Almanaque Raimundo Floriano
Fundado em 24.09.2016
(Cultural, sem fins comerciais, lucrativos ou financeiros)


Raimundo Floriano de Albuquerque e Silva, Editor deste Almanaque, também conhecido como Velho Fulô, Palhaço Seu Mundinho e Mundico Trazendowski, nascido em Balsas , Maranhão, a 3 de julho de 1936, Católico Apostólico Romano, Contador, Oficial da Reserva do Exército Brasileiro, Funcionário Público aposentado da Câmara dos Deputados, Titular da Cadeira nº 10 da Academia Passa Disco da Música Nordestina, cuja patrona é a cantora Elba Ramalho, Mestre e Fundador da Banda da Capital Federal, Pesquisador da MPB, especializado em Velha Guarda, Música Militar, Carnaval e Forró, Cardeal Fundador da Igreja Sertaneja, Pioneiro de Brasília, Xerife nos Mares do Caribe, Cordelista e Glosador, Amigo do Rio das Balsas, Inventor da Descida de Boia, em julho de 1952, Amigo da Fanfarra do 1° RCG, autor dos livros O Acordo PDS/PTB, coletânea de charges, Sinais de Revisão e Regras de Pontuação, normativo, Do Jumento ao Parlamento, com episódios da vida real, De Balsas para o Mundo, centrado na navegação fluvial Balsas/Oceano Atlântico, Pétalas do Rosa, saga da Família Albuquerque e Silva, Memorial Balsense, dedicado à história de sua terra natal, e Caindo na Gandaia, humorístico apimentado, é casado, tem quatro filhos, uma nora, dois genros e dois netos e reside em Brasília, Distrito Federal, desde dezembro de 1960.

Maurício Melo Júnior - Canto do Arribado terça, 08 de janeiro de 2019

UMA REPÚBLICA GENERALIZADA

 

 


UMA REPÚBLICA GENERALIZADA

Lembro-me muito bem, era um livro de capa predominantemente amarelo-ocre e marrom, com a foto de seu autor em destaque, publicado pela Nova Fronteira no ano da graça de 1981. Comprei no impulso, na impossibilidade de não ler depoimento tão sincero e pungente, honesto, escrito num tempo distante, 1934, mas que se aproximava do meu tempo de então. A Europa vivia o auge ideológico do Estado Nacional, com o totalitarismo – Mussolini, Hitler, Salazar – florescendo no fértil terreno adubado pelas feridas ainda vivas da Primeira Grande Guerra.

O livro foi escrito neste clima e aqui, em 1981, vivíamos a esperança do fim da ditadura militar, mas ainda lutávamos por mais liberdade e amadurecíamos à fórceps. Aos dezenove anos, oprimido pela gravata e o terno obrigatórios de meu primeiro emprego sério, no calor da secura brasiliense, vi o volume como um alento para todos os meus sonhos: O Mundo Como Vejo – Albert Einstein. Comprei e corri para ler, de um único fôlego, todo texto.

Uma epifania. Cada palavra, cada frase me encantava e adensava meu precário humanismo. Um trecho me marcou de tal forma que até hoje o sei de cor. Claro que nas várias mudanças da vida perdi o nostálgico volume, mas o livro foi reeditado, agora com uma capa azul e em formato de bolso. Comprei de imediato e corri para ver se o trecho correspondia às verdades de minha memória. E lá estava ele, sem trair minha velha companheira:

“A pior das instituições gregárias se intitula exército. Eu o odeio. Se um homem puder sentir qualquer prazer em desfilar aos sons de música, eu desprezo este homem… Não merece um cérebro humano, já que a medula espinhal o satisfaz. Deveríamos fazer desaparecer o mais depressa possível este câncer da civilização. Detesto com todas as forças o heroísmo obrigatório, a violência gratuita e o nacionalismo débil. A guerra é a coisa mais desprezível que existe. Prefereria deixar-me assassinar a participar desta ignomínia.”

Incontáveis vezes recitei o trecho pelos bares indizíveis de noites inumeráveis… Pode não parecer, mas já fui jovem e livre. E isso era possível, subverter a lógica do regime, mesmo quando já se encontrava em sua agonia final, era a ditadura encurralada, no dizer de Elio Gaspari, mas ainda era a ditadura, ou, no dizer do impagável Barão de Itararé, uma república generalizada.

Não tínhamos medo, ou pelo menos não demonstrávamos medo. E repetíamos o bordão de Juscelino Kubitscheck: “Deus poupou-me do sentimento do medo”, mesmo que muitos de nós não acreditávamos em Deus, mas a igreja, com vozes indomáveis como as de Dom Hélder Câmara, Dom Pedro Casaldáliga, Dom Evaristo Arns, defendia nossas crenças.

Medo mesmo, creio, tinham nossos pais. E talvez também tivessem razão, já tinham vivido o suficiente para saber que o ideal pode trazer dores e decepções em seu bojo. E eu fui punido por este medo, que alguns chamavam de prudência. Durante mais de um mês tive que ouvir esporros de meu pai depois que ele descobriu que, no Recife, participei de uma missa celebrada por Dom Hélder em favor da libertação de Cajá, seu assessor que estava preso em local ignorado.

Tentei até contra-argumentar: “Mas até Elis Regina estava na missa!” Isso somente fez aumentar o volume do esbregue que, entre outros fatos terríveis, lembrava-me o rapaz que morava próximo lá de casa. Era noivo e, angustiado, não admitia casar. Tinha ficado impotente pelos efeitos dos intensos choques que sofrera nos testículos durante as sessões de tortura nos porões da ditadura.

Lutamos pelo direito de poder contar todas estas histórias que me vieram à lembrança com as imagens do capitão da reserva Jair Bolsonaro fazendo flexões e distribuindo continências diante das câmaras de televisão. Será que voltamos a ter uma república generalizada? Bom, pelo menos à esfera do medo retornamos. Ontem vi no noticiário o general Augusto Heleno, ministro do Gabinete de Segurança, justificar que proibira os jornalistas de conduzir na mão seus celulares por medo que os aparelhos caíssem na cabeça do presidente.

Juro que não ficarei surpreso se o dito presidente voltar a usar capacete militar, afinal, ensinam os especialistas, a história sempre se repete como farsa. Por via das dúvidas, voltarei a ler Albert Einstein, pois é sempre prudente ter o humanismo à flor da pele.


Maurício Melo Júnior - Canto do Arribado segunda, 26 de fevereiro de 2018

O ANO NOVO CHEGOU

 

A gente tenta fugir do óbvio, mas sempre ele nos espreita. Foi o que se deu. Há mais de um mês tento esquecer o Ano Novo, mirá-lo como a sequencias natural dos dias, mas nem sempre isso é possível. As inquietações e provocações naturais do tempo nos levam às reflexões.

Foi o que se deu.

Pertenço ao time dos céticos. Embora já tenha caído na tentação das promessas e práticas para esperar um Ano Novo, cada vez mais vejo o período como a passagem natural de um dia qualquer para outro dia também qualquer, embora não me negue a participar das festas. As vezes até uso uma camisa branca, mais por mera convenção que por uma crença empedernida. Estou mesmo perdido no ceticismo, mas respeito as crenças de cada um. É o velho adágio: não acredito em bruxas…

Deve ser por isso que não resisto a ler todas as previsões que encontro nos jornais. Tarólogos, jogadores de búzio, cartomantes, bruxos e outros mais são meus autores preferido no período. Não chego ao requinte de colecionar previsões para checar sua veracidade no final do ano, mas a que se pensar neste lúdico exercício, pois, das leituras que lembro, apenas uma vi acontecer tudo que previu.

A façanha foi publicada no final de 1986 pelo jornal Papa-Figo, de saudosa memória (embora Bione garanta que ele ainda resiste). Eram tempos em que Sarney estava na presidência da República, Dilson Funaro no Ministério da Fazenda, Gustavo Kause no governo de Pernambuco e Miguel Arraes tinha sido eleito governador. Os quatro estavam presentes nas antevisões de Pai Dudu, “o único que não dá xabu, nem outras coisas”. Para provar a eficiência do místico, o jornal informava na legenda de uma foto: “A morte de Roberto Carlos, previsão do Pai Dudu acontecida há quinze. A única falha foi que até agora o defunto não soube”. E vinham as previsões para 1987. “Um político muito conhecido do PFL vai para o PMDB”. “Gustavo Krise vai iniciar o ano de ressaca”. “Miguel Arraes vai entrar pela porta que saiu”. “Um artista famoso vai morrer”. “A Polícia Federal vai continuar queimando fumo”. “Um poeta marginal lançará um livro”. “Funaro confessa em cadeia nacional que está arrependido”. “Sarney vai confessar que não tava sabendo de nada”. “Um vendedor de sanduíche natural da praia vai desistir da profissão”. “O importante para 87 não será o dinheiro, mas o verdadeiro amor e a salvação da alma”. “Os muros terão sossego em 87, pois não haverá eleições”.

Quem viveu e viu o período pode constatar que não houve um só erro nas previsões de Pai Dudu.

Bem, desviando um pouco o assunto, não faltarão nesta nação fubânica aqueles que comentarão meu atraso, posto que tal crônica deveria vir à tona nos idos de dezembro, mais tardar em janeiro. Entretanto, caro consulente, para não fugir do óbvio nem dos chavões, recorro à verve que prega que no Brasil o ano somente começa depois do Carnaval. Destarte, estou no prazo de validade. E vamos lá, pois Carnaval e previsões místicas aprendi a admirar ainda em Palmares, quando as La Ursas mambembes saiam às ruas e o Cabocolinho de Rabeca soltava gritos de guerras e belezas cênicas sobre os paralelepípedos atapetados pela fuligem da Usina Treze de Maio. Enquanto isso, na manhã já quente da Mata Pernambucana a Rádio Cultura dos Palmares abria seus microfones para que Omar Cardoso saudasse o povo: Bom dia. Bom dia mesmo.

Era um fenômeno. O professor Google ensina-me que o horóscopo diário redigido por Omar Cardoso era publicado em mais de cento e quarenta jornais e o livro que preparava todos os anos com suas previsões vendia mais de trezentos mil exemplares. Ele fez da astrologia uma grande empresa vendendo chaveiros, adesivos e todo tipo de bugiganga, mas tudo em nome de um futuro próspero e brilhante. Era consultado por políticos, artistas e homens de negócio. No início da carreira chegou a apresentar um programa de rádio defendendo a cultura caipira, o que salienta a força de suas antevisões, afinal quem apostou no sertanejo anda muito bem de vida. E foi ainda um dos maiores líderes do positivismo no país, daquela doutrina criada por Comte e fundadora de nossa República.
Em Palmares não sabíamos nada disso, apenas ouvíamos na Rádio Cultura a voz de Omar Cardoso a nos ensinar os caminhos da felicidade. E creio que cheguei a acreditar em tudo que dizia aquela voz forte e grave.

O problema é que logo cedo descambei para o jornalismo. E nas conversas de bares ouvia relatos de colegas que, diante do sufoco, sentavam frente à máquina de datilografia e escreviam as tais previsões do zodíaco. O fato é que o horóscopo era publicado junto com o que chamamos de matérias frias, textos escritos com antecedência e não necessariamente noticiosos. No tempo das rotativas mais arcaicas, tais cadernos entravam em máquina logo no início da noite e precisavam estar fechados lá pelo meio da tarde. Daí o sufoco e a necessidade de se recorrer ao primeiro ficcionista de plantão.
Hermilo Borba Filho chegou a escrever uma dessas colunas para um, jornal do Recife e Luis Fernando Verissimo foi um místico temporário em Porto Alegre, mas perdeu o emprego por pura preguiça. Para se livrar logo do fardo, costumava repetir as previsões feitas em dias anteriores, apenas mudando o signo. E aí descobriu que os leitores costumavam ler todo horóscopo e não apenas seu signo.

O jornalismo é uma escola de descrenças. E como nele militei, e milito, por quase toda vida, sou um cético empedernido. Mesmo assim continuo a ler as previsões publicadas nos jornais. Não lembro bem o que li lá no já longínquo dezembro. O vagar da lembrança aponta para um período de renovação de energias onde a prosperidade irá bater nos lares todos do Brasil. Tomara, afinal, agora que passado o Carnaval o ano verdadeiramente começou, que sejamos todos felizes.


Maurício Melo Júnior - Canto do Arribado segunda, 22 de janeiro de 2018

INSISTIMOS NA JUVENTUDE

 

Lembro-me bem de vê-las passar pelas ruas de Palmares. Não sei de que viviam, nem recordo se algum dia soube seus nomes, mas moravam numa casa da Rua do Fogo, por onde passávamos para encontrar o melhor ponto de banho no Rio Una.

Lembro-me bem de vê-las passar. Eram mãe e filha (parece que se chamavam Maria do Céu e Rosa, não guardo certeza) e estavam sempre escandalosamente vestidas. Roupas coloridas, brincos imensos, pulseiras ao longo de quase todo braço. Algumas vezes, na porta da farmácia de papai, quando ele me obrigava a cumprimenta-las, fui abraçado por elas. Cheiravam a naftalina. Eram velhas. A filha se fartava como amante de um senhor de engenho. Era um homem alto, de barriga farta e se vestia de branco, bastante sóbrio. A mãe, diziam, mantinha um insaciável fogo e se esbaldava quando encontrava alguém com quem dividir a cama. Pelo que posso resgatar da memória, a filha devia estar ali um pouco acima dos quarenta anos, já a mãe devia marchar pela casa dos sessenta. Para os padrões da época eram duas velhas libidinosa, luxuriosas.

Creio que eram felizes, enfim.

O tempo muda conceitos e crenças. Por aqueles dias, em 1975, numa palestra na Câmara dos Deputados, Gilberto Freyre anunciou que o Brasil, já então, era um país de velhos, que a longevidade não era mais um fenômeno, mas um fato cotidiano e caso não houvesse uma preocupação mais consequente com a previdência pública teríamos sérios problemas no futuro. Ninguém acreditou no que ouviu e muitos simplesmente gargalharam como se estivessem diante de uma grande piada.

Não se acreditava na sobrevivência da velhice.

O Garoto de Ipanema faz 50 Anos. Lembro de ter lido a manchete em alguma revista, talvez na Pop, um marco do jornalismo para a juventude, e a matéria falava de Tom Jobim e sua maturidade. Estávamos em janeiro de 1977, um tempo onde depois dos quarenta tudo era decrepitude e – creio que era Vanusa – se cantava o bordão do líder do movimento hippie americano: “não confio em ninguém com mais de trinta anos”.

Isso era levado tão a sério que, diante do pedido de um repórter para que desse um conselho aos jovens, o gênio Nelson Rodrigues não titubeou: “Envelheçam, pelo amor de Deus, envelheçam”.

O tempo muda conceitos e crenças.

Hoje já não se encontra quem queira envelhecer. E os mecanismos também se modernizaram e estão bem além dos bigodes e cabeleiras pintados de preto, tão ao gosto dos políticos. Gilberto Freyre também preconizou o fenômeno e no seu Modos de Homem & Modas de Mulher afirma que, assim como as antigas sinhazinhas usavam armações de arame por baixo dos vestidos para se dizerem boas parideiras, as mulheres modernas encontrariam mecanismos para alargar os quadris e com os mesmos objetivos de suas bisavós.

Pobres daquelas senhoras palmarenses que tinham apenas os recursos dos panos coloridos, dos brincos imensos, das pulseiras incontáveis, do batom explodindo como fogo nos lábios.

A verdade é que toda esta jovialidade me encanta. Eu a vejo como um reacender permanente de esperanças. Pena que haja uma grande concentração no aspecto estético. Gosto mais de sua derivação pelo universo da saúde, de sua preocupação com um amadurecimento – hoje é pecado falar em velhice – mais saudável e, claro, confortável.

Mas também a estética é fundamental. Apesar da miséria latente de nosso cotidiano, mesmo quem está ainda desfavorecido da sorte parece cuidar mais do corpo, se apresentar de maneira mais agradável aos olhos do próximo. Buscando um termo literário, é uma juvenília democrática a nos encantar. Um mundo, enfim, verdadeiramente novo e belo.

Lembro-me bem. Num dos vestibulares que enfrentei, na prova de Redação, teríamos que escrever sobre um único tema: a juventude hodierna. Gelei. Como desconhecia por completo o significado de hodierno cuidei de derivar e escrevi sobre a juventude como um todo. Em casa, ainda preocupado, corri para o dicionário, e lá estava: adjetivo. Relativo aos dias de hoje; atual. Naqueles idos eu sabia escrever com relativa segurança sobre a juventude. E daí fui tomar umas merecidas cervejas para comemorar o feito.

Talvez agora já não soubesse responder à questão do vestibular. Hoje tudo é jovem e belo e inteligente, como diria Vinicius de Moraes. O que consigo encontrar nesses dias é a boa tradição de nosso tempo, apesar da melancolia, na letra escrita por Aldir Blanc para uma canção de Cristovam Bastos, e que Paulinho da Viola interpreta com primor:

“Eu vim aqui prestar contas / De poucos acertos / De erros sem fim / Eu tropecei tanto as tontas / Que acabei chegando no fundo de mim. / (…) / Venha de onde vier / Ninguém lembra porque quer / Eu beijo na boca de hoje / As lágrimas de outra mulher / Cinquenta anos são bodas de sangue / Casei com a inconstância e o prazer / Perdoo a todos, não peço desculpas / Foi isso que eu quis viver /Acolho o futuro de braços abertos / Citando Cartola: Eu fiz o que pude /Aos cinquenta anos / Insisto na juventude.”

Que me perdoe Aldir, insistir na juventude não é pecado, mas amadurecer é também uma dádiva.


Maurício Melo Júnior - Canto do Arribado sábado, 02 de dezembro de 2017

OS ROMANCISTAS DE 17 (2) - ENTRE O DEUS E A VASILHA

 

“Vivos ali só Nando com a lamparina de querosene e Cristo na luz de sua glória. Diante do Cristo a temível balança onde os menores pecados de omissão e de intenção rompiam a linha da fé, deslocando com extravagância o fiel.”

Este, com certeza, foi um dos meus primeiros choques literários. Depois vieram outros, incontáveis, como a descoberta do humor em Machado de Assis e a Palmares onírica dos textos de Hermilo Borba Filho, mas as duas frases iniciais do romance Quarup, de Antonio Callado, um romancista da safra de 1917, foi um dos meus impactos inaugurais.

Li o livro, lembro bem, ainda quando me perdia pelas ruas interioranas de Palmares carregando sempre um livro a tiracolo e nos sonhos o desejo de escrever textos mirabolantes. Pensava num livro de contos com as histórias que ouvia dos mentirosos em meu cotidiano. Depois vi que seria plágio do Pantaleão de Chico Anísio que por sua vez é plágio do Alexandre de Graciliano Ramos. Depois pensei num romance onde um grupo de ciganos era massacrado pelas desditas de uma cidadezinha qualquer, depois pensei… os projetos iam se acumulando sem futuro na cabeça talvez por ser ainda um arremedo de escritor arremessado contra o muro-fortaleza intransponível da frase de Callado.

Por essa época li dele A Madona de Cedro, que comprei na banca de seu Odílo, como parte da coleção Literatura Brasileira Contemporânea que a Editora Três fazia chegar semanalmente nas bancas de revista. Fui também arrebatado por suas frases iniciais: “Quando a Quaresma estourava nos montes e nas igrejas, Delfino Montiel não era o único a pensar no afamado caso do roubo da Semana Santa. Só que Delfino sabia muito mais sobre o caso do que os demais.” Pelo caminho da leitura íamos aprendendo do sumiço de uma Madona barroca de uma igreja de Congonhas do Campo, em Minas Gerais. Quase um romance policial enfeitado com os apelos e os mecanismos dos romances históricos. Um primor.

Antonio Callado, fluminense nascido em Niterói nos idos de 1917, no entanto, começou com um fracasso. No final da década de 1940 escreve um romance, Moema, uma saga amazônica anunciando a miséria das comunidades indígenas. Teve a prudência de mandar os originais para três amigos: Otto Maria Carpeaux, Álvaro Lins e Guimarães Rosa. Ninguém aprovou e o projeto foi definitivamente esquecido. No entanto, ali já se mostrava uma das mais fortes características da prosa de Callado, a capacidade de viajar pelos variados cenários brasileiros. Seus romances vão de Palmares aos bares de Copacabana, passando pelo Xingu, São Paulo, Minas Gerais.

Esta mobilidade ficcional se deve à própria movimentação do jornalista que correu todas as plagas em busca de novos e inquietantes assuntos. Aliás, foi uma viagem ao sertão da Bahia, junto com a leitura de Os Sertões, de Euclides da Cunha, que o levou ao primeiro romance publicado, Assunção de Salviano, onde “os anseios de justiça social e o fanatismo religioso das populações sertanejas confluem no drama de Manuel Salviano, que, obrigado ao papel de taumaturgo por razões de tática política, se deixa empolgar por ele e acaba encontrando no martírio e na morte a plena realização de seus ardores místicos”, no dizer de José Paulo Paes.

O trabalho com os múltiplos cenários também lhe valeu uma forte crítica. Em dados momentos sua ficção escorrega pelo pitoresco, já que lhe faltava vivência mais real e presente para encontrar a verdadeira alma das pessoas que descreve. Isso se nota mais fortemente em Quarup, quando o ex-padre Nando se refugia em Piedade, em Jaboatão dos Guararapes, então quase uma aldeia de pescadores. Os tipos populares que circundam a vida do protagonista são realmente chapados e até estereotipados.

Dentro de todo este universo ficcional interessava mesmo a Callado era refletir sobre a opressão que se abatia no Brasil. Embora tenha sido marcado pelas vivências do período militar – Quarup foi o primeiro romance a denunciar a tortura nos cárceres da ditadura -, um aprofundamento nesta obra, revela que ela luta, e lutou, contra a opressão sobre os menos favorecidos. Não foi sem motivo, enfim, que o romancista foi preso por duas vezes, já no alvorecer do golpe militar, em 1964, e no inicio de seu recrudescimento, em 1968.

Mesmo sob as ameaças constantes, nunca se intimidou. Em 1977 lança Reflexos do Baile, onde um grupo de guerrilheiros, na tentativa de resgatar os amigos presos, planeja sequestrar a Rainha de Inglaterra, que está em visita ao Brasil.

Permanece com a temática política em seu romance seguinte, Sempreviva, de 1981, onde Quinho, um exilado político, volta clandestino ao Brasil para descobrir a verdade sobre a morte de sua mulher, assassinada numa sessão de tortura.

São livros tensos, doloridos, embora contados com a verve poética de Callado. Aliás, quando ele renuncia a esta verve, em seu último romance, A Expedição Montaigne, se volta à irrealização. Para contar a história do jornalista Vicentino Beirão, que resgata em um sanatório do interior baiano o camaiurá Ipavu, recorre à tônica picaresca. O plano é ir até o Xingu e montar uma revolta indígena para invadir as cidades e cobrar a dívida social que o país tem com aquelas nações quase extintas.

O problema é que, ao preferir trafegar pelo mundo do picaresco, termina por produzir um texto que não se realiza plenamente, nem como denúncia nem como gracejo. Uma pena.

Em 1985 Callado publica um breve texto sobre as condições fundiárias no Brasil, Entre o Deus e a Vasilha. O título ele foi buscar em Eça de Queirós que, numa carta a Ramalho Urtigão, escreve que o artista de posse do barro pode fazer um Deus ou uma vasilha, e sentencia: “creio que o Brasil optou pela vasilha”.

Antonio Callado passou sua vida de escritor mitigando a angústia de falar de um Deus supremo, sim, mas incapaz de aplacar o vazio das vasilhas carregadas pelos trabalhadores famintos. E, despido do panfletário, construiu uma obra consciente; forte.


Maurício Melo Júnior - Canto do Arribado domingo, 12 de novembro de 2017

OS ROMANCISTAS DE 1917 (1) – ENTRE O ESCÁRNIO E O PROTESTO

 

Poderia tê-lo conhecido.

Nos idos de 1976, quando morreu o escritor, eu, na quadra dos quatorze anos, andava pelas ruas de uma Palmares lúdica, embora real. Lia tudo que vinha às mãos, mas nunca ouvira falar do autor, misto de dramaturgo e prosador, nascido por ali nas longínquas horas de 1917.

Quando baixou em minha frente sua novela póstuma, Os Ambulantes de Deus, foram dois choques. Primeiro aprendi que a literatura se abrigava no quintal de minha casa, depois lamentei não poder mais conversar com o mágico, o brincante que manipulava as palavras e os sentimentos de um mundo renovado.

Hermilo Borba Filho, é nele que penso ao falar de romancistas nascidos em 1917. Conheço seis deles. Além de Hermilo, José Condé, Antonio Callado, Josué Montello, Herberto Sales e Gerardo Mello Mourão, este mais poeta que romancista, e que um dia também morou em Palmares. A safra foi fértil, enfim, e aparentemente eles nada têm em comum, além da luta vã no universo das palavras. Todos, no entanto, trazem em seus discursos, como esteio e esperança, o homem do povo, o elemento popular.

E certamente foi Hermilo o mais radical nesta quadra. Desde seu primeiro texto ficcional, o romance Os Caminhos da Solidão, o que nos traz é a força amarga e cruel do homem do interior, o homem que não se curva às sentimentalidades e constrói sua vida com os fios da adversidade. Um homem real e que se desnuda nas cidades que Gilberto Freyre chamou de rurbanas, como um dia foi Palmares.

Seu segundo romance, Sol das Almas, ainda na linhagem do realismo social nascido no consciente dos romancistas de 1930, inova na forma e nos dramas-feridas que toca. O médico viciado em mofina, a mulher que seduz os homens para sustentar o vício do marido, o pastor evangélico que se perde em pecados. E em torno o elemento popular a circular em bares e ruas da cidade, a embarcar no trem que leva ao mundo aberto do Recife.

Esta doce radicalidade de rechear o universo erudito com os traquejos do povo, já vem em sua dramaturgia. Chegou a adaptar para os palcos, em tom de farsa, A Dama das Camélias, de Alexandre Dumas, filho. A peça, com Dercy Gonçalves no papel principal e direção de Flávio Rangel, resultou num imenso fracasso. Não se entregou.

Com o manancial capturado lá na Commedia dell’Arte construiu um dos mais emblemáticos textos de nossa dramaturgia, A Donzela Joana, a história da heroína francesa contada em plena Restauração Pernambucana, entre 1645 e 1654, e encenada dentro de um espetáculo de bumba-meu-boi.

Curiosamente não participa, pelo menos ativamente, do Movimento Armorial, criado pelo amigo Ariano Suassuna em 1970. O movimento trazia em si a necessidade de dar um sentido erudito às manifestações culturais do povo, e esta foi a luta de toda a vida de Hermilo. Aliás, com a tetralogia Um Cavaleiro da Segunda Decadência, formada pelos romances Margem das Lembranças, A Porteira do Mundo, O Cavalo da Noite e Deus no Pasto, onde Ariano aparece como Adriano, usa a própria biografia para estabelecer a falta de limites entre as várias vertentes culturais. Rasgando todos os pudores descreve com maestria a trajetória, a formação de um intelectual permanentemente envolvido com o populacho.

E daí se atira ao experimento estético mais radical de sua obra, o romance Agá, onde usa de todas as formas literárias, até mesmo das histórias em quadrinhos, para falar da degradação política do mundo que o cerca. Escracha as ditaduras e as opressões com uma linguagem desabrida e sincera, embora profundamente cruel, mesmo sem perder um certo lirismo, o que torno seu discurso ainda mais tocante e real.

Aliás, começara este trabalho no ano anterior ao lançamento do romance, em 1973, quando lança o primeiro volume de uma trilogia de contos, O General Está Pintando. Neste trabalho que se completa com os volumes As Meninas do Sobrado e Sete Dias a Cavalo, é o brincante que fala mais alto. O escritor já despejara sua bile no último romance que escreveu e agora queria trabalhar, e trabalhou, uma estética mais voltada para o picaresco, onde a crítica social dança com a alegria sem perder sua condição de punhal.

A faina literária de Hermilo encerra num ponto altíssimo com a novela Os Ambulantes de Deus. Durante cinco anos seis personagens atravessam numa canoa o rio Una. Nesta aventura vão experimentando todas as desventuras naturais do homem da zona da mata pernambucana. As cheias do rio, a calda da usina, as injustiças sociais. Mais uma vez o escritor se volta contra a miséria de uma gente que não perder o riso e sabe transformar tudo em arte e beleza. E o fundamental: nada é dito com o maniqueísmo reducionista do pobre bom e do rico malvado. Os homens criados por Hermilo são contraditórios e dúbios como a própria natureza humana.

Ele diz isso também em sua dramaturgia que começa como adolescente ainda em Palmares. Depois aprimora o fazer de encenador e produz textos brilhantes, como João sem Terra, onde, sempre trabalhando no limiar do clássico e do popular, traça a corrida do vivente dos latifúndios nordestinos.

Hermilo viveu para sua arte. Não quis da vida muito além disso. E trazia consigo uma generosidade latente, viva. Escritor consagrado falava nos jornais de um o anônimo contista de Palmares que queria apresentar às editoras. Para Ariano Suassuna deu de presente os caminhos que levariam a toda uma esplêndida carreira. Apanhou Raimundo Carrero pelas mãos e o conduziu até o editor Ênio Silveira. Era assim um homem de arte e desprendimento que se encantou no topo de sua produção artística, no auge de seu amadurecimento humano.

Um dia a professora Cleonice Berardinelli, conhecedora maior da obra de Fernando Pessoa, disse-me que poderia ter conhecido o poeta português. E concluiu: “melhor isso não ter acontecido. Talvez eu me decepcionasse”. Acho que não me decepcionaria se tivesse um dia estado com Hermilo, mas o melhor é guardar comigo a imagem, certamente irreal, do escritor que me enche de surpresa e prazer em cada nova releitura.

 

 


Maurício Melo Júnior - Canto do Arribado sexta, 27 de outubro de 2017

AS CIGARRAS ESTÃO CANTANDO

Pensei em gritar: “Zefa, Zefa, as cigarras estão cantando, Zefa…” Mas lembrei que não havia nenhuma Zefa por perto e que o brado seria plágio ao imenso Jorge de Lima: “Zefa, chegou o inverno! / Formigas de asas e tanajuras! / Chegou o inverno! / Lama e mais lama / chuva e mais chuva, Zefa! / Vai nascer tudo, Zefa…”, canta ele em seu poema Inverno.

O fato é que as cigarras começaram a cantar no Cerrado e isso é anúncio de chuva. Desde que por aqui desembarquei que fui aprendendo os caprichos da natureza árida desse pedaço de chão. A seca intensa começa por volta de março, mais tardar em abril, e queima as árvores retorcidas, fazendo a gente acreditar que nenhum lastro de vida se abriga mais ali. Mas logo vem a florada dos ipês. Primeiro o ipê rosa, depois o amarelo e por fim o branco. É um perder as flores para que o outro comece a exibir suas cores. Há gente que acredita numa quarta florada, a do ipê roxo, mas, dizem os botânicos, isso é lenda urbana, ou melhor, somente uma outra tonalidade de um rosa mais caprichoso.

E aí cantam as cigarras… a gente caminha sob as árvores ouvido o zunido agudo, bonito para meu gosto de pouca musicalidade. E há quem se irrite com os bichinhos canoros. Chegam a acusa-los de não deixar a cidade dormir. Civilizadamente sugiro que tamponem os ouvidos, ou, cangaceiramente, mando que se danem da cidade ao ouvir o primeiro tilintar do cicadídeo.

Há séculos estes bichinhos são injustiçados. Creio que tudo começou com La Fontaine, no século XVII. Para exaltar a dignidade do trabalho, o francês criou a famigerada lenda onde a cigarra passa o verão a cantar enquanto a formiga trabalha. No inverno, sem mantimentos guardados e faminta, a cigarra procura a formiga que lhe nega ajuda. Mas só mesmo na Europa alguém pode pedir ajuda à formiga. Por aqui, há muito rezamos que ou o Brasil acaba com a saúva ou a saúva acaba com o Brasil. Destarte, coube a Millôr Fernandes resolveu a pendenga. Segundo nosso cronista, é verdade que a cigarra passou o verão cantando, mas, para frustração dos europeus, no inverno, com o dinheiro ganho com direitos autorais e apresentações, foi passear numa praia caribenha. Embora eu ache que ela desembarcou em Brasília… E aqui passou a anunciar as chuvas.

Sem bem que falo de um tempo onde até o calendário e o clima deitavam honestidade, seguiam rigorosamente suas determinantes. Lembro bem do Sete de Setembro neste Planalto que, como previu Juscelino Kubitschek, se tornou o centro das altas decisões nacionais. Pela manhã a multidão se encaminhava para o Eixão, onde desfilavam soldados orgulhosos de seus fuzis, de seus tanques de guerra, ao som de uma musiquinha.

Eu tinha horror à festa desde que lera um texto de Albert Einstein: “a pior das instituições gregárias se intitula exército. Eu o odeio. Se um homem sente prazer ao marchar ao som de uma musiquinha, este homem não merece um cérebro humano, já que a espinha dorsal o satisfaz”. Como era impossível passar impune ao ler tal afirmativa na casa dos quinze anos, aproveitava o feriado nacional para me satisfazer com as cervejas dos clubes e bares e esperar a chuva.

Isso era também uma certeza. Nas tardes de sete de setembro chovia em Brasília. Eram as primeiras chuvas, aquelas que pouco molham o asfalto, mas bastante para nos aliviar do calor inclemente e dá mote para os meteorologistas de botequim: “o aguaceiro esse ano chega decomforça…”. E enquanto a chuva não descia decomforça nos hidratávamos com cerveja.

Não tínhamos a ousadia do sertanejo. Muitas vezes vi a cena. Rodando pelas estradas sob um céu bonito de chover, sentia os primeiros pingos e, súbito, explodir a festa. Nos terreiros das fazendas, a gente sertaneja saía de casa e, sob a água bondosa, conversava, dançava, ria de felicidade.

Cá em Brasília ficávamos sob a proteção dos tetos, pois as águas, além de alívio, traziam infortúnios. Quando engrossava seu corpo sobre o asfalto, não chegava a arrastar a poeira feita lama nem o óleo deixado pelos automóveis. Esta alquimia transforma o chão áspero numa superfície deslizante, e os acidente machucam veículos e pessoas mais sensíveis aos bens materiais, pois assim caminha a humanidade no Planalto Central.

Falo como se o tempo fosse passado, pois o tempo é passado. Há muito a natureza tem reagido aos desmandos dos homens e já não se faz tão pontual e rigorosa em seus gestos. Outubro caminho célere para seus estertores e as chuvas não despencaram. Meus ouvidos pouco musicais parecem perceber certa rouquidão na voz das cigarras, e a chuva não cai.

A gravidade do fato fica no advento de estarmos assentados num dos mais generosos berços hídricos do Brasil. No Distrito Federal, que hoje sofre com a falta de água, assentasse o Parque Nacional das Águas Emendadas, berço de duas grandes bacias fluviais, a Tocantins/Araguaia, que corre até o Atlântico, e a Paraná, fundamental na formação do Estuário do Plata. E padecemos de sede.

Definitivamente a natureza endoideceu, como a anatomia de Vladimir Maiakovski – “em mim a natureza enlouqueceu. Sou todo coração”. A natureza hoje é toda uma ebulição de contradições. Desorienta a própria marcha natural de biodiversidade. Ainda esta semana vi vários ipês amarelos floridos. Pareceram-me fantasmas retardatários.

Mas nos resta a esperança da natureza está brincando de esconde-esconde. O padre Antonio Vieira, no Sermão da Quinta Dominga da Quaresma, fala de uma certa mentira do céu que acontece diariamente no Maranhão: “Amanhece o sol muito claro, prometendo um formoso dia, e dentro de uma hora tolda o céu de nuvens, e começa a chover no mais entranhado inverno”.

Tomara que toda esta agonia não passe de uma longa mentira do céu.

 


Maurício Melo Júnior - Canto do Arribado sexta, 04 de agosto de 2017

ALUMBRAMENTO: UMA CIDADE

Sou homem do interior, anterior aos encantos luminosos do mundo externo.

Lá do longe – 128 quilômetros -, no canavial, à sombra do bueiro da usina, via o Recife como o objeto mais longínquo que cabia à mão alcançar, ali estava o fim do mundo e o início do meu paraíso particular. O olhar do menino enxergava a cidade na régua das impossibilidades, um espaço que se vestia com as cores do apenas desejo que fui alimentando aos poucos.

Tenho a lembrança antiga de um carnaval. É o que de mais distante chega a memória. Sei que havia cores e bailados nas ruas, mas minha visão é de um mundo em preto e branco, foliões com alegria renovada tomando o chão da praça Maciel Pinheiro. Os leões de pedra olhando-me e eu com medo – a euforia contrastava com o sentimento mesquinho. Acho que meu avô estava doente, num leito do Hospital Português. Uma lembrança difusa, como devem ser as reminiscências da infância.

 

 

 

O certo é que entravámos com solenidade no hospital de ambiente branco e asséptico, mas meu tio, Jones Melo, o galã Roberto da novelaA Moça do Sobrado Grande, veiculada pela TV Jornal do Commercio, chegava sob o deslumbramento de enfermeiras e pacientes. E a direção do Português, para evitar transtornos, o proibiu de visitar o pai em horas regulares. Somente conseguia chegar ali se esgueirando nos mais tardios instantes da noite.

Tudo era lúdico naquela cidade, e mesmo a morte e suas dores estavam suavizadas pelos encantamentos tantos.

À beira do Capibaribe, na rua da Aurora, tinha um tobogã, para mim imenso, interminável. Com o heroísmo à flor da pele, subia aquelas escadas sem fim para escorregar sentado em sacos de estopa pelo quase infinito ondulante feito em chapas de metal. Naquela tarde brincante, subindo a escadaria, uma freira caminhava à minha frente. Súbito o vento libidinoso do Atlântico levantou a saia da religiosa. Vi sua calcinha imensa e imaculadamente branca. Aquele foi o pecado maior de minha infância.

Minha intimidade com o Recife foi crescendo assim.

Na adolescência saía de Palmares num ônibus da Viação Rio Una para comprar livros e discos. Partia no cedo da manhã e voltava no fim da tarde, cheio de deleites para meus próximos dias. Comprei Tieta do Agreste na Livro 7 e comecei a ler no ônibus da volta. De Jorge Amado tinha me deliciado apenas com a primeira fase, a socialista, que chegava até Os Subterrâneos da Liberdade. Depois de Gabriela, Cravo e Canela, aquele ar picaresco do baiano, que eu desconhecia, não me interessava. Foi voltando do Recife que descobri a obra única de Jorge, um escritor que se apoderou do picaresco para melhor solidificar sua linhagem de protesto e denúncia.

Quando enfim sai do interior atraído pelas luzes da capital, deixei para trás alguns sonhos e segui me desfazendo de ilusões e despojos de amores adolescentes. Uma ex-namorada, bela e morena, me deixara solitário ao pé do muro de chapisco do Colégio Nossa Senhora de Lourdes e carreguei em minha bagagem a vontade de reviver os desejos testemunhados pelo deserto beco do Confiança.

Desembarquei na cidade, no Recife, para mitigar os bancos do Colégio Alpha, na rua Corredor do Bispo. Fui morar na rua do Cotovelo, na Boa Vista. Desculpem. Sei que há muitos anos, muito antes de meu nascimento, a via já se chamava rua Visconde de Goiana, uma homenagem justa. O homem teve cabedal. Foi político, fazendeiro e magistrado. Nascido no Recife, se formou na Universidade de Coimbra e voltou ao Brasil nas águas da família Real que fugia de Napoleão nos idos de 1807. A partir daí governou o Rio de Janeiro e o Pará e descambou em mandos até dirigir a Faculdade de Direito de Olinda. Homem de escol, é certo, mas que nunca deveria ter roubado o lúdico cotovelo da rua onde morei, da rua onde sempre volto para tomar sorvete na Frisabor.

Uma fase de estudos, mas também de boemia. Íamos ao Mustang tomar chope e comer largos sanduíches. Ao Bar Atenas, na Rio Branco, para reviver o ambiente grego que assistíamos nos filmes do São Luiz. Ao Bar do Tenente, no Pátio de São José, para beber cerveja, dançar ciranda e paquerar os livros da Livraria Cordel. Ao Ele e Ela, num dos becos que desaguam na rua da Imperatriz, para bebericar cachaça com caldinho de feijão. E íamos…

Véio Faceta, certa noite, se apresentou no bar da Livro 7. Fui ver o espetáculo levado por um tio, Paulo Rogério, que optou por sentar na fila do gargarejo. O artista estava visivelmente desencontrado naquele ambiente pouco popular, mas não deixou de fazer a festa. E como precisava de um gancho para segurar a descontração, resolveu fazer meu casamento com uma de suas pastoras, e logo uma a quem chamava de Póica. Vermelho de vergonha, aguentei firme as provocações sem fim de Faceta.

Saindo dali fui afogar meu constrangimento em outros bares, em outros copos. Madrugada alta, na volta para casa, meu tio, como era de costume, passou no Cemitério de Santo Amaro para comprar rosas para a esposa que, desprovida de humor, o esperava em casa.

Já por este tempo morava em Afogados, na rua Vinte e Um de Abril, e dali saía no ônibus-elétrico da Mustadinha para chegar ao Centro, pois minha cidade, onde aprendi a ser mais que brasileiro, aprendi a ser pernambucano, só chegava à ponte do Pina, estava muito aquém de Boa Viagem, vinha pelos bairros de Santo Antônio, de São José, pela Boa Vista e desaguava em Apipucos. Um Recife interior que me fez introspectivo e feliz.

E um dia tive que deixar o Recife… fui correr trecho, ganhar o mundo, mas meu horizonte ficou para sempre aberto pela Mata Atlântica de Dois Irmãos, para sempre expandido para Atlântico.

Esta cidade hoje é tão minha, tão intimamente minha, que as vezes me pego chamando-a por um nome antigo: Mauriciópolis, a Cidade Maurícia.


Maurício Melo Júnior - Canto do Arribado segunda, 22 de maio de 2017

REFLEXÕES À BEIRA-MAR

“Pisar a areia. Ver o mar. Sentir a brisa úmida de encontro à pele do meu rosto recém-escanhoado. Dia quente, céu azul, o sol brilhando sem tréguas. Verão carioca. O sol forte cega-me. Sinto que o pouco contato com ele, durante o último ano, fez com que os meus olhos esquecessem a clara e plena luminosidade. Como velhos amigos que se reencontram, por enquanto tateamos um ao outro no nosso primeiro contato em busca de um ponto de apoio no passado.”

Sempre me incomodou este trecho do romance Em Liberdade, de Silviano Santiago. Explico. O texto tenta transcreve um suposto diário de Graciliano Ramos depois que deixou a prisão. E por que o incômodo? Vamos lá.

“O mar, quando quebra na praia, é bonito, é bonito… O mar…”, diz a canção de Caymmi. Realmente é bonito, mas não para todos. E Graciliano era um desses. Daí ler a cena quase idílica do escritor com o mar não me parece verossímil. Intimidade com o sol até vá lá, mas com o mar?

E não se pode condenar o velho Graça, é uma questão de preferência. “O mar, quando quebra na praia, é bonito, é bonito…”, Caymmi tem razão, mas não aos olhos de todos, repito. Os versos, há décadas, invadem os ouvidos com harmonia, beleza, sensibilidade. Acarinham os corações mais empedernidos e mesmo aqueles que não conhecem o mar ficam a sonhar com suas ondas, seu azul intenso, sua profunda beleza. Já outros olham toda aquela paisagem líquida com despreza e até enfado.

Lembro de um amigo perdido pelo tempo, Antônio Campos, um poeta do Recife, tradutor refinado de William Blaker (não confundir com o escritor e advogado homônimo, idealizador da Fliporto). Os poetas, mesmo os líricos, nem sempre são praticantes da delicadeza. Antônio estava nesse balaio. Costumava ler ao lado de uma janela e, quando os textos, sobretudo os poemas, não lhe tocavam, jogava o volume pela janela. Foi o descarte bibliográfico mais radical que conheci.

Pois bem, voltando ao mar, estávamos em São José da Coroa Grande e Antônio, com seu inseparável cachimbo, balançava numa rede enquanto lia. Alguém de passagem atirou-lhe o convite: “Antônio, vamos ver o mar?” “Ver o quê? Ali não tem novidade nenhuma, só um bocado de água indo prá frente e prá trás…”

Graciliano devia ter uma opinião parecida. Lembro-me de seu filho, Ricardo Ramos, contando que, certa feita, caminhando com o pai pelo Rio de Janeiro, diante das montanhas e do mar, suspirou: “É muito bonito…”. “Prefiro o sertão”, respondeu o velho. E frente ao espanto do filho começou a descrever a paisagem seca, esturricada, cheia de cactos e misérias. Anos depois Ricardo lembrava: “E ele quase me convenceu de que tinha razão…”

Li e reli Memórias de Cárceres e sempre me admirou o fato de Graciliano descrever toda uma viagem marítima sem falar no mar. O máximo de concessão que faz é quando, de passagem por Maceió, olha pela escotilha e vislumbra as casas distantes, as casas, não a praia. Também em seu romance Angústia, que se passa todo ele na ensolarada Maceió, o ambiente é o do centro, da praça dos Martírios, do Bebedouro, não chega sequer perto da Pajuçara.

Mas também não se pode botar Silviano Santiago em uma fogueira inquisitorial. Ele escreveu Em Liberdade num instante de angústia, com um irmão preso pelos agentes da repressão da ditadura militar dos anos 1970, e sentia a necessidade de falar de prisões e liberdades. E logo de saída transcrever como epígrafe uma sentença do mestre Otto Maria Carpeaux: “Vou construir meu Graciliano Ramos.”

Apenas pensei nisso tudo caminhando pelo calçadão da Pajuçara e encontrando ali, eternizado em bronze, o velho Graça, com seu inseparável cigarro e seu terno largo. Nada mais destoante para minha visão de rabugento que prefere encontrá-lo no beco da Moeda, na rua do Macena. Desculpe leitor, mas aprendi com Mário Quintana que “um erro em bronze é um erro eterno”.

Deixando a rabugice de lado, reconheço que as homenagens devem ser feitas e são merecidas por muitos. No entanto há exageros e contradições. Foi o que se deu com o escritor Valter Pedrosa Amorim.

Eu o conheci ali pelo início da década de 1980, já com alguns livros de contos e um romance publicados. Alagoano, vinha de uma família de tradições comunistas. Um de seus primos, Jayme Pedrosa, fora assassinado durante a repressão militar. E assim Valter não negava suas convicções. E por elas sofria. Naquele tempo, como engenheiro sanitarista, trabalhava na consultoria de uma instituição internacional lá para as bandas da Colômbia, pois não conseguia nenhum emprego no Brasil. Por suas crenças políticas fora demitido de várias companhias estatais de saneamento, a última em Brasília, onde então morava sua família.

Tinha um sonho, entrar para a Academia Alagoana de Letras e resolveu se candidatar à vaga deixada pelo senador Teotônio Vilela. Começou a cabalar votos e estava indo muito bem, a eleição líquida e certa, não havia a menor possibilidade de derrota, até que se deu o desastre. Foi à Maceió para acompanhar de perto o pleito e logo concedeu entrevista a um jornal que estampou sua declaração como manchete: “Chego à Academia como cidadão comunista”.

Volto derrotado para Bogotá. Alagoas, que expulsou de suas terras Graciliano Ramos o acusando de comungar com o credo comunista, não perdoou seu filho Valter.

Para minha surpresa, anos depois, num sábado pela manhã, abro o jornal e leio, consternado, o convite para a missa de sétimo dia em louvor à alma do velho comunista Valter Pedrosas Amorim.

As homenagens são justas, mas às vezes contraditórias.

Não me espantarei se algum dia encontra uma estátua de Valter Pedrosa Amorim na calçada da igreja dos Martírios.


Maurício Melo Júnior - Canto do Arribado domingo, 26 de março de 2017

UMA CRÔNICA ROUBADA
 

– Você tem uma crônica para me emprestar?

Quem me contou dessa prática foi Fernando Sabino. O mineiro disse-me que, no sufoco do prazo e diante da total e absoluta falta de assunto, costumava ligar para os amigos – Otto Lara Rezende e Paulo Mendes Campos eram os, digamos, agiotas mais requisitados – solicitando o empréstimo de uma crônica. A recíproca também era verdadeira. Várias vezes teve que ceder breves histórias que serviram de brilhantes textos dos amigos.

Eles somente não ousavam incomodar o velho Rubem Braga. Paulo Mendes até que tentou. Apanhou o telefone e fez o desesperado pedido.

– E eu lá tenho crônica para emprestar a vagabundo! – respondeu um vetusto cronista batendo o telefone.

Desesperado para voltar a ocupar este espaço fubânico, e na ausência de cronistas a quem ligar e de um assunto qualquer que fugisse de nossa política prenhe de largas emoções, apelei para o roubo. Isso mesmo, roubei uma crônica e confesso o crime.

No final do ano passado, querendo prestar uma homenagem à Rádio Cultura dos Palmares, o editor Arnaldo Ferreira, das Edições Bagaço, me ligou. Tencionava fazer uma agenda para o ínclito sistema de comunicação. E pediu-me um texto. Escrevi uma crônica.

As condicionantes da vida, no entanto, murcharam o projeto e a crônica ficou quicando nos arquivos de meu computador.

Hoje lembrei da coitada.

Destarte, impoluto leitor, eu, ladrão de mim mesmo, apresentou-lhe a crônica roubada.

* * *

Palmares Falando com o Mundo

A rua se chamava Coronel Izácio, mas a gente só falava no Caminho Para Treze de Maio. Entre a repressão militar que se insinuava na possível bravura de um coronel que até hoje não sei de quem se trata e a liberdade da data festiva, vivíamos num Palmares lúdico, em um terreno de descobertas. E o edifício avermelhado, de fachada alta, com amplo auditório nos levava a imaginar o mundo que estava para além do horizonte de canaviais, para além da ponte de Japaranduba.

Todas as manhãs despertávamos às oito horas com o prefixo da Rádio Cultura dos Palmares, que não chegava a ser uma rádio, mas um serviço de alto-falante. Naquelas primeiras horas vinham as notícias lidas das páginas do Diário de Pernambuco. E ficávamos sabendo de mortes e tragédias e esperanças e tudo mais que o mundo podia oferecer às imaginações soltas e perdidas naquele microcosmo com cheiro e sabor permanentes de açúcar e injustiças e possibilidades de futuro.

Depois vinham as músicas de Marinês e sua Gente, Roberto Carlos e todos os outros ritmos que nos embalavam. Serra Grande era a melhor das aguardentes, mas eu Pitu e tu Pitu, todo mundo a se servir nas farras que então ensaiávamos, e a festa subitamente era interrompida. Todas as vezes que morria alguém de escol, para nosso desgosto, a rádio passava o dia a tocar música clássica. Uma chatice.

Então passávamos, carrancudos, naquele quase feriado, em frente ao prédio avermelhado na direção de Pirangi. Eu ainda não sabia o tanto que me deliciavam os acordes de Beethoven, Mozart, Bach.

Mas logo vinham outras festas.

O auditório, certa feita, abriu as portas para receber Waldick Soriano. Ele bebia durante a apresentação e soltava a voz em infinitos boleros. Ensaiávamos vaias e ríamos de tudo e de nada. Outro dia foi Nelson Gonçalves quem tomou conta do palco bebericando uma caneca que dizia ser café enquanto cantava largos sambas-canção. Teve uma senhora que se desentendeu com o cantor já não sei porque. Pouca atenção prestávamos a tudo. A vida era feita de outros prazeres e eu não sabia que havia um belo Brasil profundo embalado por vozeirões e boleros e canções e mágoas infindas. Vínhamos de três raças muito tristes, mas eu desconhecia tal fato.

Com prazer e expectativa fui ao auditório para ouvir de viva voz o Coronel Ludugero, um artista de Caruaru que ganhava o mundo falando com alegria de um Nordeste abissal, lírico e despido de tristezas. Um Nordeste que, adverso em suas configurações tradicionais, transformava homens em gênios artísticos. O Coronel passou mal e não conseguiu se apresentar. Saí dali frustrado e talvez indignado com quem dizia horrores do artista. Eu era tão somente um menino, mas começava a entender melhor o mundo à minha volta. E a compreensão foi tão concreta que protestei, anos depois, contra a vaia dada a Luís Gonzaga pelos medíocres de plantão na quadra do Colégio Diocesano.

Quando a Rádio Cultura se tornou de fato em uma rádio, destituindo os velhos alto-falantes e se enfronhando pelas ondas do Padre Landel de Moura, eu já não estava mais em Palmares, mas, como todo criminoso volta à cena do crime, sempre volto à cidade, as vezes apenas em memória e coração.

Numa dessas voltas ouvi Do Rego, logo de manhã cedo, despertando o povo com um chocalho, transpirando Nordeste por todos os poros. E ao meio-dia se ouvia o programa Combate caminhado à toa pelas ruas, pois todas as casas respiravam as notícias policiais.

Hoje não sei o que toca em suas ondas, mas lembro do espanto de seu Luiz, pai do escritor Luiz Berto, diante daquelas salas geladas e cheias de microfones. “Pra mim essa é a melhor rádio do mundo, mas eu também só conheça essa.” Para mim, que conheço outras tantas rádios, a Rádio Cultura dos Palmares é a melhor do mundo, pois trago na alma a herança que ela me legou.

Não chegava a ser uma rádio, era um serviço de alto-falante, mas nos emprenhava de cultura. Minha árvore de hoje é um tanto da semente que ela ontem regou.


Maurício Melo Júnior - Canto do Arribado sexta, 17 de março de 2017

DESCARNAVAL, OU QUASE
 

Distanciam-se os hinos de Momo, diriam os pessimistas, mas existem os otimistas que vêm aproximar-se de maneira célere a chegada de um novo carnaval. Entre um e outro tempo, nos resta a saudade da festa e a expectativa de novas euforias. “Quem é de fato bom pernambucano…”, há décadas canta a canção.

Nestes tempos pretensamente politicamente corretos, no entanto, até o carnaval tem sido vítima da intolerância policialesca. Bem antes de suar os clarins já circulava na Internet mensagem com os lúdicos dedos do humor apontando para as polêmicas marchinhas carnavalescas. O teu cabelo não nega é racismo, a cabeleira do Zezé é homofobia, vou beijar-te agora, assédio sexual… e por aí seguiam as condenações.

Tudo parecia brincadeira, mas a coisa tomou outra dimensão. Vi várias matérias na TV onde os compositores de marchinhas, sobretudo João Roberto Kelly, eram questionados e chamados a explicar a verve humorística. O próprio Kelly tentava suavizar os versos de sua Maria Sapatão dizendo que tudo foi uma inspiração do Chacrinha, o Velho Guerreiro, que pediu algo bem mais apimentado, mas ele, malandro velho, optou por uma letra mais leve, mais dúbia… “de dias é Maria, de noite é João…”

A criatividade, no entanto, parecia fadada a perder a peleja.

Poucos dias antes do carnaval, um amigo meu, professor de música, foi provocado a selecionar o repertório da festinha carnavalesca de uma escola primária. Cumpriu a missão com o maior prazer e desprendimento, mas logo foi chamado pela diretora da unidade, e o argumento era o mesmo lido nas redes sociais: impossível tocar estas músicas, pois o teu cabelo não nega é racismo, a cabeleira do Zezé é homofobia, vou beijar-te agora, assédio sexual…

Parafraseando Shakespeare, há mais intolerância entre o céu e a terra do que posso imaginar nossa vã indignação…

As vezes penso que os intolerantes, ainda bem, não costumam escutar a música popular, do contrário, alguns compositores, como Noel Rosa, já estariam condenados em todas as inquisições possíveis. É do poeta da Vila algumas pérolas da misoginia, ou do anti-feminismo. Quando sua esposa, preocupada com o pouco dinheiro que circulava pelo doce lar do compositor, informou que iria arranjar um trabalho, o poeta cantou: “Você vai se quiser, pois a mulher não se deve obrigar a trabalhar. Mas não vá dizer depois, que você não tem vestido e que o jantar não dá pra dois… todo cargo masculino, desde o grande ao pequenino, hoje em dia é pra mulher, e por causa dos palhaços, ela esquece que tem braços, nem cozinhar ela quer…”

Em outro samba, bem mais cáustico, Noel se lamentava de uma certa figura: “Oh, que mulher indigesta, indigesta, merece um tijolo na testa. Esta mulher é ladina, toma dinheiro, é até chantagista. Arrancou-me dois dentes de platina, e foi logo vender pro dentista. E quando se manifesta, o que merece é entrar no açoite. Ela mais indigesta do que prato de salada de pepino à meia-noite…”

Versátil, talvez para gáudio das feministas, Noel exaltou a sabedoria da mulher num amor de parceria cantado por Araci de Almeida. “Saiba primeiro que fulana é minha amiga e comigo ela não briga, com ciúme de você. Você provoca briga entre rivais para depois ver nos jornais, seu nome e seu clichê. Há muito tempo minha amiga me avisava que ela sempre conversava com você no seu jardim, e começou nossa parceria, eu fui por ela
e ela foi por mim. (…) Nós aturamos os seus modos irritantes, mas filamos bons jantares nos melhores restaurantes. Você não sai de nosso pensamento, você foi negócio, e foi divertimento.”

Bom, tomara que aí o velho Noel não esteja melindrando os modernos metrossexuais…

E por falar em vila Isabel, Martinho da Vila é quem foi certa feita crucificado por cantar o verso “você não passa de uma mulher…”. Curioso é que exatamente no tempo em que o exército de anjos vingadores caia em cima do compositor, a socialite (é, essa coisa virou qualitativo…) falida Carmem Mayrink Veiga se queixava aos repórteres da revista Veja: “Hoje trabalho como uma negra qualquer…”

Eu pelo menos não escutei nenhum grito contra essa manifestação de racismo claro e evidente…

Tudo tem seu tempo certo, ensina uma outra canção popular. É preciso aprender e entender o tempo em que essas músicas foram compostas, afinal, Graciliano Ramos não pode ser visto como idiota ao dizer que o futebol não vingaria no Brasil. Ele falava de uma prática dos anos 1920 quando aquele era um esporte elitista, onde os negros só podiam jogar se pintassem o rosto com um pó branco.

Essa mania de desandar a verve humorística das gentes, no entanto, é coisa antiga. Lembro de uma apresentadora de programa infantil que condenava ao fogo dos infernos a ingênua cantiga de roda “Atirei o pau no gato…”, dizia ser uma apologia à violência contra os animais, etc., peibufo e coisa e tal. Essa moça, creio, chegou a montar uma loja para criança chamada Não Atirei o Pau no Gato.

Ela ficaria indignada lendo Millôr Fernandes: “Á noite todos os pardos são gatos”?

Meu conforto é que, a história nos traz incontáveis provas, a inteligência sempre vence a intransigência. Que o diga uma moça que fagueira desfilava pelas ruas carnavalescas de Olinda com uma blusa branca onde se li em letras garrafais: Me Atirei no Pau do Gato.


Maurício Melo Júnior - Canto do Arribado sexta, 24 de fevereiro de 2017

OUVINDO FREVO



Quando a vida é boa, não precisa pressa. Até quarta-feira, a pisada é essa. Pra que vida melhor? Fale quem tiver boca! Eu nunca vi coisa assim! Oh! Que gente tão louca!…

 

Mestre Alcides, mecânico por profissão e boêmio por opção, depois de quatro ou cinco doses, saía a cantar serestas e dores de cotovelo pelas ruas de Palmares. Para surpresa de todos, naquela manhã – biriteiro de respeito, ele não tinha hora para beber -, com sua voz de quase Vicente Celestino, o mestre se fartava em um frevo.

– Danou-se. O mestre já está no carnaval... – Gritou algum inconveniente.

 

 

Assim se fazia a vida. Injustamente frevo era música para se tocar no carnaval e praticamente durante todo o ano vivíamos privados dos emocionantes acordes que tanto nos toca o coração e a alma.

Eu mesmo fui vítima do preconceito. O fato se deu logo depois que desembarquei em Brasília.

O dia amanheceu azul, azul tão lindo que me faz sonhar…” Era um julho já bem longínquo e eu, mesmo envergando paletó e gravata, de certa forma sonhava enquanto baixava nos corredores da Câmara dos Deputado, onde trabalhava. Entrei na sala cantarolando um frevo já agora antigo. “De Pernambuco eu trago um abraço, um traço, um laço e a barriga pro ar. Um frevo torto, um pecado bem moço, um sorriso no bolso e um deixa pra lá…

O compositor, Marcelo Montenegro, e a música se perderam nos eflúvios (sempre quis usar esta expressão) do tempo. Nunca mais tive conhecimento de ambos, e até o compacto simples, gravado pela Rosemblit, que por anos guardei em minha coleção de discos, sumiu misteriosamente num desses encantamentos da arte. O certo é que cantarolava o frevo e alguém me interceptou:

– Mas isso não é música de carnaval?

É sim, música de carnaval, devo ter respondido, mas já ali solidificou-se em mim a certeza de que o frevo está bem além dessa limitação. A sofisticação de sua melodia preenche a alma de todo um povo e isso o faz útil e pertinente em todas as épocas do ano. Nós pernambucanos trazemos no âmago esta melodia. Aprendemos com sua poesia a descobrir o real sentimento telúrico. Brincamos reconhecendo a fortaleza de seus acordes. E seguimos pela vida a cantar sua riqueza.

Quem é de fato bom pernambucano” é também capaz de alinhavar em seu cotidiano, “de janeiro a janeiro”, a melodia excitante, pois isso é que marca uma das nossas características. A capacidade de poder ser feliz mesmo cantando em tom menor.

De chapéu de sol aberto” conquistamos as praias de todos os recantos do mundo com um riso escancarado para a vida. Somos felizes mesmo na miséria que também nos marca e macula. E não precisamos apenas do carnaval para demonstrar nossa alegria.

 

Conto isso.

Voltei Recife”, depois de quase um ano de ausência, bem no começo de um dezembro, e já ouvi pelas ruas os “clarins de Momo”. Isso mesmo – dezembro já era carnaval. Ante meu espanto fui atualizado por um amigo. Moço, aqui é frevo o ano inteiro. Só se abre uma exceção nas lidas juninas, e olhe lá.

 

Preciso voltar amiúde à terra, “mas tem que ser depressa, tem que ser pra já. Eu quero sem demora o que ficou por lá.” Voltar a dormir “um sonho que durou três dias” e me que despertou para a certeza de que “o Recife tem o carnaval melhor do meu Brasil”. E vejo isso pelas ruas. Meninos, eu vi Naná Vasconcelos com quatrocentos batuqueiros de maracatu abrindo a “festa maior da raça” tocando uma bachiana de Villa-Lobos. Este encanto prova, com todas as possibilidades de uma equação matemática, que não existe época nem tempo para se deleitar com o “micróbio do frevo”, pois ele “é de amargar”, né Capiba?

 Mas as pessoas são resistentes.

Bebericava uma cachaça no sossego de minha casa deixando que Claudionor Germano, a voz do frevo, no bem dizer de José Teles, alumiasse todo o ambiente falando de tempos idos – “Antigamente quando eu ouvia, vindo de longe, a orquestra de meu bloco…” -, quando um vizinho entra mitigando seu espanto: Chegou carnaval? De imediato lembrei de um amigo que gostava de ouvir ópera a pleno volume e tinha que escutar o desaforo dos vizinhos: Chegou ele com essa música de velório. Destarte não tive como fugir da resposta. Não chegou carnaval, apenas a alegria não foi ainda embora.

E isso é o frevo: a felicidade perene. Mesmo quando fala de desilusões: “A dor de uma saudade vive sempre em meu coração, ao relembrar alguém que partiu deixando a recordação, nunca mais…” Há sempre uma certeza de que esses amores de carnaval se perpetuarão. “Domingo brincarei com você, meu bem. Segunda-feira brincarei com você também. Terça-feira, nem é bom falar, brincarei com você até o sol raiar… E no carnaval do ano que vem brincarei com você e o bebê também…

Por isso canto frevo trezentos e sessenta e cinco dias por ano, pois nunca deixei de atender às pastoras de Getúlio Cavalcanti: “Falam tanto que meu bloco está dando adeus pra nunca mais sair e, depois que ele desfilar, do seu povo vai se despedir. No regresso de não mais voltar, suas pastoras vão pedir: Não deixem não que um bloco campeão guarde no peito a dor de não cantar…

 Por isso canto.

Como Mestre Alcides, não escolho tempo nem hora para ser feliz.

Evoé Baco!


Maurício Melo Júnior - Canto do Arribado sexta, 24 de fevereiro de 2017

PARA NOS LIVRAR DO MAL
 

O livro simplesmente chegou às nossas mãos e rodopiou inquietantemente no círculo daqueles jovens ávidos por leituras – qualquer leitura. Creio que não nos interessou discutir sua trajetória, seu caminho improvável das prensas de uma gráfica até aqueles recantos da cidade. Apenas nos desafiava a necessidade e a urgência de sua leitura.

Palmares, naqueles idos da década de 1970, era cercada de mistérios. Um dia acordei – e já desde aqueles tempos costumava acordar nos cedos dos dias – com o Exército em minha porta. Soldados fardados, paramentados, com fuzis, baionetas e outros tantos aparatos bélicos acampados bem ali, no longo da praça Santo Amaro. Pareciam fazer um exercício qualquer, movimentos indecifráveis para meus pobres olhos de civil. Para aquele pouco mais que um menino que fui, sonhador de horizontes liberais, estava ali a concretude do clima aterrorizantemente opressivo que se vivia então. E o medo criou asas e pairou sobre a cidade durante longas horas.

Pouco adiantou o gesto de simpatia dos samangos a distribuírem barras de chocolate e pequenos fogareiros de fogo breve, mas ainda capaz de fazer um café ou cozinhar um ovo. Tudo era medo e apreensão. Até que no final da tarde os homens fardados desmontaram suas barracas, montaram na carroceria de caminhões fechados e seguiram seus destinos.

Ficou o mistério da visita. E a pobre urbe açucareira retomou sua passividade.

Assim era Palmares, e o grupo de adolescentes corria à cata de leituras e músicas e sonhos e liberdades e tudo aquilo que imagina conquistar todo aquele que sequer tem corpo e força para as lutas naturais da vida. E no meio do turbilhão estava o livro e suas provocações, com seu título e o nome de seu autor a nos provocar: Minha Luta – Adolf Hitler.

Com o bicho debaixo do braço, corri para a rede que se armava numa varanda dos fundos da casa. Foi uma tarde de confirmação do horror e quase nenhuma surpresa. Naturalmente que é sempre muito fácil ser profeta do passado, mas a cada linha lida, pelo pouco que ainda lembro da experiência, uma linguagem panfletária e odienta confirmava a ambição pelo poder, a defesa do totalitarismo, a disposição de promover o extermínio de tudo e de todos que lhe impedissem a ação.

Fechei o livro crente que dele nada restava senão um discurso e uma loucura. Estava feliz, no entanto. Mais uma vez a leitura tinha me salvado.

Explico.

Só com conhecimento é possível entender e combater as ideias adversárias. E ali, naquele instante, definitivamente me afastava das correntes da opressão, viessem elas pela esquerda ou pela direita.

Anos depois, entrando no gabinete do senador Teotônio Vilela, o velho Menestrel das Alagoas, confirmei esta certeza ao ver sobre a mesa um outro livro: Conjunto Política – O Poder Executivo & Geopolítica do Brasil. Autor: Golbery do Couto e Silva.

– O senhor está lendo isso, Senador?

– Claro, seu Maurício. A gente precisa conhecer o que pensa o adversário para melhor combater o bom combate.

Hoje acredito, embora não encontre razões para isso, que o mundo subestimou o discurso e a loucura de Hitler. Seus gestos de fanfarrão talvez tenham maquiado o mostro que se encobria com a capa do puritanismo. Vale lembrar que aquele senhor de bigode bizarro não bebia, não fumava, era vegetariano e tinha propensões para as artes plásticas.

Diante desta informação, aliás, nasceu a piada pronta que encantou minha geração. Melhor mesmo é ficar com Winston Churchill, que bebia e fumava diariamente, além de ser um ótimo frasista: “Eu me uniria ao próprio diabo para combater Hitler”, justificou sua união com Stalin.

Há pouco tempo o Minha Luta entrou em domínio público e explodiu em todo o mundo uma febre por sua reedição. O fenômeno se explica pelo fato de a Alemanha, detentora dos direitos autorais, sempre ter proibido sua circulação. Por aqui a Geração Editorial preparou uma edição especial, prenha de artigos e comentários escrito por especialistas. Mas um juiz, não sei bem de onde, proibiu a circulação do livro.

O magistrado deve ter lá suas razões, no entanto não acredito que elas sejam tão intensas, tão imensas, tão capazes de mascarar um fato histórico. Além disso, não tenho certeza se um texto como aquele, de baixa qualidade literária e tão cheio de ódio, guarde poderes para forjar cidadãos totalitários. As pessoas, defende minha parca filosofia, guardam propensões que terminam por aflorar em uma hora qualquer e formulam suas crenças baseadas nas próprias experiências e na maneira como constroem o próprio caráter.

Li Minha Luta e abominei o nazismo, como li um outro livro, escrito por um religioso, onde se ensinava todas as técnicas para melhor arrancar confissões dos hereges. Este texto foi leitura obrigatório dos inquisidores do Santo Inquérito lá pela segunda metade do segundo milênio. É um texto forte, e até comovente em alguns momentos, mas nem por isso tornei-me torturador.

“Todo pessimista é um chato. Todo otimista é um tolo. O melhor é ser realista.” Aprendi a lição com o mestre Ariano Suassuna. Acredito que a leitura forme, transforme os homens. Eu mesmo sou um exemplo disso. Tudo que fiz e conquistei, se conquistei alguma coisa na vida, foi a partir de minhas leituras. Destarte sei a força e o poder dos livros, mas a diversidade deles é que estabelece a diferença entre o bem o e o mal.

Acho que não voltarei a ler o Minha Luta, pois tenho mais o que fazer na vida, mesmo assim sou contra sua proibição. Conhecer o que pensam nossos desiguais é também uma forma de crescimento.


Maurício Melo Júnior - Canto do Arribado domingo, 19 de fevereiro de 2017

UM ANO BOM

O tempo passa, mas as histórias, parece, perderam a idade. Usando de um vocabulário mais comum, não acredito na condição de envelhecimento dos fatos, das histórias. Digo isso diante do inevitável: estamos em fevereiro, mas ainda me inquietam as acontecências do ano passado, de um 2016 não muito bem louvado. E já pisamos nos passos e compassos de fevereiro. Neste ritmo até pensei em cantar com Marcelo Montenegro, um infelizmente esquecido cantor e compositor catendense, autor de um precioso frevo: “Capiba, chegou fevereiro, o ano inteiro cansei de esperar…

Nada de melodias alegres, minha atenção continua voltada para as marcas do passado, um passado não tão distante, mas, mesmo assim, um tempo pretérito: 2016. Um ano, segundo a voz geral, de desgrças e maldições. E pos andar na contramão da gentes, conto histórias.

 

 

Éramos uma mesa de confraternização de final de ano, como outra qualquer. Nada de opulências nestes tempos de crise. Sequer podíamos cantar, como o poeta Carlos Pena Filho, “são trinta copos de chopp, são trinta homens sentados, trezentos desejos presos, trinta mil sonhos frustrados”. Ali éramos apenas cinco pessoas, cinco amigos diante de uma mesa com alguma cerveja, sucos de frutas e água mineral a se despedir de um ano complicado. Entre uma beliscada e outra no petisco que servia de entrada, as mágoas deixadas pelas águas há pouco passadas iam sendo debulhadas.

Um dos presentes perdera a esposa, depois de um casamento de quarenta anos. Foi uma perda difícil, dolorosa. Como os personagens bíblicos, por quarenta dias a mulher foi definhando com o câncer que lhe comia as energias vitais, desfazia sua vida, deitava silêncio sobre os dias de um futuro que não chegou a existir. Por quarenta dias, o marido chorou suas dores e a fatalidade irrevogável de seu destino de viúvo. E ali contava seus lamentos para finalizar com uma assertiva também fatal: “Agora é seguir a vida…”

Um outro, jornalista de longo curso, conhecedor de antigas redações, onde a máquina de datilografia, o cigarro e alguns goles de uma bebida qualquer – do café à cachaça – eram uma ordem inconteste e temperavam as longas conversas, também tinha um carnê de mágoas para quitar. Lastimava-se do infarto que sofrera, da obrigatoriedade médica de abandonar um velho companheiro, o cigarro, a quem ainda se mantêm teimosamente fiel. “Mas agora fumo bem menos”, garante, assegurando ainda que a dor do infarto é tão aguda quando a clássica dor do parto, segundo relatos incontáveis que ouviu em sua outrora passagem pelo jornalismo policial. “Mas ainda me sobrou vida para alguns tragos, de cerveja e cigarro, afinal, cavalo velho não aprende pisada nova…”

O mais novo da roda, também já sabia contar as contas de um rosário. Não vira mortes próximas nem sentira as agruras do coração, nem mesmo os amorosos. Seu casamento estava seguro e o emprego garantido. Mesmo assim perdera renda. Tinha umas aplicações que não renderam lá o montante sonhado fazendo adiantar para tempos mais prósperos uma longa viagem de férias. Também diluíra nas águas da Petrobrás umas poucas, mais outrora valiosas, ações. Precisava reconstruir o patrimônio pois a esposa estava cansada de morar de aluguel e já não tinha mais renda que permitisse se cadastrar no Minha Casa, Minha Vida. Mesmo assim queria celebrar a vida e distribuía vinho e chocolate aos presentes.

A única mulher da mesa lamentava o aperto que fez o pai de sua filha perder recursos e, consequentemente, diminuir a pensão alimentícia. Também, a filha andava com problemas na escola e a artrose da mãe, já bem idosa, se agravava e ela, a filha, sentia crescer as responsabilidades de suas costas nem lá tão largas. Além disso havia o problema financeiro. O salário já não acompanhava o padrão de vida de antes e algumas restrições já começavam a se apresentar em sua mesa e em seu guarda-roupas. “Ainda bem que, pelo menos hoje, temos uma mesa farta. Vamos celebrar.”

Diante daquela mesa, na medida do possível, farta, já nos últimos dias do ano, comecei a enxergar 2017 como um puxadinho de 2016. Nada no horizonte claro e aberto de Brasília anunciava bonança. Lá nos longes, as nuvens escuras, bonitas de chover, nuvens da invernada de janeiro caminhavam em nossa direção…

De repente despertei para o óbvio. Chegamos ali porque vivemos, diria o Conselheiro Acácio. E de minha parte o ano não foi tão trágico. Tive dores, mas nenhum infarto de próprio peito nem morte em família, também. E 2016 não foi de todo mau. Nas orlas da aposentadoria, vi crescer as perspectivas daquilo que sempre quis ser: um escritor full-time. Ganhei prêmios literários. Estreei como teatrólogo. Assinei contratos para novos livros. Retomei velhos amores, como a delícia de reler Hermilo Borba Filho, Osman Lins e Nikos Kazantzákis. Cultivei novas e velhas amizades. Tomei bons vinhos em boas companhias. Conheci novas terras e sabores. Vivi a vida com a intensidade que ela merece.

Um ano qualquer pode ser difícil ou mesmo bom, como todos os anos – outra inspiração do conselheiro. O normal, no entanto, é que ele tenha as duas faces, como Jano, o mito romano. Afinal em um espaço de 361 dias pode acontecer tudo, inclusive nada, como diria Acioli Neto. Há sempre os momentos tensos e outros nem tanto, afinal assim se faz a vida. E a vida é imponderável, imprevisível, quase sempre. Seus tijolos se fabricam em diferentes fôrmas, são modelados por oleiros vários, não se repetem, enfim. Daí seu fascínio.

O que importa é que o dólar caiu, o presidente dos Estados Unidos é maluco, nossa política se equilibra entra a tragédia e a comédia, esta crônica de Ano Novo está atrasada, semana que vem é carnaval e nós estamos vivos.

E viva a vida.

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