“Quando a vida é boa, não precisa pressa. Até quarta-feira, a pisada é essa. Pra que vida melhor? Fale quem tiver boca! Eu nunca vi coisa assim! Oh! Que gente tão louca!…”
Mestre Alcides, mecânico por profissão e boêmio por opção, depois de quatro ou cinco doses, saía a cantar serestas e dores de cotovelo pelas ruas de Palmares. Para surpresa de todos, naquela manhã – biriteiro de respeito, ele não tinha hora para beber -, com sua voz de quase Vicente Celestino, o mestre se fartava em um frevo.
– Danou-se. O mestre já está no carnaval... – Gritou algum inconveniente.
Assim se fazia a vida. Injustamente frevo era música para se tocar no carnaval e praticamente durante todo o ano vivíamos privados dos emocionantes acordes que tanto nos toca o coração e a alma.
Eu mesmo fui vítima do preconceito. O fato se deu logo depois que desembarquei em Brasília.
“O dia amanheceu azul, azul tão lindo que me faz sonhar…” Era um julho já bem longínquo e eu, mesmo envergando paletó e gravata, de certa forma sonhava enquanto baixava nos corredores da Câmara dos Deputado, onde trabalhava. Entrei na sala cantarolando um frevo já agora antigo. “De Pernambuco eu trago um abraço, um traço, um laço e a barriga pro ar. Um frevo torto, um pecado bem moço, um sorriso no bolso e um deixa pra lá…”
O compositor, Marcelo Montenegro, e a música se perderam nos eflúvios (sempre quis usar esta expressão) do tempo. Nunca mais tive conhecimento de ambos, e até o compacto simples, gravado pela Rosemblit, que por anos guardei em minha coleção de discos, sumiu misteriosamente num desses encantamentos da arte. O certo é que cantarolava o frevo e alguém me interceptou:
– Mas isso não é música de carnaval?
É sim, música de carnaval, devo ter respondido, mas já ali solidificou-se em mim a certeza de que o frevo está bem além dessa limitação. A sofisticação de sua melodia preenche a alma de todo um povo e isso o faz útil e pertinente em todas as épocas do ano. Nós pernambucanos trazemos no âmago esta melodia. Aprendemos com sua poesia a descobrir o real sentimento telúrico. Brincamos reconhecendo a fortaleza de seus acordes. E seguimos pela vida a cantar sua riqueza.
“Quem é de fato bom pernambucano” é também capaz de alinhavar em seu cotidiano, “de janeiro a janeiro”, a melodia excitante, pois isso é que marca uma das nossas características. A capacidade de poder ser feliz mesmo cantando em tom menor.
“De chapéu de sol aberto” conquistamos as praias de todos os recantos do mundo com um riso escancarado para a vida. Somos felizes mesmo na miséria que também nos marca e macula. E não precisamos apenas do carnaval para demonstrar nossa alegria.
Conto isso.
“Voltei Recife”, depois de quase um ano de ausência, bem no começo de um dezembro, e já ouvi pelas ruas os “clarins de Momo”. Isso mesmo – dezembro já era carnaval. Ante meu espanto fui atualizado por um amigo. Moço, aqui é frevo o ano inteiro. Só se abre uma exceção nas lidas juninas, e olhe lá.
Preciso voltar amiúde à terra, “mas tem que ser depressa, tem que ser pra já. Eu quero sem demora o que ficou por lá.” Voltar a dormir “um sonho que durou três dias” e me que despertou para a certeza de que “o Recife tem o carnaval melhor do meu Brasil”. E vejo isso pelas ruas. Meninos, eu vi Naná Vasconcelos com quatrocentos batuqueiros de maracatu abrindo a “festa maior da raça” tocando uma bachiana de Villa-Lobos. Este encanto prova, com todas as possibilidades de uma equação matemática, que não existe época nem tempo para se deleitar com o “micróbio do frevo”, pois ele “é de amargar”, né Capiba?
Mas as pessoas são resistentes.
Bebericava uma cachaça no sossego de minha casa deixando que Claudionor Germano, a voz do frevo, no bem dizer de José Teles, alumiasse todo o ambiente falando de tempos idos – “Antigamente quando eu ouvia, vindo de longe, a orquestra de meu bloco…” -, quando um vizinho entra mitigando seu espanto: Chegou carnaval? De imediato lembrei de um amigo que gostava de ouvir ópera a pleno volume e tinha que escutar o desaforo dos vizinhos: Chegou ele com essa música de velório. Destarte não tive como fugir da resposta. Não chegou carnaval, apenas a alegria não foi ainda embora.
E isso é o frevo: a felicidade perene. Mesmo quando fala de desilusões: “A dor de uma saudade vive sempre em meu coração, ao relembrar alguém que partiu deixando a recordação, nunca mais…” Há sempre uma certeza de que esses amores de carnaval se perpetuarão. “Domingo brincarei com você, meu bem. Segunda-feira brincarei com você também. Terça-feira, nem é bom falar, brincarei com você até o sol raiar… E no carnaval do ano que vem brincarei com você e o bebê também…”
Por isso canto frevo trezentos e sessenta e cinco dias por ano, pois nunca deixei de atender às pastoras de Getúlio Cavalcanti: “Falam tanto que meu bloco está dando adeus pra nunca mais sair e, depois que ele desfilar, do seu povo vai se despedir. No regresso de não mais voltar, suas pastoras vão pedir: Não deixem não que um bloco campeão guarde no peito a dor de não cantar…”
Por isso canto.
Como Mestre Alcides, não escolho tempo nem hora para ser feliz.
Evoé Baco!