a enfeitar-lhe o osso,
Tiras estreitas de papel dourado.
Compoteiras de doce, encomendado
A Calafate e a Papo Roto; frutas;
Vinho em garrafas brutas.
Amêndoas, nozes, queijos, o diabo.
Que se me meto a descrever aquilo,
Tão cedo não acabo!
O Ponciano fora convidado:
Quis o velho Praxedes distingui-lo.
Fazia gosto vê-lo
Convenientemente engravatado,
De calças brancas e chapéu de pelo,
E uma sobrecasaca
Que estivera fechada um ano inteiro
E espalhava em redor um vago cheiro
De cânfora e alfavaca.
Mal que o viu, Gabriela
(Gabriela a menina se chamava)
Lançou-lhe uma olhadela
Que a mais larga promessa lhe levava...
Como que os olhos dele e os olhos dela
Apenas esperavam
Encontrar-se; uma vez que se encontravam,
De modo tal os quatro se entendiam
Que, com tanto que ver, nada mais viam!
Apesar dos perigos,
Por ninguém o namoro foi notado.
Pois que o demônio as coisas sempre arranja.
Praxedes, ocupado,
Fazia sala aos ávidos amigos;
A mulher de Praxedes, nas cozinhas,
Inspecionava monstruosa canja
Onde flutuavam cinco ou seis galinhas
E um paio, um senhor paio,
E os convivas, olhando de soslaio
Para a mesa abundante e os seus tesouros
Não tinham atenção para namoros.
Quando todos à mesa se assentaram,
Ele e ela ficaram
Ao lado um do outro... por casualidade,
E durante três horas, pois três horas
Levou comendo toda aquela gente,
Entre as frases mais ternas e sonoras
Juraram pertencer-se mutuamente.
Quando na mesa havia só destroços,
Cascas, espinhas, ossos e caroços,
E o café fumegante
Circulou, – nesse instante,
Eram noivos Ponciano e Gabriela.
– Como, perguntou ela,
Nos poderemos escrever? Não vejo
Que o possamos fazer, e o meu desejo
É ter notícias tuas diariamente.
Respondeu ele: – Muito facilmente:
Quando a casa teu pai volta à noitinha
Traz consigo o Diário, por fortuna;
Escreverei com letra miudinha,
Na última coluna,
Alguma coisa que ninguém ler possa
Quando não esteja prevenido. – Bravo!
Que bela ideia e que ventura a nossa
Porém se esse conchavo
Serve para me dar notícias tuas,
Não te dará, meu bem, notícias minhas. –
Mas não esteve com uma nem com duas
O namorado, e disse:
- Temos um meio. – Qual? Não adivinhas?
Teu pai usa chapéu. – Sim... que tolice!
– Ouve o resto e verás que a ideia é boa;
Um pedacinho de papel à-toa
Tu meterás por baixo da carneira
Do chapéu de teu pai; dessa maneira
Me escreverás todos os dias... – úteis.
Oh!, precauções inúteis!
Durante um ano inteiro
O pai ludibriado
Serviu de inconsciente mensageiro
Aos amores da filha e do empregado.
– Até que um dia (tudo é transitório,
Até mesmo os chapéus) o negociante
Entrou de chapéu novo no escritório.
Ponciano ficou febricitante!
Como saber qual era o chapeleiro
Em cujas mãos ficara o chapéu velho?
Muito inquieto, o brejeiro
Ao espírito em vão pediu conselho;
Dispunha-se, matreiro,
A sair pelas ruas, indagando
De chapeleiro em chapeleiro, quando
O chapeleiro apareceu!... Trazia
O papelinho que encontrado havia!
Atinara com tudo o impertinente
E indignado dizia:
– Sou pai de filhas!... Venho prontamente
Denunciar uma patifaria!
O hipócrita queria
Mas era, bem se vê, cair em graça
A um medalhão da praça.
O pai ficou furioso, e, francamente,
Não era o caso para menos; houve
Ralhos, ataques, maldições, et cetera;
Mas, enfim, felizmente
Ao céu bondoso aprouve
(O rapaz tinha tão bonita letra!)
Que não fosse a menina pro convento,
E a comédia acabasse em casamento.
Ponciano hoje é sócio
Do sogro, e faz negócio.
Deu-lhe uma filha o céu
Que é muito sua amiga
E está casa não casa;
Mas o ditoso pai não sai de casa
(Aquilo é balda antiga)
Sem revistar o forro do chapéu.
O ASA-NEGRA
Arthur Azevedo
Quando, em 185..., poucos momentos antes de nascer Raimundo, sua mãe curtia as dores do parto e curvava-se instintivamente, agarrando-se aos móveis e às paredes, mandaram chamar a toda pressa a única parteira que naquele tempo havia na pequena cidade de Alcântara.
A comadre prodigalizava, naquele momento, os cuidados da sua arte hipotética à mãe de Aureliano, que era mais rica. Só algumas horas mais tarde, pôde acudir ao chamado; mas já não era tempo: a mãe sucumbira à eclampsia; o filho salvara-se por um milagre, que ficou até hoje gravado na tradição obstétrica de Alcântara.
O pobre órfão devia sofrer, enquanto vivesse, as terríveis consequências, não só da inépcia das mulheres que assistiram a sua mãe, como do falecimento desta. Era aleijado, entanguecido, e tinha a cabeça singularmente achatada, nas cavidades frontais, pela pressão grosseira de dedos imperitos. Um menino feio, muito feio.
* * *
Quando Raimundo entrou para a escola, já lá encontrou Aureliano, rapazito lindo, vigoroso e rubicundo; mas uma antipatia invencível afastou-o logo desse causador involuntário dos infortúnios que lhe cercaram o berço. Aureliano, que era de um natural orgulhoso, não perdia ensejo de vingar-se da antipatia do outro. Não houve diabrura de que o não acusasse falsamente, e, como Raimundo não era estimado, por ser feio, não encontrava defesa, e estendia resignado a mão pequenina às palmatoadas estúpidas do mestre-escola. Isto acontecia diariamente.
O mestre, afinal, cansado de castigá-lo em pura perda, pois que as acusações continuavam da parte de Aureliano, expulsou-o da escola; e, como não houvesse outra em Alcântara, o bode expiatório cresceu à bruta, sem instrução, não tendo achado no mundo espírito compadecido que lhe levasse um raio de luz à treva da inteligência medíocre. Mais tarde meteram-no a bordo de um barco, e mandaram-no para a capital, consignado a uma casa de comércio.
Aí encontrou Raimundo um protetor desinteressado, que lhe mandou ensinar primeiras letras e rudimentos de escrituração mercantil. A prática faria o resto. Dentro de algum tempo, o menino, que já contava dezesseis anos, deveria entrar, corno ajudante de guarda-livros, para certo escritório de comissões; mas, oito dias antes daquele em que devia tomar conta do emprego, morreu inesperadamente o seu protetor.
Entretanto, Raimundo apresentou-se, no dia aprazado, em casa do futuro patrão.
– Cá estou eu.
– Quem é você?
– O ajudante de guarda-livros de quem lhe falou o defunto Sr. F.
– Ah! Sim... lembra-me... mas o meu amiguinho chore na cama que é lugar quente; o serviço não podia esperar, e eu tive que admitir outra pessoa.
E apontou para um rapaz que, sentado, em mangas de camisa, a uma carteira elevada, parecia absorvido pelo trabalho de escrita.
– Ah! Murmurou despeitado o infeliz alcantarense.
O outro levantou os olhos, e Raimundo reconheceu-o: era Aureliano, que tinha os lábios arqueados por um sorriso verdadeiramente satânico.
* * *
Passaram-se alguns meses, durante os quais Raimundo passeou a sua penúria pelas ruas de S. Luís. Andava maltrapilho e quase descalço. Arranjou, afinal, um modesto emprego braçal, numa agência de leilões. Só quatro anos mais tarde julgou prudente trocá-lo por um lugar de condutor de bonde.
Durante todo esse tempo, Aureliano, o seu asa-negra, moveu-lhe toda a guerra possível. Diariamente, lhe chegavam aos ouvidos os impropérios gratuitos e as pequeninas intrigas do seu patrício.
Raimundo convenceu-se de que Aureliano, rapaz simpático e geralmente estimado na sociedade em que ambos viviam, nascera no mesmo momento em que ele, como um estorvo ao mecanismo da sua existência. Era o seu asa-negra.
* * *
Foi no bonde que Raimundo viu pela primeira vez os olhos negros e inquietos de Leopoldina. Não se descreve a paixão que lhe inspirou essa morena bonita, cujos contornos opulentos causariam inveja às louras napeias de Rubens. A rapariga tinha nos olhos a altivez selvagem e nos lábios a volúpia ingênita das mamelucas. O seu cabelo grosso, abundante e negro, prendia-se, enrolado no descuido artístico das velhas estátuas gregas, deixando ver um cachaço que estava a pedir, não os beijos de um Raimundo anêmico e doentio, porém as rijas dentadas de um gigante.
Pois Raimundo, que não era nenhum Polifemo, um belo dia conduziu ao altar a mameluca bonita, e até o instante da cerimônia esteve, coitado, vê não vê o momento em que Aureliano surgia inopinadamente de trás do altar-mor, para arrebatar-lhe a noiva.
Infelizmente assim não sucedeu.
Nos primeiros tempos de casado, tudo lhe correu às mil maravilhas; mas pouco a pouco a sua insuficiência foi se tornando flagrante. O seu organismo fazia prodígios para corresponder às exigências da esposa, cuja natureza não lhe indagava das forças. As mulheres ardentes e mal-educadas, como Leopoldina, quando lhe faltam os maridos com a dosimetria do amor, confundem a miséria do sangue com a pobreza da casa. Questão de disfarçar sentimentos, e de aplicar o abstrato ao concreto. Leopoldina, que até então se contentara com a aurea mediocritas relativa do condutor de bonde, começou um dia a manifestar apetites de luxo, a sonhar frandulagens e modas.
De então em diante tornou-se um inferno a existência doméstica de Raimundo. Ano e meio depois de casado, ele evitava a convivência da esposa, jantava com os amigos, e só aparecia em casa para pedir ao sono forças para o trabalho do dia seguinte.
* * *
Mas, de uma feita em que se viu forçado a ir à casa em hora desacostumada, surpreendeu Leopoldina nos braços hercúleos de Aureliano. Excitado pelo desespero, cresceu para eles frenético, espumante; mas os quatro braços infames desentrelaçaram-se das criminosas delicias, e repeliram-no vigorosamente. O pobre marido rolou sobre os calcanhares, e caiu de chapa, estatelado, sem sentidos.
Quando voltou a si, os dois amantes haviam desaparecido. Raimundo não derramou uma lágrima, e voltou cabisbaixo para o trabalho. Ao chegar à estação dos bondes, o chefe de serviço repreendeu-o, fazendo-lhe ver que a sua falta se tornara sensível. Despedi-lo-ia, se não fosse empregado antigo, que tão boas provas dera até então de si.
O alcantarense ergueu a cabeça. Os olhos desvairados saltavam-lhe das órbitas com lampejos estranhos. E respondeu coisas incoerentes. Estava doido. Dali a uma semana, foi para Alcântara, requisitado por um tio, derradeiro destroço de toda a família.
Pouco tempo durou, iludindo a vigilância do parente, saiu de casa uma noite, e atirou-se ao mar, afogando consigo as suas desgraças nas águas da Baía de São Marcos.
* * *
Dois dias depois deste suicídio, a Ilha do Livramento, árido promontório situado perto de Alcântara, em frente àquela Baia de São Nilarcos, regurgitava alegremente de povo. Realizava-se a festa de Nossa Senhora, e os fiéis afluíam, tanto da capital como de Alcântara, à velha ermida solitária. Aureliano, alcantarense da gema e figura obrigada de todas as festas e romarias, compareceu também ao arraial, exibindo publicamente a sua personalidade, que se tornara escandalosa depois do adultério de Leopoldina. No Maranhão, as paredes não têm somente ouvidos, como diz o adágio: têm também olhos.
* * *
Conquanto o céu anunciasse próxima borrasca, Aureliano resolveu deixar a Ilha do Livramento e embarcar, ao escurecer, numa delgada canoa, em demanda de Alcântara, onde tencionava pernoitar. A empresa era sem dúvida arriscada; mas lá, na colina escura que se refletia vagamente nas águas negras da baía, esperam-no os braços roliços da viúva do doido. Embarcou. Acompanhava-o apenas um remador, que desde pela manhã tomara a seu serviço.
* * *
Em meio da viagem, soprou de súbito rijo nordeste, e o mar, que até então se conservara plácido e próspero, encapelou-se raivoso. Em três minutos as ondas esbravejavam já terrivelmente, e a canoa, erguida a grande altura, e de novo arremessada ao pélago, num estardalhaço de vagas, recebia no bojo quantidade de água suficiente para metê-la a pique.
– Cada um cuide de si! Bradou o remador, atirando-se ao mar, e oferecendo combate heroico à impetuosidade das ondas. Nadava que nem Leandro.
Aureliano viu-se perdido. A canoa mergulhava. Ele não sabia nadar, o desgraçado! Preparou-se para morrer... A embarcação submergiu-se. O náufrago agitava instintivamente os braços e as pernas, esperando talvez que o desespero lhe ensinasse milagrosamente uma prenda que nunca aprendera. Debalde!
Foi ao fundo, vertiginosamente. Voltou de novo à tona d'água, chamado à vida pelo seu sangue de moço. Bracejou... tentou bracejar... A sua mão encontrou alguma coisa fria. Muito fria... que flutuava. Agarrou-se a esse objeto salvador... boiou muito tempo com ele... e com ele finalmente foi arremessado à praia...
O cadáver de Raimundo salvara Aureliano.
SORTE
Athur Azevedo
Depois que se casara aquela criatura,
Que a negra traição das pérfidas requinta,
Eu nunca mais a vi, pois, de ouropéis faminta,
De um bem fingido amor quebrara a ardente jura.
Alta noite, porém, vi-a pela ventura,
Numa avenida estreita e lobrega da quinta...
Painel é que se cuida e sem color se pinta,
De alvo femíneo vulto ou madrugada escura.
Maldito quem sentindo o pungitivo açoite
Do desprezo e na sombra a sombra de um afeto
A pular uma grade, um muro não se afoite.
— Prometes ser discreto? - O' meu amor! prometo...
Se não fosses tão curta, o'bem ditosa noite!
Se fosses mais comprido, o'pálido soneto!
O 15 E O 17
(IMPRESSÃO DA LEITURA DE UM CONTO FRANCÊS)
Arthur Azevedo
– Com efeito, Francelina! Que tempo levaste para ires ali à venda! Querias lá ficar?
– Não, senhora; é porque estas casas novas parecem-se todas umas com as outras, e por isso, em vez de entrar no 15, entrei no 17. Varei por ali adentro até a cozinha!
– Que estás dizendo?
– A verdade, patroa. De agora em diante, não entro em casa sem olhar para o número da porta!
– Depois te habituarás. Isso aconteceu porque estás na casa há oito dias apenas. Bom. Compraste o que tinhas de comprar?
– Sim, senhora.
– Não falta mais nada?
– Não, senhora.
– Então, até logo. Fecha a porta da rua e trata de preparar o jantar. As cinco horas, estarei de volta.
E D. Isabel, que já estava pronta para sair, passou para o corredor, desceu a escada e desapareceu.
A Francelina fechou a porta da rua, conforme a patroa lhe recomendara, e foi para a cozinha.
Não havia passado meia hora, quando a mulata (a Francelina era mulata) ouviu bater levemente à porta da rua. Correu à janela da sala de visitas para ver quem era, e deu com uma senhora idosa, bastante idosa, pequenina, curvada, esperando que lhe abrissem a porta.
A criada não a conhecia, mas pensou consigo que não haveria inconveniente em abrir a porta a uma velha, e por isso fê-la entrar.
– Ora, graças! Julguei que me deixassem ao sol durante uma hora! Dá cá a mão, rapariga! Ajuda-me a subir a escada! Bem sabes que já não tenho olhos!
– Que deseja a senhora? – Perguntou Francelina, quando chegaram à sala de visitas.
– Escusas de falar baixo! Bem sabes que já não tenho também ouvidos! Nem olhos, nem ouvidos, nem pernas! E por isso leva-me à cadeira de balanço. Onde está ela?... Já mudou de lugar! Que mania a de minha sobrinha! Está sempre com os móveis daqui para ali.
A Francelina levou a velhota para a cadeira de balanço, onde a instalou comodamente.
– Ora, espera! Parece-me que eu não a conheço! Você é nova na casa?
– Sim, senhora! Estou aqui há oito dias.
– Grite!
– Estou aqui há oito dias.
– Grite mais alto!
– Estou aqui há oito dias,
– Há oito dias? Então não me conhece, porque há um mês que eu cá não venho. Sou tia da sua patroa. Onde está ela?
– Saiu.
– Hem?
– Saiu.
– Mais alto!
– Saiu.
– Saiu? Também aquilo não faz senão saracotear! Então agora que veio morar na cidade! Olha, ó... como te chamas?
– Francelina.
– Hem?
– Francelina.
– Olha, Marcelina, vai buscar uma xícara de café bem quente, com uma gotinha de conhaque, mas, antes disso, descalça-me estas botinas, e traze-me os chinelos da sua patroa, e também um dos travesseiros da cama. Enquanto ela não vem, vou passar pelo sono.
A Francelina fez tudo quanto ordenou a velha, e deixou-a adormecida na sala, com os pés e a cabeça metidos nos chinelos e no travesseiro de D. Isabel.
Quando esta chegou da rua, às cinco horas da tarde, a criada disse-lhe:
– A tia da patroa está dormindo lá na sala.
– A minha tia? Mas eu não tenho tia!
– Como não tem tia?
E a Francelina contou-lhe tudo quanto se passara.
–Ora essa! – Exclamou D. Isabel, e correu para a sala, acompanhada pela criada.
A velha dormia profundamente.
– Mas eu não conheço, não sei quem é esta senhora! Que quer isto dizer?... Que mistério será este?... Vou acordá-la.
E D. Isabel começou a sacudir a velha, que não acordava.
A Francelina teve uma frase estúpida:
– Sacuda com força, patroa, porque ela é surda!
– Meu Deus! Esta rigidez!... Esta rigidez!...
E a dona da casa soltou um grito estridente.
– Que é, patroa?
– Esta velha está morta!
– Morta?!
Efetivamente, a pobre velhinha, durante o sono, sem se sentir, passara desta para melhor.
Imagine-se a aflição das duas mulheres diante daquele cadáver misterioso; mas D. Isabel, que era inteligente, pensou:
– Quem sabe se a velha não entrou no 15 pensando que era o 17?
E, pelo muro do terraço, chamou a vizinha:
– Ó vizinha? Vizinha?...
– Que é?
– A senhora não tem uma tia velha, surda e catacega?
– Tenho, sim, senhora.
– Pois mande buscá-la, porque ela está na minha casa. Entrou aqui por engano.
– Ela que venha; não é preciso mandar buscá-la.
– Isso é, porque está... doente... Adoeceu aqui...
Meia hora depois a pobre velha era removida.... para o Necrotério.
NA HORTA
Arthur Azevedo
Morava o barão da Cerveira num belo palacete que, a pedido da baronesa, mandara edificar no centro de uma grande chácara do Andaraí Grande.
A baronesa, as meninas e os meninos, seus filhos, desfrutavam a beleza e o conforto da encantadora vivenda, ele não, porque, apesar de enriquecido e quarentão, conservava o costume, adquirido desde os primeiros tempos da sua vida comercial, de sair de casa pela manhã e só voltar à noite, para dormir.
Os domingos e dias santificados, em vez de gozar as delícias do descanso, passava-os o barão a examinar e pôr em ordem contas e outros papéis de umas tantas associações, que eram, como dizia ele, a sua cachaça.
– És um esquisitão!– Observava continuamente a baronesa. – Não valia a pena comprarmos esta chácara!
– Gozando-a vocês, gozo-a eu!
Entretanto, num belo domingo de sol, sentiu o barão desejos de percorrer os seus domínios, e fê-lo, com espanto da família e do chacareiro, o José, que estava acocorado diante de um grande canteiro de repolhos, e se levantou, surpreso e respeitoso, quando viu aproximar-se o patrão.
* * *
Antes do baronato, o barão chamava-se modestamente Manuel Barroso.
Nascera em Portugal, numa aldeola do Minho, que não figura nos compêndios de geografia. Veio aos dez anos para o Brasil, num navio de vela, entregue aos cuidados de um homem de bordo, e consignado a uma casa comercial do Rio de Janeiro.
Não conhecera os carinhos maternos: contava apenas três anos quando perdeu a mãe. O pai, que ficara viúvo e com dois filhos, confiou-o e mais o irmão a uma família, que pouco se preocupou com a educação dos dois rapazes.
– O mais velho irá para o Brasil, sentenciava o pai; o mais novo há de ser padre, se Deus nos der vida e saúde!
* * *
Veio o Manuel para o Brasil e teve a felicidade de encontrar excelentes amos, que o obrigaram a aprender a ler por cima e fazer as quatro operações.
Mal aprendera a escrever, o pequeno pegou na pena e fez uma carta ao pai, pedindo que lhe mandasse novas suas e do mano, mas tanto essa como outras ficaram sem resposta.
Com aqueles simples conhecimentos – ler, escrever e contar – entrou na vida, e não foram necessários outros para que lhe sorrisse a fortuna. A sua inteligência, realmente notável, supria tudo. Não havia na praça farejador de bons negócios que lhe levasse as lampas; mas o que contribuía, principalmente, para fazer dele um dos negociantes mais estimados do Rio de Janeiro, era o escrúpulo honrado com que sempre se havia em todas as suas relações comerciais. Ao contrário do que geralmente se observa, Manuel Barroso não se satisfazia apenas com ganhar dinheiro; tinha muito prazer em dá-lo a ganhar aos outros.
O grande caso é que o nosso aldeão, aos vinte anos, estava perfeitamente encarreirado, como se costuma dizer. Aos trinta, era rico; e, aos quarenta, riquíssimo, tendo percorrido já toda a escala do medalhão comercial: diretor de bancos e companhias, provedor de irmandades, ministro de ordens terceiras, comendador, conselheiro e barão. Não lhe faltava nada, nem mesmo o retrato a óleo.
* * *
Aos trinta anos, casou-se com uma moça, pobre – uma excelente senhora brasileira, que não poderia encontrar melhor esposo –, e, logo depois de casado, resolveu dar, em companhia de sua mulher, um passeio à pátria, e visitar o lugarejo onde nascera, e do qual saíra havia já vinte anos.
Não achou lá ninguém. O pai falecera pouco depois da sua vinda para o Brasil, e o irmão abandonara o lugar, ignorando todos o rumo que tomara. A própria família, que o acolhera depois da morte da mãe, tinha desaparecido. Finalmente, o Manuel encontrou na povoação apenas dois ou três companheiros de infância, que o supunham morto. A sua viagem foi desoladora.
Entretanto, o "brasileiro" não saiu da aldeia sem deixar nas mãos do pároco a soma precisa para a reconstrução da capela em que fora batizado, e outra soma, ainda maior, para ser distribuída pelos pobres.
Voltando ao Brasil, o venturoso casal começou a ter filhos que foi um louvar a Deus; não se passaram dez anos sem oito batizados; mas o destino, mostrando-se a Manuel Barroso, mais que aos outros homens, desejoso de equilibrar e harmonizar entre si as circunstâncias, aumentava-lhe os haveres ao mesmo tempo que os filhos, de sorte que a verdadeira prosperidade do nosso homem começou com a sua prolificação.
* * *
A manifestação mais flagrante e ostensiva da sua fortuna era aquela magnifica propriedade do Andaraí Grande, em cuja chácara o deixamos percorrendo pela primeira vez os canteiros de uma horta opulenta.
Dissemos que o hortelão se levantara surpreso e respeitoso ao avistar o patrão.
O pobre homem descobriu-se humildemente e ficou um tanto curvado, a rolar o chapéu entre as mãos.
O barão deu-lhe um bom-dia afável dizendo-lhe:
– Cubra-se, homem! Olhe que está sol!
E ia passando; mas na fisionomia simpática do hortelão brotou um sorriso que o fez parar.
– Então? Trabalha-se?
– Alguma coisa, s'or barão, alguma coisa.
– Mas hoje é domingo.
– Isso não quer dizer nada.
– Há quanto tempo está você cá em casa?
– Saberá vossoria que haverá oito meses pelo São João.
– Está satisfeito?
– Se estou satisfeito! Não, não devo estar?! A s'ora baronesa e os meninos são tão bons para mim.
– Você é de Portugal ou das Ilhas?
– Sou do Minho.
– Também eu. De Braga ou de Viana?
– De Viana.
– Também eu.
– Nasci ali perto da Vila Nova de Cerveira, num lugarito chamado de São Miguel das Almas.
– Em São Miguel? Como se chama você?
– José Barroso.
– Oh, diabo! Você é filho de João Barroso?
– Sim, s'or barão.
– Sua mãe chamava-se Maria José?
– Sim, s'or barão; mas não a conheci. Meu pai queria que eu fosse padre, mas, coitado, morreu logo... deixou-me ao deus dará. Estive na África... não arranjei nada... vai então resolvi embarcar para o Brasil. Pelo Santo Inácio, vai fazer um ano que cá estou.
– Você não tem um irmão?
– Não sei se o tenho ou se o tinha. Saiu da aldeia ainda o nosso pai era vivo. Disseram que tinha vindo para o Brasil. Nunca mais tive notícias dele.
E o hortelão agachou-se de novo diante de seu canteiro.
– Homem! Deixa lá esses repolhos, exclamou o barão, e dá cá um abraço! Teu irmão sou eu!
Imaginem a cena que se passou.
* * *
Quando a baronesa viu entrar em casa o marido de mãos dadas ao chacareiro, ficou muito admirada e perguntou:
– Que foi isto? Encontraste alguma coisa que te desagradasse?
– Pelo contrário: encontrei um irmão! Teresa, abraça teu cunhado; meninos, meninas, tomem a bênção a seu tio!...
NA EXPOSIÇÃO
Arthur Azevedo
O Raimundo saiu do Maranhão aos vinte anos, muito disposto a nunca mais lá voltar, para não tornar a ver Filomena – e, desde que aqui chegou (já lá se vão tantos anos!), fugiu de todas as coisas e de todas as pessoas que lhe pudessem recordar a sua terra natal.
Não lhe falassem no bacuri, nem no mucuri, nem no açaí, nem no arroz de cuchá, nem no tabaco do Codó, nem nas cuias da Maioba, nem nos requeijões de São Bento, nem nos camarões de Alcântara; não pronunciassem na sua presença os nomes de Gonçalves Dias, João Lisboa, Sotero dos Reis, Joaquim Serra e outros maranhenses ilustres; não se referissem, de modo que ele pudesse ouvir, às novenas dos Remédios, aos passeios do Anil, aos banhos do Cutim e às serenatas ao luar no Pau da Bandeira ou no campo do Ourique; tudo isso lhe trazia à memória Filomena, aquela ingrata, que, depois de ter feito mil juramentos de que só dele seria, esqueceu-o para lançar-se nos braços do Cardoso, um negociante apatacado, com quem se casou.
Depois deste golpe, que esteve quase a matá-lo, Raimundo incompatibilizou-se com o Maranhão e tornou-se o mais carioca dos cariocas; entretanto, conservou no coração a lembrança dolorosa daquele amor infeliz, e, fiel ao seu próprio infortúnio, não procurou mulher que o fizesse esquecer Filomena. Ficou solteiro.
Durante muitos anos, os seus sentimentos não se modificaram; ultimamente, porém, a idade começou a exercer no seu espírito uma ação benéfica, e ele refletiu, pela primeira vez, que a sua terra não tinha culpa da ingratidão de Filomena.
– Preciso reconciliar-me com o Maranhão, pensou Raimundo, e foi com esta ideia sensata que ele procurou a seção maranhense no Palácio da Exposição.
Mas, percorrendo as salas onde se acham expostos os produtos do seu Estado, o pobre-diabo começou a ver Filomena em tudo; Filomena aparecia-lhe nos móveis, nos artefatos, nas fibras, nos tecidos, nas rendas, nas favas, no arroz – Filomena surgia de toda a parte!
As salas estavam quase desertas; além do Raimundo, estavam ali apenas três visitantes e uma família – marido, mulher, cinco filhos e uma criada, que examinavam tudo com atenção.
De repente, no meio daquele silêncio, a voz do marido repercutiu:
– Filomena!
– Que é Cardoso?
– Vem ver como é bem-feita esta rede!
O Raimundo ficou frio e como que grudado ao chão. Filomena! Cardoso! Era ela! Era ele! Eram eles!
Passados alguns momentos, ele voltou ao seu natural, e, disfarçado, aproximou-se... Que transformação!... Que ruína!
Mas que transformação também a dele, porque ela não o reconheceu.
O caso é que essa visita à Exposição completou a cura, que já começara. O Raimundo voltou a ser um bom maranhense, e agora está disposto a matar saudades da sua terra. Filomena já não existe.
MORTA QUE MATA
Arthur Azevedo
Um dia em que o Barreto, acabado o expediente, palestrava com alguns dos seus colegas de Repartição, queixou-se da mesquinhez dos ordenados.
– Ora! Tu nada sofres! Acudiu um dos colegas, com um sorriso impertinente.
– Nada sofro?! Ora esta! Por quê?!
– Porque és rico!
– Rico, eu?!...
– Naturalmente. Se não fosses rico, tua mulher não poderia andar coberta de brilhantes!
O Barreto soltou uma gargalhada.
– Ah, meu amigo, os brilhantes de minha mulher são falsos, são baratinhos, não valem nada!
– Não parece.
– Não parece, mas são. Minha mulher é de uma economia feroz, e tudo quanto economiza emprega em toaletes e joias..., mas que joias!... Falsas, falsas como Judas... já lhe tenho dito um milhão de vezes que se deixe disso; que não use joias, uma vez que não pode usá-las verdadeiras; que ela somente a si mesma se ilude, tornando-se ridícula aos olhos do mundo; mas não há meio: aquilo é mania! Tirem tudo, tudo à Francina, mas deixem-lhe as suas joias de pechisbeque!
Realmente assim essa Francina, de vez em quando, mostrava ao marido um par de bichas de brilhantes ou um colar de pérolas, que produziam o mais deslumbrante efeito, mas não passavam de joias de teatro, compradas com os vinténs que ela poupava nas despesas da copa.
Barreto, que fora sempre um pobretão, nada entendia de pedras finas e por isso achava que as de sua mulher, apesar de falsas, eram bonitas; mas, no íntimo, ele envergonhava-se daquela fulgurante exibição no pescoço, nos braços, nos dedos e nas orelhas de Francina.
– Os que sabem que essas joias são falsas, pensava ele, hão de me achar ridículo; os que as supõem verdadeiras poderão fazer de mim um juízo ainda mais desagradável. Toda a gente sabe quanto ganho: os meus vencimentos figuram na coleção de leis, na tabela anexa ao regulamento da minha Repartição.
O Barreto pensava bem; mas a sua debilidade moral não permitia que ele contrariasse Francina.
Um dia, o fracalhão percebeu – com que alegria! – Que ela estava no seu estado interessante. Eram casados havia oito anos, e só agora se lembrava o céu de abençoar a sua união, mandando-lhes um filho! Ele esperava que os cuidados maternos modificassem o que sua mulher tinha de ridícula e vaidosa.
Mas as suas esperanças foram cruelmente frustradas pela fatalidade: a criança, extraída a ferros, nasceu morta, e Francina morreu de eclampsia.
O Barreto sentiu tanto, tanto, que quase morreu também.
Havia um mês que era viúvo, quando um dia lhe apareceu em casa um homem que ele não conhecia, e se deu a conhecer como um dos joalheiros mais conhecidos da capital.
O Barreto perguntou-lhe o motivo da sua visita.
– É muito simples. A falecida sua senhora tinha joias. É natural que o senhor não precisando delas pretenda desfazer-se de algumas, senão de todas. Venho pedir-lhe que me dê a preferência.
– Preferência para quê?
– Para comprá-las.
– Mas, meu caro senhor, as joias de minha mulher são falsas.
– Falsas? Ora essa! E é a mim que o senhor diz isso, a mim que lhas vendi! A sua senhora seria incapaz de pôr uma joia falsa!
– O senhor engana-se!
– Tanto não me engano, que lhe ofereço por essas joias, se se conservam todas em seu poder, sessenta contos de réis!
O Barreto ficou petrificado; entretanto, disfarçou como pôde a comoção, e despediu o joalheiro, dizendo que o procuraria na loja.
Logo que ficou só, encaminhou-se para o quarto da morta, e abriu a cômoda onde se achavam as joias; mas, ao vê-las, sentiu uma onda de sangue subir-lhe à cabeça e caiu para trás.
Quando lhe acudiram, estava morto.
MAL POR MAL
Arthur Azevedo
Há bons maridos que se tornam maus porque as mulheres não são boas.
O Sebastião está ou esteve nesse caso: tão apoquentado se viu pela cara-metade, que, um belo dia, resolveu procurar na rua os carinhos que não encontrava no lar doméstico.
Não foi preciso procurar muito. O acaso fê-lo encontrar na Avenida Central, diante de um cinematógrafo-anúncio, uma bela morena que lhe deu volta ao miolo e lhe tirou noites de sono.
Se D. Flaviana, a mulher do Sebastião, fosse meiga e condescendente, e não tivesse tão mau gênio, está visto que ele não se deixaria prender nos braços de outra; mas deixou-se prender – e preso ficou ao ponto de arranjar uma casinha lá para os lados da Cidade Nova, onde esconderam – a morena e ele – o seu delicioso pecado.
E tão bem escondidinho estava que ninguém sabia de nada, exceção feita de Sepúlveda, o melhor amigo de Sebastião.
E o Sepúlveda não podia ser mais obsequioso. Como percebeu que a felicidade do amigo estava naquele derivativo, ele próprio se encarregou de alugar a casinha e mobiliá-la. A sua obsequiosidade foi ao ponto de arranjar para a porta da rua uma fechadura que se abria com a mesma chave da fechadura conjugal. De modo que o Sebastião não tinha necessidade de andar com duas chaves, o que seria perigoso.
D. Flaviana, se fosse mais observadora, teria notado que de certo tempo em diante o Sebastião começou a sofrer resignado todas as suas impertinências. O pobre diabo dizia consigo: – "Lá tenho a Mirandolina para consolar-me." – Mirandolina era o nome da morena.
Entretanto, o Sebastião não ficava nenhuma noite fora de casa. Passava algumas horas com a Mirandolina, mas, à hora conveniente, lá ia para casa.
Uma noite destas, encontrou D. Flaviana acordada e disposta a brigar. Ela andava já com suas desconfianças de que o marido tinha contrabando lá fora, e entendeu que naquela noite deveria pôr tudo em pratos limpos. Recebeu o pobre homem com duas pedras na mão.
– Onde esteve o senhor até estas horas?
– Não tenho que lhe dar satisfações!
–Quero saber onde o senhor esteve! Olhe que eu perco a cabeça!
– Pois perca, mas, antes disso, deixe-me ir embora!
– Que leve a breca! – Disse consigo.
Mas era tarde, muito tarde, e o Sebastião precisava dormir. Lembrou-se de ir para um hotel, mas refletiu:
– Para quê, se tenho Mirandolina? Ela não conta comigo! Vai ter um alegrão com a minha volta!
E lá foi para a casa da Mirandolina.
Meteu a chave no trinco, abriu a porta sem rumor, e entrou devagarinho no quarto dela, que ressonava.
Aproximou-se e viu, surpreso, que um homem dormia ao lado de Mirandolina. Deu toda a força ao bico do gás, e reconheceu que esse homem era o Sepúlveda, o seu melhor amigo.
Este levantou-se estremunhado.
– Fica onde estás! A casa é tua deste momento em diante! Disse-lhe o Sebastião.
E o mísero saiu, e voltou para o lado da mulher legítima, que encontrou chorosa e quase submissa.
– No final das contas, pensou ele, mal por mal, antes a obrigação que a devoção.
Arthur Azevedo
Em casa do comendador Freitas, na Fábrica das Chitas, andavam todos "intrigados" com aquele flautista misterioso que, em companhia de um preto velho, taciturno e discreto, morava, havia perto de dois meses, numa casinha cujos fundos davam para os fundos da chácara.
Quando digo "todos", não digo a verdade, porque o vizinho não era completamente estranho à srta. Sara, filha única do aludido comendador. Encontrara-o algumas vezes na cidade, ora nos teatros, ora em passeio, e sempre lhe parecera que ele a olhava com certa insistência e algum interesse.
Conquanto não fosse precisamente um Adônis, esse desconhecido começava a impressionar o seu espírito de moça, até então despreocupado e tranquilo, quando certa manhã os sons maviosos de uma flauta atraíram a sua atenção para a casinha dos fundos, e ela reconheceu no vizinho que, sentado num banco de ferro, sob uma velha latada de maracujás, soprava o sugestivo instrumento de Pã, o mesmo indivíduo cujos olhares a perseguiam na rua ou no teatro.
Dizer que esse encontro não produziu o romanesco efeito com que naturalmente contava o melômano seria faltar à verdade que devo a meus leitores. Não, a srta. Sara não se contrariou com avistar ali o moço que parecia distingui-la em toda a parte onde o acaso os reunia. Não quer isto dizer houvesse dentro dela outra coisa mais que uma sensação passageira, mas o caso é que a filha do comendador Freitas não fez a esse respeito a menor confidência a nenhuma pessoa da casa, e esta reserva era, talvez, o prenúncio de um sentimento mais decisivo.
Todavia, todos em casa, amos e criados, se preocupavam muito com o inquilino da casinha dos fundos.
A coisa não era para menos. O rapaz (era ainda um rapaz: poderia ter trinta anos) erguia-se muito cedo e punha-se a jardinar, plantando, enxertando, podando, regando, e gastava nisso duas horas. Quando ele foi ali residir, o quintal estava abandonado, o mato invadira e destruíra tudo, poupando apenas a latada de maracujás. Pouco a pouco, sozinho, sem o auxílio de ninguém, trabalhando das seis às oito horas da manhã, ele havia ajardinado o terreno, onde já se ostentavam lindíssimas flores.
Ás nove horas, o preto velho, que provavelmente acumulava as funções de criado de quarto, copeiro, cozinheiro, vinha chamá-lo para almoçar. Depois do almoço ele saía, esperava o bonde, e lá ia para a cidade. Voltava às quatro horas, jantava; depois do jantar acendia um charuto e passeava no quintal, examinando as plantas, que umas vezes regava e outras não. Ao cair da tarde pegava na flauta e saudava o crepúsculo com as suas músicas tristes e saudosas. Depois, vinham as trevas da noite, e ninguém mais a via senão no dia seguinte, de manhã muito cedo, recomeçando a existência da véspera.
Nada houvera de notar, se um dia ou outro sofresse qualquer modificação aquele gênero de vida, mas não! Aquilo passava-se diariamente com uma uniformidade cronométrica, e toda a gente em casa do comendador Freitas perdia-se em conjecturas.
O que havia de mais singular na existência daquele moço era, talvez, o fato de ele não receber visitas nem as fazer. Naquela idade, isso era inexplicável.
O comendador tinha-o na conta de um misantropo, enfezado contra a sociedade: na opinião de d. Andreza, sua esposa, era um viúvo inconsolável. D. Irene, irmã de d. Andreza, tinha, como em geral as solteironas, o mau vezo de dizer mal de todos, conhecidos e desconhecidos: por isso afirmava que o vizinho era um bilontra, que se escondia ali para escapar aos credores. Tinha cada qual a sua opinião, e divergiam todos uns os outros.
O copeiro quis certificar-se da verdade interrogando o preto velho, mas este a todas as perguntas respondia invariavelmente que sabia de nada. A dar-lhe crédito, ele ignorava até o nome do patrão.
Entretanto, de olhadela em olhadela, de sorriso em sorriso, tinha-se estabelecido aos poucos um namoro em regra entre o flautista e a filha do comendador Freitas.
Da janela do seu quarto, a srta. Sara podia namorá-lo, sem ser vista por ninguém, nem que ninguém suspeitasse, nem mesmo d. Irene, que via mosquitos na lua.
Naturalmente a moça ardia em desejos de verificar a identidade do vizinho, e não tardou que o fizesse. Uma tarde, quando os olhares e os sorrisos dela já se haviam longamente familiarizado com os dele, o solitário, depois de modular na flauta uma enternecedora melopeia, mostrou à srta. Sara um objeto que tinha na mão, e atirou-o por cima do muro na chácara, Era uma pedra, envolta num pedaço papel, em que vinha uma declaração de amor redigida em termos respeitosos.
A moça, que não era avoada, hesitou longos dias se devia ou ao responder, mas respondeu afinal, servindo-se da mesma pedra.
E durante muito tempo andou a pedra de cá para lá, de lá paca, da chácara para o quintal, do quintal para a chácara, aproximando um do outro aqueles dois corações separados por um muro.
Por um muro? Não! Por uma invencível muralha!
O namorado chamava-se João Silva, como toda a gente; não tinha parentes nem aderentes; era um empregado público paupérrimo, ganhando muito pouco; ainda assim, pediria imediatamente a mão da srta. Sara, se esta se sujeitasse a viver tão pobremente. Sabia a moça que o pai era ambicioso, desejava que ela se casasse com algum negociante em boas condições de fortuna ou pelo menos bem encaminhado, e participou a João Silva os seus receios.
Um velho amigo do comendador, o comandante Pedroso, oficial de Marinha reformado, padrinho de batismo da srta. Sara, infalível aos domingos na Fábrica das Chitas, havia se comprometido com a família Freitas a indagar e descobrir quem era o flautista.
Por esse tempo, o comandante apareceu em casa dos compadres, levando as mais completas informações acerca do misterioso vizinho, informações que concordavam inteiramente com o que já sabia a srta. Sara.
– É um empregadinho da Alfândega, disse o comandante com ar desdenhoso; não tem onde cair morto!
Mas acrescentou:
– Um esquisitão, muito metido consigo; entretanto, não é mau rapaz, nem mau funcionário.
Essas informações fizeram com que dali por diante o vizinho deixasse de ser objeto de curiosidade, o que facilitou extraordinariamente os seus amores, prosseguindo estes com tanta intensidade, que a srta. Sara, aconselhada por João Silva, resolveu dizer tudo à mãe.
O comendador Freitas, para quem a vida de família correra até então sem o menor incidente desagradável, e que não estava, portanto, preparado para essa crise doméstica, perdeu a cabeça, e deu por paus e por pedras. Em vez de chamar a filha e admoestá-la brandamente, fazendo-lhe ver que futuro a esperava em companhia de um homem sem recursos para mantê-la dignamente, esbravejou como um possesso, mandou fechar a pregos a janela do quarto da rapariga, ameaçou e insultou em altos brados o rapaz, que lhe não respondeu, e levou a toleima ao ponto de ir à delegacia queixar-se que lhe namoravam a filha! Foi um escândalo com que se regalou a vizinhança.
Esse tratamento desabrido fez com que despertassem na srta. Sara instintos de revolta, e aquele inocente capricho, que o carinho paterno poderia destruir, transformou-se em paixão indômita e violenta – tão violenta que a moça adoeceu.
Aproveitando o pretexto dessa doença, o pai levou-a para Jacarepaguá, onde alugou um sítio.
Foi em Jacarepaguá que o comandante Pedroso, aparecendo um belo domingo em que a convalescente devia fugir de casa – pois o João Silva, por artes do diabo, que só lembram aos namorados, achou meios e modos de se comunicar com ela –, foi em Jacarepaguá, dizíamos, que o comandante Pedroso deu parte ao compadre que tinha arranjado para a afilhada um casamento de truz: o Pedro Linhares, herdeiro de um dos agricultores mais abastados de São Paulo. O rapaz voltara da Europa e vira, num teatro, a srta. Freitas. Sabendo que ele, comandante, era padrinho da moça, procurara-o para pedir-lhe que o apresentasse à família.
– Esse casamento seria uma felicidade, disse o comendador; mas, infelizmente, a pequena continua apaixonada pelo flautista; não há meio de lho tirar da cabeça!
– Qual não há meio nem qual carapuça! Você vai logo às do cabo e quer levar tudo à valentona! Deixe-me falar com ela... verá como a decido a aceitar o paulista!
– Você!
– Eu, sim!
– Duvido!
– Não custa nada experimentar. Oh, Sarita, vem cá, minha filha! Vamos aí à sala que te quero dar uma palavra!
E voltando-se para os compadres:
– Façam favor de não interromper a nossa conferência!
O padrinho fechou-se na sala com a afilhada, e tão persuasivo foi, que um quarto de hora depois – um quarto de hora apenas! – Saíram ambos muito contentes. A srta. Sara parecia outra!
A estupefação foi geral.
– Conseguiste alguma coisa? – Perguntou o pai ao padrinho.
– Consegui tudo. Agora peço-te licença para ir buscar o Pedro Linhares, que ficou esperando na estrada.
O comandante saiu e voltou logo com o rico paulista, que o esperava na cancela, à entrada do sitio.
Imaginem qual foi a surpresa da família vendo João Silva, o flautista!
O comendador começou a esbravejar, conforme o seu costume; d. Andreza e d. Irene caíram sentadas no canapé, dispondo-se a ter cada uma o seu ataque de nervos; mas o comandante serenou os ânimos, gritando com toda a força dos seus pulmões:
– Este é o senhor Pedro Linhares!
Houve um silêncio tumular, que o recém-chegado cortou com estas palavras:
– Senhor comendador, minhas senhoras, vou explicar-lhes tudo. Quando cheguei da Europa, fiquei perdido de amores por dona Sarita desde o primeiro dia em que a vi; mas como sou muito rico, e muito desejado, entendi dever conquistá-la por mim e não pelos meus contos de réis. Por isso, e de combinação com o meu amigo aqui presente...
E apontou para o comandante, que sorriu.
– ... me fiz passar por um pobretão, representando uma comédia cujo desenlace foi o mais feliz que podia ser. Hoje que, a despeito da vigilância paterna, dona Sarita deveria fugir deste sítio em companhia de João Silva, Pedro Linhares, tendo a certeza de que é amado, deixa o seu incógnito, e vem pedi-la em casamento.
A moralidade do conto é consoladora para os pobres: quem tem muito dinheiro não confia em si.
(Do livro Contos Cariocas)
Arthur Azevedo
O Major Brígido era viúvo e tinha uma filha de vinte anos, lindíssima, que fazia muita cabeça andar à roda; entretanto, o coração da rapariga, quando "falou" (assim se dizia antes), falou mal. Quero dizer que Gilberta – era este o seu nome – se enfeitiçou justamente pelo mais insignificante de quantos a requestavam – pelo Teobaldo Nogueira, sujeito que vivia, pode-se dizer, de expedientes, sem retida certa que lhe desse o direito de constituir família, mendigando aqui e acolá, no comércio, pequenas comissões, corretagens, e lambugens adventícias.
O Major Brígido, cheio de senso prático, vendo com maus olhos essa inclinação desacertada da filha, abriu-se com o seu melhor amigo, o Viegas que, apesar de ter uns dez anos menos que ele, era o seu consultor, o seu conselheiro, o oráculo reservado para as grandes emergências da vida.
– Deixe-a! Opinou o Viegas. Se você a contraria, aquilo fica de pedra e cal! O melhor era fazer ver a Gilberta por meios indiretos, que a sua escolha poderia ser melhor... Não ataque de frente a questão!... Não bata com o pé... não invoque a sua autoridade de pai...
O Major Brígido aceitou o conselho, e, uma tarde, achando-se à janela com sua filha, viu passar na rua o Teobaldo Nogueira, que os cumprimentou.
O pai correspondeu com muita frieza, a filha com muita afabilidade. Pareceu ao major que o momento não podia ser mais propício para uma explicação; tratou de aproveitá-lo.
– Minha filha, disse ele, tenho notado que aquele homem passa amiudadas vezes por nossa casa, e não creio que seja pelos meus bonitos olhos...
Gilberta corou e sorriu.
– Não quero nem de leve contrariar as tuas inclinações, casar-te-ás com o homem, seja quem for, que escolheres para marido. O teu coração pertence-te: dispõe dele à vontade. Entretanto, o meu dever de pai e amigo é abrir-te os olhos para não dares um passo de que mais tarde te arrependas amargamente. Não me parece que este homem te convenha, não tem posição social definida, não ganha bastante para tomar sabre os ombros quaisquer encargos de família, e – deixa que teu pai seja franco – não é lá muito bem visto no comercio... Não és uma criança nem uma tola, que te deixes levar pelos bigodes retorcidos nem pelas bonitas roupas de um homem! Não és rica, mas, bonita, inteligente, boa como és, não te faltarão pretendentes que te mereçam mais que o tal Teobaldo Nogueira.
Gilberta fez-se ainda mais rubra, mordeu os lábios e não disse palavra.
De nada valeram os conselhos paternos.
Daí por diante, redobrou o seu entusiasmo pelo moço, e, um mês depois, quando o pai se preparava para impingir-lhe novo sermão, ela atalhou-o declarando peremptoriamente que amava aquele homem, com todos os seus defeitos, com toda a sua pobreza e que jamais seria mulher de outro!
Consultado o oráculo Viegas, este aconselhou uma estação de águas que distraísse a moça. O Major Brígido sacrificou-se em pura perda.
Gilberta voltou de Lambari mais apaixonada que nunca.
Um belo dia, Teobaldo Nogueira apresentou-se ao pai e pediu-a em casamento, depois de fazer uma exposição deslumbrante dos seus recursos. Havia meses em que ganhava para cima de três contos de réis. Já tinha posto alguma coisa de parte e contava, mais dia menos dia, estabelecer-se definitivamente. Se fosse um especulador, um aventureiro mal-intencionado, procuraria casamento vantajoso. Sabia que Gilberta era pobre, casava-se por amor.
O casamento ficou assentado.
* * *
O Major Brígido sofreu com isto um grande desgasto, agravado em seguida pela súbita enfermidade do Viegas, o seu melhor amigo, o seu oráculo, que caiu de cama e em menos de uma semana ficou às portas da morte.
Dois médicos desenganaram-no. Jamais a tuberculose aniquilara com tanta rapidez um homem de quarenta anos. As hemoptises eram frequentes, esperava-se que de um momento para outro o enfermo sucumbisse afogado em sangue.
Nesta situação extrema o Viegas chamou para junto do seu leito o Major Brígido, e disse-lhe:
– Meu velho, eu vou morrer...
– Deixa-te de asneiras!
– Tenho poucos dias... poucas horas de vida... conheço o meu estado. No momento de deixar este mundo, de quem mais me posso lembrar senão de ti e de tua filha? Bem sabes que não tenho ninguém... Meu irmão, que não vejo há vinte anos, é um patife, um bandido, que está, dizem, milionário, e que, sabendo do meu estado, não me vem visitar... Minha irmã, que reside em Paris, é uma mulher perdida, uma desgraçada, que sempre me envergonhou...
– Não se lembre agora disso!
– Não fui um dissipado, guardei o que era meu, e tenho alguma coisa que por minha morte irá para as mãos dessas duas criatura... Lembrei-me de fazer testamento, mas um testamento poderia dar lugar a uma demanda... Lembrei-me de coisa melhor: caso-me com Gilberta e doto-a com 100 contos de réis, isto é, o quanto possuo, mas com as devidas cautelas jurídicas para que este dote fique bem seguro, seja inalienável... tu bem me entendes... Ela tem um noivo, mas este não se oporá, talvez, a uma fortuna da qual participará mais tarde. A situação desse homem será modificada num ponto, apenas: em vez de se casar com uma maça solteira, casar-se-á com uma senhora viúva...
E acrescentou:
– Viúva e virgem.
O Major Brígido recalcitrou; que haviam de dizer? Seriam capazes de inventar até que ele abusara de um agonizante! Mas o Viegas insistiu, apresentando, com extraordinária lucidez, todos os argumentos imagináveis, inclusive aquele de que a última vontade de um moribundo é sagrada.
Gilberta protestou energicamente quando o pai lhe comunicou a proposta do Viegas, e disse logo que não se prestava a esta comédia fúnebre, mas o Teobaldo Nogueira, pelo contrário, instou com ela para que aceitasse, e defendeu calorosamente a piedosa ideia do tuberculoso.
A moça ressentiu-se dessa falta de escrúpulos, mas disfarçou o seu sentimento e disse:
– Meu pai, faça o que entender!
* * *
Alguns dias depois havia em casa do Viegas um vaivém de pretores, padres, testemunhas, escrivães, tabeliães, sacristães, etc.; mas todo esse movimento, longe de fazer com que o enfermo piorasse, ajudou-o a voltar à vida.
As hemoptises tinham cessado.
Depois de casado com Gilberta, o Viegas sentiu-se tão bem que desconfiou dos seus médicos e mandou chamar um dos nossos príncipes da Ciência, para examiná-lo.
Riu-se o famoso doutor quando lhe dissera o diagnóstico dos colegas.
– Tuberculose? Qual tuberculose! O senhor é tão tuberculoso como eu! Aquele sangue era do estômago... Trate do seu estômago que este desvio é grave.
– Mas as hemoptises...
– Que hemoptises, que nada. Hematêmeses, isso sim!
Pouco depois o Viegas, completamente restabelecido, empreendeu uma grande viagem à Europa com sua mulher. Era preciso pôr uma barreira entre ela e o Teobaldo – e que barreira melhor que o Atlântico?
* * *
A viagem durou dois anos. O Viegas e Gilberta trouxeram consigo uma filhinha, nascida na Itália.
Ele fizera com muita diplomacia amorosa e muita dignidade conjugal a conquista da sua mulher, e ela foi sempre o modelo das esposas.
Ao regressar do Velho Mundo, o Viegas pediu ao Major Brígido notícias do Teobaldo Nogueira.
– Está na cadeia, respondeu-lhe o sogro. Calculo o que estava reservado para minha filha, se não fosse a sua generosidade!
– Quando nos casamos, já ela não gostava dele pelo empenho interesseiro em que o viu de que ela se casasse com um cadáver que valia cem contos...
Gilberta que, sem ser pressentida, ouvira a conversa, aproximou-se do marido e disse-lhe:
– E creia Viegas, que se você houvesse morrido, a minha viuvez seria eterna.
(Do livro Contos Cariocas)
Arthur Azevedo
Era a primeira vez que o Getúlio vinha ao Rio de Janeiro. Conquanto filho do barão de Batatais, lavrador abastado, jamais se divertira. Depois de formado em Direito, sabe Deus como, na capital de São Paulo, voltara para a fazenda do pai, onde nasceu, e onde esperava morrer.
Aos vinte e oito anos, chegaram-lhe desejos de ver mundo. Falou ao barão de uma viagem à Europa. – Para quê Europa? – Disse o velho. – Vai ao Rio de Janeiro, que ainda não conheces, e é uma capital digna de ser vista. A Europa irás depois comigo, tua mãe e tua irmã se Deus nos der vida e saúde. – O bacharel contentou-se, pois, com o Rio de Janeiro.
Quando se despediu do filho, na plataforma da estação, o barão recomendou-lhe, pela centésima vez, que tivesse muito cuidado com as más companhias, o que não impedia que o rapaz, aqui chegado, se entregasse confiadamente ao Alípio.
É verdade que o Alípio tinha exterioridades que enganavam, e não vivia senão à custa delas. Delas e do próximo. Era um rapaz da moda, mas passou pelo serviço antropométrico e ainda hoje tem o retrato na polícia.
Ele e o paulista encontraram-se dir-se-ia que por acaso, sentados à mesma mesa, para tomar café, num botequim da rua do Ouvidor, e quando as duas colherinhas, batendo uma na outra, tiniram no açucareiro, o Alípio ergueu os olhos, apertou-os como para reconhecer o Getúlio, e disse-lhe:
– Cavalheiro, creio que já nos encontramos.
– É possível.
– Mas onde? Não me posso lembrar!
– Em São Paulo?
– Não, não creio.
– Talvez em Poços de Caldas. Estive lá duas vezes.
– É isso. Foi em Poços de Caldas! O cavalheiro é paulista?
– Sim senhor, e é a primeira vez que venho ao Rio.
– Tem gostado?
– Muito, mas ainda não vi nada; cheguei ontem.
– Conquanto não tenha a satisfação de o conhecer, ofereço-lhe os meus fracos préstimos.
– Muito obrigado, mas não venho aqui fazer outra coisa senão passear. Há sete anos que me meti na fazenda de meu pai; era tempo de espairecer.
– Ah! O cavalheiro é lavrador?
– Sim, senhor, formei-me em Direito, mas sou um simples fazendeiro, sócio de meu pai. O senhor nunca ouviu falar do barão de Batatais?
– Batatais? Pois não, doutor! Ora essa! É uma das primeiras fortunas de São Paulo!
– Pois é meu pai.
– Se o doutor vem ao Rio de Janeiro simplesmente para se distrair, razão de mais para aceitar os meus fracos préstimos. Sou carioca da gema, conheço toda a cidade como as palmas das minhas mãos, e posso mostrar-lhe o que ela tem de mais interessante.
– Oh! Senhor! Não sei a que deva...
– À simpatia. O doutor não imagina como simpatizei com a sua pessoa!
– Mas o senhor naturalmente tem mais que fazer do que me servir de cicerone.
– Que fazer? Eu? Ah, meu doutor, infelizmente a minha vida é esta - andar pelos cafés, pelos teatros, pelos clubes, pelas casas de jogo, pelas alcovas – enfim, pelo monde ou l'on s'amuse! Não sei o que é trabalhar! E não tenho remorsos, porque meu pai trabalhou por si e por mim. O que faço é gozar o que ele não gozou, para que me não aconteça o mesmo.
– Então é rico?
– Tenho alguma coisinha, tenho...
Nesse mesmo dia jantaram juntos no Brito (o Alípio não consentiu que o Getúlio pagasse), e à noite foram ao Cassino, onde o paulista se divertiu a valer. Separaram-se amigos às três horas da madrugada, na rua Senador Dantas, concertando encontrar-se ao meio-dia para almoçarem juntos.
Almoçaram, deram um longo passeio a Botafogo, e foram jantar numa casa de jogo, que o Alípio quis mostrar ao Getúlio, a título de curiosidade.
– Só a título de curiosidade – repetiu o carioca. – Eu jogo, mas não te aconselho que jogues. (Já se tratavam por tu.) O jogo é estúpido: tira sempre o necessário e não dá nunca senão o supérfluo. Tu alguma vez jogaste?
– Já, em Poços de Caldas, mas jurei que nunca mais jogaria! Perdi uma boa bolada, e o velho ficou furioso!
– Devo prevenir-te de uma coisa: esta casa de jogo é uma das mais decentes do Rio de Janeiro, mas tem cuidado. Aqui vem de tudo. Vês aquele sujeito gordo? É um magistrado integérrimo! Vês aquele sujeito magro? Tem o retrato na polícia!
Depois do jantar, que foi magnífico, regado por excelentes vinhos, aparelharam a roleta. O banqueiro, ex-advogado sem causa, tomou o seu lugar sobre um estrado, diante das fichas multicores alinhadas em ordem, formando pequenas colunas, e o pessoal do vício abancou-se em volta do tapete verde.
– Eu vou piabar - disse o Getúlio ao Alípio.
– Vê, vê só, não jogues! Eu teria remorsos se te trouxesse a esta casa para perderes dinheiro!
Começou o jogo. Depois das três primeiras bolas, o bacharel não resistiu: comprou cem mil-réis de fichas, que voaram logo.
– O Alípio lançou-lhe um olhar repreensivo.
– Não posso ver defunto sem chorar - respondeu o outro, que insiste e em dez minutos perdeu oitocentos mil-réis.
– Acendeu-se-lhe, então toda, a sua coragem de paulista, e fez a última parada, tão forte, que ressarciu todo o prejuízo e ganhou perto de um conto de réis.
– O Alípio que, jogando, ou antes, fingindo jogar, examinava-o de soslaio, viu-o aproximar-se do banqueiro, receber um maço de notas, e arrumá-las na carteira, que guardou sorridente no bolso do peito.
– Vou-me embora - disse-lhe o Getúlio. – Preciso recolher-me hoje um pouco mais cedo: estou com dor de cabeça.
O Alípio deixou a sala do jogo para acompanhá-lo até o corredor, e perguntou-lhe indiferentemente, ajudando-o a vestir o sobretudo:
– Ganhaste?
– Alguma coisa.
– Pois sim, mas não tornes a jogar, vai com o que te digo! Aconselhou, abotoando-lhe o sobretudo. – Levanta a gola, agasalha-te bem, não brinques com este clima. Eu ainda fico.
– Precisas de algum dinheiro?
– Não.
– Então até amanhã?
– Decerto. Irei buscar-te ao hotel às mesmas horas de hoje. Adeus!
O paulista desceu as escadas lépido e contente, foi para o hotel, que não era longe, entrou para o seu quarto, despiu-se e resolveu dar, antes de dormir, um balanço ao dinheiro para saber ao certo qual tinha sido o seu lucro. Foi ao bolso: a carteira lá não estava... Escusado é dizer que o Alípio nunca mais o procurou.
(Do livro Contos Cariocas)
HISTÓRIA DE UM SONETO
Arthur Azevedo
Antes de entrar definitivamente na vida prática, Ludgero Baptista, hoje um dos nossos industriais de polpa, fazia versos. Eram rimas inofensivas; entretanto, um dos seus sonetos – um, pelo menos – foi escrito com más tenções, e, se alguma desculpa tem o poeta, deve-a unicamente aos seus vinte e três anos, idade em que o homem não sabe medir bem as consequências dos seus atos... nem dos seus versos.
Havia, naquele tempo, como ainda as há, e em maior número, talvez, uma senhora casada, por nome Laura Rosa, um nome de flor, a qual se comprazia em arrastar atrás de si uma chusma de corações masculinos, e cuja formosura fazia sensação em toda a parte aonde a levava o marido, um tal comendador Rosa, muito dado a festas e espetáculos.
Ludgero encontrou-a um dia no Jockey Club, e aconteceu-lhe o mesmo que a todos os rapazes do seu gênero: enamorou-se dela. Dali por diante não perdia corrida de cavalos em que Laura Rosa estivesse, e, ou fosse que realmente os olhos da formosa dama lhe prometessem mais do que deviam, ou fosse natural filáucia de namorado jovem, ele considerou-se autorizado a empregar algumas diligências, a fim de que os seus amores saíssem do período ingrato do platonismo, e entrassem numa situação mais positiva.
Para isso, recorreu à musa, que não abandona o poeta nessas emergências exóticas, e escreveu o soneto em questão. Era nada mais nem menos que uma injúria, até certo ponto atenuada pela rima e pelo metro; mas, como se sabe, os fazedores de versos tiveram, em todos os tempos, o privilégio de insultar as senhoras, sem que a moral pública os responsabilizasse por isso.
Eis aqui o soneto, que se intitulava:
SÚPLICA
Desde o dia feliz em que, pasmado,
Pela primeira vez te vi, senhora,
Um sentimento no meu peito mora
Feito de angústia e feito de pecado.
Não creias que ninguém houvesse amado
Tão loucamente como eu te amo agora,
Nem mesmo, oh! Linda Laura, no de outrora
Cavalheiresco tempo celebrado!
Para que finde o meu suplício airoso,
Ou me concede o mendigado beijo,
Este martírio transformado em gozo,
Ou revela ao teu dono o meu desejo:
Talvez ele me faça venturoso,
Dando-me a doce morte, enfim, que almejo!
Ludgero Baptista assinou esse desaforo com as iniciais do seu nome, L. B., e publicou-o na revista literária Nova Aurora, órgão especial dos "novos" daquela época.
Publicado o soneto, mandou o poeta entregar um número do periódico à "linda Laura", procurando, naturalmente, ocasião em que o comendador Rosa não estava em casa, e tendo o cuidado de chamar, com um traço de lápis vermelho, a atenção da moça para os versos em que tão indiscretamente ia envolvido o nome dela.
Não sei qual foi o resultado obtido por Ludgero, nem isso importa à narrativa; creio, entretanto, que a súplica não foi atendida: nem Laura Rosa lhe deu aquele "mendigado beijo", que era um eufemismo bandalho, nem disse nada ao seu dono, e ainda bem, porque se o poeta não logrou a ventura que almejava, também não perdeu a vida, que aproveitou mais tarde, nem mesmo apanhou a sova que merecia.
O caso é que o nosso homem tomou juízo, e abriu mão de todas as suas veleidades poéticas, para cuidar de coisas mais sérias e mais úteis. A fortuna sorriu-lhe. Aos trinta anos, estava ele senhor de algumas centenas de contos de réis, e, aos trinta e sete, principiou a sentir, pela primeira vez, necessidade de constituir família.
Isso coincidiu com o encontrar, em casa de uma família de amigos, a interessante Blandina, moça pobre, que realizava perfeitamente o seu ideal, quer no moral, quer no físico.
Blandina contava apenas vinte e três primaveras, justamente a idade que ele tinha quando escrevera a "Súplica"; mas, não obstante essa diferença de quatorze anos, o casamento não lhes pareceu desproporcionado: queriam-se deveras. Ela talvez fosse um pouco romântica, cheia de mistérios e devaneios, sequiosa do imprevisto e do ignorado; mas esse defeito, se o era, não repugnava ao que em Ludgero ficara do sonhador de outrora.
Casaram-se.
Casaram-se, e foram excepcionalmente felizes durante os dez primeiros anos; mas, passado esse tempo, ele, que estava às portas do semicentenário, e poderia passar por mais velho, ao passo que ela não parecia ter ainda os seus trinta e três, julgou que sua mulher já não o amava como dantes.
Perdi o encanto – disse ele aos seus botões – tenho agora os cabelos grisalhos, engordei muito, sofro de reumatismo, e Blandina conserva a mocidade, a beleza e a elegância que tinha na ocasião do nosso primeiro encontro... O nosso enlace não era, mas tornou-se desigual... Para sermos felizes até a morte, fora preciso que envelhecêssemos juntos, como Filêmon e Báucis.
Efetivamente, Blandina, que, durante os primeiros dez anos de casada, nunca reparou que seu marido ressonava alto, não o podia agora suportar, queixando-se de não poder dormir ao som de um rabecão. Ao mesmo tempo, deixava-se absorver, horas esquecidas, em longas cismas, e suspirava de instante a instante, como se alguma coisa lhe faltasse.
Ludgero inquietou-se, e começou a observar com olhos ciumentos o que se passava em torno de si. Não lhe tardou perceber que a sua casa era constantemente rondada por um rapazola, que poderia ser seu filho e, mesmo, filho de sua mulher. De uma feita, deu com ele à esquina entregando uma carta à cozinheira; escondeu-se, entrou em casa de mansinho, sem ser visto, e interceptou a missiva no momento preciso em que esta passava das mãos da intermediária para as de sua mulher.
Ludgero tomou a mão de Blandina, que tremia como varas verdes, e levou-a para o interior do seu gabinete.
– Quem é aquele sujeitinho que te mandou esta carta?
– Não sei – respondeu ela, e desatou a chorar.
– Por que choras?
– Choro, porque não tenho culpa. Não sei quem me escreveu... Desconfio de um mocinho impertinente que costuma passar por aqui e me cumprimenta com um sorriso muito amável quando me vê à janela... Juro-te que eu devolvia essa carta sem abrir!
– Abro-a eu! – Disse Ludgero, engasgado pela comoção - e rasgou o invólucro. Estava dentro um soneto, escrito em papel ridículo, cercado de florinhas e rendilhado nos cantos.
Ao ler o primeiro verso, “Desde o dia feliz em que, pasmado”, o marido reconheceu logo o seu velho soneto, que tinha sido copiado, palavra por palavra, sofrendo apenas uma alteração no segundo quarteto: o nome de "Laura" fora substituído pelo de "Blandina", o que, aliás, desfigurava o verso, evidenciando que o copista era inteiramente hóspede em metrificação.
Ludgero deu uma gargalhada.
– De que te ris?... Que há que te faça rir? – Perguntou Blandina.
– Ri-me, porque o teu infeliz namorado te mandou um soneto que não é dele, e sim meu!
– Teu?
– Sim! A coincidência é notável... Vais ver!
Ludgero abriu uma gaveta, e tirou de dentro dela o número amarelado da Nova Aurora, em que vinha estampada a sua "Súplica".
– Aqui tens! Olha! Compara! Está assinado com as minhas iniciais!
– Tu fazias versos?
– Fazia-os, e ainda os farei, se quiser – tanto assim, que vou escrever outro soneto em resposta a este, e hás de tu copiá-lo com tua letra, e eu mesmo o entregarei ao tal mocinho.
– Está dito!
A prontidão com que Blandina proferiu esse "está dito" foi a melhor prova que Ludgero teve de que poderia continuar a conservá-la junto de si. O mesmo não sucedeu à cozinheira, que foi posta na rua.
No dia seguinte, estava escrita a resposta. Blandina copiou-a, e, na mesma tarde, quando o rapazola, parado à esquina, interrogava as janelas, Ludgero aproximou-se dele, e disse-lhe:
– Jovem, aqui tem a resposta de minha mulher ao seu soneto. Espero que, depois de lê-la, o meu amiguinho não me rondará mais a porta; mas, se continuar, previno-o de que o mato a bengaladas!...
O rapazola fugiu, e não consta que reaparecesse no bairro. Foi esta a:
RESPOSTA
Para satisfazer ao seu pedido,
Na parte da denúncia e não do beijo,
Revelei a meu dono o seu desejo.
Os versos entreguei a meu marido.
Este, em vez de ficar enfurecido,
E de agarrar um ferro malfazejo,
Tomou a coisa à conta de gracejo,
E pôs-se a rir como um perdido!
Pois se é ele o autor do tal soneto!
O senhor copiou-o da Nova Aurora,
Estragando-lhe apenas um quarteto...
Ele, que a Musa já mandou embora,
Cede-lhe os versos (discrição prometo),
Mas não quer sociedade na senhora.
Blandina Baptista
Blandina leu todos os versos antigos de seu marido, e perdoou-lhe os cabelos grisalhos, o abdômen, o reumatismo e, até, o ressonar alto: adora-o.
Ludgero descobriu que o rapazola era filho de Laura Rosa; provavelmente, encontrou o soneto entre os papéis da mãe, que já não existia...
O ex-poeta viu em tudo isso uma espécie de punição, e, como tem os seus momentos de filosofia barata, pensa muitas vezes que um homem pode ser ferido, mais dia menos dia, pela própria arma que forja com intenção maligna, mesmo quando essa arma seja simplesmente um mau soneto.
HISTÓRIA DE UM DOMINÓ
Arthur Azevedo
Perdoem-me os leitores se eu, de ordinário alegre, venho contar-lhes uma história triste, num dia em que todos estão predispostos ao riso; mas. . . que querem? Tenho uma natureza especial: o Carnaval entristece-me, e o "Abre alas, que quero passar" soa aos meus ouvidos como um canto de agonia e de morte.
* * *
Dado esse pequeno cavaco, saibam os leitores que conheço um homem, o Abreu, que é o mais triste dos homens: só se compraz na solidão e no silêncio, não tem amigos, vive só, e nunca ninguém o viu rir, nem mesmo sorrir.
Entretanto, esse casmurro, em chegando o Carnaval, veste um dominó e sai à rua mascarado. Isto são favas contadas todos os anos. O ano passado, um vizinho teve a curiosidade e a pachorra de mascarar-se também para acompanhá-lo a certa distância, e observar o que ele fazia.
Era domingo gordo; toda a população estava na rua. O Abreu apeou-se do bonde, o mesmo bonde em que vinha o curioso que o acompanhava, um bonde do Catumbi, o bairro onde moravam ambos, e desceu com muita dificuldade a Rua do Ouvidor. Chegando em frente à casa de um alfaiate, em cuja porta estavam sentadas algumas donas e donzelas à espera das Sociedades, parou, encostando-se na parede da casa fronteira, e ali se deixou ficar, pregando no grupo das senhoras os olhos, que faiscavam através dos dois buracos da máscara de seda.
O Abreu demorou-se ali seguramente meia hora, e o vizinho, farto de esperar, resolveu abandoná-lo, dizendo consigo: – Ora! É um esquisito!... Deixemo-lo!...
Deixou-o efetivamente, mas uma hora depois, voltou, e ainda lá encontrou o Abreu no mesmo ponto e na mesma posição em que o havia deixado. Examinou então com mais cuidado o grupo das senhoras, e reconheceu, surpreso, que uma delas era a mulher do Abreu.
* * *
Sim, que o Abreu tinha sido casado com uma bonita mulher que um dia o abandonou para amancebar-se com um sujeito que ele supunha seu amigo, e ao qual abrira confiadamente as portas de sua casa. O amante lá estava por trás do grupo também à espera das Sociedades. Toda a gente os supõe casados.
Desde que lhe sucedeu essa desgraça, o Abreu tornou-se triste, e sua tristeza durou e dura ainda, porque ele amava profundamente aquela ingrata. Amava-a tanto, que neste mundo só uma coisa lhe proporcionava um simulacro de prazer: vê-la de perto.
Entretanto, os leitores compreendem que o Abreu não poderia procurar a miúdo tão singular espécie de consolação, e, nos raros encontros fortuitos que tinha com ela, não a encarava de modo a satisfazer aquele apetite mórbido.
Mas, uma vez, há cinco anos, disseram-lhe que sua mulher tinha assistido ao Carnaval sentada à porta do alfaiate e, no ano seguinte, o Abreu, metido num dominó alugado, foi verificar se ela escolhera o mesmo ponto. Encontrou-a, e, durante muitas horas, conseguiu vê-la de perto e à vontade.
Daí por diante, o infeliz marido não perdeu um Carnaval, e é muito provável que amanhã lá esteja a postos em frente à casa do alfaiate. Os leitores, com alguma pachorra, poderão certificar-se de que este conto não é inventado.
FATALIDADE
Arthur Azevedo
I
O Tenente de Cavalaria Remígio Soares, teve a infelicidade ver, uma noite, D. Andréia num camarote do teatro Lucinda, ao lado do seu legítimo esposo, e pecou, infringindo impiamente o nono mandamento da lei de Deus.
A "mulher do próximo", notando que a "desejavam", deixou-se impressionar por aquela farda, por aqueles bigodes, e por aqueles belos olhos negros e rasgados.
Ao marido, interessado pelo enredo do dramalhão, que se apresentava, passou completamente despercebido o namoro aceso entre o camarote e a platéia.
Premiada a virtude e castigado o vício, isto é, terminado o espetáculo, o Tenente Soares acompanhou, a certa distância, casal até o Largo de São Francisco e tomou o mesmo bonde que ele - um bonde do Bispo -, sentando-se, como por acaso, o lado de D. Andréia.
Dizer que no bonde o pé do tenente e o pézinho da moça não continuaram a obra encetada no Lucinda, seria faltar à verdade. Acrescentarei até que, ao sair do bonde, na pitoresca Rua Malvino Reis, D. Andréia, com rápido e furtivo aperto de mão, fez ao namorado as mais concludentes e escandalosas promessas.
Ele ficou sabendo onde ela morava.
II
O Tenente Remígio Soares foi para a casa, em São Cristóvão, e passou o resto da noite agitadíssimo, -- pudera! Às dez horas da manhã atravessava já o Rio Comprido ao trote do seu cavalo!
Mas - que contrariedade! -~ as janelas de D. Andréia estavam fechadas.
O cavaleiro foi até a Rua de Santa Alexandrina, e voltou patati, patatá, patati, patatá! e as janelas não se tinham aberto!
O passeio foi novamente renovado à tarde, - o tenente passou, tornou a passar, - continuavam fechadas as janelas!
Malditas janelas!...
Durante quatro dias o namorado foi e veio, a cavalo, a pé, de bonde, fardado, à paisana: nada! Aquilo não era uma casa: era um convento!
- Mas, ao quinto dia - 0h! ventura! - ele viu sair do convento um molecote que se dirigia para a venda próxima. Não refletiu: chamou-o de parte, untou-lhe as unhas e interpelou-o.
Soube nessa ocasião que ela se chamava Andéía. Soube mais que o marido era empregado público e muito ciumento: proibia expressamente à senhora sair sozinha e até chegar à janela quando ele estivesse na rua. Soube, finalmente, que havia em casa dois cérebros; uma tia do marido e um jardineiro muito fiel ao patrão.
Mas o providencial moleque nesse mesmo dia se encarregou de entregar à patroa uma cartinha do inflamado tenente, e a resposta - digamo-lo para vergonha daquela formosa desmiolada - a resposta não se fez esperar por muito tempo.
Ei-la:
"O senhor pede-me uma entrevista e não imagina como desejo satisfazer a esse pedido, porque também o amo. Mas uma entrevista como?... onde?... quando?... Saiba que sou guardada à vista por uma senhora de idade, tia dele, e por um jardineiro que lhe é muito dedicado. Pode ser que um dia as circunstâncias se combinem de modo que nos possamos encontrar a sós... Como há um deus para os que se amam, esperemos que chegue esse dia: até lá, tenhamos ambos um pouco de paciência. Mande-me dizer onde de pronto o poderei encontrar no caso de ter que preveni-lo de repente. O moleque é de confiança."
Na esperança de que o grande dia chegasse, o Tenente Remígio Soares mudou-se imediatamente para perto da casa de D. Andréia; procurou e achou um cômodo de onde se via, meio encoberta pelo arvoredo, a porta da cozinha do objeto amado. Dessa porta D. Andréia fazia-lhe um sinal convencionado todas as vezes que desejava enviar-lhe uma cartinha.
III
Diz a clássica sabedoria das nações que o melhor da festa e esperar por ela.
Não era dessa opinião o tenente, que há dezoito meses suspirava noite e dia pela mulher mais bonita e mais vigiada de todo aquele bairro do Rio Comprido, sem conseguir trocar uma palavra com ela!
Os namorados, graças ao molecote, correspondiam-se epistolarmente, é verdade, mas essa correspondência, violenta e fogosa, contribuía para mais atiçar a luta entre aqueles dois desejos e aumentar o tormento daquelas duas almas.
IV
Os leitores, - e principalmente as leitoras - me desculparão de não pôr no final deste ligeiro conto um grão de poesia: tenho de concluí-lo um pouco à Armando Silvestre. Em todo o caso, verão que a moral não é sacrificada.
O meu herói andava já obcecado, menos pelo que acreditava ser o seu amor, que pelos dezoito meses de longa expectativa e lento desespero.
Um dia, o Barroso, seu amigo íntimo, seu confidente, foi encontrá-lo muito abatido, sem ânimo de se erguer da cama.
- Que tens tu?
- Ainda mo perguntas!
- Paciência, meu velho; Jacó esperou quatorze anos.
- Esta coisa tem-me posto doente... - Bem sabes que gozava uma saúde de ferro... Pois bem neste momento a cabeça pesa-me uma arroba.... tenho tonteiras!
- Isso é calor; a tua Andréia não tem absolutamente nada que ver com esses fenômenos cerebrais. Queres um conselho? Manda buscar ali à botica uma garrafinha de água de Janos. É o melhor remédio que conheço para tonteiras!
O tenente aceitou o conselho, e o Barroso despediu-se dele depois que o viu esvaziar um bom copo de benemérito laxativo.
Vinte minutos depois dessa libação desagradável, Remígio Soares viu assomar ao longe, na porta da cozinha, o vulto de D. Andréia, anunciando-lhe uma carta.
Pouco depois entrava o molecote e entregava-lhe um bilhete escrito às pressas.
"A velha amanheceu hoje com febre, e não sai do quarto. O jardineiro foi à cidade chamar um médico da confiança dela. Vem depressa, mal recebas este bilhete: há de ser já, ou nunca o será talvez."
O tenente soltou um grito de raiva: a água de Janos começava a produzir os seus efeitos fatais; era impossível acudir ao doce chamado de D. Andréia!
Era impossível também confessar-lhe a causa real do não comparecimento; nenhum namorado faria confissões dessa ordem...
O mísero pegou na pena, e escreveu, contendo-se para não fazer outra coisa:
"Que fatalidade! Um motivo poderosíssimo constrange-me a não ir! Quando algum dia houver certa intimidade entre nós, dir-te-ei qual foi esse motivo, e tenho certeza de que me perdoarás."
V
Quando, no dia seguinte, ele contou ao Barroso a desgraça de que este fora o causador involuntário, o confidente sorriu, e obtemperou:
- Vê tu que grande remédio é a água de Janos! Um só copo serviu para três cabeças!
- Como três?
- A tua, que tinha tonteiras, - a de D. Andréia que estava cheia de fantasias, - e a do marido que andava muito arriscada.
Efetivamente, a moça não perdoou.
O Tenente Remígio Soares nunca mais a viu.
ENCONTROS REVELADORES
Arthur Azevedo
Contarei hoje aos meus leitores um caso que se passou no tempo do Segundo Império. A historieta não será talvez muito divertida, mas é humana. Lá vai: Para mostrar-se agradecido ao ministro da Justiça, que o nomeara juiz de Direito de Niterói, lembrou-se o Dr. Sales de convidá-lo para padrinho de seu último pimpolho. O ministro aceitou o convite, mas como a época era de grande agitação política e não lhe sobravam lazeres para batizados, passou procuração ao seu oficial de gabinete, Dr. Pinheiro, para representá-lo na cerimônia, e levar o pequeno à pia.
À hora aprazada, o Dr. Pinheiro apresentou-se em casa do Dr. Sales, onde o receberam com a mesma solenidade com que receberiam o próprio conselheiro.
O bom homem já estava, aliás, habituado a esses togatés. Depois que o ministro, seu companheiro de infância e amigo íntimo, fizera dele o seu oficial de gabinete, o seu auxiliar de imediata confiança, quase o seu alter ego, o Dr. Pinheiro verificou, surpreso, que tinha inúmeros amigos de cuja existência nem sequer suspeitava. Antes que ele exercesse aquela posição oficial, pouca gente o cumprimentava; depois que a exercia, todos lhe tiravam o chapéu!
Terminada a cerimônia do batizado, o Dr. Pinheiro quis retirar-se: estava cumprida a sua missão, mas o Dr. Sales e toda a família instaram com ele para almoçar.
O almoço fez-lhe mal. Na ocasião em que o padrinho por procuração ergueu a sua taça de champanha para agradecer um brinde feito pelo juiz de Direito ao seu ilustre compadre, o Exmo. Sr. conselheiro X, ministro e secretário de Estado dos negócios da Justiça, o Sr. Pinheiro sentiu turbar-se-lhe a vista e a casa andar à roda. Caiu sentado sobre a cadeira, quebrando a taça que tinha na mão, e perdeu os sentidos.
Foi um alvoroço. Saíram todos dos seus lugares e cercaram o Dr. Pinheiro, que não dava acordo de si.
Entre os comensais, havia, felizmente, um médico. Transportado para um quarto e estendido sobre um leito, o Dr. Pinheiro foi imediatamente socorrido e medicado.
– Não há de ser nada, explicou o médico, mas é preciso que o doente fique no mais absoluto repouso; que ninguém lhe fale nem ele fale a ninguém!
– Mas, que foi?
– Um ameaço de congestão.
No mesmo dia, o Dr. Sales mandou à casa do Dr. Pinheiro, que era viúvo, não tinha família de espécie alguma e morava com ele apenas um criado, que foi ter logo com o amo enfermo, levando-lhe roupa branca.
No dia seguinte o Dr. Sales procurou o ministro, seu compadre, para participar-lhe que o seu oficial de gabinete adoecera em Niterói, mas S. Exa. não lhe pôde dar ouvidos: preparava-se para responder a uma interpelação na Câmara, e não podia pensar noutra coisa.
O Dr. Pinheiro, logo no outro dia pretendeu recolher-se aos penates, mas o médico proibiu-lhe terminantemente, dizendo: – Uma imprudência pela qual não me responsabilizo!
Ficou, pois, o Dr. Pinheiro cinco dias em Niterói, metido entre quatro paredes, sem conversar nem ler. Ao sexto dia, sentiu-se completamente restabelecido, e teve alta. Durante esse tempo, alguma coisa se passara, de certa importância, mas, em casa do Dr. Sales, nada disseram ao Dr. Pinheiro, receando que qualquer comoção moral lhe produzisse novo ataque.
Seguido pelo seu fiel criado, que o não abandonou um instante, o Dr. Pinheiro tomou a barca e, chegando ao Pharoux, entrou num carro que estava à sua espera, indo o criado para a boleia.
Ao passar pelo Largo do Paço, notou que certo pretendente, figura obrigada do gabinete do ministro, sujeito que costumava saudá-lo com muitos rapapés, agora, ao vê-lo, apenas levou a mão à aba do chapéu.
Mais adiante, na Rua da Assembleia, outro importuno olhou para ele e desviou os olhos, fingindo que não o via.
No Largo da Carioca, um oficial da Secretaria, que se empenhara, não havia muito, com o Dr. Pinheiro para ser, como foi, promovido, teve para o oficial de gabinete um olhar de proteção.
– Não há que ver, pensou o Dr. Pinheiro, caiu o ministério!
De fato, havia três dias que o ministério caíra, depois da tal interpelação. Ninguém o dissera ao Dr. Pinheiro, nem verbalmente nem por escrito: ele adivinhou-o, graças àqueles três encontros reveladores.
EM SONHOS
Arthur Azevedo
- Ora, sempre há sonhos muito exquisitos! - exclamou o César, logo pela manhã, quando se ergueu da cama.
- Com quem sonhaste? - perguntou D. Margarida, que ainda se achava deitada.
- Sonhei que estávamos num jardim, D. Eponina, a senhora do Sá Coelho, e eu, e que ela se atirou a mim aos beijos apertando-me nos braços dizendo que me adorava!
- E que necessidade tinha eu de saber desse teu sonho? - perguntou D. Margarida um tanto contrariada e, cá entre nós, com toda a razão.
- Oh! meu amor! Pois queres que eu tenha segredos para ti? Eu conto-te a minha vida toda, inclusive os meus sonhos!
- Pois sim, mas uma reserva natural, ou por outra, a delicadeza mais rudimentar deveria fazer com que não me contasses coisas que não me podem ser agradáveis, e cuja revelação nenhum interesse, nenhuma conveniência tem.
- Ora esta! Nunca esperei que te zangasses!.
- Não estou zangada, mas simplesmente ressentida; nenhuma esposa gosta de saber que mesmo em sonhos seu marido andou aos beijos com outra mulher!
- Em primeiro lugar, eu não beijei, fui beijado! Fui violentado!... Eu não queria!... D. Eponina caiu sobre mim com uma fúria!...
- Pois olha! Eu estou mais magoada contigo que com ela. .
- Deixa-te disso, Margarida! Os sonhos não querem dizer nada!...
- Não querem dizer nada, mas são sempre o resultado de uma impressão qualquer, recebida na vida real: se tu não tivesses tido um mau pensamento a respeito de Eponina, jamais sonharias que ela caiu sobre ti aos beijos!
- Por pouco mais, darias razão àquele fazendeiro, que mandou surrar o escravo por ter sonhado que este queria assassiná-lo!...
- Sim, tens razão, César... Sonhos são sonhos... uma tolice minha aborrecer-me por causa de uns beijos quiméricos, de que nenhuma culpa tens.
- Ora, ainda bem que te chegas à razão!.
E não se falou mais nisso: a discussão passou... como um sonho.
Três ou quatro dias depois, Margarida foi a primeira a erguer-se da cama.
- Que é isto? - perguntou César despertando. - Ergueste hoje mais cedo?
- Sim, porque estou aborrecida; tive um sonho terrível!
- Sim?... Com quem sonhaste?.
- Não quero ter segredos para meu marido: sonhei com o Braguinha!
- Com aquele patife, com aquele desavergonhado, que entendeu que podia namorar-te às minhas barbas! Pois tu sonhaste com esse homem?!.
- Sonhei; que tem isso?... Que culpa tenho eu?
- Conta-me o teu sonho.
- Deixa-te disso!... Os sonhos não querem dizer nada. Demais, aconteceu-me o mesmo que a ti o outro dia: não beijei - fui beijada!.
O César saltou da cama furioso:
- Não calculas a vontade com que estou de quebrar a cara do Braguinha!
- Ora, aí tens! ~ exatamente o caso do fazendeiro!
ELEFANTES E URSOS
Arthur Azevedo
Era uma delícia ouvir o coronel Ferraz contar as suas façanhas de caça; mas ele só vibrava e só era verdadeiramente genial a inventar carapetões quando tinha um bom auditório, quando via em volta de si olhos espantados e bocas abertas.
Dizem que, na intimidade, conversando com um amigo, ou mesmo dois, era incapaz de pregar uma peta.
Ora, uma ocasião, estava ele no meio de um grupo de vinte pessoas, em que estavam representados ambos os sexos e todas as idades.
As palavras do coronel, proferidas com aquela voz reboante e áspera, feita para comandar exércitos, eram avidamente bebidas. Apenas um rapaz do grupo, o Miranda, o maior estroina que Deus pusera no mundo, tinha na fisionomia um ar de mofa e parecia não tomar a sério as proezas cinegéticas do nosso herói.
Mas isso não foi nada – dizia este, retorcendo as pontas dos seus enormes bigodes grisalhos. – Isso não foi nada, à vista do que me aconteceu numa aldeia do Ganges, aonde me levou a minha vida aventurosa. Um casal de elefantes corria atrás de um moço que lhes maltratara o filho, um elefantinho deste tamanho (e o coronel indicou o tamanho de um elefantão). O macho ia atingir o moço com a tromba, quando o abati com um tiro da minha espingarda, que nunca falhou. Mas restava a fêmea... A arma estava descarregada, mas eu, carioca da gema, lembrei-me do nosso jogo de capoeira, e passei-lhe uma rasteira tão na regra, que a prostrei por terra! Antes que se erguesse aquela pesada massa, tive tempo de carregar a espingarda e mandá-la passear no outro mundo. O moço estava salvo.
Houve no auditório um murmúrio de admiração. O coronel continuou:
– O moço, mal o sabia eu, era um príncipe, filho de um rajá, ou coisa que o valha, muito estimado na localidade: por isso, ergueram sobre o corpo do elefante macho uma espécie de trono em que me colocaram, deram-me a beber um licor sagrado, investiram-me não sei de que dignidade oficial, e fizeram-me assistir a umas danças intermináveis. Foi uma festa a que concorreram mais de vinte mil pessoas.
Passado o frêmito do auditório, o Miranda tomou a palavra:
– O coronel foi mais feliz no Ganges do que eu em Ceilão.
– Você já esteve em Ceilão? – Perguntou o coronel.
– Ora! Onde não tenho estado? Um dia, estando a caçar – sim, porque também sou caçador! – Saiu-me pela frente um enorme urso, que avançou para mim. Quis levar a mão à espingarda, mas tremia tanto, que não consegui pegá-la. E o urso a avançar! Nisto, senti um bafo no meu cachaço. Olhei para trás: era outro urso, de goela aberta e dentes arreganhados!
– E que fez você? – Perguntou o coronel, interessado deveras.
– Não fiz nada – respondeu o Miranda. – Fui comido!
DUAS APOSTAS
Arthur Azevedo
Quando apareceu o primeiro número d'O Século, o Comendador Salazar, que encontrou um exemplar em casa, tomou-o entre as mãos, percorreu-o rapidamente com os olhos e disse, com aquele ar impertinente e desdenhoso que faz dele, benza-o Deus, um dos negociantes mais antipáticos da nossa praça:
– Isto não tem vida para um mês!
– Por que, papai? – Perguntou a senhorita Esmeralda.
– Porque não tem. É um jornaleco que não me inspira a menor confiança.
A moça, que gostava de contrariar o autor dos seus dias, redarguiu logo:
– Pois eu estou convencida de que este jornal tem vida para muito tempo!
– Por que, minha filha?
– Porque tem.
– Veremos.
Havia oito dias que Esmeralda tinha sido pedida em casamento pelo Souzinha, e o Comendador Salazar respondera que era muito cedo: a filha não tinha ainda completado 17 anos, e o pretendente acabava apenas de atingir a maioridade.
– É muito cedo para pensarem em casamento! – Sentenciara ele.
Mas, voltando a O Século:
– Com que então, papai é de parecer que este jornal será efêmero?
– Já te disse que sim!
– Pois bem: façamos uma aposta. Se O Século não viver um ano, eu bordarei um par de chinelos de lã para papai; se viver... no dia em que ele completar o primeiro aniversário, papai consentirá no meu casamento com seu Souzinha.
O comendador soltou uma gargalhada e disse:
– Pois está dito!
Imaginem agora os leitores com que interesse Esmeralda e o Souzinha acompanhavam a vida d'O Século! A moça comprava todas as tardes um número da folha, e colocava-o bem à vista, sobre a mesa de jantar, para que o pai o visse.
– Então O Século ainda vive?
– Ainda, e não parece disposto a morrer!
– Pois sim! Qualquer dia desaparece da circulação!
No dia em que O Século completou o seu primeiro aniversário, Esmeralda lembrou ao pai a aposta, e o nosso comendador teve que se submeter.
Fez-se o casamento, e, passados alguns dias, o sogro lamentava-se em conversa com sua esposa:
–- Casamos a pequena com um criançola! Hás de ver que aquele maricas tão cedo não nos dará um neto!
A filha, que passava e ouviu, acudiu prontamente:
– Vamos fazer uma aposta, papai?
– Que aposta?
– Se no dia em que O Século completar o segundo aniversário o senhor não tiver ainda a satisfação de ser avô, eu bordarei aquelas famosas chinelas... se tiver, abrirá com um conto de réis uma caderneta da Caixa Econômica, em favor do pequeno... ou da pequena...
Há dois meses Esmeralda é mãe e o comendador já se explicou com o conto de réis.
O outro dia, ela chegou-se ao pai, e disse:
– Vamos fazer outra aposta?
– Qual?
- Se no dia em que O Século completar o terceiro aniversário...
– Nada! Nada! Não me apanhas! O tal Século tem vida para... um século!
DUAS APOSTAS
Arthur Azevedo
Quando apareceu o primeiro número d'O Século, o Comendador Salazar, que encontrou um exemplar em casa, tomou-o entre as mãos, percorreu-o rapidamente com os olhos e disse, com aquele ar impertinente e desdenhoso que faz dele, benza-o Deus, um dos negociantes mais antipáticos da nossa praça:
– Isto não tem vida para um mês!
– Por que, papai? – Perguntou a senhorita Esmeralda.
– Porque não tem. É um jornaleco que não me inspira a menor confiança.
A moça, que gostava de contrariar o autor dos seus dias, redarguiu logo:
– Pois eu estou convencida de que este jornal tem vida para muito tempo!
– Por que, minha filha?
– Porque tem.
– Veremos.
Havia oito dias que Esmeralda tinha sido pedida em casamento pelo Souzinha, e o Comendador Salazar respondera que era muito cedo: a filha não tinha ainda completado 17 anos, e o pretendente acabava apenas de atingir a maioridade.
– É muito cedo para pensarem em casamento! – Sentenciara ele.
Mas, voltando a O Século:
– Com que então, papai é de parecer que este jornal será efêmero?
– Já te disse que sim!
– Pois bem: façamos uma aposta. Se O Século não viver um ano, eu bordarei um par de chinelos de lã para papai; se viver... no dia em que ele completar o primeiro aniversário, papai consentirá no meu casamento com seu Souzinha.
O comendador soltou uma gargalhada e disse:
– Pois está dito!
Imaginem agora os leitores com que interesse Esmeralda e o Souzinha acompanhavam a vida d'O Século! A moça comprava todas as tardes um número da folha, e colocava-o bem à vista, sobre a mesa de jantar, para que o pai o visse.
– Então O Século ainda vive?
– Ainda, e não parece disposto a morrer!
– Pois sim! Qualquer dia desaparece da circulação!
No dia em que O Século completou o seu primeiro aniversário, Esmeralda lembrou ao pai a aposta, e o nosso comendador teve que se submeter.
Fez-se o casamento, e, passados alguns dias, o sogro lamentava-se em conversa com sua esposa:
–- Casamos a pequena com um criançola! Hás de ver que aquele maricas tão cedo não nos dará um neto!
A filha, que passava e ouviu, acudiu prontamente:
– Vamos fazer uma aposta, papai?
– Que aposta?
– Se no dia em que O Século completar o segundo aniversário o senhor não tiver ainda a satisfação de ser avô, eu bordarei aquelas famosas chinelas... se tiver, abrirá com um conto de réis uma caderneta da Caixa Econômica, em favor do pequeno... ou da pequena...
Há dois meses Esmeralda é mãe e o comendador já se explicou com o conto de réis.
O outro dia, ela chegou-se ao pai, e disse:
– Vamos fazer outra aposta?
– Qual?
- Se no dia em que O Século completar o terceiro aniversário...
– Nada! Nada! Não me apanhas! O tal Século tem vida para... um século!
Arthur Azevedo
Quando cheguei, a casa mortuária estava cheia de gente. No centro da sala, forrada de preto, havia uma essa entre quatro enormes tochas acesas, e sobre a essa um caixão, dentro do qual D. Eulália dormia o último sono.
Já tinha passado a hora do saimento. Faltava apenas o padre. O padre não aparecia. O viúvo, comovido, mas calmo, perfeitamente calmo, perguntou a um parente que, pelos modos, tinha se encarregado do enterro:
– Então?.. . Esse padre?
– Já cá devia estar. O Tio Eusébio quer que eu vá buscá-lo?
– É favor, Cazuza.
E o parente saiu muito apressado. Dez minutos depois, o Eusébio aproximou-se de mim e disse-me baixinho:
– E nada de padre! Estava escrito que este dia não passava para mim sem alguma contrariedade...
* * *
Justifiquemos esse grito do coração. O Eusébio não foi um marido feliz; D. Eulália, que tinha muito mau gênio, transformara-lhe a vida num verdadeiro inferno. O pobre homem não tinha voz ativa dentro de casa; era repreendido como um fâmulo quando entrava mais tarde; devia dar contas de um níquel, de um miserável níquel que lhe desaparecesse do bolso!
Apesar de casado havia já quinze anos, ele não se pudera habituar a essa existência ridícula, e sentia-se envelhecer prematuramente na alma e no corpo. Não tinha filhos, – e era melhor assim, porque, com certeza, D. Eulália não lhos perdoaria. Pensava bem: pudesse ela contrariar a natureza, e fecundá-lo-ia, para humilhá-lo ainda mais!
* * *
Durante os primeiros tempos de regime conjugal, o Eusébio tentou reagir contra o mau gênio de D. Eulália; num dia, porém, que lhe falou mais alto e lhe bateu o pé, recebeu em troca uma tremenda bofetada, cujo estalo ressoou em todo o quarteirão. Durante quinze dias, a vizinhança não se ocupou de outra coisa.
O marido que apanha da cara-metade está perdido; o que apanha e chora, está irremissivelmente perdido. O Eusébio apanhou e chorou... Daquele dia em diante, foi-se-lhe toda a autoridade marital: tornou-se em casa um manequim, um pax vobis, um joão-ninguém.
Era, entretanto, um homem simpático, virtuoso, apreciadíssimo por numerosos amigos e muito conceituado na repartição de onde tirava o necessário para que nada faltasse a D. Eulália.
* * *
De todas as maçadas a que estava afeito o nosso Eusébio, nenhuma o ralava tanto como a de procurar cozinheira, o que lhe acontecia a miúdo, porque, graças ao mau gênio da dona da casa, a cozinha estava constantemente abandonada. Como as impertinências de D. Eulália já tinham fama no bairro, e nenhuma criada queria servir aquela ama, o Eusébio era obrigado a procurar cozinheira muito longe de casa. O que ele queria era alugá-la, mas bem sabia que, na venda, a recém-chegada seria logo posta ao corrente de tais impertinências.
* * *
Um dia, o pobre marido foi muito cedo arrancado da cama pela mulher.
– Levante-se, tome banho, vista-se e vá procurar uma cozinheira!
– Quê!... Pois a Maria...?
– Acabo de pô-la no olho da rua!
– Por quê?
– Não é da sua conta! Mexa-se!...
– Uma cozinheira que não estava em casa há oito dias!...
– Basta de observações! Quem manda aqui sou eu! Vamos! Vista-se! E nada de agências, hem? Olhe que se me traz cozinheira de agência, não passa da porta da rua!
* * *
Nesse dia o Eusébio teria purgado todos os seus pecados, se os tivera, e se D. Eulália não fosse já um purgatório bastante. O pobre-diabo, que morava no Rio Comprido, foi, levado por informações, procurar uma cozinheira em São Francisco Xavier. Já estava alugada; entretanto, lá lhe disseram que no Morro do Pinto havia outra, muito boa, que lhe devia servir. O desgraçado almoçou numa casa de pasto, encheu-se de coragem e subiu o Morro do Pinto.
A cozinheira não estava em casa; tinha ido passar uns dias com uma parenta, na Rua de Sorocaba, em Botafogo; mas um vizinho aconselhou o Eusébio a que não adiasse a diligência; a mulher trabalhava primorosamente em forno e fogão, era morigerada e estava morta por achar emprego. Abalou o Eusébio para Botafogo, e encontrou, efetivamente, a mulher na Rua de Sorocaba, em casa da parenta, pronta já para sair. Por pouco mais, a viagem teria sido baldada.
Era uma mulata quarentona, muito limpa, de um aspecto simpático e humilde, que, à primeira vista, inspirava certa confiança. Ela, pelo seu lado, simpatizou com o Eusébio, a julgar pela prontidão com que se ajustaram.
– Bem; amanhã lá estarei, meu patrão.
– Amanhã, não: há de ser hoje, porque se entro em casa sem cozinheira, minha mulher...
O Eusébio interrompeu-se – ia deitando tudo a perder, – e emendou: –... minha mulher, que é muito boa senhora, mas nem sempre acredita no que eu digo, há de supor que me remanchei.
– Nesse caso, meu patrão, é preciso que eu vá primeiramente ao Morro do Pinto.
– Pois vamos ao Morro do Pinto... respondeu resignado o resignado Eusébio.
* * *
Era quase noite fechada, quando o infeliz marido, fatigadíssimo, doente, sem jantar, entrou em casa acompanhado da mulata. D. Eulália recebeu-o com duas pedras na mão:
– Onde esteve o senhor metido até estas horas? Oh! Que coisa ruim... que homem insuportável... Só a minha paciência!...
– A senhora não calcula como me custou encontrar esta mulher, mas, enfim... parece que desta vez ficamos bem servidos.
– Pois sim –resmungou D. Eulália – vão ver que é alguma vagabunda!
E, voltando-se para a mulata, disse-lhe com a sua habitual arrogância:
– Chegue-se mais! Não gosto de gritar e quero que me ouçam!
A cozinheira aproximou-se com um sorriso humilde de subalterna.
– Como se chama? – Perguntou D. Eulália.
– Eulália.
– Eulália?!
– Eulália, sim, senhora!
– Eulália?! Rua! Rua!
E, voltando-se para o marido:
– Pois o senhor tem a pouca vergonha de trazer para casa uma cozinheira com o mesmo nome que eu? Que desaforo!...
– Mas, senhora.
– Cale-se! Não seja burro!
* * *
Creio que o Eusébio está justificado: a morte de D. Eulália não poderia contrariá-lo.
"O Incesto". Drama em 3 atos. Ato primeiro: Jardim. Velho castelo iluminado ao fundo. O cavaleiro jura um casto amor profundo, E a castelã resiste... Um fâmulo matreiro
Vem dizer que o barão suspeita o cavaleiro... Ele foge, ela grita... — Apito! — Ato segundo: Um salão do castelo. O barão, iracundo, Sabe de tudo... Horror! Vingança! — Ato terceiro:
Em casa do galã, que, sentado, trabalha, Entra o barão armado e diz: "Morre, tirano, Que me roubaste a honra e me roubaste o amor!"
O mancebo descobre o peito. — "Uma medalha! Quem ta deu?!" — "Minha mãe!" — "Meu filho!" Cai o pano... À cena o autor! à cena o autor! à cena o autor!
DENÚNCIA INVOLUNTÁRIA
Arthur Azevedo
O Lustosa era muito boa pessoa, mas tinha um defeito: gostava de intrometer-se na vida alheia e bisbilhotar o que se passava em casa dos outros.
Ele observou que uma bonita senhora, que morava defronte da casa dele, na Rua São Francisco Xavier, era regularmente visitada por dois amantes – um, já de meia-idade, gordo, calvo, pesado, feio, e outro, muito novo ainda, bonito e elegante.
O Lustosa imaginou logo, e imaginou muito bem, que o primeiro era o pagador e o segundo o amant de coeur.
O primeiro, além de ser mais velho, tinha uns ares de dono de casa que não enganava a ninguém; as suas visitas eram mais demoradas, duravam às vezes toda a noite; ao passo que o outro aparecia de fugida, e não saía para a rua sem primeiro examinar se não passava alguém.
Ora, aconteceu que, certa noite, achando-se numa soirée familiar em casa de um amigo que fazia anos, o Lustosa foi apresentado ao rapaz, que também lá estava.
A pessoa que fez a apresentação afastou-se, e o nosso indiscreto disse logo ao Peixoto que já o conhecia. O moço chamava-se Peixoto.
– Já me conhecia? De onde? – Perguntou este muito intrigado.
–Da Rua São Francisco Xavier.
– Cale-se! Por amor de Deus, não me comprometa! Eu tenho família, sou casado, e minha mulher está aqui! Olhe, é aquela senhora vestida de azul.
– Pois eu supunha-o solteiro; mas descanse; por mim ninguém saberá.
– Aquilo é um contrabando. São destas coisas em que a gente se mete não sabe como, e de que é muito difícil livrar-se.
– Ora! O amigo ainda está na idade, não acabou ainda de pagar o seu tributo; mas tenha cuidado: sexta-feira passada, quando o senhor entrou, o outro mal tinha acabado de sair! Por mais dois ou três minutos, encontravam-se à porta. Eu moro defronte, e vi tudo por trás da veneziana.
– O senhor disse "o outro". Que outro?
– O dono.
– Como o dono? O dono sou eu!
– Quero dizer: o "marchante".
– Não há outro marchante senão este seu criado! Dar-se-á caso que aquela mulher receba um homem quando eu lá não estou? Dar-se-á que me engane?
– Não! Não creio que ela o engane com um homem feio, que podia ser pai do senhor... um sujeito barrigudo... careca...
O Lustosa reconheceu a asneira que tinha feito, mas era tarde.
– Meu caro senhor, disse o Peixoto, as mulheres são capazes de tudo. Tenho aí um carro à porta. Vou até lá. Quero verificar agora mesmo se sou traído por aquele diabo. A ocasião é excelente. Ela não me espera, porque sabe que vim a esta reunião... minha mulher está distraída... Até logo!
O Peixoto saiu, e pouco depois ouvia-se rodar o carro.
O Lustosa ficou perguntando a si mesmo quando se corrigiria daquele mau costume de intrometer-se na vida alheia.
O Peixoto voltou ao cabo de uma hora, e foi logo ter com ele.
– Obrigado pelo serviço que me prestou. Surpreendi lá dentro o careca em ceroulas. Ela quis me convencer que era um tio. Desavergonhada! Estou livre daquela péla!
– Pois, senhores, disse o Lustosa, dei rata, dei: mas quem podia supor que o senhor, com essa mocidade e com esses olhos, era o marchante, e o outro, com aquela cara, o coió! Decididamente, em se tratando de mulheres, devemos sempre contar com o absurdo e o inverossímil!
DE CIMA PARA BAIXO
Arthur Azevedo
Naquele dia o ministro chegou de mau humor ao seu gabinete, e imediatamente mandou chamar o diretor-geral da Secretaria
Este, como se movido fosse por uma pilha elétrica, estava, poucos instantes depois, em presença de sua excelência, que o recebeu com duas pedras na mão.
- Estou furioso! - exclamou o conselheiro. - Por sua causa passei por uma vergonha diante de sua majestade o imperador!
- Por minha causa? - perguntou o diretor-geral, abrindo muito olhos e batendo nos peitos.
- O senhor mandou-me na pasta um decreto de nomeação sem o nome do funcionário nomeado!
- Que me está dizendo, excelentíssimo...?
E o diretor-geral, que era tão passivo e humilde com os superiores quão arrogante e autoritário com os subalternos, apanhou rapidamente no ar o decreto que o ministro lhe atirou, em risco de lhe bater na cara, e, depois de escanchar a luneta no nariz, confessou em voz sumida:
- É verdade! Passou-me! Não sei como isto foi...!
- É imperdoável esta falta de cuidado! Deveriam merecer-lhe um pouco mais de atenção os atos que têm de ser submetidos à assinatura de sua majestade, principalmente agora que, como sabe, está doente o meu oficial de gabinete!
E, dando um murro sobre a mesa, o ministro prosseguiu:
- Por sua causa esteve iminente uma crise ministerial: ouvi palavras tão desagradáveis proferidas pelos augustos lábios de sua majestade, que dei a minha demissão!...
- Oh!...
- Sua majestade não a aceitou...
- Naturalmente; fez sua majestade muito bem.
- Não a aceitou porque me considera muito, e sabe que a um ministro ocupado como eu é fácil escapar um decreto mal copiado.
- Peço mil perdões a vossa excelência - protestou o diretor-geral, terrivelmente impressionado pela palavra demissão. O acúmulo de serviço fez com que me escapasse tão grave lacuna; mas afirmo a vossa excelência que de agora em diante hei de ter o maior cuidado em que se não reproduzam fatos desta natureza.
O ministro deu-lhe as costas e encolheu os ombros, dizendo:
- Bom! Mande reformar essa porcaria!
O diretor-geral saiu, fazendo muitas mesuras, e chegando no seu gabinete, mandou chamar o chefe da 3ª seção que o encontrou fulo de cólera.
- Estou furioso! Por sua causa passei por uma vergonha diante do sr. ministro!
- Por minha causa?
- O Sr. mandou-me na pasta um decreto sem o nome do funcionário nomeado!
E atirou-lhe o papel, que caiu no chão.
O chefe da 3ª seção apanhou-o, atônito, e, depois de se certificar do erro, balbuciou:
- Queira vossa senhoria desculpar, Sr. diretor... são coisas que acontecem... havia tanto serviço... e todo tão urgente!...
- O Sr. ministro ficou, e com razão, exasperado! Tratou-me com toda a consideração, com toda a afabilidade, mas notei que estava fora de si!
- Não era o caso para tanto...
- Não era caso para tanto? Pois olhe, sua excelência disse-me que eu devia suspender o chefe de seção que me mandou isto na pasta!
- Eu... vossa senhoria...
- Não o suspendo; limito-me a fazer-lhe uma simples advertência, de acordo com o regulamento.
- Eu... vossa senhoria.
- Não me responda! Não faça a menor observação! Retire-se, e mande reformar essa porcaria!
O chefe da 3ª seção retirou-se confundido, e foi ter à mesa do amanuense que tão mal copiara o decreto:
- Estou furioso, Sr. Godinho! Por sua causa passei por uma vergonha diante do Sr. diretor-geral!
- Por minha causa?
- O senhor é um empregado inepto, desidioso, desmazelado, incorrigível! Este decreto não tem o nome do funcionário nomeado!
E atirou o papel, que bateu no peito do amanuense.
- Eu devia propor a sua suspensão por quinze dias ou um mês: limito-me a repreendê-lo na forma do regulamento! O que eu teria ouvido, se o Sr. diretor-geral não me tratasse com tanto respeito e consideração!
- O expediente foi tanto, que não tive tempo de reler o que escrevi...
- Ainda o confessa!
- Fiei-me em que o Sr. chefe passasse os olhos...
- Cale-se!... Quem sabe se o senhor pretende ensinar-me quais sejam as minhas atribuições?!...
- Não, senhor, e peço-lhe que me perdoe esta falta...
- Cale-se, já lhe disse, e trate de reformar essa porcaria!...
O amanuense obedeceu.
Acabado o serviço, tocou a campainha.
Apareceu um continuo.
- Por sua causa passei por uma vergonha diante do chefe da seção!
- Por minha causa?
- Sim, por sua causa! Se você ontem não tivesse levado tanto tempo a trazer-me o caderno de papel imperial que lhe pedi, não teria eu passado a limpo este decreto com tanta pressa que comi o nome do nomeado!
- Foi porque...
- Não se desculpe: você é um contínuo muito relaxado! Se o chefe não me considerasse tanto, eu estava suspenso, e a culpa seria sua! Retire-se!
- Mas...
- Retire-se, já lhe disse! E deve dar-se por muito feliz: eu poderia queixar-me de você!...
O continuo saiu dali, e foi vingar-se num servente preto, que cochilava num corredor da secretaria.
- Estou furioso! Por tua causa passei pela vergonha de ser repreendido por um bigorrilhas!
- Por minha causa?
- Sim; quando te mandei ontem buscar na portaria aquele caderno de papel imperial, por que te demoraste tanto?
- Porque...
- Cala a boca! Isto aqui é andar muito direitinho, entendes? Porque, no dia em que eu me queixar de ti ao porteiro, estás no olho da rua! Serventes não faltam!...
O preto não redargüiu.
O pobre diabo não tinha ninguém abaixo de si, em quem pudesse desforrar-se da agressão do contínuo; entretanto, quando depois de jantar, sem vontade, no frege-moscas, entrou no pardieiro em que morava, deu um tremendo pontapé no seu cão.
O mísero animal que vinha, alegre, dar-lhe as boas-vindas, grunhiu, grunhiu, grunhiu, e voltou a lamber-lhe humildemente os pés.
O cão pagou pelo servente, pelo contínuo, pelo amanuense, pelo chefe de seção, pelo diretor-geral e pelo ministro!...
CONJUGO VOBIS
Arthur Azevedo
A formosa Angelina, filha do Seabra, tinha um namorado misterioso, que via passar todas as tardes por baixo das suas janelas. Era um bonito rapaz, dos seus trinta anos, esbelto, elegante, sempre muito bem trajado, sobrecasaca, chapéu alto, botinas de bico fino, bengala de castão de prata, pincenê de ouro. Limitava-se a cumprimentá-la sorrindo. Ela sorria também, para animá-lo, mas, qual! O moço parecia de uma timidez invencível, e o romance não passava do primeiro capítulo.
– Com certeza, um rapaz bem colocado, pensava Angelina, mas o diabo é que não se explica, e não hei de ser eu a primeira a chegar à fala!
Afinal, um dia, passando, como de costume, ele atirou para dentro do corredor da moça um bilhete em que estavam estas palavras: "Amo-a, e desejava saber se sou correspondido."
No dia seguinte, ele apanhou a resposta, que ela atirou à rua: "Não posso dizer que o amo, porque não o conheço, mas simpatizo muito com a sua pessoa. Diga-me quem é."
* * *
Nessa mesma tarde, por uma dessas fatalidades a que estão sujeitos os corações humanos, o Seabra, pai de Angelina, entrou em casa como uma bomba, esbaforido, carregado com muitos embrulhos, suando por todos os poros, e intimou a esposa e a filha (eram toda a sua família) a fazerem as malas, porque, no dia seguinte, às 5 horas da manhã, partiam para Caxambu.
– Mas isto assim de repente! – Protestou a velha. – Vai ser uma atrapalhação!
– Não quero saber de nada! O médico disse-me que, se eu não partisse imediatamente para Caxambu, era um homem morto! Eu devia até seguir pelo noturno! Estou com uma congestão de fígado em perspectiva!
Angelina ficou desesperada por não ter meios de prevenir o moço e lá partiu para Caxambu, com o coração amargurado.
* * *
Não a lastimem, compadecidas leitoras: com 10 dias de Caxambu Angelina tinha se esquecido completamente do namorado. Isso não foi devido aos efeitos das águas, que não servem para o coração como servem para o fígado, mas à presença de um rapaz que estava hospedado no mesmo hotel que a família Seabra e, em correção e elegância, nada ficava a dever ao outro.
Era um médico do Rio de Janeiro, recentemente formado, moço de talento e de futuro, que, de mais a mais, tinha fortuna própria.
O Seabra, que estava satisfeito da vida, porque o seu fígado melhorava a olhos vistos, acolheu com entusiasmo a ideia de um casamento entre Angelina e o jovem doutor, e era o primeiro a meter-lhe a filha à cara.
Em conclusão, o casamento foi tratado lá mesmo, sob o formoso e poético céu do Sul de Minas, para realizar-se, o mais breve possível, na Capital Federal.
* * *
Regressando das águas, onde se demorou um mês, Angelina viu passar o primeiro namorado, que olhou para ela com uma expressão de surpresa e de alegria, mas a moça fechou o semblante. O semblante e a janela. E, para nunca mais ver passar o importuno, deixou dali em diante de debruçar-se no peitoril.
* * *
No dia do casamento, os noivos, as famílias dos noivos, as testemunhas e os convidados lá foram para a pretoria.
– Tenham a bondade de esperar–- disse-lhes o escrivão. – O doutor não tarda aí.
Sentaram-se todos em silêncio, e, pouco depois, o pretor fazia a sua entrada solene.
Angelina, ao vê-lo, tornou-se lívida e esteve a ponto de perder os sentidos. Ele estava atônito e surpreso. Era o primeiro namorado.
O mísero disfarçou como pôde a comoção, e resignou-se ao destino singular que o escolhia, a ele, para unir a outro à mulher que o seu coração desejava.
* * *
Quando todos os estranhos se retiraram, ficando na sala da pretoria apenas o juiz e o escrivão, este perguntou àquele:
– Que foi isso, doutor? O senhor sofreu qualquer abalo! Não parecia o mesmo! Que lhe sucedeu?
O moço confiou-lhe tudo.
O escrivão, que era um velhote retrógrado e carola, ponderou:
– Ora, aí está um fato que só se pode dar no casamento civil; no religioso, é impossível.
COMO O DIABO AS ARMA!
Arthur Azevedo
O Sr. Paulino era o marido mais irrepreensível desta cidade em que são raríssimos os maridos irrepreensíveis; entretanto (vejam como o diabo as arma!), um dia foi morar mesmo defronte da casa onde ele morava, na Rua Frei Caneca, uma linda mulher, que lhe deu volta ao miolo.
Apesar de casado com uma senhora ainda bonita e frescalhona, mais nova dez anos que ele, que orçava pelos quarenta e tantos, o Sr. Paulino resolveu chegar à fala com a sua encantadora vizinha, que, pelos modos, era livre como os pássaros. Pelo menos, morava sozinha, e recebia de vez em quando visitas misteriosas de três ou quatro sujeitos discretos que, antes de entrar, olhavam para trás, para adiante e para cima, o que era um meio mais seguro de serem observados.
Essas visitas encorajaram necessariamente o Sr. Paulino; mas... como chegar à fala?... Da sua janela, onde ele raras vezes aparecia, limitando-se a espiar a vizinha por trás das venezianas, o pobre namorado jamais se animaria a fazer o menor gesto suspeito. Resolveu, pois, esperar que alguma circunstância fortuita o favorecesse, ou por outra, que o diabo as armasse.
Não tardou a aparecer a circunstância fortuita, que o diabo armou: uma tarde em que o Sr. Paulino voltava do emprego de guarda-livros de uma importante casa comercial, viu passar na Avenida a linda mulher que tanto o impressionara, e acompanhou-a até a estação do Jardim Botânico, onde ela tomou um bonde para o Leme.
O Sr. Paulino, já se sabe, tomou o mesmo bonde e sentou-se ao lado dela, que lhe cedeu gentilmente a ponta. A sujeita, que era matreira, percebeu que tinha sido acompanhada e aplanava o terreno para uma explicação. O guarda-livros cobriu o rosto com A Notícia e, fingindo que estava lendo, murmurou:
– Preciso muito falar-lhe.
– Pois fale – respondeu ela fazendo com o leque o mesmo que o outro fazia com a rósea folha vespertina.
– Aqui não; em sua casa. Quando há de ser?
– Quando quiser.
– Amanhã?
– Amanhã, seja! Sabe onde é?
– Sei; mas só poderei lá ir depois das dez horas da noite, quando a rua estiver completamente deserta.
– Por quê?
– Depois lhe direi.
– Bom. Esperá-lo-ei às dez e meia.
– Adeus!
– Até amanhã!
E o Sr. Paulino saltou no Largo da Lapa.
No dia seguinte, à hora indicada, o guarda-livros entrava em casa da vizinha, cuja porta achou entreaberta.
– Mas por que todo este mistério? – Perguntou a tipa, que o recebeu como se o conhecesse de longos anos.
– É porque moram ali defronte uns conhecidos meus.
– Quem? O tal Paulino?
– Conhece-o?
– De nome apenas; nunca o vi. Querem ver que também você gosta da mulher dele?
– Da mulher de quem?... Do Paulino?...
– Sim, faça-se de novas! Aquela é pior do que eu!
– Mas de que Paulino fala a senhora? – Perguntou o pobre homem, já trêmulo e agitado.
– Do Paulino que mora ali defronte. A ele nunca o vi, mas tenho visto os amantes da mulher!
– Os amantes da mulher?!...
– Sim, coitado. É ele a sair de casa, e os outros a entrar!...
– Os outros?... Então são muitos?!...
– Mais de um é, com certeza... já vi dois: um rapaz alto, louro, rosado, elegante.
– Deve ser o Gouveia!
– E o outro baixinho, cheio de corpo, de bigode e pera, pincem azul...
– Deve ser o Magalhães! Dois amigos!...
E o Sr. Paulino caiu desalentado numa cadeira. Tudo lhe andava à roda. Sentia as faces em fogo. Receou uma congestão cerebral. A mulher notou que ele estava incomodado, e foi buscar água-de-colônia, que o reanimou.
– Fui, talvez, indiscreta, disse ela; o tal Paulino é seu amigo, e você não sabia...
– O tal Paulino sou eu, minha senhora; sou eu em carne e osso, e agradeço-lhe a informação. Se não viesse à sua casa, jamais saberia o que se passa na minha, e continuaria a ser um marido ridículo sem o saber! Para alguma coisa me serviu essa aventura amorosa!
E o Sr. Paulino saiu sem exigir da vizinha, atônita, outra coisa além de um copo d'água.
No dia seguinte pôs a mulher fora de casa, e cortou a chicote a cara do Gouveia. O Magalhães escondeu-se e não foi encontrado, mas não perde por esperar.
Ora, aí têm como o diabo as arma!
Arthur Azevedo
Algum tempo antes de entrar definitivamente, na vida prática, o bacharel Sesostris, que hoje é pai de família e magistrado, teve as suas veleidades literárias, e topava a tudo; poesia, conto, folhetim, romance e teatro.
Foi o manuscrito da sua primeira e única peça que o introduziu na caixa de um teatro, e o aproximou de Rosalina, que das nossas atrizes era naquele tempo a primeira em beleza e a última em talento. Essa Rosalina, que o empresário conservava no elenco da companhia em atenção unicamente às suas virtudes plásticas, casara-se com um ator por seu turno ali conservado tão somente por ser marido dela.
Dizer que era uma segunda Penélope no tocante à fidelidade conjugal seria faltar descaradamente à verdade que devo aos leitores das minhas historietas; pelo menos as más línguas, e mesmo as boas, não a poupavam: mais de um frequentador habitual do teatro onde ela se exibia era apontado como tendo solicitado, e obtido os seus favores mais íntimos.
O bacharel Sesostris foi convidado pelo empresário para fazer a leitura da peça uma tarde, no palco, depois do ensaio e a hora aprazada, sentou-se diante de uma pequena mesa rodeado de quase toda a companhia, e abriu um manuscrito.
Ia em meio o primeiro ato, ouvido em silêncio com um recolhimento digno de uma tragédia, quando o comediógrafo sentiu que do joelho de Rosalina, sentada à sua direita, se desprendia um calor comunicativo que o perturbava. Sabe Deus como pôde o rapaz concluir a leitura daquele primeiro ato!
Durante o segundo, continuaram as manifestações equivocas, ou antes, inequívocas, e o bacharel, suando frio, tremendo, gracejando, deixava que se perdessem todos os efeitos cômicos das situações e do diálogo. Os ouvintes, cada vez mais frios e reservados, atribuíam a indisposição do leitor à impressão terrível de se achar ali submetido à opinião e ao julgamento de tantas sumidades artísticas.
Durante o terceiro ato, Rosalina completou com o pé – um pé pequenino, admiravelmente calçado –a obra de sedução que principiara com o joelho.
Terminada a leitura o empresário, que durante os dois primeiros atos a interrompera com significativos e irreverentes bocejos, e agora dormia a sono solto, despertou logo que ouviu as consoladoras palavras: "cai o pano", e disse ao comediógrafo:
– Sim, senhor, é uma bonita comédia... mas não é para o meu teatro... é muito fina, tem pouca bexigada... Entretanto, não digo que a não represente... hei de representá-la, mas quando o teatro estiver mais encarreirado. O doutor tem muito talento: escreva outra comédia, mas com sal mais grosso, com sal de cozinha.
– De cozinha?!
– De cozinha, sim senhor! Isto de sal fino não traz dez réis à bilheteria!
O bacharel Sesostris, que tinha a inestimável fortuna de contar apenas vinte e dois anos, deixou-se iludir; mas, quando mesmo recebesse, como dramaturgo, um desengano formal, que lhe importava, se Rosalina, a formosa Rosalina, tão cobiçada por todos os homens, ali estava para consolá-lo das medonhas lutas de autor incipiente?
Quando o empresário acabou de lhe recomendar o sal grosso, ele voltou-se e procurou-a com os olhos: ela desaparecera, sem ao menos dizer-lhe adeus...
Dali por diante, o bacharel entrou a frequentar a caixa do teatro, e especialmente o camarim de Rosalina; esta, porém, não renovou as manifestações do joelho e do pé, como se resolvida estivesse a mostrar ao moço que ele não podia subir mais alto...
Figurava na companhia um velho ator que se dizia muito amigo de Sesostris, e lhe captara a confiança; este escolheu-o para confidente dos seus amores, e contou-lhe as provocações da atriz.
O velho ator sorriu maliciosamente.
– Como se explica - perguntou o bacharel – que essa mulher depressa mudasse de sentimento a meu respeito?
– Explica-se perfeitamente: você ia ler uma comédia e ela queria apanhar o primeiro papel. Desde o momento em que percebeu a peça não seria representada, fez tanto caso de você como da primeira camisa que vestiu.
– Então se a comédia fosse aceita...?
– Se a comédia fosse aceita, a Rosalina seria sua! E só assim poderia tê-la de graça – aquilo é mulher de dinheiro.
Passaram-se três meses, e o teatro longe de se encarreirar como esperava o empresário, entrou numa dessas crises tão comuns na vida nossos teatros. Depois de cinco ou seis desastres, o público afastou-se e o empresário deixou de pagar regularmente aos artistas. A situação era desesperada.
Rosalina e o marido sofreram como os demais, considerando-se felizes quando apanhavam dez ou vinte mil-réis por conta dos vencimentos atrasados.
Foi nestas circunstâncias que o pé e o joelho da atriz voltaram a perturbar o sossego do bacharel Sesostris.
A opinião do velho ator não a desmerecera no espírito do moço; aos vinte e dois anos o coração é cego para os defeitos da mulher por quem palpita, e quando por ventura resolva analisá-los, acaba verificando que são qualidades e não defeitos.
Uma noite, Sesostris, ao despedir-se dela, deixou-lhe nas mãos bilhete pedindo-lhe uma entrevista, e dizendo-lhe que na noite seguinte, durante o espetáculo, iria buscar a resposta ao camarim.
E foi.
A atriz deixou sair o cabeleireiro que a penteava, e disse ao namorado:
– Seja prudente! Nem uma palavra sobre o assunto do seu bilhete.
– Mas... a resposta?
– Disfarce... Está ali sobre a janela... por baixo do pratinho da moringa... Faça de conta que vai beber água... Olhe que a porta do camarim está aberta, e há por aí muita gente desconfiada da sua assiduidade.
Sesostris disfarçou, foi ao lugar da moringa, levantou o pratinho, encontrou o bilhete, meteu-o na algibeira, conversou ainda alguns momentos, em voz alta, sobre o calor, a falta do público, etc... e saiu, impaciente por ler a desejada resposta.
Para fugir a quaisquer olhares indiscretos, meteu-se no mictório do teatro e foi ali, meio sufocado pelas exalações amoniacais, que leu o seguinte:
"Doutor. – Antes de responder ao seu amável bilhete, quero merecer-lhe um grande obséquio. Como sabe, a empresa está nos devendo três quinzenas, o dia 15 está na porta, e é provável que ainda desta vez fiquemos a ver navios, porque o teatro não tem feito nada. Estamos na miséria. Embora isto muito me custe, peço-lhe que nos mande, amanhã, para a nossa casa, que o doutor sabe onde é, os mantimentos constantes da inclusa lista, e que são para a nossa despensa. Desculpe o incômodo e creia na amizade da sua – Rosalina."
A esta carta inverossímil, estava, efetivamente anexa, uma lista de secos e molhados - tantos litros de feijão, tantos quilos de carne-seca, etc. Nada faltava: azeite, macarrão, azeitonas, vinho, pacotes de velas, lamparinas, manteiga, o diabo!
No dia seguinte parava uma carroça à porta de Rosalina, levando todos esses comes e bebes; mas o bacharel Sesostris, apesar dos seus vinte e dois anos, entendeu que nunca mais deveria aparecer àquela estúpida.
(Do livro Contos Cariocas)
CHICO
Arthur Azevedo
Um dia o Chico, moço muito serviçal, muito amigo do seu amigo, foi chamado à casa do Dr. Miranda, que o conhecia desde pequeno, e abusava sempre do seu caráter obsequioso e humilde.
- Mandei-te chamar, meu rapaz, para te incumbir de uma comissão que só tu poderás desempenhar a meu gosto.
- Estou às suas ordens.
- Conheces a Maricota, minha irmã. É uma tola que, em rapariga, enjeitou bons casamentos, sempre à espera de um príncipe, como nos contos de fadas, e agora, que vai caminhando a passos agigantados para os quarenta, embeiçou-se por um tipo que costuma passar cá por casa e nem ela, nem eu, sabemos quem é.
- Ele chama-se...?
- Alexandrino Pimentel. É o nome com que assinou a carta, assaz lacônica, em que declarou à Maricota que a amava e desejava ser seu esposo. Já me disseram - e é tudo quanto sei a seu respeito - que esteve empregado na estrada de ferro, onde não esquentou lugar. Preciso de mais amplas e completas informações a respeito desse indivíduo e, para obtê-las, lembrei-me de ti que és esperto e conheces meio mundo.
O Chico dissimulou uma careta.
- Minha irmã, continuou o Dr. Miranda, já fez 37 anos, mas é minha irmã, e eu, como chefe de família, farei o possível para evitar que ela se ligue a um homem que não seja um homem de bem, não achas?
- Certamente.
- Portanto, meu rapaz, peço-te que indagues e me venhas dizer quem é, ao certo, esse Alexandrino Pimentel, que quer ser meu cunhado. Peço-te igualmente que desempenhes essa comissão com a brevidade possível, pois uma senhora de 37 anos, quando lhe falam em casamento, fica assanhada que nem um macaco a quem se mostra uma banana.
O Chico pôs-se a coçar a cabeça e não disse nada. Bem sabia quanto era espinhosa tal comissão, mas não tinha forças para recusar os seus serviços a pessoa alguma, e muito menos ao Dr. Miranda, que era o seu médico, já o havia sido de seus pais e nunca lhes mandara a conta.
- Está dito?
- Está dito. Vou indagar quem é o tal Alexandrino Pimentel, e pode contar que dentro de três ou quatro dias terá os esclarecimentos que deseja.
No mesmo dia, o Chico foi ter com um velho camarada, empregado antigo da Central, e perguntou-lhe se conhecia um sujeito que ali tinha estado algum tempo, chamado Alexandrino Pimentel.
- Um bêbado! - respondeu prontamente o outro.
- Bêbado?
- Bêbado, sim! Foi por isso que o Passos o pôs na rua!
- Mas não se terá corrigido?
- Não sei; nunca mais ouvi falar nele. Quem te pode informar com segurança é o Trancoso. - Sim, que ele era casado com a filha do Trancoso, por sinal que não se dava com o sogro.
- Casado?
- Casado, sim!
- Quem é esse Trancoso?
- Um ex-colega meu, aposentado há uns quatro anos. Mora lá para os lados de Inhaúma.
- Podes dar-me um bilhete de apresentação para ele?
- Pois não!
No dia seguinte o Chico estava em Inhaúma, à procura do tal Trancoso, que já lá não morava; havia seis meses que se mudara para Copacabana, onde adquirira uma casinha; entretanto o pobre rapaz não esmoreceu diante de uma tremenda maçada, e no outro dia, depois de duas horas de indagações, batia à porta do Trancoso.
Veio abrir-lha um velho asmático, envolvido numa capa, lenço de seda ao pescoço, carapuça enterrada até às orelhas, barba por fazer, cara de poucos amigos.
Quando o Chico pronunciou o nome de Alexandrino Pimentel, o velho enfureceu-se, gritando que nada tinha de comum com "esse bandido"!
- Mas não é ele seu genro?
- Foi por desgraça minha, mas já o não é, pois deu tantos desgostos à minha filha, que a matou!
- Eu desejava apenas tomar algumas informações a respeito desse homem. Trata-se de coisa grave. Ele pretende casar-se em segundas núpcias, e foi a família da noiva que me pediu para...
- Pois, meu caro senhor, as informações que lhe tenho a dar são as seguintes: o sujeito de quem se trata é malandro, bêbado, devasso jogador e bruto. Bruto a ponto de bater, como batia na sua própria mulher! Se a tal senhora, com quem ele se pretende casar, quiser passar fome e ser armazém de pancada, não poderá escolher melhor! E agora, meu caro amigo, que tem as informações que desejava, passe muito bem! Deixe-me em paz, porque sou doente, e as visitas aborrecem-me!...
Dizendo isto, o velho foi empurrando o Chico para a porta da rua.
Este saiu perfeitamente edificado a respeito de Alexandrino Pimentel, mas, ao ar livre, refletiu que todas essas informações, partindo de um homem tão apaixonado e tão grosseiro, poderiam ser, pelo menos até certo ponto, injustas; por isso pôs-se de novo em campo e, indaga daqui, pergunta dacolá, chegou, depois de conversar com dez ou doze pessoas fidedignas, à firme convicção de que tudo aquilo era a pura expressão da verdade.
Essas pesquisas tomaram-lhe mais tempo do que três ou quatro dias dentro dos quais prometera voltar à casa do Dr. Miranda. Quando voltou, já os amores de Maricota e Alexandrino haviam assumido proporções consideráveis, e o Dr. Miranda tinha revelado à irmã que o obsequioso Chico se incumbira de tomar informações a respeito do pretendente.
- Que diabo! Julguei que você não me aparecesse mais. - exclamou o médico ao ver então o seu cliente gratuito.
- A coisa deu mais trabalho do que eu supunha, e eu não quis fazer nada no ar. Trago-lhe informações seguras!
- Boas ou más?
- Péssimas.
O Dr. Miranda chamou a irmã, que acudiu logo.
- Olha, Maricota, aqui tens o Chico; vai dizer-nos quem e o teu Pimentel.
- Pois diga! - resmungou Maricota com um olhar zangado, adivinhando os horrores trazidos pelo Chico.
Este voltou-se para o Dr. Miranda e disse-lhe:
- O senhor coloca-me numa situação difícil. Julguei que isto não passasse de nós dois, mas agora, em presença de D. Maricota, sinto-me acanhado e receoso, porque não posso dizer senão a verdade, e a verdade é muito desagradável.
- Minha irmã é a principal interessada neste assunto, redarguiu o doutor, e deve até agradecer-lhe o trabalho que você teve com esse inquérito. O seu dever de amigo está cumprido; ela que o ouça e faça o que entender; é senhora das suas ações.
O Chico, arrependido já de se haver metido naquele incidente de família, contou minuciosamente as diligências que fizera e o resultado a que chegara.
Quando ele acabou o relatório:
- Tudo isso é calúnia, calúnia, calúnia torpe! - bradou Maricota, fula de raiva e batendo o pé. - E quando seja verdade, gosto dele. Ele gosta de mim, e havemos de ser um do outro, venha embora o mundo abaixo!
Não houve palavras que a convencessem de que tal casamento seria um desastre. Diante da vergonha, com que ela ameaçou o irmão de sair de casa para ir ter com o seu amado, o Dr. Miranda curvou a cabeça, e o casamento fez-se.
Fez-se, e não há notícia de casal mais venturoso!
Alexandrino, que se empregara numa importante casa comercial, era um marido solícito, dedicado, carinhoso e previdente; não ia a passeio ou a divertimento sem levar Maricota; não bebia senão água; não jogava senão a bisca em família - e todas essas virtudes eram naturalmente realçadas pela terrível perspectiva de que ele seria o contrário.
- Maricota apanhou a sorte grande! - diziam os amigos e parentes, inclusive o Dr. Miranda.
Este, desde que as virtudes do cunhado se manifestaram, começou a tratar com frieza o informante.
O pobre Chico perdeu o amigo e o médico, foi odiado por Maricota por ter pretendido frustrar a sua aventura, e o regenerado Pimentel, quando soube da comissão que ele desempenhara, segurou-o um dia com as duas mãos pela gola do casaco, e sacudiu-o dizendo-lhe:
- Eu devia quebrar-te a cara, miserável, mas perdôo-te, porque és um desgraçado!.
Moralidade do conto: ninguém se meta na vida alheia, principalmente quando se trate de evitar um casamento serôdio.
CAVAÇÃO
Arthur Azevedo
Naquela manhã, o Saldanha estava desesperado: não havia quinze dias que lhe entrara na algibeira, inesperadamente, uma bela nota de quinhentos mil-réis, e já não lhe restava um níquel desse dinheiro!
É verdade que ele passou uma semana de patuscadas, uma semana cheia! A inesperada fortuna coincidira com o aniversário natalício de um dos pequenos, o Nhô-nhô, e tinha havido peru de forno e até champanhe à mesa! Que diabo, um dia não são dias!
O semiconto-de réis voou, sem que o imprevidente Saldanha empregasse dez tostões em qualquer coisa útil. A conta da venda – uma conta de cabelos brancos – ficou por pagar, não se comprou um trapinho para as crianças, tão precisadas de roupa!
O dinheiro viera das mãos de certo negociante da rua da Alfândega, que encomendara ao Saldanha uma série de artigos metendo à bulha uma companhia em liquidação, isto é, os respectivos liquidantes. O nosso homem, que tinha dedo para essa espécie de literatura, fez obra asseada: as descomposturas produziram o desejado efeito. O prosador contava com cem mil-réis. Recebeu quinhentos.
Foi um delírio! O Saldanha subiu radiante a rua do Ouvidor, com cócegas de comprar tudo quanto via exposto nos mostradores das lojas. Parou durante cinco minutos diante de um gramofone. – Que surpresa seria para a pequenada! – Mas resistiu e passou. Foi esse o único movimento bom que teve depois de endinheirado.
E assim vivia o pobre-diabo, desde que, por negligente e ocioso, perdera sucessivamente dezenove empregos e desesperara de obter o vigésimo. Era um boêmio incorrigível, um desgraçado, que chegara aos trinta e oito anos sem uma onça de juízo.
Um dia em que lhe pareceu, e pareceu a todos, que estava definitiva e solidamente arrumado num cartório de tabelião, o Saldanha casou-se com uma pobre moça a quem fazia versos, e não de pé quebrado, porque para esse outro gênero de literatura também não lhe faltavam aptidões.
Tanto assim que, durante muito tempo, viveu quase exclusivamente dos seus Gemidos sonoros, coleção de poesias, cujos dois mil exemplares passou um a um pelos parentes, amigos, conhecidos e desconhecidos, dizendo sempre que fazia aquilo apenas para pagar as despesas de impressão, pois não mercadejava a sua musa.
Depois de esgotada completamente a edição, o Saldanha, frequentador assíduo de todas as lojas de alfarrábios, comprava por baixo preço quantos exemplares, e não eram poucos, apareciam, e vendia-os no bairro comercial, aos negociantes dinheirosos.
O expediente dava o melhor resultado, porque o poeta, frenólogo intuitivo, conhecia pela cara, ou, segundo a sua própria expressão, "pela pinta", esses mecenas fortuitos, e, além disso, aprendera de cor uma infinidade de lábias para impingir o volume. Ou por esses motivos, ou porque as pessoas a quem se dirigia quisessem se ver livres de um importuno, a colheita era certa.
Note-se que ninguém duvidava da identidade do poeta, porque o seu retrato lá estava, litografado pelo A. de Pinho, e parecidíssimo, na primeira página dos Gemidos sonoros.
Entretanto, esse ardiloso manejo era como o enlevo d'alma da linda Ignez: não podia durar muito. Os volumes, à força de viajar dos primitivos donos para os alfarrabistas, dos alfarrabistas para o Saldanha, do Saldanha para os protetores das letras nacionais, e destes outra vez para os alfarrabistas, ficaram tão ensebados ("fatigados", como se diz em linguagem bibliográfica), que já não havia meio de lhes dar saída.
Por isso, a mais séria, a mais firme preocupação do industrioso Saldanha era que uma nova edição dos Gemidos fizesse gemer os prelos. Por conta dele, já se sabe, porque não havia editor que se arrojasse à empresa. E essa preocupação de tal modo absorvia, que ele absolutamente não pensava noutra coisa e vivia de expedientes.
Como já ficou dito, naquela manhã o Saldanha estava desesperado. Durante os três últimos dias, ele, a mulher e os quatro filhos tinham-se alimentado com as derradeiras cinco patacas, melancólicos vestígios dos quinhentos mil-réis. O homem da venda já lhe não fiava mais nada. A cozinheira abandonara-os.
O autor dos Gemidos sonoros saiu de casa sem um vintém, dizendo: – Vou cavar! – E baixou à cidade a pé. Morava lá para os lados de Estácio de Sá.
Parecia uma fatalidade! Todas as bolsas a que recorreu encontrou implacavelmente fechadas. Já tantas vezes tinham servido.
Não teve coragem de pedir cinco mil-réis ao negociante que dias antes remunerara com tanta liberalidade a sua prosa agressiva. Chegou a penetrar no escritório do capitalista, mas limitou-se a comer-lhe o almoço – e comeu-o com remorsos, porque tinha deixado em casa a prole a fazer cruzes na boca.
Sem ser bom pai, pois ninguém pode ser bom pai sem ter juízo, o Saldanha era meigo e carinhoso para os filhos. Pudesse ele e comeriam todos em pratos de ouro. Em se apanhando com dinheiro, corria logo para casa, embora pelo caminho fosse esbanjando algum em companhia dos gaudérios que topava.
Depois do almoço, abundantemente regado por um magnífico virgem "vindo diretamente", o Saldanha atirou-se de novo ao terrível trabalho de "cavação". Passaram-se duas, passaram-se três horas, e nada, nada, nada! E os pequenos sem comer!
Ás três e meia, com o cérebro ainda escaldado pelo vinho do almoço, derreado por um calor sufocante, suando por todos os poros, o boêmio sentou-se extenuado nos degraus do chafariz do Largo do Paço, e aí, pela primeira vez na sua vida errante, atravessou-lhe o espírito a ideia nítida da dolorosa situação em que se achava. A miséria apresentou-se diante dos seus olhos com um aspecto até aquele momento estranho à sua percepção moral, e a lembrança do seu inútil passado o oprimiu tanto que as lágrimas lhe saltaram aos olhos.
Passavam, na direção das barcas de Niterói, muitos homens apressados, e o Saldanha notando que raro era aquele que não levava um embrulho enfiado no dedo.
– É para os filhos, pensava; são homens que trabalham, que têm como eu poderia ter, o ordenado certo no fim do mês... Não são ociosos nem boêmios, como eu...
Ideias negras acudiram-lhe em tropel ao cérebro avinhado, produzindo febre. As horas correram sem que ele desse fé, subjugado como estava pelo sofrimento. Numa espécie de delírio, ouvia apenas rumor – o choro dos filhos.
Quando saiu desse torpor, caía a tarde. O lusco-fusco envolvia o mar e os lados da Tijuca estavam coloridos por um crepúsculo de fogo.
As pernas trôpegas, a cabeça pesada, a língua seca, o Saldanha levantou-se com a firme resolução de tomar uma barca e, chegando ao meio da baía, atirar-se ao mar.
– É o melhor que tenho a fazer; a minha gente achará quem a ampare melhor do que eu. Os órfãos mais infelizes são os que têm pai...
Depois dessa reflexão filosófica, ele encaminhou-se para a estação das barcas, e só então se lembrou de que não tinha dinheiro para a passagem; avistou, porém, um sujeito que levava à mesma direção, e dizendo consigo: “vou cavar pela última vez", dirigiu-se ao transeunte com toda a resolução:
– O cavalheiro dispõe de trezentos réis? Não tenho dinheiro comigo, estou doente, e seria para mim um grande transtorno perder esta barca.
O outro mediu-o de alto a baixo, fez uma careta, introduziu dois dedos no bolso do colete, hesitou, arrependeu-se, enfiou a mão na algibeira do casaco, tirou um caderninho de cupons de passagens, destacou um deles, e deu-o ao Saldanha, com uma expressão no rosto em que se lia perfeitamente o seguinte: "A mim não me enganas tu; com este pedacinho de papel não irás beber."
O boêmio agradeceu, sorrindo tristemente à ideia de que o tal pedacinho de papel era o seu passaporte para a eternidade.
O sujeito seguiu o seu caminho, e ele ia seguir também quando viu no chão outro pedaço de papel, de maiores dimensões, dobrado em quatro, que lhe pareceu – oh, fortuna – uma nota de banco.
Apanhou-o. Era, efetivamente, uma nota de cem mil-réis.
Trêmulo, nervoso, abriu a nota, percorreu-a no verso e no reverso, e, desconfiado de uma alucinação dos sentidos, examinou-a à luz de um lampião aceso naquele instante.
Depois, meteu-a no bolso, e "tocou à toda" para a rua do Ouvidor, lépido, contente, como se momentos antes não se houvesse representado um drama dentro de sua alma.
Entrou no Café do Rio, onde ofereceu cerveja a alguns amigos depois, na Confeitaria Pascoal, arranjou um opulento farnel de comes e bebes: frangos assados, empadinhas, doces, vinho do Porto, etc.
Tomou um tílburi no 1argo de são Francisco, e ao chegar perto de casa, ainda na rua, gritou como um possesso:
- Terezinha! Cota! Chiquinha! Nhô-nhô! Eduardinho! Aqui estou eu, aqui está papai com um banquete opíparo! Toca a música!
Foi um alvoroço em casa. Era de ver toda aquela criançada a com os olhos ainda vermelhos de tanto chorar.
O Saldanha abriu o embrulho na sala de jantar e, com um ar vitorioso, espalhou a comezaina sobre a mesa.
– Mas dize-me: como foi que tu... – ia perguntar a esposa.
– Come! come! Interrompeu o marido; come, depois te contarei. Dá cá dali o saca-rolhas!
E desarrolhando com um estouro alegre a garrafa de vinho do Porto:
– Ah, Terezinha! Decididamente sou a criatura mais feliz que o céu cobre!
E durante três dias o Saldanha não "cavou".
(Do livro Contos Cariocas)
Arthur Azevedo
I
– Oh! Secundino!
– Oh! Borges!
– Tu no Rio de Janeiro!
– Há oito dias.
– Vieste a passeio?
– Não, meu amigo; vim tocado pela desgraça.
– Pela desgraça?
– “Desgraça” é talvez forte demais. Pelo caiporismo, se quiseres.
– E és tão caipora assim?
– Pertenço ao número dos tais que caem de costas e quebram o nariz!
– Oh, diabo! Entremos neste café, e, enquanto tomamos alguma coisa, conta-me qual tem sido a tua vida nestes doze anos de ausência.
Passava-se isto na rua do Ouvidor, em frente ao Pascoal. Os dois amigos e comprovincianos entraram no Café do Rio, e sentaram-se a uma das mesas.
II
– A minha vida, principiou Secundino, resume-se numa palavra: miséria. Quando vieste da Vitória e lá me deixaste, eu era ainda, por bem dizer, uma criança. Vivia em casa de minha família, onde nada me faltava. Morreu meu pai, morreu minha mãe, minhas irmãs casaram-se, e eu fiz-me sócio de uma loja de fazendas. Ao fim de seis meses, abriram-me falência. Saí com uma mão atrás e outra adiante, e fui ser caixeiro de um bruto, um ingrato, que, ao fim de oito anos, em vez de me dar sociedade, passou a casa a um sujeito meu desafeto. Desgostoso, abandonei o comércio e quis ser empregado público. Apresentei-me em quatro concursos, e, apesar de bem classificado, não consegui que me nomeassem. Fundei uma folha, que acabou logo por falta de assinantes. Contratei casamento com a filha de um fazendeiro rico de S. Mateus, e a minha querida noiva, que me estimava muito, morreu um mês antes do dia marcado para o casamento. Afinal, desesperado, baldo inteiramente de recursos, aceitei um lugar de contínuo na Tesouraria da Fazenda...
-Tu?! Com as tuas habilitações?!
– É para que vejas, respondeu Secundino com lágrimas na voz. Mas isso mesmo foi considerado muito para mim. Demitiram-me acintosamente por não ter votado no candidato oficial nas últimas eleições. Resolvi então vir para o Rio de Janeiro, ao Deus dará... Arranjei duzentos e tantos mil réis, vendendo tudo o quanto possuía, e aqui estou sem emprego, sem esperanças, sem promessa, sem relações, e com sessenta mil réis no bolso. É tudo quanto me resta da minha fortuna.
– Pois bem, ofereço-te um emprego.
– Deveras?
– Oh! Não é coisa para arregalares desse modo os olhos. É um biscate, que te pode servir enquanto não arranjar coisa melhor.
– Tudo me serve, meu amigo: a minha situação é desesperadora.
– Pois bem. Conheces a viúva Salgado?
– Não conheço aqui ninguém.
– Tens razão. A viúva Salgado é uma senhora riquíssima. Tem duas filhas. Quer que elas saibam francês, inglês, e me incumbiu de contratar um professor que lhe dê lições em casa, duas vezes por semana, ganhando cento e vinte mil réis mensais.
– Mas é uma pechincha!
– Não tens que perder tempo. Aqui está um cartão meu para te apresentares hoje mesmo, agora mesmo, se quiseres, em casa da viúva Salgado.
– Onde é?
– - Rua do Catete.
– Número?
– Não sei o número, mas o condutor te indicará a casa. Não há quem não conheça a viúva Salgado. Olha, toma-se o bonde ali defronte e para-se mesmo na porta. Sabes onde é o Ministério dos Estrangeiros?
– Não.
– Conheces o Palácio de Nova Friburgo? Deves conhecer, que diabo! Já tens oito dias de Rio de Janeiro!
– Conheço.
– Pois é nessas imediações; quase defronte.
– Já sei pouco mais ou menos onde deve ser.
– Pois vai tomar o bonde, e sê feliz.
Daí a dois minutos, Secundino partia para a rua do Catete.
III
O bonde parou no largo da Carioca.
Uma senhora de meia idade, muito gorda, muito feia, mas luxuosamente vestida, aproximou-se para entrar no carro. Havia um único lugar desocupado ao pé de Secundino. Este encolheu-se todo para deixar entrar a senhora, que só a muito custo conseguiu abrir caminho entre os joelhos do provinciano e o banco da frente. Depois de sentada, a senhora gorda encarou o seu vizinho com um olhar cheio de ódio, e disse bem alto, para que todos ouvissem:
– Com efeito! Sempre há sujeitinhos muito malcriados!
E repetiu, depois de alguns segundos:
– Sujeitinhos muito malcriados!
– Isso é comigo, minha senhora? – Perguntou Secundino timidamente.
– Pois com quem há de ser? Se fazia tanto empenho em ficar na ponta do banco, devia levantar-se um instantinho para deixar-me passar sem me magoar as pernas nem amarrotar o vestido! Ora vejam como ficou esta saia!
– Minha senhora, quem não quer se sujeitar a estas contrariedades não anda de bonde: aluga um carro.
– Cale-se! Não seja insolente! Você responde assim por ver que não tenho um homem a meu lado.
E a senhora gorda percorreu com os olhos todos os passageiros do bonde, na esperança de que algum tomasse as dores por ela.
– O meu caiporismo! – Refletiu Secundino. E, enfiado, apeou-se no largo da Mãe do Bispo.
IV
Veio outro bonde. O provinciano entrou nele, e um quarto e hora depois, subia a escada da viúva Salgado. Calcou o botão de uma campainha elétrica. Veio um copeiro encasacado. Secundino entregou o cartão do seu amigo Borges, e esperou.
Daí a cinco minutos abriram-lhe a porta da sala, uma sala opulenta, atapetada com luxo, mobiliada suntuosamente, cheia de quadros e quinquilharias.
Esperou meia hora. Rasgou-se afinal, um reposteiro de seda, e apareceu a dona da casa.
A viúva, mal encarou Secundino, gritou, cheia de surpresa e de cólera:
– Pois é você, seu malcriado?! E eu que supunha ser o senhor Borges! Ponha-se já, já no olho da rua! Já!...
Secundino reconheceu na viúva Salgado a senhora gorda do bonde. Saiu da sala precipitadamente e desceu a escada aos pulos. Só respirou na rua.
Foi, realmente, muito caiporismo!
(Do livro Contos Fora da Moda)
BLACK
Arthur Azevedo
(Grafia original)
Leandrinho, o moço mais elegante e mais peralta do bairro de São Cristóvão, freqüentava a casa do Senhor Martins, que era casado com a moça mais bonita da rua do Pau-Ferro.
Mas, por uma singularidade notável, tão notável que a vizinhança logo notou, Leandrinho só ia à casa do Senhor Martins quando o Senhor Martins não estava em casa.
Esperava que ele saísse e tomasse o bonde que o transportava à cidade, quase à porta da sua repartição; entrava no corredor com a petulância do guerreiro em terreno conquistado, e Dona Candinha (assim se chamava a moça mais bonita da rua do Pau-Ferro) introduzia-o na sala de visitas, e de lá passavam ambos para a alcova, onde os esperava o tálamo aviltado pelos seus amores ignóbeis.
A ventura de Leandrinho tinha um único senão: havia na casa um cãozinho de raça, um bull-terrier, chamado Black, que latia desesperadamente sempre que farejava a presença daquele estranho.
Dir-se-ia que o inteligente animal compreendia tudo e daquele modo exprimia a indignação que tamanha patifaria lhe causava.
Entretanto, o inconveniente, foi remediado. A poder de carícias e pães-de-ló, a pouco e pouco logrou o afortunado Leandrinho captar a simpatia de Black, e este, afinal, vinha aos pulos recebê-lo à porta da rua, e acompanhava-o no corredor, saltando-lhe às pernas, lambendo-lhe as mãos, corcoveando, arfando, sacudindo a cauda irrequieta e curva.
As mulheres viciosas e apaixonadas comprazem-se na aproximação do perigo; por isso, Dona Candinha desejava ardentemente que Leandrinho travasse relações de amizade com o Senhor Martins.
Tudo se combinou, e uma bela noite os dois amantes se encontraram, como por acaso, num sarau do Clube Familiar da Cancela. Depois de dançar com ele uma valsa e duas polcas, ela teve o desplante de apresentá-lo ao marido.
Sucedeu o que invariavelmente sucede. A manifestação da simpatia do Senhor Martins não se demorou tanto como a de Black: foi fulminante.
Os maridos são por via de regra menos desconfiados que os bull-terriers.
O pobre homem nunca tivera diante de si cavalheiro tão simpático, tão bem-educado, tão insinuante. Ao terminar o sarau, pareciam dois velhos amigos.
À saída do clube, Leandrinho deu o braço a Dona Candinha, e, como "também morava para aqueles lados", acompanhou o casal até a rua do Pau-Ferro.
Separaram-se à porta de casa.
O marido insistiu muito para que o outro aparecesse. Teria o maior prazer em receber a sua visita. Jantavam às cinco. Aos domingos um pouco mais cedo, pois nesses dias a cozinheira ia passear.
- Hei de aparecer - prometeu Leandrinho.
- Olhe, venha quarta-feira - disse o Senhor Martins. - Minha mulher faz anos nesse dia. Mata-se um peru e há mais alguns amigos à mesa, poucos, muito poucos, e de nenhuma cerimônia. Venha. Dar-nos-á muito prazer.
- Não faltarei - protestou Leandrinho.
E despediu-se.
- É muito simpático - observou o Senhor Martins metendo a chave no trinco.
- É - murmurou secamente Dona Candinha.
Black, que os farejava, esperava-os lá dentro, no corredor, grunhindo, arranhando a porta, corcoveando, arfando, sacudindo a cauda irrequieta e curva.
Na quarta-feira aprazada Leandrinho embonecou-se todo e foi à casa do Senhor Martins, levando consigo um soberbo ramo de violetas.
O dono da casa, que estava na sala de visitas com alguns amigos, encaminhou-se para ele de braços abertos, e dispunha-se a apresentá-lo às pessoas presentes, quando Black veio a correr lá de dentro, e começou a fazer muitas festas ao recém-chegado, saltando-lhe às pernas, lambendo-lhe as mãos, corcoveando, arfando, sacudindo a cauda irrequieta e curva.
O Senhor Martins, que conhecia o cão e sabia-o incapaz de tanta familiaridade com pessoas estranhas, teve uma idéia sinistra, e como os dois amantes enfiassem, a situação ficou para ele perfeitamente esclarecida.
Não se descreve o escândalo produzido pela inocente indiscrição de Black. Basta dizer que, a despeito da intervenção dos parentes e amigos ali reunidos, Dona Candinha e Leandrinho foram postos na rua a pontapés valentemente aplicados.
O Senhor Martins, que não tinha filhos, a princípio sofreu muito, mas afinal habituou-se à solidão.
Nem era esta assim tão grande, pois, todas as vezes que ele entrava em casa, vinha recebê-lo o seu bom amigo, o indiscreto Black, saltando-lhe às pernas, lambendo-lhe as mãos, corcoveando, arfando, sacudindo a cauda irrequieta e curva.
BARCA
Arthur Azevedo
Há maridos e mulheres, dizem as más línguas, que passam o verão em Petrópolis para fazer das suas à vontade. Não sei se é isso exato quanto às mulheres; quanto aos maridos, tenho certeza de que o é.
D. Senhorinha, esposa exemplar, exemplaríssima, era casada com um negociante rico, o João Saraiva, que todos os anos, em fins de novembro, dava com ela em Petrópolis até abril, sob pretexto de que a cidade do Rio de Janeiro se tornava inabitável durante a canícula.
O que ele queria era estar como o boi solto que, segundo o rifão, se lambe todo. Havia na Rua do Riachuelo uma francesa que lhe dava volta ao miolo e constantemente o obrigava a perder a barca.
Nessas ocasiões, D. Senhorinha recebia sempre um telegrama, e acreditava, coitada, porque tinha a mais cega confiança no marido, e sabia que ele era muito ocupado. Por fim, João Saraiva tantas e tão repetidas vezes perdia a barca, por este ou aquele motivo, que marido e mulher resolveram adotar uma palavra convencional para cada vez que isso acontecesse. Adotaram a palavra "barca".
* * *
Uma vez, D. Senhorinha, ali por volta das 2 horas da tarde, bocejava na sua solidão petropolitana, quando lhe levaram um telegrama.
Ela abriu-o um pouco sobressaltada, pois o marido não costumava telegrafar àquela hora, e qual não foi a sua surpresa vendo que o telegrama dizia simplesmente: "Barca".
- Não pode ser! pensou D. Senhorinha. A barca sai da Prainha às 4 horas e são apenas 2! Com duas horas de antecedência meu marido não podia adivinhar que perderia a barca! Aqui há coisa.
* * *
Naquele dia o marido não apareceu em Petrópolis, e no dia imediato, quando a senhora lhe pediu uma explicação, ele não se atreveu a dizer-lhe que o progresso agora era tal que os telegramas chegavam ao seu destino antes de mandados, ou que houvesse duas horas de diferença entre o meridiano do Rio de Janeiro e o de Petrópolis.
João Saraiva deu a D. Senhorinha uma razão esfarrapada, que ela fingiu aceitar, e na manhã seguinte entrou furioso no escritório, dirigindo-se imediatamente a um dos empregados.
- Ó seu Barros, a que horas você passou anteontem aquele telegrama?
- Logo que o senhor m'o deu.
- Fê-la bonita! Pode limpar a mão à parede! Pois eu não lhe disse que só o passasse depois das 4 horas?
- Disse, disse; mas como tive que ir lá para os lados do Telégrafo, julguei que não houvesse inconveniente.
- Ora valha-o Deus, seu Barros! Você deu cabo da minha tranqüilidade doméstica.
* * *
D. Senhorinha desceu imediatamente de Petrópolis e nunca mais quis saber de vilegiaturas, receando que o marido continuasse a perder a barca.
BANHOS DE MAR
Arthur Azevedo
Manuel Antônio de Carvalho Santos,
Negociante dos mais acreditados,
Tinha, em sessenta e tantos,
Uma casa de secos e molhados
Na Rua do Trapiche. Toda a gente
– Gente alta e gente baixa –
O respeitava. Merecidamente:
A sua firma era dinheiro em caixa.
Rubicundo, roliço,
Era já outoniço,
Pois há muito passara dos quarenta
E caminhava já para os cinquenta.
O bom Manuel Antônio
(Que assim era chamado),
Quando do amor o deus (Deus ou demônio,
Porque como um demônio os homens tenta,
Trazendo-os num cortado)
Fê-lo gostar deveras
De uma menina que contava apenas
Dezoito primaveras,
E na candura de anjo
Causava inveja às próprias açucenas.
Tinha a menina um namorado, é certo;
Porém o pai, um madeireiro esperto,
Que no outro viu muito melhor arranjo,
Tratou de convencê-la
De que, aceitando a mão que lhe estendia
Manuel Antônio, a moça trocaria
De um vaga-lume a luz por uma estrela
Ela era boa, compassiva, terna,
E havia feito ao moço o juramento
De que a sua afeição seria eterna;
Porém dobrou-se à lógica paterna
Como uma planta se dobrara ao vento.
Sabia que seria
Tempo perdido protestar; sabia
Que, na opinião do pai, o casamento
Era um negócio e nada mais. Amava;
Sentia-se abrasada em chama viva;
Mas... tinha-se na conta de uma escrava,
Esperando, passiva,
Que um marido qualquer lhe fosse imposto,
Contra o seu coração, contra o seu gosto.
Calou-se. Que argumento
Podia a planta contrapor ao vento?
No dia em que a notícia
Do casamento se espalhou na praça,
A Praia Grande inteira achou-lhe graça
E comentou-a com feroz malícia,
E na porta da Alfândega,
E no leilão do Basto
Outro caso não houve era uma pândega!
Que às línguas fornecesse melhor pasto
Durante uma semana, ou uma quinzena,
Pois em terra pequena
Nenhum assunto é facilmente gasto,
E raramente um escândalo se pilha.
Quando um dizia: – A noiva do pateta
Podia muito bem ser sua filha,
Logo outro exagerava: – Ou sua neta!
O moço desdenhado,
Que na tesouraria era empregado,
E metido a poeta,
Durante muito tempo andou de preto,
Co'a barba por fazer, muito abatido;
Mas, se a barba não fez, fez um soneto,
Em que chorava o seu amor perdido.
Do barbeiro esquecido
Só foi à loja, e vestiu roupa clara,
Depois que a virgem que ele tanto amara
Saiu da igreja ao braço do marido.
Pois, meus senhores, o Manuel Antônio
Jamais se arrependeu do matrimônio;
Mas, passados três anos,
Sentiu que alguma coisa lhe faltava:
Não se realizava
O melhor dos seus planos.
Sim, faltava-lhe um filho, uma criança,
Na qual pudesse reviver contente,
E este sonho insistente,
E essa firme esperança
Fugiam lentamente.
À proporção que os dias e os trabalhos
Seus cabelos tornavam mais grisalhos.
Recorreu à Ciência:
Foi consultar um médico famoso,
De muita experiência,
E este, num tom bondoso,
Lhe disse: – A Medicina
Forçar não pode a natureza humana.
Se o contrário imagina,
Digo-lhe que se engana.
Manuel Antônio, logo entristecido,
Pôs os olhos no chão; mas, decorrido
Um ligeiro intervalo,
O médico aduziu, para animá-lo:
– Todavia, Verrier, se não me engano,
Diz que os banhos salgados
Dão belos resultados...
Experimente o oceano!
No mesmo dia o bom Manuel Antônio,
Á vista de juízo tão idôneo,
Tinha casa alugada
Lá na Ponta d'Areia,
Praia de banhos muito frequentada,
Que está do porto à entrada
E o porto aformoseia.
Nessa praia, onde um forte
Do séc'lo dezessete
Tem tido vária sorte
E medo a ninguém mete;
Nessa praia, afamada
Pela revolta, logo sufocada
De um Manuel Joaquim Gomes,
Nome olvidado, como tantos nomes;
Nessa praia que... (Vide o dicionário
Do Doutor César Marques) nessa praia,
Passou três meses o quinquagenário,
Com a esposa e uma aia.
Não sei se coincidência
Ou propósito foi: o namorado
Que não tivera um dia a preferência,
Maldade que tamanhos
Ais lhe arrancou do coração magoado,
Também se achava a banhos
Lá na Ponta d'Areia...
Creia, leitor, ou, se quiser, não creia:
Manuel Antônio nunca o viu; bem cedo,
Sem receio, sem medo
De deixar a senhora ali sozinha,
Para a cidade vinha
Num escaler que havia contratado,
E voltava à tardinha.
Tempos depois – marido afortunado!
Viu que a senhora estava de esperanças...
Ela teve, de fato,
Duas belas crianças,
E o bondoso doutor, estupefato,
Um ótimo presente,
Que o pagou larga e principescamente!
Viva o banho de mar! Ditoso banho!
Dizia, ardendo em júbilo, o marido.
– Eu pedia-lhe um filho, e dois apanho!
Doutor, meu bom doutor, agradecido!
Pouco tempo durou tanta ventura;
Fulminado por uma apoplexia,
Baixou Manuel Antônio à sepultura.
O desdenhado moço um belo dia
A viúva esposou, que lhe trazia
Amor, contos de réis e formosura.
E no leilão do Basto
Diziam todos os desocupados
Que nunca houve padrasto
Mais carinhoso para os enteados.
Recitado por Dias Braga no espetáculo
comemorativo do 50o. aniversário do
falecimento de Martins Pena.
De Martins Pena foi bem triste a sorte:
Moço, bem moço, quando o seu talento
Desabrochava n'um deslumbramento,
Caiu, ferido pela mão da morte!
Era, entretanto, um lutador, um forte,
E, como não merece o esquecimento,
Que a nossa festa, ao menos um momento,
O seu risonho espírito conforte.
Quem o amou e o leu em vão procura
O seu nome na placa de uma esquina
Ou sobre a pedra de uma sepultura!
Porém, voltando à brasileira cena,
Há de brilhar a estrela peregrina
Que se chamou Luiz Carlos Martins Pena!
ASSUNTO PARA UM CONTO
Arthur Azevedo
Como sou um contador de histórias, e tenho que inventar um conto por semana, sendo, aliás, menos infeliz que Scherazada, porque o público é um sultão Shariar menos exigente e menos sanguinário que o das Mil e Uma Noites, sou constantemente abordado por indivíduos que me oferecem assuntos, e aos quais não dou atenção, porque eles em geral não têm uma ideia aproveitável.
Entre esses indivíduos, há um funcionário aposentado que, na sua roda, é tido por espirituoso, o qual, todas as vezes que me encontra, obriga-me a parar, diz-me, invariavelmente, que estou ficando muito preguiçoso, e, com um ar de proteção, o ar de um Mecenas desejoso de prestar um serviço que, aliás, não lhe foi pedido, conclui, também invariavelmente:
– Deixe estar, que tenho um magnífico assunto para você escrever um conto! Qualquer dia destes, quando eu estiver de maré, lá lh'o mandarei.
Há dias, tomando o bonde para ir ao Leme espairecer as ideias, sentei-me por acaso ao lado do meu Mecenas que, na forma do costume, começou por invectivar a minha preguiça, e prosseguiu assim:
– Creio que já lhe disse que tenho um assunto para o amiguinho escrever um conto...
– Já m'o disse mais de vinte vezes!
– Qualquer dia lá lh'o mandarei.
– Não! Há de ser agora! O senhor tem me prometido esse assunto um rol de vezes, e não cumpre a sua promessa. Nós vamos a Copacabana, estamos ao lado um do outro, temos multo tempo.... Venha o assunto!...
– Não; agora não!
– Pois há de ser agora, ou então convenço-me de que tal assunto não existe, e o senhor mentiu todas as vezes que m'o prometeu!
– Ora essa!
– Sim, que o senhor tem feito como aquele cidadão que prometia ao Eduardo Garrido, todas as vezes que o encontrava, um calembur para ser encaixado na primeira peça que ele escrevesse. Até hoje o Garrido espera pelo calembur!
– Eu tenho o assunto do conto – explicou o Mecenas–, mas queria escrevê-lo...
– Para quê? Basta que m'o exponha verbalmente.
– Então, lá vai: é a história de uma herança falsa, um sujeito residente na Espanha escreve a outro sujeito residente no Rio de Janeiro uma carta dizendo que morreu lá um homem podre de rico, chamado, por exemplo, D. Ramon, e que esse homem não deixou herdeiros conhecidos: a herança foi toda recolhida pela nação; mas o tal sujeito residente na Espanha, que é um finório, manda dizer ao tal sujeito residente no Rio de Janeiro, que é um simplório, que existem aqui herdeiros, cujos nomes ele não revelará ao simplório sem que este mande pelo correio tantas mil pesetas. O simplório manda-lhe o dinheiro, e fica eternamente à espera dos nomes dos herdeiros. – Que tal?
– Muito bom!
– Você não acha aproveitável este assunto?
– Acho-o magnífico, interessantíssimo, espirituoso! Tanto assim que vou escrever o conto e publicá-lo no próximo número d'O Século!
– Ora, ainda bem! Quando lhe faltar assunto, venha bater-me à porta: o que não me falta é imaginação!
– Muito obrigado; não me despeço do favor.
Como vê o leitor, aproveitei o assunto do imaginoso Mecenas.
AS PARADAS
Arthur Azevedo
O Norberto, que a princípio aceitou com entusiasmo as paradas dos bondes de Botafogo, é hoje o maior inimigo delas. Querem saber por quê? Eu lhes conto:
O pobre rapaz encontrou uma noite, na Exposição, a mulher mais bela e mais fascinante que os seus olhos ainda viram, e essa mulher - oh, felicidade!... oh, ventura!... -, essa mulher sorriu-lhe meigamente e com um doce olhar convidou-o a acompanhá-la.
O Norberto não esperou repetição do convite: acompanhou-a.
Ela desceu a Avenida dos Pavilhões, encaminhou-se para o portão, e saiu como quem ia tomar o bonde; ele seguiu-a, mas estava tanto povo a sair, que a perdeu de vista.
Desesperado, correu para os bondes, que uns seis ou sete havia prontos a partir, e subiu a todos os estribos, procurando em vão com os olhos esbugalhados a formosa desconhecida.
- Provavelmente foi de carro, pensou o Norberto, que logo se pôs a caminho de casa.
Deitou-se mas não pôde conciliar o sono: a imagem daquela mulher não lhe saía da mente. Rompia a aurora quando conseguiu adormecer para sonhar com ela, e no dia seguinte não se passou um minuto sem que pensasse naquele feliz encontro.
Daí por diante foi um martírio. O desditoso namorado começou a emagrecer, muito admirado de que lhe causassem tais efeitos um simples olhar e um simples sorriso.
Passaram-se alguns dias e cada vez mais crescia aquele amor singular, quando uma tarde - oh, que ventura!... oh, que felicidade!... -, uma tarde passeando no Catete, o Norberto vê, num bonde das Laranjeiras, a dama da Exposição. Ela não o viu.
O pobre-diabo fez sinal ao condutor para parar, mas por fatalidade o poste da parada estava muito longe e o bonde não parou. E não haver ali à mão um tílburi, uma caleça, um automóvel!...
O Norberto deitou a correr atrás do bonde, mas só conseguiu esfalfar-se. Que pernas humanas haverá tão rápidas como a eletricidade?
Esse novo encontro acendeu mais viva chama no peito do Norberto, e não tiveram conta os passeios que ele deu do Largo do Machado às Águas Férreas, na esperança de ver a sua amada e falar-lhe.
Oito dias depois, o Norberto percorria de bonde, pela centésima vez, as Laranjeiras, quando, nas alturas do Instituto Pasteur, viu passar - oh, felicidade!... oh, ventura!... -, viu passar na rua a mulher que tanto o sobressaltava.
- Pare! pare!... gritou ele ao condutor.
- Aqui não posso; vamos ao poste de parada!
O Norberto quis descer, mas a rapidez com que o bonde rodava era tamanha, que não se atreveu.
Chegando ao poste de parada, ele atirou-se à rua, e deitou a correr para o lugar onde vira a mulher, mas, onde estava ela? Tinha desaparecido!.
Aí está por que o Norberto é hoje o maior inimigo das paradas.
ÀS ESCURAS
Arthur Azevedo
Havia baile naquela noite em casa do Cachapão, o famoso mestre de dança, que alugara um belo sobrado na Rua Formosa, onde todos os meses oferecia uma partida aos seus discípulos, sob condição de entrar cada um com dez mil-réis. D. Maricota e sua sobrinha, a Alice, eram infalíveis nesses bailes do Cachapão.
D. Maricota era a velha mais ridícula daquela cidadezinha da província; muito asneirona, mas metida a literata, sexagenária, mas pintando os cabelos a cosmético preto, e dizendo a toda a gente contar apenas trinta e cinco primaveras – feia de meter medo e tendo-se em conta de bonita, era D. Maricota o divertimento da rapaziada. Em compensação, a sobrinha, a Alice, era linda como os amores e muito mais criteriosa que a tia.
O Lírio, moço da moda, que fazia sempre um extraordinário sucesso nos bailes de Cachapão, namorava a Alice, e no baile anterior lhe havia pedido... um beijo.
– Um beijo?! Você está doido, seu Lírio?! Onde? Como? Quando?
– Ora! Assina você queira...
– Eu não dou; furte-o você se quiser ou se puder.
Isto dizia ela porque bem sabia que as salas estavam sempre cheias de gente, e a ocasião não poderia fazer o ladrão. Demais, D. Maricota, a velha desfrutável, que andava um tanto apaixonada pelo moço, que aliás podia ser seu neto, tinha ciúmes e não os perdia de vista.
Mas o Lírio, que era fértil em ideias extraordinárias, combinou com um camarada, o Galvão, que este entrasse no corredor do sobrado às 10 horas em ponto, e fechasse o registro do gás. Se o Lírio bem o disse, melhor o fez o Galvão; mas ao namorado saiu-lhe o trunfo às avessas, como vão ver.
Faltavam dois ou três minutos para as 10 horas, quando ele se aproximou de Alice e murmurou-lhe ao ouvido:
– Aquela autorização está de pé?
– Que autorização?
– Posso furtar o beijo?
– Quando quiser.
– Bom; vamos dançar esta quadrilha.
Mas a velha D. Maricota levantou-se prontamente da cadeira em que estava sentada e enfiou o braço no braço do moço, dizendo:
– Perdão, seu Lírio! Esta quadrilha é minha! O senhor já dançou uma quadrilha e uma valsa com Alice! E arrastou o Lírio para o meio da sala.
De repente, ficou tudo às escuras.
Passado um momento de pasmo, D. Maricota agarrou-se ao pescoço do Lírio e encheu-o de beijos, dizendo muito baixinho:
– Ingrato! Ingrato! Foi o meu bom amigo que apagou as luzes!
E aqui está como ao Lírio saiu o trunfo às avessas.
AS CEREJAS
Arthur Azevedo
– Que fazes tu aí parado? Estás a comer com os olhos aquelas magníficas cerejas?
– Estou simplesmente a namorá-las, ou antes, a resolver-me... Os cobres são tão curtos!
– Gostas realmente de cerejas?
– Eu? Nem por isso! Prefiro qualquer outra fruta do nosso país! Mas minha mulher dá o cavaquinho por elas, e não se me dava de lhe levar aquelas, que têm boa cara.
– Pois compra-as, que diabo! Não são as cerejas que nos arruínam.
– Tens razão.
Esse ligeiro diálogo foi travado em frente ao mostrador de uma loja de frutas, na Avenida, entre o Antunes e o seu velho amigo Martiniano. O Antunes comprou as cerejas. O Martiniano despediu-se e foi tomar o bonde.
Aquele dispunha-se a fazer o mesmo, e já estava num ponto de parada, esperando o elétrico de Vila Isabel, quando passou a Pintinha, um diabo de uma mulher que ele não podia ver sem sentir imediatamente o imperioso desejo de acompanhá-la, para reatar o fio de uma conversação agradável que se interrompia de meses a meses. Acompanhou-a. Ela, quando o viu, disse-lhe com toda a franqueza:
– Que fortuna encontrar-te! Estava com muitas saudades tuas. Jantas hoje comigo. Não admito desculpas, tanto mais que leio nos teus olhos que estás morto por isso. Vou esperar-te em casa.
Meia hora depois, o Antunes subia as escadas da Pintinha. Esta, a primeira coisa que fez foi tirar-lhe das mãos o embrulho que ele trouxera da loja de frutas e desamarrá-lo.
– Que é isso? Cerejas? Como és amável! Não te esqueceste da minha sobremesa predileta!
O Antunes pensou consigo: – guardado está o bocado para quem o come – e pediu mentalmente perdão a dona Leopoldina, sua legítima esposa. Isto passava-se à tardinha, e era noite fechada quando as cerejas foram alegremente comidas.
A hora em que o Antunes entrou no lar doméstico, já D. Leopoldina estava deitada, mas não dormia ainda.
– Com efeito, Antunes! Já lhe tenho pedido um milhão de vezes que não jante fora sem me prevenir! Esperei-o até às 7 horas!
– Perdoa, benzinho, fui desencaminhado por um amigo que me levou ao Pão de Açúcar.
– Ao Pão de Açúcar?
– Sim, o Pão de Açúcar é um restaurante da Exposição. Come-se ali muito bem, e o lugar é aprazível.
– Demais, eu estava doida por que você chegasse; nunca o esperei com tanta impaciência!
– Por quê?
– Por causa das cerejas.
– Que cerejas?
– As tais que você comprou na Avenida para me trazer; você bem podia tê-las mandado pelo "rápido", com o aviso de que não vinha jantar. Onde estão elas?
– As cerejas?
– Sim, as cerejas!
– Mas como soubeste que eu...?
– Muito simplesmente. Saí para ir ao dentista, e quando voltava para casa encontrei no bonde aquele teu amigo Martiniano, que me disse: "A senhora vai ter hoje magníficas cerejas ao jantar; vi seu marido comprá-las na Avenida. Ele disse-me que a senhora dá o cavaquinho por elas." Onde as puseste? Na sala de jantar?
Já o Antunes tinha arranjado a mentira:
– Oh! Diabo! E se não me falas não me lembrava! Deixei no bonde o embrulho das cerejas!
– Eu logo vi!...
Leopoldina voltou-se para o outro lado e não disse mais palavra.
No dia seguinte, esteve amuada todo o dia, e só voltou às boas quando o Antunes, entrando em casa às horas de jantar, lhe entregou um embrulho de cerejas, dizendo:
– Estavam na Estação.
Pobre D. Leopoldina! Se soubesse que a Pintinha...
Arthur Azevedo
Não é precisamente um conto o que hoje vou escrever.
******
Voltou do seu passeio a São Paulo o Guedes – o Guedes, sabem? – O maior asneirão que o sol cobre, aquele mesmo que respondeu aqui há tempos quando numa roda lhe perguntaram se tinha filhos:
– Tenho uma filha já adúltera.
– Adúltera?!
– Sim, senhor, adúltera; vai fazer 17 anos.
– Adulta quer o senhor dizer...
– Ou isso. E uma boa menina; só tem um defeito: é muito luxuriosa.
– Luxuriosa?!
– Sim, senhor, luxuriosa: gosta muito de luxar.
– Ah!
– Mas lá está minha mulher para lhe dar bons conselhos... sim, porque minha mulher é muito sensual.
– Sensual?!
– Sim, senhor, sensual: tem muito bom senso.
******
Pois é como lhes digo: tive o prazer de encontrar ontem esse precioso Guedes, cujas asneiras, colecionadas, dariam um volume de trezentas páginas, ou mais.
Eu estava num armarinho da rua do Ouvidor, onde entrava para cumprimentar a minha espirituosa amiga D. Henriqueta, que andava, como sempre, fazendo compras, enchendo-se de caixinhas e pequeninos embrulhos, adquiridos aqui e ali:
O Guedes, mal que me viu, correu a dar-me um abraço, dizendo:
– Li no "O País" a notícia do seu aniversário...
E recuando dois passos, tomou uma atitude solene, deixou cair as pálpebras, e acrescentou:
– Faço votos para que você tenha um futuro tão brilhante como o que passou.
Agradeci comovido essa manifestação de apreço envolvida num disparate, e apresentei o Guedes à minha espirituosa amiga D. Henriqueta, que mordia os lábios para não rir.
– Apresento-lhe, minha senhora, o mais extraordinário reformador da língua portuguesa: o Guedes, o grande Guedes, que acaba de chegar de São Paulo, onde esteve a passeio.
– Era tempo de fazer uma viagem! – Explicou ele. – Foi a primeira vez que saí do Rio de Janeiro.
– Eu também não saí ainda desta cidade senão para ir uma vez a Petrópolis e duas a Niterói – disse D. Henriqueta.
– Vejo então que a senhora é cortesã... – acudiu o Guedes curvando os lábios no mais amável dos seus sorrisos.
– - Cortesã?!
– Cortesã, sim... filha da Corte...
– Oh! Guedes! - Observei baixinho. – Pois você não vê que está dizendo uma inconveniência?
– Tem razão... Atualmente não se deve falar em Corte...
– E emendou:
– Vejo então que a senhora é capitalista federalista.
******
– Ó Guedes! Vamos lá! Diga-me! Que impressões trouxe de São Paulo?
– Muito boas! Aquilo é uma grande terra!
– Dizem que há lá muita sociabilidade.
– Como?
– Muita convivência...
– Isso há... As famílias visitam-se... Ou moços coabitam com as moças.
– Ora essa!
– Que entende você por "coabitar"?
– É... é...
– É uma indecência... uma inconveniência... uma coisa que não se diz!...
O Guedes inflamou-se:
– Está você muito enganado... "Coabitar" é...
E voltando-se para um dos caixeiros do armarinho:
– O senhor tem aí um dicionário que me empreste?
– Pois não!
E daí a dois minutos o Guedes tinha nas mãos os dois volumes do Aulete.
– Muito bem! - Disse eu. – Procure "coabitar".
Depois de folhear em vão o dicionário durante um ror de tempo, o teimoso exclamou:
– Não dá! Não dá! Vejam...
– Perdão: você está procurando com u: deve ser com o!
– Tem razão, tem razão... Onde estava eu com a cabeça?
E o Guedes pôs-se de novo a folhear o Aulete.
– Não dá! Também não dá com o! Veja: de coa para coação! Não dá com u nem com o!
Valha-o Deus, Guedes, valha-o Deus! Você está procurando sem h? Dê cá o dicionário!
E com um sorriso de triunfo mostrei ao Guedes a significação da palavra.
– Olhe, leia: "Coabitar, habitar, viver conjuntamente".
– Mas isso...
– Agora veja o que o Aulete acrescenta entre parênteses:
"Diz-se particularmente de duas pessoas de diferente sexo".
– Perdão! – Bradou o Guedes furioso. – Perdão! Eu não disse particularmente, mas alto e bom som, e só não me ouviu quem não me quis ouvir!
E batendo com a mão espalmada sobre o balcão:
– Eu não sou homem que diga as coisas particularmente!
(Do Livro Contos Cariocas)
A RITINHA
Arthur Azevedo
(Grafia original)
Naquela noite o Flores entrou em casa oprimido por um sentimento penoso, que não podia definir.
Tinham-lhe dito que estava no Rio de Janeiro a Ritinha, aquela interessante menina que há trinta anos, lá na província, fora o seu primeiro amor e a sua primeira mágoa.
Andou morto por vê-la, não que lhe restasse no coração nem no espírito outra coisa senão a saudade que todos nós sentimos da infância e da adolescência, - queria vê-la por mera curiosidade.
Satisfizera o seu desejo naquela noite, quando menos o esperava, num teatro. Ela ocupava quase um camarote inteiro com a sua corpulência descomunal.
Mostrou-lha um comprovinciano e amigo:
- Não querias ver a Ritinha? Olha! Ali a tens!
- Onde?
- Naquele camarote.
- Quê! aquela velha gorda?...
- É a Ritinha!
- Virgem Nossa Senhora! - E aquele homem de óculos azuis, que está de pé, no fundo do camarote? É o marido!
- Qual marido! É o genro, casado com a filha, aquela outra senhora muito magra que está ao lado dela. O marido é o velhote que está quase escondido por trás do enorme corpanzil da tua ex-namorada.
O Flores, estupefato, contemplou e analisou longamente aquela mulher, que fora o seu primeiro amor e a sua primeira mágoa.
Não podia haver dúvida: era ela. O olhar tinha ainda coisa do olhar de outrora. Com aqueles destroços ele foi reconstituindo mentalmente, peça por peça, a estátua antiga. Tinha a visão exata do passado.
Representava-se uma comédia. Ritinha ria-se de tudo, de todas as frases, de todos os gestos, de todas as jogralices dos atores com uma complacência, de espectadora mal-educada e por isso mesmo pouco exigente.
Aquelas banhas flácidas, agitadas pelo riso, tremiam convulsivamente dentro da seda do vestido, manchado pelo suor dos sovacos.
O genro, que se conservava sério e imperturbável, lançava-lhe uns olhos repreensivos e inquietos através dos óculos azuis. Ela não dava por isso.
- Que diabo vieram eles fazer ao Rio de Janeiro? perguntou o Flores.
- Nada... apenas passear.. . estão de passagem para a Europa.
* * *
E aí está por que o Flores entrou em casa oprimido por um sentimento que não sabia definir.
Quando ele se espichou na cama estreita de solteirão, e abriu o livro que o esperava todas as noites sobre o velador, não conseguiu ler uma página. Todo o seu passado lhe afluía à memória.
Ele e Ritinha foram companheiros de infância. Eram vizinhos, - brincaram juntos e juntos cresceram. Tinham a mesma idade.
Depois de dezessete anos, aquela afeição tomou, nele, nela não, um caráter mais grave: transformou-se em amor.
Mas Ritinha era já uma senhora e Flores ainda um fedelho.
Como o desenvolvimento fisiológico da mulher é mais precoce que o do homem, raro é o moço que ao desabrochar da vida não teve amores malogrados.
Foi o que sucedeu ao nosso Flores. Ritinha não esperou que ele crescesse e aparecesse: tendo-se-lhe apresentado um magnífico partido, fez-se noiva aos dezoito anos.
O desespero do rapaz foi violento e sincero. Ele era ainda um criançola, mas tinha a idade de Romeu, a idade em que já se ama.
Um pensamento horroroso lhe atravessou o cérebro: assassinar Ritinha e em seguida suicidar-se.
Premeditou e preparou a cena: comprou um revólver, carregou-o com seis balas, e marcou para o dia seguinte a perpetração do atentado.
Deitou-se, e naturalmente passou toda a noite em claro.
Ergueu-se pela manhã, vestiu-se, apalpou a algibeira e não encontrou a arma.
- Oh!
Procurou-a no chão, atrás do baú, por baixo da cômoda: nada!
* * *
- Para que precisas tu de um revólver, meu filho? perguntou a mãe do rapaz, entrando no quarto.
- Está com a senhora?
- Está.
- Mas como soube...?
- As mães adivinham.
Flores não disse mais nada: caiu nos braços da boa senhora, e chorou copiosamente. -
Ela, que conhecia os amores do filho, deixou-o chorar a vontade; depois, enxugou-lhe os olhos com os seus beijos sagrados, e perguntou-lhe:
- Que ias tu fazer, meu filho? Matar-te?
- Sim, mas primeiro matá-la-ia também!
- E não te lembraste de mim?... não te lembraste de tua mãe?...
- Perdoe.
E nova torrente de lágrimas lhe inundou a face.
- Ouve meu filho: na tua idade feliz um amor cura-se com. outro. O que neste momento se te afigura uma desgraça irremediável, mais tarde se converterá numa recordação risonha e aprazível. Se todos os moços da tua idade se matassem por causa disso, e matassem também as suas ingratas, há muito tempo que o mundo teria acabado. Raros são os que se casam Com a sua primeira namorada. O que te sucedeu não é a exceção, é a regra. O mal de muitos consolo é.
- Eu quisera que Ritinha não pertencesse a nenhum outro homem!
- Matá-la? Para quê? Ela desaparecerá sem morrer... nunca mais terá dezoito anos... A idade transforma-nos tal qual a morte. Não imaginas como tua mãe foi bela!
O velho Flores, pai do rapaz, informado por sua mulher do que se passara, e receoso de que o filho, impulsivo por natureza, praticasse algum desatino, resolveu mandá-lo para o Rio de Janeiro, onde ele chegou meses antes do casamento de Ritínha.
* * *
Naquela noite o Flores, quase qüinquagenário, chefe de repartição, lembrava-se das palavras maternas e reconhecia quanta verdade continham.
Ainda naquele momento sua mãe, que há tantos anos estava morta, parecia falar-lhe, parecia dizer-lhe:
- Não te dizia eu?
- E que impressão receberia Ritinha se me visse? pensou ele. Também eu sou uma ruína...
* * *
O Flores apagou a vela, adormeceu e sonhou com ambas as Ritinhas, a do passado e a do presente.
Dali por diante, todas as vezes que encontrava esta última, dizia consigo:
- Olhem se eu a tivesse matado!
QUE HORROR
Arthur Azevedo
Estou esplenético e tétrico.
Sorumbático e sombrio...
Vi de longe um bonde elétrico!
Não faço versos, não rio...
A NOTA DE CEM MIL-RÉIS
Arthur de Azevedo
O Cavalcânti era um marido incorreto, para não empregar um adjetivo mais forte; imaginem que os seus recursos não davam para acudir a todas as necessidades da família e, no entanto, era ele um dos amantes da Josephine Leveau, uma cocotte francesa, cujo nome era muito conhecido nas rodas alegres, e se prestava aos trocadilhos mais interessantes, quer em francês, quer em português.
Como a esposa do Cavalcanti era uma hábil costureira, recorreu à sua habilidade para ajudar nas despesas de casa. Um dia fez um vestido para uma amiga, e, tão bem feito, tão elegante, que a sua fama correu de boca em boca, e valeu-lhe uma freguesia certa, que lhe dava algum dinheiro a ganhar. Havia meses em que ela fazia trezentos mil-réis.
O Cavalcanti não protestou, pelo contrário aprovou. Fez mais, como vão ver.
Uma bela manhã, a Josephine mandou-lhe pedir cem mil-réis para uma necessidade urgente, e ele não os tinha, nem sabia onde ir buscá-los. Hesitou durante algum tempo em cometer uma baixeza, mas acabou cometendo-a. Já o leitor adivinhou que o miserável pediu à esposa o dinheiro que devia mandar à amante.
A pobre senhora não manifestou a menor contrariedade: foi ao seu quarto, abriu uma gaveta onde guardava o fruto do seu trabalho, e tirou uma nota de cem mil-réis, ainda nova. Antes de levá-la ao marido, que esperava na sala de jantar, contemplou-a durante algum tempo como para despedir-se dela para sempre, e então notou que alguém escrevera num canto estas palavras com letra miúda: "Nunca mais te verei, querida nota!" E como D. Margarida - ela chamava-se Margarida - tivesse um lápis à mão, escreveu por baixo daquelas palavras "Nem eu!".
O Cavalcanti empalmou os cem mil-réis com um estremeção de alegria.
- Este dinheiro faz-te muita falta? - perguntou ele.
- Não - respondeu ela - hoje mesmo espero receber igual quantia.
Meia hora depois, o Cavalcânti entregava a nota, dentro de um envelope, a Josephine Leveau.
Nesse mesmo dia D. Margarida recebeu os outros cem mil-réis que esperava. Contra o seu costume, o Cavalcânti estava em casa.
- Olha, disse-lhe ela, aqui estão os cem mil-réis que eu contava receber. A freguesa é boa.
- Quem ela é? perguntou o marido.
- Não a conheço; veio ter comigo e pediu-me que lhe fizesse um vestido de seda, riquíssimo. Tinham-lhe dito que eu trabalhava bem e barato.
- Mas é senhora séria?
- Parece. É francesa, e casada com um banqueiro, disse-me ela. Naturalmente o marido é também francês, porque ela chama-se Madame Leveau.
- Leveau! repetiu o Cavalcânti empalidecendo.
- Conheces?
- Não.
- Então, por que fizeste essa cara espantada? Boa freguesa! O vestido foi hoje de manhã cedo, e hoje mesmo veio o dinheiro.
- Onde mora essa Madame Leveau?
- Na Rua do Catete.
Dizendo isto D. Margarida abriu o envelope e retirou os cem mil-réis.
- Que coincidência! disse ela; a nota é da mesma estampa da qual te dei hoje de manhã! Por sinal que a outra tinha no canto... Oh!...
Este grito quer dizer que D. Margarida tinha lido a frase "Nunca mais te verei", e o seu acréscimo: "Nem eu!".
- Que foi? perguntou o Cavalcanti.
- A nota é a mesma!...
- A mesma? repetiu o marido gaguejando.
- A mesmíssima! Reconheço-a por causa destas palavras... Vê! a minha letra!...
O Cavalcanti arranjou uma desculpa esfarrapada: disse que tinha pago os cem mil-réis ao banqueiro Leveau, a quem os pedira emprestados; mas D. Margarida não engoliu a pílula, e foi à casa de Josephine certificar-se de que esta era uma cocotte freqüentada por seu marido.
A pobre senhora separou-se do desgraçado, e abriu casa de modista. Ganha muito dinheiro.
A MELHOR AMIGA
Arthur Azevedo
I
A mais ingênua e virtuosa das esposas, D. Ritinha Torres, adquiriu há tempos a dolorosa certeza de que o marido a enganava, namorando escandalosamente uma senhora, vizinha deles, que exercia, ou fingia exercer a profissão de modista.
Havia muitas manhãs que Venâncio Torres - assim se chamava o pérfido - acordava muito cedo, tomava o seu banho frio, saboreava sua xícara de café, acendia o seu cigarro e ia ler a Gazeta de Noticias debruçado a uma das janelas da sala de visitas.
Como D. Ritinha estranhasse o fato, porque havia já quatro anos que estava casada com Venâncio, e sempre o conhecera pouco madrugador, uma bela manhã levantou-se da cama, envolveu-se numa colcha, e foi, pé ante pé, sem ser pressentida, dar com ele a namorar a vizinha, que o namorava também.
A pobre senhora não disse nada: voltou para o quarto, deitou-se de novo, e à hora do costume simulou que só então despertava.
Tivera até aquela data o marido na conta de um irrepreensível modelo de todas as virtudes conjugais; todavia, soube aparar o golpe: não deu a perceber o seu desgosto, não articulou uma queixa, não deixou escapar um suspiro.
Mas às dez horas, quando Venâncio Torres, perfeitamente almoçado, tomou o caminho da repartição, ela vestiu-se, saiu também, e foi bater à porta da sua melhor amiga, D. Ubaldina de MeIo, que se mostrou admiradíssima.
- Que é isto? Tu aqui a estas horas! Temos novidade?
- Temos... temos uma grande novidade; meu marido engana-me
E deixando-se cair numa cadeira, D. Ritinha prorrompeu em soluços.
- Engana-te? perguntou a outra, que empalidecera de súbito.
- E adivinha com quem?... Com aquela modista... aquela sujeita que mora defronte de nossa casa!...
- Oh, Ritinha! isso é lá possível!...
- Não me disseram: vi; vi com estes olhos que a terra há de comer! Um namoro desbragado, escandaloso, de janela para janela!
- Olha que as aparências enganam...
- E os homens ainda mais que as aparências.
O pranto recrudescia.
- E eu que tinha tanta confian... an... ça naquele ingra... a ..to!
- Que queres tu que te faça? perguntou D. Ubaldina, quando a amiga lhe pareceu mais serenada.
- Vim consultar-te... peço-te que me aconselhes... que me digas o que devo fazer... Não tenho cabeça para tomar uma resolução qualquer!
- Disseste-lhe alguma coisa?
- A quem?
- A teu marido.
- Não; não lhe disse nada, absolutamente nada. Contive-me quanto pude. Não quis decidir coisa alguma antes de te falar, antes de ouvir a minha melhor amiga.
D. Ubaldina sentou-se ao lado dela, agradeceu com um beijo prolongado e sonoro essa prova decisiva de confiança e amizade, e, tomando-lhe carinhosamente as mãos, assim falou:
- Ritinha, o casamento é uma cruz que é mister saber carregar. Teu marido engana-te... se é que te engana...
- Engana-me!..
- Pois bem, engana-te, sim, mas... com quem? Reflete um pouco, e vê que esse ridículo namoro de janela, que o obriga a madrugar, sair dos seus hábitos, é uma fantasia passageira, um divertimento efêmero que não vale a pena tomar a serio.
- Achas então que...
- Filha, não há no mundo marido algum que seja absolutamente fiel. Faze como eu, que fecho os olhos às bilontrices do Melo, e digo como dizia a outra: - Enquanto andar lá fora, passeie o coração à vontade, contanto que mo restitua quando se recolher ao lar doméstico.
- Filosofia no caso!
- Vejo que não sente por teu marido o mesmo que sinto pelo meu...
A filósofa conservou-se calada alguns segundos, e, dando em D. Ritinha outro beijo, ainda mais prolongado e sonoro que o primeiro, prosseguiu assim:
- Se fizeres cenas de ciúmes a teu marido, apenas conseguirás que ele se afeiçoe deveras à tal modista; o que por enquanto não passa, felizmente, de um namoro sem conseqüências, poderá um dia transformar-se em paixão desordenada e furiosa!
- Mas...
- Não há mais nem meio! Cala-te, resigna-te, devora em silêncio tuas lágrimas, e observa. Se daqui a oito ou dez dias durar ainda esse pequeno escândalo, vem de novo ter comigo, e juntas combinaremos então o que deverás fazer.
- Aceito de bom grado os conselhos, minha amiga, mas não sei se terei forças para sofrear a minha indignação e os meus ciúmes.
- Faze o possível por sofreares. Lembra-te que és mãe. Quando um casal não vive na mais perfeita harmonia, a educação dos filhos torna-se extremamente difícil.
Alentada por esses conselhos amistosos e sensatos, D. Ritinha Torres despediu-se da sua melhor amiga, e foi para casa muito disposta a carregar com resignação a cruz do casamento.
II
Logo que ficou sozinha, D. Ubaldina que até então a custo se contivera, teve também uma longa crise de lágrimas.
Mas, serenada que foi essa violenta exacerbação dos nervos, a moça correu ao telefone, e pediu que a comunicasse com a repartição onde Venâncio Torres era empregado.
- Alô! Alô!
- Quem fala?
- O Sr. Venâncio está?
- Está. Vou chamá-lo.
Minutos depois D. Ubaldina telefonava ao marido de D. Ritinha que precisava falar-lhe com toda urgência.
Ele correu imediatamente à casa dela, onde foi recebido com uma explosão de lágrimas e imprecações.
- Que é isto?! que é isto?! perguntou atônito.
- Sei tudo! bradou ela. Tua mulher esteve aqui e contou-me o teu namoro com a modista de defronte!
Venâncio ficou aterrado.
- A idiota veio perguntar-me, a mim, que sou tua amante, o que devia fazer! Eu disse-lhe que fechasse os olhos, que se resignasse.
E agarrando-o com impetuosidade:
- Ah! mas eu é que me não resigno, sabes? Eu não sou tua mulher, sabes? Eu amo-te, sabes?
- Isso é uma invenção tola. Eu não namoro modistas.
- Olha, Venâncio, se continuares, tudo saberei, porque incumbi a tua própria mulher de me pôr ao fato de tudo quanto se passar! Se persistires em namorar essa costureira, darei um escândalo descomunal, nunca visto... - Afianço-te que te arrependerás amargamente! Tu ainda não me conheces!..
Venâncio tinha lábias: desfez-se em desculpas e explicou, o melhor que pôde, as suas madrugadas.
D. Ubaldina, que ardia em desejo de perdoar, aceitou a explicação. Entretanto, ameaçava-o sempre:
- Olha que se me constar que... Não te digo mais nada!...
Pouco antes da hora em que devia chegar o dono da casa com o seu coração intacto, Venâncio, que descia a escada, parou, e retrocedeu três ou quatro degraus para dizer a D. Ubaldina:
- Queres saber de uma coisa? Essa história da modista é bem boa: serve perfeitamente para desviar qualquer suspeita que minha mulher possa ter da sua melhor amiga.
E desceu.
III
Oito dias depois, D. Ubaldina de Melo recebia um bilhete concebido nos seguintes termos:
"Minha boa amiga. - Parece que tudo acabou, felizmente. Depois que estive contigo, nunca mais Venâncio madrugou nem foi à janela. Queira Deus que isto dure! Como sou feliz! - Tua do coração, Ritinha Torres."
PATRIOTISMO
Arthur Azevedo
Como é bela, meu Deus, a brasileira!
Que doçura! Que mel! Que singeleza!
E a francesa? Jesus! Ai! A francesa!
Não pode haver mulher mais feiticeira.
E a italiana então? Essa é a primeira:
A espanhola, porém, tem mais nobreza!
E a gravidade da mulher inglesa?
E a alemã discreta e sobranceira?
E a circassiana que derrota,
Com fama universal a mais bonita,
E que ao mais sábio faz ficar idiota?
E a húngara? A saxônia? A moscovita?...
Está dito: sou muito patriota,
Mas tenho o coração cosmopolita!
BILHETE 345
Arthur Azevedo
– És o rei dos caiporas, e, além disso, não tens a menor parcela de bom senso! Não fosse eu tua mulher, e não sei o que seria de ti, porque decididamente não te sabes governar!
– Exageras, nhanhã!
– Não! não sabes! Tens deixado estupidamente um rol de vezes passar a fortuna perto de ti, sem a agarrar pelos cabelos! Dizem que ela é cega: cego és tu!
– Já vês que a culpa não é minha…
– Quando houve o Encilhamento, só tu não te arranjaste!
– Mas também não me desarranjei…
– Para seres promovido a 1o oficial da tua Repartição, foi preciso que eu saísse dos meus cuidados e procurasse o ministro.
– Fizeste mal.
– Se o não fizesse, não passarias da cepa torta!
– Não quero obscurecer o mérito da tua diligência, mas olha que estás enganada, nhanhã.
– Deveras?
– Redondamente enganada. A nomeação era minha. Quando fui agradecê-la ao ministro, este disse-me: “Não era preciso que sua senhora se incomodasse: o decreto estava lavrado.”
– Pois sim! isso disse ele… E quando o decreto estivesse, efetivamente, lavrado? Á última hora seriam capazes de substitui-lo por outro! Pois se és tão caipora!
– Perdoa, nhanhã, mas não sou tão caipora assim… Pelo menos tive uma grande felicidade na vida!
– Qual foi, não me dirás?
– A de ter casado contigo…
Nhanhã mordeu os lábios, porque não achou o que responder, e naquele dia as suas impertinências habituais não foram mais longe.
* * *
O pobre Reginaldo – assim se chamava o marido – habituara-se de muito àquelas recriminações insensatas, e era um quase fenômeno de resignação e paciência.
Ela bem sabia que a coisa seria outra, se realmente a fortuna se deixasse agarrar pelos cabelos: o que nhanhã não lhe perdoava era a sua pobreza, – não era o seu caiporismo. Ela não podia ter em casa do marido o mesmo luxo que tinha em casa do pai; não podia rivalizar com alguma amiga em ostentação: era isto, só isto que a afligia, ou antes, que os afligia a ambos, marido e mulher.
* * *
Reginaldo tinha aversão ao jogo; nem mesmo a loteria o tentava.
Entretanto, uma tarde meteu-se num bonde do Catete, para recolher-se à casa, e no Largo do Machado, onde se apeou, pois morava naquelas imediações, foi perseguido por um garoto que à viva força lhe queria impingir um bilhete de loteria, – uma grande loteria de cem contos de réis, cuja extração estava anunciada para o dia seguinte.
Reginaldo resistiu, caminhando apressado sem dar resposta ao garoto, que o acompanhava insistindo; mas de repente lhe acudiu a idéia de que aquele maltrapilho poderia ser a fortuna disfarçada. Era preciso agarrá-la pelos cabelos! Comprou o bilhete, e foi para casa, onde o esperavam os tristes feijões quotidianos.
* * *
Ele bem sabia que, se dissesse a nhanhã que havia feito essa despesa extra-orçamentária, não teria a sua aprovação; mas que querem, – o pobre rapaz era um desses maridos submissos, que não ficam em paz com a consciência quando não contam por miúdo às caras-metades tudo quanto lhes sucede.
Ao saber da compra do bilhete, nhanhã pôs as mãos na cabeça:
– Quando eu digo que tu não tens a menor parcela de bom senso…! Aí está! Dez mil-réis deitados fora, e tanta coisa falta nesta casa!…
E seguiu-se, durante meia hora, a relação dos objetos que poderiam ser comprados com aqueles dez mil-réis perdidos.
Depois disso, nhanhã pediu para ver o bilhete.
Reginaldo, sem proferir uma palavra, tirou-o do bolso e entregou-lho.
– Número 345! exclamou ela. Um número tão baixo numa loteria de cinqüenta mil números! Isto é o que se chama vontade de gastar dinheiro à toa! Algum dia viste, nessas grandes loterias, ser premiado um número de três algarismos?
Reginaldo confessou que nem sequer olhara para o número. Como o garoto se lhe afigurou a fortuna disfarçada, ele aceitou o bilhete que lhe fora oferecido, entendendo que não devia argumentar com a fortuna.
– 345! Pois isto é lá número que se compre!
– Agora não há remédio.
– Como não há remédio? Põe o chapéu e volta imediatamente ao Largo do Machado: o garoto ainda lá deve estar. Dá-lhe o bilhete e ele que te dê o dinheiro.
– Perdoa, nhanhã, mas isso não faço eu: comprei! Nem o garoto desfazia a compra!
– Ao menos vai trocar o bilhete por outro, que tenha, pelo menos, quatro algarismos! Se tiver cinco, melhor!
– Faço-te a vontade: mas olha que sempre ouvi dizer que bilhetes de loteria não se trocam…
– Faze o que eu disse e não resmungues! Tu és o rei dos caiporas e eu tenho muita sorte!
Reginaldo não disse mais nada: pôs o chapéu, saiu de casa, foi ao Largo do Machado, e voltou com outro bilhete.
Desta vez o número tinha cinco algarismos: 38788; nhanhã devia ficar satisfeita.
Não ficou:
– Devias escolher um número mais variado: o 8 fica aqui três vezes.. – Mas, enfim, 38788 sempre inspira mais confiança que 345…
* * *
Pois, senhores, no dia seguinte o n.0 38788 saiu branco, e o n.0 345 foi premiado com a sorte grande.
* * *
Imagine-se o desespero de nhanhã:
– Então, eu não digo que és o rei dos caiporas?
– Perdoa, nhanhã, mas desta vez não fui o rei: tu é que foste a rainha…
– Cala-te! Se não fosses um songamonga, não me terias feito a vontade! Ter-me-ias roncado grosso!
– Ora essa!
– Um marido não se deve deixar dominar assim pela mulher!
– Olha que eu pego na palavra…
– Trocar um bilhete de loteria! Que absurdo!…
– Absurdo aconselhado por ti…
– Mas tu já não estás em idade de receber conselhos!
– Bom; de hoje em diante baterei com o pé e roncarei grosso todas as vezes que me contrariares! Esta casa vai cheirar a homem!…
A boas horas vêm esses protestos de energia!
E exclamando com os punhos cerrados e os olhos voltados para o teto: “Cem contos de réis”!, nhanhã deixou-se cair sentada numa cadeira, e desatou a chorar.
* * *
Mal que a viu naquele estado aflitivo, Reginaldo correu para junto dela, e disse-lhe com muito carinho:
– Sossega. Eu fiz uma coisa… mas vê lá! não ralhes comigo…
– Que foi?
– Não troquei o bilhete!
Não trocaste o bilhete? gritou nhanhã erguendo-se de um salto, com os olhos muito abertos.
– Não! pois eu fazia lá essa asneira! Seria deixar fugir a fortuna, depois de a ter agarrado pelos cabelos!
– Compraste então o outro bilhete?
– Comprei…
– Nesse caso… estamos ricos?
– Temos cem contos.
– Ora, graças que um dia fizeste alguma coisa com jeito!
– Qual! eu continuo a ser o rei dos caiporas.
– Não digas isso!
– Digo, porque se o não fosse, o número 38788 teria apanhado a sorte imediata…
(Correio da Manhã, 16 de outubro de 1904)
O RELÓGIO
Arthur Azevedo
Quando não vens, formosa desumana,
E, saudoso de ti, sem ti me deito,
Fica tão espaçoso o nosso leito,
Que me parece o campo de Sant'Anna!
Quando não vens, oh! pálida tirana,
Torna-se lúgubre o quartinho estreito!
Com muitas flores, flor, debalde o enfeito:
Falta-lhe a flor das flores soberana.
MUSA INFELIZ
Arthur Azevedo
Todo o cuidado nestas rimas ponho;
Musa, peço-te, pois, que me remetas
Versos que tenham rútilas facetas,
E não revelem trovador bisonho.
Meia-noite bateu. Sai risonho...
Brilhava — oh, musa, não me comprometas! —
O mais belo de todos os planetas
N'um céu que parecia um céu de sonho.
O mais belo de todos os prazeres
Gozei, à doce luz dos olhos pretos
Da mais bela de todas as mulheres!
Pobres quartetos! míseros tercetos!...
Musa, musa infeliz, dar-me não queres.
O mais belo de todos os sonetos!...
DESENGANO
Arthur Azevedo
A pensionista pálida que gosta
(Fundada pretensão!) que a digam bela,
E do colégio, à tarde, na janela,
Para dar-me um sorriso se recosta;
Que me escreve nas férias, de Bemposta,
Aonde vai visitar a parentela,
Pedindo-me que não me esqueça dela
E dando-me uns beijinhos..., pela posta;
Essa ninfa gentil dos olhos pretos,
Essa beleza de anjo... oh, sorte vária;
Vergonha eterna para os meus bisnetos!
Com um pançudo burguês, uma alimária
Que não a sabe amar, nem faz sonetos,
Vai casar-se amanhã na Candelária.
AS ESTÁTUAS
Arthur Azevedo
No dia em que na terra te sumiram,
Eu fui ver-te defunta sobre a eça,
Fechados para sempre — oh, sorte avessa!
Aqueles olhos que me seduziram.
À luz do sol uma janela abriram,
E o jardim avistei onde, oh, condessa,
Uma noite perdemos a cabeça,
E as estátuas de mármore sorriram...
Saíste por aquela mesma porta
Onde outrora os teus lábios me esperaram,
Cheios do amor que ainda me conforta.
Quando o jardim saudoso atravessaram
Seis homens com o esquife em que ias morta,
As estátuas de mármore choraram!
ARRUFOS
Arthur Azevedo
Não há no mundo quem amantes visse
Que se quisessem como nos queremos;
Mas hoje uma questiúncula tivemos
Por um caprichosinho, uma tolice.
— Acabemos com isto! ela me disse,
E eu respondi-lhe assim: — Pois acabemos!
— E fiz o que se faz em tais extremos:
Peguei no meu chapéu com fanfarrice,
E, dando um gesto de desdém profundo,
Saí cantarolando. Está bem visto
Que a forma ali contradizia o fundo.
Ela escreveu. Voltei. Nem Jesus Cristo,
Nem minha Mãe, voltando agora ao mundo,
Foram capazes de acabar com isto!
ALICE
Arthur Azevedo
(Grafia original)
I
Num precipicio sentada,
Vi-te um dia descuidada,
Tranquillamente a seis mar;
Molhavam-te os pés mimosos,
Descalços e melindrosos,
Pérfidas aguas do mar.
Inda eras muito criança;
Eras a meiga esperança
De uma formosa mulher;
Deslisavam-se os teus dias
Sob um céo de louçanias,
Sem uma nuvem sequer.
Em que pensavas, Alice?
Talvez numa gulodice...
Numa boneca, talvez...
Num anjo que viste em sonhos
E tinha uns olhos risonhos,
E mil carinhos te fez...
Eu que tinha mais juizo,
Que era um sujeito de sizo,
Muito mais velho que tu,
Ao precipicio arranquei-te,
Onde por mero deleite
Punhas o pézinho nú.
II
Já se passaram doze annos
E outros tantos desenganos
Depois que o facto se deu...
Hoje estás uma senhora...
Tens um esposo que te adora...
Um pouco menos do que eu.
E's elegante; frequentas
As salas mais opulentas,
Do high-life os áureos salões;
E ouves, muito compassiva,
A rhetorica nociva
De irresistíveis leões...
Tudo isso te compromette...
Se já te chamam coquette!
Se, na rua do Ouvidor,
Em certo grupo, diziam
Que em teus lábios se saciam
Lábios sedentos de amor !
Não sei, Alice, se erraste;
Não sei se as azas manchaste
Mais alvas que a flôr de liz.
Sei que te mostras affavel
Quando um leão desfructavel
Frivolidades te diz...
III
Oh! se eu pudesse, senhora...
Se eu pudesse, como outrora,
A grande quéda evitar,
Desviando os teus pés mimosos,
Descalços e melindrosos,
Das aguas negras do mar!...
O RETRATO
Arthur Azevedo
O meu querido amigo Emílio Rouède, que há dias faleceu, foi um homem espirituoso, que forneceria matéria para muitos contos ligeiros.
Em vez de inventar uma anedota, vou contar-vos uma historieta em que ele figurou, e que tem, por conseguinte, o mérito de ser autêntica.
A coisa passou-se há um quarto de século pouco mais ou menos. Emílio Rouède tinha se casado havia poucos meses, e estava estabelecido com um ateliê de Fotografia, na Rua dos Ourives, numa casa que foi demolida quando se tratou de construir a Avenida Central.
Um dia, Mme. Rouède, que era uma linda senhora, saiu sozinha à rua, e foi acompanhada por um impertinente que, vendo-a sorrir, supôs que ela sorrisse não dele mas para ele.
Ela entendeu que o mais prudente era voltar para casa, e assim fez; o conquistador, porém, continuou a segui-la imperturbavelmente.
Chegando à porta da casa, a moça olhou para trás, a fim de verificar se continuava a perseguição, e esse movimento animou o homenzinho, ao que parece: quando ela entrou, ele entrou também; ela subiu a escada, ele também subiu.
Emilio Rouède estava no atelier, de blusa, a trabalhar, e, ouvindo os passos de sua esposa, foi esperá-la no topo da escada. O sujeito, quando reparou que havia ali um homem, não teve mais tempo de fugir. Mme. Rouède apresentou-o ao marido:
– Aqui tens este senhor que me tem acompanhado por toda parte, e entrou comigo. Não sei o que pretende.
– Sei eu, acudiu prontamente o fotógrafo. – Pretende tirar o retrato; não pode ser outra coisa.
E, voltando-se para o desconhecido, perguntou-lhe olhando por cima dos óculos, segundo o seu costume.
– Busto ou corpo inteiro?
O pobre diabo, que não sabia mais de que freguesia era, gaguejou:
– Busto... busto.
– Faça favor.
E levou uma hora a tirar-lhe o retrato, que foi pago, ficando o retratado de ir buscá-lo daí a três ou quatro dias. Este queria apenas meia dúzia, mas Emílio Rouède convenceu-o de que devia encomendar duas dúzias e meia.
Quando o freguês saiu, Emílio Rouède disse à esposa, que ria a bandeiras despregadas:
– Tenho pena de não ser dentista, em vez de fotógrafo!
Escusado é dizer que os retratos ficaram na Fotografia.
O PALHAÇO
Arthur Azevedo
(HISTÓRIA TRISTE PARA UM DIA ALEGRE)
Como se explica que o Saraiva, um homem que tomava a sério as coisas mais cômicas da vida, e, segundo afirmavam as pessoas que o conheciam mais de perto, nunca ninguém viu rir, como se explica que o Saraiva, na terça-feira gorda de 1885, saísse de casa depois de jantar e, sem dizer nada à senhora, comprasse uma vestimenta de palhaço, uma cabeleira e uma máscara, e com tais objetos se metesse no seu escritório na Rua do Hospício, de onde saiu disfarçado? Ninguém diria que escondido naquela roupa alegre, muito branca e semeada de rodinhas vermelhas, e por baixo daquela cabeleira azul, encimada por um chapeuzinho minúsculo e pontiagudo, e por trás daquela carranca jocosa, que ria de um rir comunicativo, estivesse o grave comerciante, que parecia haver nascido para vida monástica.
A esposa desse urso, D. Balbina, era, quando se casou, uma rapariga expansiva e risonha; teve, porém, que se submeter ao feitio dele: tornou-se tão séria e tão sensaborona como o Saraiva, e, sozinha em casa, sem filhos, sem amigas, porque o marido não queria visitas, aborrecia-se muito.
Aborrecia-se tanto que procurou uma distração, e encontrou-a num belo rapaz, seu vizinho, que, de vez em quando, pulava o muro do quintal para fazer-lhe companhia, e consolá-la daquele silêncio e daquela solidão.
Infelizmente para ela, outro vizinho, por inveja ou simplesmente por maldade, escreveu uma carta anônima ao Saraiva, de que ele tinha um sócio de cuja existência não suspeitava – e ora aí está como se explica que naquela terça-feira gorda, depois de dizer a D. Balbina que ia para o escritório, onde se demoraria até tarde da noite, fechando uma correspondência que devia partir no dia seguinte, o austero e sisudo negociante foi se vestir de palhaço para apanhar a esposa em flagrante delito.
– Eu saio, os criados saem, pensou ele; se ela tem realmente um amante, é de supor que aproveite a ocasião para metê-lo em casa.
Bem pensado, porque, um quarto de hora depois de sair de casa o marido, o amante saltava o muro, e, naquela terça-feira gorda, apesar de ter ficado em casa, D. Balbina divertiu-se mais que muitos foliões, nas patuscadas dos préstitos e dos bailes.
Havia já duas horas que o vizinho fazia companhia à solitária vizinha, quando a campainha do portão do jardim foi violentamente agitada. D. Balbina chegou à janela e avistou um tilburi, cujo cocheiro, mal que a viu, gritou:
– Mande cá uma pessoa, minha senhora!
Não havia um criado em casa. D. Balbina teve que ir pessoalmente abrir o portão.
– Que é? – Perguntou ela.
– Minha senhora, este palhaço tomou o meu tilburi, e mandou tocar para esta casa; mas, em caminho, parece que teve uma apoplexia e morreu!
Efetivamente, o Saraiva, homem sanguíneo, que não pensou nas consequências de pôr aquela cabeleira e aquela máscara depois de jantar, tinha morrido no tilburi.
Deixo ao leitor o cuidado de pensar no espanto e na confusão que isso causou, e na tragicômica anomalia daquele negociante austero, estendido morto num canapé, e amortalhado em vestes de palhaço.
Só direi que D. Balbina, passado o período do luto, esposou o solicito vizinho que a consolava naquele silêncio e naquela solidão.
E até hoje, e lá se vão mais de vinte anos, ela não atinou com o motivo que levou o seu primeiro marido a vestir-se de palhaço... para morrer.
O PAULO
Arthur Azevedo
Se o senhor conhecesse o meu amigo Paulo, com certeza o estimaria: era um excelente rapaz, um belo camarada.
Há dezesseis anos que ele se tinha casado, por amor, com uma linda moça, e nunca houve marido mais amante, mais solícito, mais cumpridor dos seus deveres, para empregar aqui esta frase cômoda, em que o vulgo envolve todas as virtudes maritais.
Ao cabo de um ano de casamento, nasceu ao Paulo uma filha que completou a sua felicidade, e fez com que ele se considerasse a mais venturosa das criaturas humanas.
Essa ilusão durou muito tempo, durou até o dia em que o pobre rapaz, perdendo o emprego que tinha, e arranjando outro menos rendoso, foi obrigado a mudar-se para uma casa mais modesta e a restringir as suas despesas. A mulher, que gostava muito de se embonecar e de se divertir, achou que isso era a miséria e o deu a perceber ao marido. Este afligiu-se tanto que adoeceu.
Em janeiro deste ano, uma tarde, voltando para casa, depois do trabalho, o Paulo não encontrou a mulher.
– Que é de tua mãe? – Perguntou à filha.
– Saiu; não me disse onde ia, mas deixou uma carta para papai.
Ele sentiu logo um grande abalo no coração e teve um terrível pressentimento. As mulheres que abandonam o domicílio conjugal fazem, por via de regra, como os homens que se matam: deixam uma carta. O Paulo sabia disso e tremeu.
Não se enganava. A desgraçada deixou-o e deixou também a filha, uma pobre moça de quatorze anos, que precisava tanto dos cuidados maternos.
O Paulo era forte de coração, mas fraco de espírito; o golpe aniquilou-o; entretanto, fez das fraquezas força e continuou a viver e a trabalhar por amor da filha, que confiou a uma família amiga.
Passados alguns meses, a mulher, que tinha ido viver em companhia de um amante, sentiu saudades da menina, e tentou reavê-la. Não o conseguindo, naturalmente, por meio de súplicas e sabendo que não tinha a lei por si, a desgraçada teve uma ideia monstruosa, talvez sugerida pelo seu digno amante: escreveu uma carta ao marido afiançando-lhe que ele não era pai daquela criança.
A carta infame produziu o desejado efeito: o pobre Paulo, depois de alguns dias de profunda melancolia, teve um violento acesso de loucura e foi internado no Hospício.
Ao cabo de algum tempo, foi removido para a casa de um parente, mas durou apenas uma semana. Faleceu anteontem e foi enterrado ontem.
A viúva, provavelmente, vai casar-se com o amante, e a infeliz menina ficará sob a tutela do padrasto.
Aí tem, meu ilustre amigo, um caso que se passou neste ano de 1908, caso verídico e pungente, pelo qual substituo hoje um conto inventado, sem mesmo disfarçar o nome do meu desventurado amigo, que se chamava realmente Paulo.
O MEU CRIADO JOÃO
Arthur Azevedo
No dia em que ele me apareceu, recomendado por uma senhora a quem me queixara da falta de um bom criado, fiz-lhe as perguntas usuais:
– Como se chama?
– João.
– É português?
– Não, senhor; sou da Ilha da Madeira.
– Ora esta! Se é da Madeira, é português!
– Não, senhor: sou ilhéu.
– Bom; quanto quer ganhar por mês?
– Contento-me com que o patrão me der, contanto que não seja menos de cinquenta mil-réis, casa e comida.
Fiquei com o João.
Nesse mesmo dia, encontrei-o a lavar as mãos com o meu sabonete fino, que eu reservava, naturalmente, para o meu uso exclusivo.
– Que é isso? Você serve-se do meu sabonete?
– Não, senhor, não me estou servindo dele; estou a lavá-lo, porque estava sujo de espuma.
A minha vontade foi mandá-lo embora, mas não o fiz.
Não o fiz e, dali a três dias, entrando em casa, encontrei em cacos, na cesta dos papéis inúteis, uma estatueta da Vênus de Milo, que era de gesso, pouco valia, mas eu estimava muito por ser uma reprodução muito fiel do famoso mármore do Louvre.
Fiquei furioso:
– Quem quebrou isto?
– Fui eu, sim senhor, mas não foi por querer, respondeu-me ele a rir-se.
– E você ainda em cima se ri!
– Ora, patrão! Já faltavam os dois braços à boneca!
Não o mandei embora.
Uma ocasião, os marinheiros de um dos nossos navios de guerra recolheram a bordo um pobre cão naufragado, exausto já de tanto lutar com as ondas. Como já houvesse cão a bordo, e ninguém o quisesse, veio o animal para a terra, trazido por um oficial de Marinha que mo ofereceu.
Era um cão ordinário, mas inteligentíssimo. Os seus primitivos donos tinham-lhe ensinado umas tantas habilidades; ele comprazia-se em mostrar-mas, e ficava muito satisfeito, agitando vertiginosamente a cauda e pondo a língua de fora, quando eu lhas aplaudia, acariciando-lhe o pelo. Era muito mais inteligente que o João.
Uma vez, achavam-se reunidos em minha casa alguns amigos, e encantavam-nos as habilidades do cão, que estava presente. O João ouvia calado, mas notava-se na sua fisionomia o desejo de intervir na conversa. Afinal interveio:
– O patrão esqueceu-se de contar aos senhores a maior habilidade deste cão!
– Qual é? Qual é? Perguntaram todos em coro.
– Este cão que aqui estão vendo, senhores, sabe nadar!
Ao jantar, como ele nos viesse dizer, muito compungido, que na venda não havia nem mais uma pedrinha de gelo, para remédio, um dos rapazes exclamou, gracejando:
- Oh, senhor! Pois nessa venda não há nem do tal gelo em latas, que hoje se encontra em toda a parte?
O João disfarçou, saiu, e pouco depois voltou com esta notícia:
– O dono da venda diz que tinha, mas acabou-se.
– O quê?
– Gelo em latas.
Imaginem que risota!
Eu recomendara terminantemente ao meu criado que me não deixasse dormir além das oito horas da manhã; ele, porém, não tinha tido jamais ocasião de cumprir essa ordem, porque às sete já eu estava de pé. Certa manhã, tendo-me deitado bastante tarde, acordei e, consultando o relógio, vi que eram já nove horas.
– Ó, João!
– Patrão?
– Pois não lhe tenho eu dito um milhão de vezes que não me deixe dormir além das oito horas?
O João sorriu – o mesmo sorriso de quando quebrou a Vênus de Milo –, coçou a cabeça e respondeu:
– Eu vim acordar o patrão, vim.
– E então?
– Mas não acordei o patrão porque o patrão estava a dormir!
Mas a melhor foi esta: Uma noite em que lhe mandei oferecer cerveja às visitas, ele apareceu na sala com uma bandeja em que havia seis copos cheios e dois vazios.
– Para que esses copos vazios, João?
– É para alguém que não queira.
Dessa vez, pu-lo no olho da rua!
O LENCINHO
Arthur Azevedo
O Juvêncio, explicador de matemáticas, era um homem lúgubre. Nunca ninguém o viu rir, nunca ninguém lhe apanhou a expressão do olhar através dos óculos escuros.
Tinha as faces encovadas, o nariz adunco, a barba crescida. Trajava sempre de preto e usava chapéu alto. Era distraído e parecia estar sempre vagando pelos intermúndios do infinito, levado sobre uma nuvem de algarismos.
Numa dessas belas tardes cariocas, em que todas as mulheres bonitas vão assoalhar na Avenida a sua beleza e as suas toilettes, o explicador Juvêncio tomou, com alguma dificuldade, o bonde no Largo da Carioca, para ir dar uma explicação no Catete. Era à hora de mais afluência. Os lugares eram conquistados à força de agilidade e destreza.
O explicador Juvêncio ficou, por acaso, num bonde cheio de mulheres, num bonde que parecia antes a barca de Citera, pintada por um Watteau moderno. Que pena! O explicador Juvêncio, que era um viúvo positivista, não tinha olhos para a porção mais bela da humanidade. No banco em que ele se sentou estavam três cocottes espaventosas, que o embriagavam com uma porção de capitosos perfumes.
O banco da frente estava ocupado por uma família: três elegantes senhoritas, acompanhadas pela mãe, que poderia passar pela irmã mais velha. As três senhoritas falavam pelos cotovelos, comentando tudo quanto tinham visto durante o passeio.
Uma delas, por sinal que a mais bonita, agitava entre os dedos um pequenino lenço branco, um mimo de lenço em que nariz algum se atreveria a assoar-se. No calor da conversa, a senhorita fez um gesto, e o lenço, escapando-lhe da mão, foi cair – vejam que fatal casualidade! – Foi cair mesmo em cima da braguilha do explicador Juvêncio.
Este, que ia entretido a ler um livro de matemáticas, não deu absolutamente pela coisa. As cocottes riram a bom rir, mas nenhuma se atreveu a ir buscar o lenço onde caíra para entregá-lo à dona. Entretanto, a que estava junto do explicador Juvêncio deu-lhe uma cotovelada e, com um olhar, chamou-lhe a atenção para o lenço.
O que se passou então foi extraordinário. O explicador Juvêncio disse consigo: – Quando me hei de corrigir das minhas distrações? Pois não é que deixei ficar de fora um pedaço da fralda da camisa? E imediatamente, cobrindo com o livro o que estava fazendo, empurrou o lencinho para dentro da braguilha.
Depois, tirou o chapéu à cocotte, dizendo: – Muito obrigado, minha senhora – e continuou a ler imperturbavelmente.
O GRAMÁTICO
Arthur Azevedo
Havia na capital de uma das nossas províncias menos adiantadas certa panelinha de gramáticos, sofrivelmente pedantes. Não se agitava questão de sintaxe, para cuja solução não fossem tais senhores imediatamente consultados. Diziam as coisas mais simples e rudimentares num tom pedantesco e dogmático, que não deixava de produzir o seu efeito no espírito das massas boquiabertas. Dessa aluvião de grandes homens destacava-se o Dr. Praxedes, que almoçava, merendava, jantava e ceava gramática portuguesa.
Esse ratão, bacharel formado em Olinda, nos bons tempos, era chefe de seção da Secretaria do Governo, e andava pelas ruas a fazer a análise lógica das tabuletas das lojas e dos cartazes pregados nas esquinas. "Casa do Barateiro, – sujeito: esta casa; verbo, é; atributo, a casa; do barateiro, complemento restritivo." O Dr. Praxedes despedia um criado, se o infeliz, como a soubrette das Femmes Savantes, cometia um erro de prosódia.
E quando submetia os transeuntes incautos a um exame de regência gramatical? Por exemplo: encontrava na rua um menino, e este caía na asneira de perguntar muito naturalmente:
– Sr. Dr. Praxedes, como tem passado?
– Venha cá, respondia ele, agarrando o pequeno por um botão do casaco: "Sr. Dr. Praxedes, como tem passado?" – Que oração é esta?
– Mas... é que estou com muita pressa...
– Diga!
– É uma oração interrogativa.
– Sujeito?
– Sr. Dr. Praxedes.
– Verbo?
– Ter.
– Atributo?
– Passado.
– Bom. Pode ir. Lembranças a seu pai.
E, com uma ideia súbita, parando:
– Ah! Venha cá! Venha cá! Lembranças a seu pai – que oração é esta?
– É uma oração... uma oração imperativa.
– Bravo! – Sujeito?
– Está oculto... é você.... Você dê lembranças a seu pai.
– Muito bem. Verbo?
– Dar.
– Atributo?
– Dador.
– Lembranças é um complemento...?
– Objetivo.
– A seu pai...?
– Terminativo.
– Muito bem. Pode ir. Adeus.
* * *
Depois de aposentado com trinta anos de serviço, o Dr. Praxedes recolheu-se ao interior da província, escolhendo, para passar o resto dos seus gloriosos dias, a cidadezinha de ***, seu berço natal. Aí, advogava por muito empenho, continuando a exercer a sua missão de oráculo em questões gramaticais.
Raramente saia à rua, pois todo o tempo era pouco para estar em casa, respondendo às numerosas consultas que lhe dirigiam da capital e de outros pontos da província.
* * *
A cidadezinha de *** dava-se ao luxo de uma folha hebdomadária, o Progresso, propriedade do Clorindo Barreto, que acumulava as funções de diretor, redator, compositor, revisor, paginador, impressor, distribuidor e cobrador. Ninguém se admire disso, porque o Barreto – justiça se lhe faça – dava mais uso à tesoura do que à pena. O vigário, que tinha sempre a sua pilhéria aos domingos, disse um dia que aquilo não era uma tesoura, mas um tesouro.
Entretanto, se no escritório do Progresso a goma arábica tinha mais extração que a tinta de escrever, não se passava caso de vulto, dentro ou fora da localidade, que não viesse fielmente narrado na folha.
Por exemplo.
"O Sr. Major Hilarião Gouveia de Araújo acaba de receber a grata nova de que seu prezado filho, o jovem Tancredo, acaba de concluir os seus preparatórios na Corte, e vai matricular-se na Escola Politécnica, da referida Corte.
"Cumprimentamos cheios de júbilo o Sr. Major Hilarião, que é um dos nossos mais prestimosos assinantes, desde que se fundou a nossa folha."
* * *
Em fins de maio de 1885, a notícia do falecimento de Victor Hugo chegou à cidadezinha de ***, levada por um sujeito que saíra da capital justamente na ocasião em que o telégrafo comunicara o infausto acontecimento.
O Barreto, logo que soube da notícia, coçou a cabeça e murmurou:
– Diabo! Não tenho jornais.... Como hei de descalçar este par de botas? A notícia da morte de Victor Hugo deve ser floreada, bem escrita, e não me sinto com forças para desempenhar semelhante tarefa!
Todavia, molhou a pena, que se parecia um tanto com a espada de certos generais, e rabiscou: Víctor Hugo.
Ao cabo de duas horas de cogitação, o jornalista não escrevera nem mais uma linha...
* * *
Mas, oh! Providência! Nesse momento passou pela porta da tipografia o sábio Dr. Praxedes, a passos largos, medidos e solenes, e uma ideia iluminou o cérebro vazio de Clorindo Barreto.
– Doutor Praxedes! Doutor Praxedes! Exclamou ele. Tenha vossa senhoria a bondade de entrar por um momento. Preciso falar-lhe.
O Dr. Praxedes empacou, voltou-se gravemente e, conquanto embirrasse com o Barreto, por causa dos seus constantes solecismos, entrou na tipografia.
– Que deseja?
O redator do Progresso referiu a notícia da morte do grande poeta, confessou o vergonhoso embaraço em que se achava, e apelou para as luzes do Dr. Praxedes.
Este, com um sorriso de lisonjeado, sorriso que logo desapareceu, curvando-se-lhe os lábios em sentido oposto, sentou-se à mesa com a gravidade de um juiz, tirou os óculos, limpou-os com muito vagar, bifurcou-os no nariz, pediu uma pena nova, experimentou-a na unha do polegar, dispôs sobre a mesa algumas tiras de papel, cujas arestas aparou cuidadosamente com a... com o tesouro, chupou a pena, molhou-a três vezes no tinteiro infecundo, sacudiu-a outras tantas, e, afinal escreveu:
"Falecimento. – Consta, por pessoa vinda de *** ter falecido em Paris, capital da França, o Sr. Victor Hugo, poeta insigne e autor de várias obras de mérito, entre as quais um drama em verso, Mariquinhas Delorme (Marion Delorme) e uma interessante novela intitulada Nossa Senhora de Paris (Notre-Dame de Paris).
"O ilustre finado era conde e viúvo.
"O seu falecimento enluta a literatura da culta Europa.
"Nossos sinceros pêsames à sua estremecida família."
* * *
O Dr. Praxedes saiu da tipografia do Progresso, e continuou o seu caminho a passos largos, medidos e solenes.
Ia mais satisfeito e cheio de si do que o próprio Sr. Victor Hugo quando escreveu a última palavra da sua interessante novela.
O Barreto ficou radiante, e, examinando a tira de papel escrita pelo gramático, exclamou, comovido pela admiração:
– Nem uma emenda!