O DILÚVIO DE CINQUENTA E QUATRO
Eram umas quatro horas da tarde, quando eu, com seis anos de idade, saí da nossa casa na Fazenda Mugiqui, no Cariri paraibano, com o meu irmão Boanerges, para um lugar chamado Lagoa, dentro da nossa propriedade, em busca de uma cabra parida que estava escondendo o cabrito.
Eu tinha seis anos e ele treze.
Depois de procurar sem sucesso pela cabra, meu irmão resolveu voltar pra casa, quando, de um momento pra outro, o céu começou a escurecer e um barulho feito o de um avião se fez presente entre o céu e a terra.
Lembro que, ainda confuso, fui jogado no pescoço do meu irmão que, a essa altura, já partia rumo à nossa moradia em velocidade fenomenal.
Recordo que, morrendo de medo, olhava pra baixo e não via os seus pés tocarem o chão.
Àquela altura do ano, já tínhamos boas chuvas e o marmeleiro fazia uma cortina nas margens das veredas daquele lugar, o que o tornava mais sombrio e pavoroso pra mim.
Depois de longa corrida sem nada me dizer, já olhando o alpendre da nossa casa, com os primeiros pingos descendo violentamente sobre as nossas costas e cabeças, é que vim me dar conta da tempestade que apenas começava a cair.
Entramos em casa, eu ainda tremendo – já havia todo um ambiente preparado para aquele evento: os tonéis e latas nas biqueiras e as imagens de santos e espelhos cobertos com panos nas paredes. Eram os cuidados da minha mãe e das minhas irmãs contra possíveis raios.
Era o que rezava a lenda dali.
A luz dos relâmpagos penetrava pelas frestas do telhado, portas e janelas clareando todos os cômodos da casa quase ininterruptamente e trovões monumentais sacodiam o chão com uma fúria jamais vista por nós pequenos.
Era como se estivéssemos num pequeno barco, enfrentando ondas gigantes dentro da noite escura.
Voltei a ver essa cena, lá na frente, quando vi os meus primeiros filmes no cinema.
Vez por outra, meu pai abria uma brecha da janela que dava pra o nascente e nós, os pequenos, dividíamos o espaço com o seu corpo imenso, na tentativa de ver alguma coisa lá fora, dentro da escuridão da noite.
O clarear dos relâmpagos nos vinha mostrar um imenso tapete branco de espuma que tomava a grande várzea em toda a sua extensão de comprimento e largura, a partir daquela imagem dava para avaliar o quanto era grande aquela chuva.
Sei que, lá pra nove e pouco, os pingos foram se tornando escassos até virarem uma sinfonia descompassada a bater nas latas e tonéis que, cheios, já nos vinham garantir água doce para o nosso consumo.
Recolhidos nas nossas camas, quem disse que o sono vinha?
Era a expectativa dos primeiros raios de sol – com o dia claro, poderíamos melhor contemplar aquele magnífico espetáculo da natureza que era a chuva, o inverno.
Dia clareando, sol ainda entre nuvens, já estávamos em pé na cozinha, em torno do fogão à lenha, em busca das primeiras notícias daquela chuva gigantesca.
Pedro Grande, um negro magro, comprido, de pescoço curto, cabeça pequena e olhos brancos e enormes parecendo ser maiores que o seu rosto, foi o nosso primeiro repórter, passando pra Carminha, minha irmã mais velha, tudo o que tinha visto desde a sua morada, num sítio chamado Pereiros, até a nossa, o Mugiqui, cerca de quase uma légua de distância.
“Foi um diluve, cumade, foi um diluve”, era o que repetia Pedro Grande, soprando um pires de café quente, que apoiava na ponta dos cinco dedos dobrados da mão.
Era um costume dos mais velhos daquela época.
Essa imagem de Pedro Grande ficou na nossa lembrança por muito tempo e vez por outra brincávamos, colocandodois pires brancos sobre os olhos, pra imitar os olhos enormes dele.
“Foi um diluve, foi um diluve.”
E foi mesmo. Logo depois, papai e alguns moradores que chegavam foram traçando um mapa do acontecido.
Foi de meu irmão Pedrinho, imediatamente mais velho, que veio o primeiro sobressalto:
– Cadê os cabritos?
Eram uns três cabritinhos “enjeitados” que criávamos em casa e que, coincidentemente, tinham dormido no baixio por onde teria passado toda aquela água.
Não houve tempo para algum de nós recolhê-los para a segurança do nosso quintal, onde costumavam dormir todas as noites quando voltavam do pasto.
Como já estavam incorporados ao nosso cotidiano, cada era chamado por um nome.
O meu, de estimação, era “Pichete”, de pelagem castanha e ondulada; batizei-o assim por causa do seu pelo crespo, igual ao cabelo dos sararás que andavam ali naquela ribeira.
Partimos eu e Pedrinho na carreira, pra detrás do baldo do nosso açude, onde eles costumavam pastar.
Logo que cruzamos a cerca divisória, já começamos a contemplar o que não queríamos: os dois mais velhos, ainda vivos, estirados na margem da cachoeira provocada pela sangria do açude, sem nenhuma possibilidade de salvação.
Com o coração em pedaços, temendo pelo pior, corri sem rumo, olhando em todas as direções, atrás do meu Pichete.
Não corri muito e lá estava o que restara de sua pequena carcaça: quarto com parte das costelas presa no arame farpado que atravessava a grota da sangria do açude; mais adiante, pude ver a sua cabeça presa ao que restou do seu pescoço, também pendurada no arame farpado da cerca.
Seus olhos ainda brilhavam em contraste com o sol, fitando aquele céu azul que o cobria.
Chorei, chorei muito até ser carinhosamente consolado pela minha mãe, que era um oceano de ternura.
As outras notícias foram chegando ao longo da manhã, o açude de tio Luiz, que era nosso vizinho, havia arrombado e levado com ele todo um enorme plantio de bananeiras que ele levara anos para cultivar.
Entre outras notícias mais ou menos ruins que chegavam, duas foram muito alvissareiras: havia nascido em meio àquela torrente, no Mugiqui, uma linda poltrinha alazã, filha de uma égua do meu irmão Boanerges; na Fazenda Matarina, também nossa vizinha, nascera Tânia, a segunda filha de uma prole de oito que viriam depois, da minha irmã Priscila e do meu cunhado Eugênio. Mas logo viriam os banhos de açude, pescaria de balaio, ramada e landuá.
Era o inverno que chegava e nos fazia esquecer todas as tristezas e desventuras.