SOVA BEM MERECIDA
Arthur Azevedo
Numa das ruas de uma das estações dos subúrbios vivia, não há muito tempo, numa casa térrea, edificada no meio de um terreno bem plantado, uma família composta de uma senhora quarentona e três rapazes, seus filhos.
A senhora, que se chamava D. Eulália, e era conhecida no bairro pela sua extrema bondade, passava por viúva, mas a verdade é que tinha marido vivo, o Araújo, o maior desordenado que Deus deitou ao mundo.
Durante os cinco primeiros anos de casado, o Araújo, apesar de jogador, foi um marido como outro qualquer - cumpria satisfatoriamente as obrigações conjugais e não dava à esposa motivo para grandes queixas, mas depois do quinto ano, quando já lhe haviam nascido dois rapazes e estava para nascer o terceiro, enrabichou-se por uma atriz de terceira ordem, desapareceu de casa de família e nunca mais lá voltou.
Por mais estranho que pareça ao leitor habituado à tranquilidade e boa harmonia do lar, o caso é que se passaram vinte anos sem que esse extraordinário marido tornasse a ver mulher e filhos.
Os rapazes cresceram e se empregaram sem conhecer o pai senão de nome. Felizmente eram bons filhos: moravam todos três com D. Eulália, a quem nada faltava.
Releva dizer que o marido - justiça se lhe faça! - desde que desapareceu de casa mandava à família todos os meses dinheiro pelo correio, estivesse onde estivesse, e lá uma vez por outra, quando o jogo lhe proporcionava uma boa boiada, lá ia mais uma lambuja.
Jogador de profissão, o Araújo percorria o Brasil inteiro, de norte a sul, bancando ou apontando, perdendo aqui para ganhar acolá, ora, muito por cima, ora muito por baixo, mas sempre ativo, alegre e sadio, como se lhe não doesse nada na consciência.
De vez em quando aparecia com uma nova mulher ao seu lado. A atriz pela qual desprezara a esposa tinha sido cem vezes substituída.
Entretanto, aconteceu-lhe o mesmo que o Aretino: apaixonou-se deveras pela ultima das suas amantes, e teve um sério desgosto quando, entrando em casa uma noite, não a encontrou, mas uma carta em que ela lhe comunicava que, estando farta da companhia de um jogador tresnoitado, tinha encontrado outro amante menos anormal.
O Araújo, que, aliás, tinha ganho alguns contos de réis aquela noite, julgou enlouquecer, e teve um acesso de lágrimas. Todavia, passada a crise, serenou, e veio-lhe à lembrança, aguilhando-o pela primeira vez como um remorso, a família que abandonara havia vinte anos.
Não sei que resolução se passou então na alma daquele homem, o que sei é que ele resolveu ir ter, mesmo àquela hora, com a sua infeliz mulher e pedir-lhe perdão de todos os seus erros.
Saiu de casa, tomou um tilburi, que o fez chegar à estação da central a tempo de apanhar o último trem dos subúrbios.
Na estação ficou embaraçado por não saber onde era a casa. Encontrou, porém, um polícia que o orientou, depois de interrogá-lo com desconfiança.
- Eu sou o marido de D. Eulália.
- D. Eulália é viúva.
- Todos assim pensam. É casada comigo, mas não nos vemos há vinte anos!
- O senhor chegou de viagem?
- Cheguei. Cheguei de uma longa viagem.
- Então desculpe, mas como andam muitos ladrões aqui no bairro... Da própria casa de D. Eulália roubaram uma noite destas não sei quantas galinhas.
E o rondante ensinou ao Araújo onde era a casa de D. Eulália.
O marido entrou com precaução, mas quando ia no meio do terreno, entre o portão e a casa, saltaram-lhe lá de dentro os três rapazes, armados de cacetes, e deram-lhe uma sova tremenda.
- Eu sou o marido de D. Eulália - gritava o desgraçado.
Felizmente D. Eulália, reconhecendo-lhe a voz, gritou aos rapazes:
- Basta, meninos, basta! É vosso pai!.
Cessou a pancadaria, mas o Araújo estava prostrado no chão, descadeirado, sem se poder levantar.
Os rapazes, pedindo-lhe muitas desculpas de o haverem tomado por ladrão, carregaram-no a pulso para dentro de casa, onde o deitaram na cama de um deles.
Ora, aí está como o Araújo voltou à casa depois de uma ausência de vinte anos.
É verdade que desta vez ficou.