Almanaque Raimundo Floriano
Fundado em 24.09.2016
(Cultural, sem fins comerciais, lucrativos ou financeiros)


Raimundo Floriano de Albuquerque e Silva, Editor deste Almanaque, também conhecido como Velho Fulô, Palhaço Seu Mundinho e Mundico Trazendowski, nascido em Balsas , Maranhão, a 3 de julho de 1936, Católico Apostólico Romano, Contador, Oficial da Reserva do Exército Brasileiro, Funcionário Público aposentado da Câmara dos Deputados, Titular da Cadeira nº 10 da Academia Passa Disco da Música Nordestina, cuja patrona é a cantora Elba Ramalho, Mestre e Fundador da Banda da Capital Federal, Pesquisador da MPB, especializado em Velha Guarda, Música Militar, Carnaval e Forró, Cardeal Fundador da Igreja Sertaneja, Pioneiro de Brasília, Xerife nos Mares do Caribe, Cordelista e Glosador, Amigo do Rio das Balsas, Inventor da Descida de Boia, em julho de 1952, Amigo da Fanfarra do 1° RCG, autor dos livros O Acordo PDS/PTB, coletânea de charges, Sinais de Revisão e Regras de Pontuação, normativo, Do Jumento ao Parlamento, com episódios da vida real, De Balsas para o Mundo, centrado na navegação fluvial Balsas/Oceano Atlântico, Pétalas do Rosa, saga da Família Albuquerque e Silva, Memorial Balsense, dedicado à história de sua terra natal, e Caindo na Gandaia, humorístico apimentado, é casado, tem quatro filhos, uma nora, dois genros e dois netos e reside em Brasília, Distrito Federal, desde dezembro de 1960.

Do Jumento ao Parlamento segunda, 10 de julho de 2017

O MELÔMANO, A TORCIDA E O PENTA

 

O MELÔMANO, A TORCIDA E O PENTA

Raimundo Floriano 

 

                        A melomania – grande paixão pela música – é um sentimento que trago na massa do sangue. Cultivo a Música Popular Brasileira com grande dedicação, mantendo um organizado arquivo do vasto repertório nacional, aí compreendidos o choro, a velha guarda, a música sertaneja de raiz e o forró. Atenção especial tenho dispensado ao Carnaval Brasileiro, cujos registros sonoros pus em ordem cronológica, gravando 800 fitas de 60 minutos, num total de 1830 composições, desde 1870, com Zé Pereira, fanfarra adaptada da peça musicada Les Pompiers de Nanterre – Os Bombeiros de Nanterre –, de autoria dos franceses Larone e Martinaux, até 1996, com a marchinha Xô, Satanás, do conjunto Asa de Águia.

 

                        Confesso que meu desejo é abrir as janelas de meu apartamento, regular o som no máximo volume e transmitir para todo o mundo essas maravilhas que coleciono. Mas as coisas não funcionam assim. Por isso, sempre que posso, reúno os componentes da Banda da Capital Federal para retretas em logradouros públicos de Brasília, no que somos recompensados pelos aplausos do público que se diverte nesses momentos. Somos aquilo que os veteranos músicos de Nova Orleans – EUA, que só tocam jazz, chamam de preservation band.

 

                        Mas nem sempre nosso trabalho é bem compreendido. Conforme disse no episódio referente à Banda, encerrei, em 1975, suas intensas atividades, devido às pressões de que fui alvo por parte das autoridades, em virtude das reclamações de alguns que viam em nossa música apenas um barulho a lhes perturbar o sossego. Passei a apresentá-la somente em ocasiões muito especiais e descaracterizada, sem estandarte nem uniforme, para não despertar a ira dos deprimidos.

 

                        Além de melômano, sou um patriota. Na Copa do Mundo, torço apaixonadamente pelo Brasil, mesmo que nenhum jogador do Vasco tenha sido convocado. E faço o povão dançar nas ruas, comemorando as vitórias da Seleção Canarinho. Assim ocorreu em 1978, quando fomos “campeões morais”, como dizia o treinador Cláudio Coutinho. Ganhamos todas, mas a Argentina levou a Taça. Visando a animar o carnaval de rua, tive que procurar refúgio para meu trombone noutro grupo de músicos, cujo chefe se responsabilizasse por tudo, sem que meu nome aparecesse. Foi quando surgiu o Pacotão. Era a devolução dos festejos de Momo às avenidas e entrequadras brasilienses. Em 1979, a marchinha Aiatolá, de Moa e Samuca, tomou conta de todos os foliões e, até hoje, é a mais cantada nos desfiles do bloco:

 

 

“Geisel, você nos atolou
O Figueiredo também vai atolar
Aiatolá, Aiatolá,
Venha nos salvar
Que esse governo já ficou gagá
Ga-ga-ga-Geisel...”

 

                        Para fazer parte daquele seleto grupo de músicos, contei com a ajuda de uma extraordinária figura humana; o trombonista e maestro Celso Martins. O grande sucesso do Pacotão se deve, quase todo, aos arranjos que ele fazia para as composições que eram lançadas anualmente e também ao entusiasmo com que ele se porta diante de seus instrumentistas. Parece um garoto. Minha amizade com ele perdurou nesses mais de 22 anos, e tenho a honra de, hoje, contar com sua colaboração na Banda da Capital Federal.

 

Maestro Celso Martins, a alma do Pacotão

                        De 1975 a 1988, alternei a participação nos carnavais, ora no Pacotão, ora em Balsas, onde me integrava à Banda FM, do cantor Félix Matias, o Roberto Carlos do Sertão, que contava com guitarrista, baixista, tecladista, sanfoneiro, vocalistas e uma cozinha – percussão – nota 10. Nessas idas, sempre contei com o suporte de outro excelente sujeito: o saxofonista mineiro Jurandir Cruz, o Dudu, sargento reformado da Polícia Militar do Distrito Federal. Dudu é desses que tocam do Sábado Gordo até a Quarta-Feira de Cinzas sem se cansar. Tremendo boca-de-sola. Tem uns cacoetes de cigano – não fixa morada em lugar algum –, de gaiato, de maluco, não sei bem definir.

Dudu, saxofonista, cigano e bruxo 

                        Uma vez, indo para Balsas, tivemos que pernoitar em Araguaína – TO, e nos dirigimos para o TransHotel, simpático “2 estrelas” às margens da estrada Belém – Brasília. Um tanto acanhado, Dudu insistiu para que eu procurasse uma pensão baratinha:

 

                        – Floriano, eu não estou acostumado a ficar em local frequentado por bacanas, por gente grã-fina!

                        – Dudu – tranquilizei-o –, basta que você proceda como se estivesse em sua casa ou no quartel. Não há diferença.

 

                        No jantar, tudo se passou sem novidades. Notei que ele procurava me imitar em tudo. E tudo transcorria dentro dos conformes. No dia seguinte, à hora do café, novamente Dudu me arremedava os gestos. Peguei um prato, ele pegou outro. Peguei uma faca e um garfo, ele fez o mesmo. Servi-me de uma talhada de mamão, ele pegou uma tigela de coalhada. Fomos para a mesa. Quando comecei a comer o mamão, ouvi-o resmungar. É que, com o garfo, a coalhada não lhe chegava à boca, derramava no caminho.

 

                        Aconselhei-o:

 

                        – Dudu, por que você não usa uma colher?

                        – E eu posso?

 

                        Assim que nos conhecemos, chamei-o para almoçar comigo. Ao ver o vidro de molho de pimentas – malagueta e de cheiro – à mesa, perguntou:

 

                        – Floriano, você gosta disso aí?

                        – Dudu, comer sem pimenta, é o mesmo que dançar com irmã!

                        Ele, para se mostrar entendido em assuntos gastronômicos, retrucou:

                        – Também adoro!

 

                        Depois que me servi, dei uma vigorosa chuveirada da picantíssima conserva em meu prato. Vendo que Dudu ia me seguir, avisei:

 

                        – Dudu, tenha calma. Ponha aos pouquinhos, e vá experimentando!

                        – Que nada, Floriano, eu gosto é assim mesmo! – E ensopou seu prato com o ardido tempero.

 

                        Ao mastigar a primeira garfada, as lágrimas lhe banharam as faces, e seus olhos ficaram vermelhos. Imediatamente, abriu e bebeu dois litros de refrigerante, tossiu um bocado, mas comeu tudo sem reclamar.

 

                        No outro dia, ligou para mim, um tanto abatido:

 

                        – Floriano, andei perto de morrer aqui em casa!

                        – Foi mesmo, Dudu? De quê?

                        – Aquela comida apimentada de ontem quase me matou. Pra entrar, até que foi fácil, o refrigerante ajudou. Mas, pra sair, meu chapa, o negócio arruinou. Estou sofrendo feito um condenado. Agorinha mesmo, minha mulher acaba de me aplicar um supositório de picolé!

 

                        Nossa parceria durou até 1988, quando problemas odontológicos fizeram com que eu perdesse a embocadura – firmeza no lábio superior, indispensável para quem toca instrumento de bocal como o trombone. Mas nem isso me afastou das ruas. Passei a tocar bombo e continuei a animar a torcida nas Copas, principalmente os moradores das quadras 215, 216, 415 e 416 Sul, onde eu residia. Para isso, contei com o entusiasmo de uma inesquecível e fraternal família, os Pimentel Menezes, meus vizinhos no Bloco L.

 

Humberto Pimentel, maestria na percussão

                        Humberto Lúcio Pimentel Menezes, funcionário da Presidência da República, é um exímio percussionista. Fizemos, naquelas comunidades, a festa das famílias: eu com o bombo; Humberto com o repenique; Neusinha, sua esposa, com o isopor de mantimentos; Daniele, sua filha, com o surdo; Ramon, seu filho, com o reco-reco; Veroni, minha mulher, e Elba e Mara, minhas filhas, à frente, puxando o vocal e o cordão. Arrebanhávamos multidões, que cantavam e dançavam embaladas por nosso ritmo.

 

                        Humberto também é um patriota, um brasileiro de fibra. Flamenguista de qualidade, vi-o passar mal, perto de um infarto, quando o Zico perdeu aquele pênalti contra a França, na Copa de 1986, desclassificando-nos.

 

                        Igualmente reforçavam nossas armações o zabumbeiro Eurico Leal Júnior, funcionário do BRB, e seus passistas: Maria das Graças –  esposa – e filhos, Mateus e Carolina.

 

                        No início das passeatas, eu sempre pensava: “Se tivéssemos, ao menos, um instrumento de sopro..., se eu ainda pudesse tocar trombone..., por onde andará o cigano Dudu?”

 

                        Na Copa do Mundo de 94, a cada vitória do Brasil, aumentava o número de participantes em nossas comemorações. Na manhã do último jogo, aquele contra a Itália, eu ainda estava deitado, quando o telefone tocou. Era o Dudu! Acabara de chegar do Rio de Janeiro e queria se colocar a minha disposição. Imediatamente, fui buscá-lo no Cruzeiro Velho, ele e seu sax!

 

                        Assistimos ao jogo em meu apartamento. Na hora da decisão por pênaltis, quando Roberto Baggio ia efetuar sua cobrança, Dudu fez um gesto de mandinga – esqueci-me de dizer que ele é dado a bruxarias –, cruzou os dedos e falou:

 

                        – Esse aí vai chutar por cima do travessão!

 

                        Não deu outra! Fomos Tetra! E nossa bateria, enriquecida pelo sax do companheiro Dudu, comemorou essa conquista em grande estilo.

 

                        Devo à doutora Divina Maria Gomes, minha dentista, a arrancada para meu retorno ao trombone. Ainda em 1964, dado o agravamento de meu problema bucal, ela me encaminhou a um cientista, verdadeiro luminar, o implantodontista nova-iorquino – nasceu em Nova Iorque, MA – Delfino Damas Soares. Eu já conhecia o doutor Delfino, desde seu tempo de estudante, mas não sabia que ele era um especialista nessa nova modalidade.

 

                        Depois de um atento exame e diante das radiografias exaustivamente analisadas, ele me informou:

 

                        – Raimundo, você voltará a tocar trombone!

 

                        Vibrei de felicidade! Não esperava tanto! Sem muita confiança nesse maravilhoso prenúncio, verdadeiro milagre, iniciamos o tratamento, que durou cerca de um ano, pois o mais importante de tudo é o tempo de espera, de carência, para assegurar a ausência de rejeição por parte do organismo. Terminada sua delicadíssima tarefa, o doutor Delfino me entregou aos cuidados de uma outra sumidade, o austro-catarinense Jorge Probst, mestre em reabilitação oral. Concluído seu artístico trabalho, o doutor Jorge me despachou:

 

                        – Agora você pode voltar às atividades musicais!

                        – Doutor – hesitei – será que minha arcada dentária superior aguentará o peso do bocal?

                        – Raimundo – respondeu ele – você pode até pendurar nela um boi, que ela sustentará!

 

                        O certo, meus camaradas, é que, no Carnaval de 1996, eu já me encontrava desfilando em cima do trio elétrico da Banda do Pacotão!

 

                        Na Copa do Mundo de 1998, a Banda da Capital Federal, então reestruturada, mas ainda sem seu tradicional uniforme – camiseta verde com desenho da clave de sol e inscrição na cor branca –, voltou a incrementar a torcida. Nesse renascimento, tomaram parte, além de outros músicos, o pioneiro trombonista Fideles, o amigo Humberto Pimentel e sua filha Daniele. De nada valeu, porém, nosso fervor. Já entramos derrotados para a final contra a França, e aquele humilhante 3 x 0 nos deixou entalados por quatro longos anos.

 

                        Para que recuperássemos a autoestima veio a Copa de 2002. Acreditei na conquista do Pentacampeonato desde maio, quando os jornais de Brasília passaram a publicar minhas cartas, nas quais punha fé em nossos jogadores e na vitória almejada.

 

                        No dia 22 de junho, a Banda completara 30 anos de existência. Para comemorar essa data e a conquista do almejado título, espalhei cartazes por toda a Capital Federal, convidando a população para a retreta carnavalesca, que se realizaria ao lado da Banca de Revistas da SQS 215, a partir das 8h – vejam bem, na hora do início do jogo. Nessa tocata, mais um pioneiro: o saxofonista Jambeiro, admitido em 1974. Importantíssima foi a colaboração do maestro Celso Martins, na regência; do dono da Banca, Ronaldo Alves, que providenciou bebidas e tira-gosto; e de meu irmão José Albuquerque, o Carioquinha das Meninas, que instalou sob as árvores seu potente serviço de som.

                        O placar de 2 x 0 nos redimiu, recolocando o Brasil no primeiro lugar do ranking mundial futebolístico. Nossa festa, que durou até às 15h, contou com a presença maciça dos moradores das redondezas, senhoras com crianças no colo, idosos em cadeiras de roda, felizes todos com a histórica conquista.

 

                        Um detalhe que não posso omitir: apesar de reiteradamente convidados, nenhum jornal ou estação de TV apareceu por lá! 

A BANDA DA CAPITAL FEDERAL

(Fundada em 24.06.1972)

NA FESTA DE SEU TRIGÉSIMO ANIVERSÁRIO E DA CONQUISTA DO PENTA

 Raimundo Floriano, trombone - Batista , trombone - Teixeira, sax  - Jambeiro, sax  - Gedeon, pistom

Dionísio, trombone - Maestro Celso, trombone, Fideles, trombone - Élton, tarol - Marcos, bombo - Carioquinha, voz

 


Do Jumento ao Parlamento quinta, 02 de março de 2017

O MUTIRÃO

O MUTIRÃO

Raimundo Floriano 

 

Na primeira metade dos Anos 80, no alvorecer de um domingo, em viagem para a cidade goiana de Trindade, chamou-me a atenção, logo depois do Posto da Polícia Rodoviária de Goiânia, uma grande concentração de pessoas no que parecia ser um vasto terreno descampado. Como estávamos ainda no lusco-fusco da madrugada, não deu para ver bem de que se tratava.

 

Pela movimentação de carros e gente, cada vez chegando mais, pensei que aquilo poderia ser os preparativos para a realização de um “festival”, como é chamado o torneio de futebol amador em que concorre um elevado número de times, jogando entre si no mata-mata, até que, à tardinha, há o jogo principal para definir o campeão.

 

Segui minha viagem fazendo meus planos. Na volta, animaria a torcida vencedora. Para essas eventualidades, sempre carregava meu trombone no porta-malas do carro.

 

Às 17h, ao retornar, uma surpresa: no local do que eu pensava ser um descampado, havia uma cidade. E toda aquela gente deveria estar abrigada no interior das residências. Mas como é que eu pude confundir aquelas casas com um terreno escalvado? Precisava trocar os óculos! Segui minha viagem para Brasília.

 

No dia seguinte, as manchetes de todos os jornais do país e os noticiários da TV anunciavam: “Governador de Goiás constrói mil casas num só dia!”.

 

Senador Íris Rezende: criador do mutirão 

Tratava-se do então jovem governador Íris Rezende, que, em sua vida pública, além desse cargo, foi vereador, prefeito, deputado estadual, ministro de Estado e senador.

 

Como prefeito de Goiânia, nos Anos 60, notabilizou-se pelos mutirões – auxílios gratuitos que prestam uns aos outros os membros de determinada comunidade – para a construção de casas populares, quando se misturava às pessoas comuns e ajudava como se fosse um simples servente. Isso não era novidade. Mas Íris Rezende, naquele domingo, chegara ao extremo de sua ousadia, realizando aquilo a que ele denominou de Mutirão das Mil Casas.

 

Para isso, contou com a participação de todos os futuros moradores da cidade a construir – homens, mulheres e crianças –, todos distribuídos em equipes com coordenadores que os orientavam. Eram pedreiros, serventes, eletricistas, bombeiros, marceneiros, serralheiros, enfim, operários que, com suas habilidades, levaram o empreendimento ao pleno sucesso.

 

O povo goiano é solidário e hospitaleiro. De há muito, era costume dos fazendeiros juntarem seus trabalhadores para prestarem auxílio a um vizinho que se encontrava em aperto nos afazeres agrícolas. A esse socorrimento davam o nome de traição, talvez porque chegassem na casa do amigo geralmente de surpresa, a altas horas da noite, com cantos, fogos e muita algazarra. Mutirão, como ação de uma coletividade em benefício de todos, é coisa tirada da cabeça do Senador Íris Rezende.

 

Desde então, sempre tomei aquele mutirão como exemplo de que nada é impossível, quando se conta com a boa vontade e cooperação das partes envolvidas em qualquer projeto. E foi assim pensando que, também atrevido, comecei, no dia 23 de novembro de 1991, a pôr em execução o preparo dos originais deste meu primeiro livro.

 

A compreensão, o entusiasmo e a simpatia com que fui agraciado pelos amigos, pelos desconhecidos e pelos dirigentes de órgãos públicos e empresas me deixam vaidoso e extremamente agradecido pelo fato de poder, hoje, enviar este trabalho ao prelo.

 

Em homenagem e reconhecimento, passo a transcrever o nome de meus valorosos colaboradores.

PESSOAS JURÍDICAS 

Senado Federal - Subsecretaria de Arquivo – Forneceu-me as fotos dos senadores Íris Rezende, Mauro Borges e Vitorino Freire.

 

Câmara dos Deputados - Centro de Documentação e Informação - Coordenação de Arquivo – Forneceu-me as fotos dos deputados Antunes de Oliveira, Delfim Netto, Flávio Marcílio, Gastone Righi, Jorge Cury, Neiva Moreira e Nelson Marchezan.

 

Câmara dos Deputados - Centro de Documentação e Informação - Seção de Referência – Forneceu-me cópias de perfis parlamentares, biografias e proposições.

 

Laboratório Santos Maia -  Três Corações – Enviou-me a foto aérea de quartel da EsSA.

 

Laboratório Fotográfico do 12º RI – Enviou-me a foto aérea do quartel.

 

Laboratório Fotográfico do BPEB – Forneceu-me a foto aérea do quartel.

 

Conjunto Nacional Brasília – Forneceu-me o trabalho fotográfico de Clausem Bonifácio, com a vista aérea daquele que é o primeiro shopping da Capital Federal.

 

PESSOAS FÍSICAS
(em ordem alfabética)

Ana Beatriz Rosas – Odontóloga. Enviou-me a foto do sábio Ivannoeh Lopes Rosas, seu pai.

 

Anderson Braga Horta – Personagem deste livro. Deu-me preciosas dicas sobre editoração.

 

Antônio Adolfo Pedra Fonseca – Meu sobrinho por afinidade. Descompletou sua coleção da revista Visão, para me agraciar com a página referente a minha coleção de cachaça.

 

Augusto Braúna – Enviou-me a foto de seu pai, Leonizard Braúna, e a partitura da marcha Balsas Querida, de sua autoria, escrita pelo maestro Anderson José de Matos Silva.

 

Edilza Virgínia Pereira – Enviou-me a partitura e a letra do Hino de Balsas, de sua autoria.

 

Elba Souza de Albuquerque e Silva – Minha filha. Estudante de Direito no UniCEUB e Letras–Tradução na UnB. Aos 19 anos, já demonstra um bom conhecimento da Língua Portuguesa. Completou o trabalho do Word na “espanada” caseira deste livro.

 

Francisco Messias da Costa, da Photo&Digital – Com paciência e esmero, recuperou e digitalizou todas as imagens, padronizando-as em 300 dpi.

 

Goiano Braga Horta – Realizou a primeira apreciação crítico-gramatical deste livro e escreveu sua orelha, embora não tenha lido o episódio em que é o protagonista.

 

Jaqueline dos Santos Martins – Violista. Enviou-me a foto do maestro Celso Martins, seu pai.

 

José Albuquerque e Silva – Meu irmão. Narrou os fatos envolvendo o jogador Conradinho e a Seleção Balsense de Futebol nos Anos 40.

 

José Gilberto Louzada – Filatelista. Deu-me valiosas informações sobre o assunto de sua especialidade.

 

Karla Patrícia Lima Cavalcante – Professora de Malhação. Diligenciou para que me chegasse às mãos a foto do colega João Canindé.

 

Maria Berquó Côrrea Côrtes – Forneceu-me a foto do professor Sebastião Côrrea Côrtes, seu marido.

 

Maria das Dores Albuquerque e Silva – Minha irmã. Forneceu-me fotos de jumentos paraibanos, usadas pelo ilustrador carioca Rodrigo, que não conhecia essa espécie animal em extinção.

 

Natanael Rhor da Silva – Meu cunhado. Remasterizou algumas fotos usadas neste trabalho.

 

Neuber Miranda Ribas – Funcionário da Câmara. Enviou-me a foto do professor Antônio Neuber Ribas, seu pai.

 

Orlando Tejo – Numa especial deferência, permitiu-me o uso de seus versos no episódio em que é focalizado.

 

Paulo Viana – Filho do senador Bernardino Viana. Conseguiu-me a foto do 25º BC.

 

Rita de Cássia Piedade da Silva – Minha sobrinha. Forneceu-me a foto de João Ribeiro e Mariinha, seus pais.

 

Rodrigo de Souza Furtado – Artista plástico carioca. Vascaíno. Realizou grande parte das ilustrações.

 

Sabry Falluh – Filatelista e empresário. Orientou-me no episódio sobre a coleção de selos.

 

Sebastião Corrêa Côrtes: segurança na Orientação 

Sebastião Côrrea Côrtes – Filólogo, latinista, poliglota e helenista. Personagem deste livro. Um de meus espelhos na vida. Deu-me orientação segura nos assuntos etimológicos e semânticos.

 

Silvana Maria Sócrates Teixeira – Professora da Escola de Música de Brasília. Escreveu as partituras do Hino de Santo Antônio e do samba Balsas, Cidade Sorriso, e informatizou as demais peças musicais constantes deste livro.

 

Tasso Réa Jannuzzi – Coronel do Exército, pioneiro da 6ª Cia. de Guarda. Cedeu-me a foto aérea da Cia. Pol. Ex./11ª RM.

 

Vera Neves – Forneceu-me a foto de seu pai, Sebastião Neves, com a camisa da Banda da Capital Federal.

 

Vili Santo Andersen – Enviou-me a foto de seu Chevrolet, embelezada por Cinira, sua jovem esposa.

 

Violeta da Silva Kury – Resgatou para mim a letra do samba Balsas, Cidade Sorriso e me ajudou a identificar os jogadores da gloriosa Seleção Balsense de Futebol de 1956.

 

Wesley Souza Santos – Jovem artista plástico brasiliense, tatuador de profissão. Responsável por uma parte das ilustrações.

 

Willer de Albuquerque Fonseca – Meu primo. Forneceu-me dados relativo ao Mutirão das Mil Casas.

 

Posso garantir às pessoas – jurídicas e físicas – acima citadas que seu adjutório não ficará em vão; que a força positiva com a qual fui agraciado me dá condições e moral para proclamar a todas as gerações presentes e futuras uma insofismável verdade, aparentemente esquecida:

 

– Livro também é cultura!

 

Ao leitor desejo que desfrute de momentos de diversão e bom humor na leitura desta obra. Se os episódios aqui narrados caírem em suas graças, maior prêmio não poderei ambicionar.

 

Finalmente, desejo a este meu livro uma trajetória segura. Que ele seja manuseado, consultado, em casa ou nas bibliotecas públicas para as quais destinarei exemplares seus.

 

E que jamais seja vítima da síndrome do Fahrenheit 451 – livro do escritor americano Ray Bradbury, transformado em filme, com a seguinte sinopse: “Num Estado totalitário em futuro próximo, os bombeiros têm como função principal queimar livros e qualquer tipo de material impresso, pois foi convencionado que literatura é um propagador da infelicidade”. Fahrenheit 451 – correspondente a 233 graus Celsius – é uma referência à temperatura ideal para queimar papéis.

 

Livrem-nos os céus disso!

 

Nas horas de Deus, amém!

 


Do Jumento ao Parlamento sábado, 25 de fevereiro de 2017

O INÉLIDO

O INÉLIDO

Raimundo Floriano

 

 

                        Você já validou alguém hoje? Com essa pergunta, que li não me lembro onde, o autor queria saber se, no decorrer do dia, tínhamos sido simpáticos para com o próximo. Se disséramos uma palavra de elogio franco, de incentivo, um alegre olá, algo que fizesse com que o outro se sentisse de bem com a vida, útil, considerado, levado em conta.

 

                        Maurício Albuquerque Melo Júnior, escritor de sucesso, meu amigão, de quem sou assíduo leitor, dizia-me, à guisa de conselho, estímulo, sei lá: “Raimundo, diante da folha de papel – hoje, a tela do Word – em branco, a possibilidade é toda. Eu falava: “Mas Maurício...” e ele retrucava: “Meta os peitos, rapaz, não tenha medo, comece do começo, e vá em frente!” O deputado cearense Januário Feitosa, com quem fiz amizade depois de aposentado, do alto de seus quase oitenta anos, fustigava: “Não deixei passar em branco o tempo que Deus me deu.”

 

                        Um dia, veio-me a coragem. Comecei escrevendo sobre a pequenina Balsas, minha querida terra natal, digna de não ser esquecida por seus filhos. E mandei brasa. Três Encontros, Por Quem os Sinos Tocam, O Fogo de Maribondo, Sertanejidades, Urubusservações, Dependência Química, Com a Boca no Trombone foram trabalhos que produzi e saíram publicados em O Diário de Alagoas.

 

                        O que me adiantava, porém, ser lido em Maceió, se o público a quem me dirigia estava a milhares de quilômetros de distância? Pensando assim, juntei tudo o que urdira, tirei muitas cópias e as remeti a diversas pessoas de Balsas, na esperança de merecer uma apreciação, um elogio talvez. Mas que nada! Nem mesmo acusaram o recebimento.

 

                    Acontece que eu queria ser lido, queria me mostrar, queria aparecer. Tomei nova decisão. Passaria a escrever para os aposentados da Câmara dos Deputados, meus colegas, narrando fatos pitorescos ocorridos – alguns enriquecidos, aumentados ou inventados, mas pertinentes – no transcurso do tempo em que convivemos naquela magnífica e dignificante Casa. E assim foi feito. Nosso jornal, Voz Ativa, deu-se ao desplante de me estampar em suas páginas, teimosia do meu amigo Vili, seu coordenador editorial.

 

                        O silêncio dos coleguinhas, no entanto, punha-me pulgas na orelha. Será que me liam, realmente? Será que gostavam? Será que nem abriam o jornal? Ou será que, simplesmente, me poupavam da dura crítica? Sei não!

 

                        Do último filhote de minha lavra, Dez Segundos de Glória, sinceramente, modéstia à parte, até eu gostei. Bem contado, boa trama, final inesperado, tudo isso me gerou a expectativa de ouvir comentários. Saí à cata.

 

                            No Park Shopping, encontro a Allia Felício Tobias. E ela, toda sorrisos:

 

                            – Raimundo, como vai?

                      – Vou bem, Allia. Há quanto tempo! O que você tem feito? (Nem falei na minha revascularização, para não desviar o assunto). Tem tido contato com os demais colegas?

                        – Que nada, rapaz. Meu único contato é a Voz Ativa, onde tomo conhecimento dos aniversários e leio a parte literária (é agora!), que está muito boa.

                        – Allia – perguntei – você gosta de ler?

                        – Claro, Raimundo, é uma das minhas prediletas diversões.

 

                        Despedimo-nos. Eu, com a viola no saco.

 

                        No calçadão da 215 Sul, onde faço minhas caminhadas, encontro o Raimundo Taveiras. E ele, de longe, já vai falando:

 

                        – Raimundo Floriano, você é um sujeito danado (é agora!). Seu irmão, o Carioca, me disse que você botou duas pontes de safena.

                        – Não, Taveiras, não são safenas. É uma mamária e uma radial.

                        – O que que é isso?

                        – A mamária é tirada do peito, e a radial, do braço. Por sinal, saiu do braço esquerdo. Já pensou, Taveiras, se fosse do direito, eu nem poderia mais escrever (é agora!) com desenvoltura.

                        – Conversa, Raimundo Floriano. Você está é joia.

 

                        E, com passadas firmes, raspou-se.

 

                        Um domingo, na Missa, na hora dos cumprimentos, quem vejo na nave central? A colega Maria Linda, biblioteconomista, pessoa cultíssima, acompanhada do marido, Manoel Villela, ex-diretor-geral do Senado, jornalista e escritor (é agora!). Vou até lá:

 

                        – A paz de Cristo, Dona Maria Linda! A paz de Cristo, Seu Villela!

 

                        Retribuem-me o gesto. Demoro um pouco. Com olhar súplice, encaro-os. Nada! Recolho-me a meu canto, quer dizer, a meu assento.

 

                        Na Agência Parlamento do Banco do Brasil, avisto o Sebastião Corrêa Côrtes, Consultor Legislativo da Câmara, uma das pessoas mais inteligentes e cultas deste imenso Brasil. Fala Grego e Latim e é incontestável autoridade na Língua Pátria. Por isso, gosto de lhe jogar umas verdes. Intencionalmente, provoco-o:

 

                        – Côrtes, que prazer! Há séculos não lhe vejo!

 

                        Ele reage na forma esperada:

 

                        – Não o vejo. O verbo ver pede objeto direto.

                        – Côrtes, eu erro com Machado de Assis, que escreveu (é agora!) desse modo.

                        – Machado de Assis, não!

                        – Machado de Assis, sim, Côrtes! Está no quinto parágrafo do capítulo primeiro de Dom Casmurro. Aliás, Francisco Fernandes, em seu Dicionário de Verbos e Regimes, consagrou essa regência.

                        – Francisco Fernandes era bancário. Nunca foi filólogo.

 

                         Instigo-o:

 

                        – Côrtes, por favor, tire-me uma dúvida. Quem escreve, e não é publicado é inédito, certo?

 

                        – A coisa não é bem assim. Mas continue!

                        – E quem é publicado e não é lido (é agora!), o que vem a ser?

                        – Olhe, Raimundo Floriano, não conheço o termo. Mas vou pesquisar em casa, e poderei sugerir um neologismo para você.

 

                        Aproxima-se o João Resina Reina:

 

                        – Oi, como vão vocês? Alguém tem uma caneta?

 

                         Respondo:

 

                        – Resina, eu não saio sem caneta. De repente, a necessidade de escrever (é agora!) algo, como preencher um cheque ou anotar uma ideia que me vem à cabeça, se faz presente, e estou preparado. Eu ando muito esquecido, Resina.

 

                        Resina discorda:

 

                        – Que nada, Floriano, você está é vendendo saúde.

 

                        Mais algumas abobrinhas, e cada um seguiu seu caminho.

 

                        À tarde, mestre Côrtes me telefona:

 

                        – Raimundo Floriano, encontrei o vocábulo. É inelecto, vem do Latim in, negação, e lectus, lido!

                        – Côrtes, perdoe-me – argumentei –, mas não gostei dessa palavra. É muito sofisticada. Prefiro uma que acabei de bolar: inélido!

                        – Não pode, Raimundo Floriano. Não encontra base na etimologia. Inélido não existe!

                        – Pois passou a existir a partir deste momento!

 

                        Dessa forma, vão-se malogrando as tentativas: no Carrefour, Edson Silva Araújo, João Rodrigues de Cerqueira, João Batista Tavares da Silva e sua consorte, Itacy Marques Tavares da Silva; na periferia da 2l5 Sul, Antônio Lírio Farneze e Jair Carvalho Pires; no restaurante Republic, Áurea Lagos da Mota; na 5l6 Sul, Marcília Bergallo e Wilmar Braga; por telefone, Ivannoeh Lopes Rosas, Paulo Augusto Soares Bandeira, Moacir Pires de Morais, Filomena da Silva Pires, Terezinha de Jesus Versiani Pitangui, Conceição José Macedo. Ufa!

 

                        Noite dessas, eu e Veroni, minha mulher, comparecemos a uma quermesse na Igreja Dom Bosco. Organizada, patrocinada e regida por meu primo e colega aposentado João Ribeiro da Silva Sobrinho e sua esposa, Maria da Conceição Piedade da Silva, a Mariinha, essa festa era um deslumbramento. Com videokê, comidas típicas, muita música, shows, danças, prêmios, tinha como ponto alto a apresentação do Bumba-meu-boi do Teodoro, maranhense velho de guerra.

 

                        Na Barraca da Legião de Maria, encontro a Maria Piedade Coelho – mais uma Piedade –, amiga da Veroni. Amiga mesmo, tendo até me visitado no hospital quando fui operado. Saúdo-a, e ela me diz: “– Olhe aqui a Gema!” Falo com a legionária apontada:

 

                      – Engraçado, eu via seu nome na escala de adoração do Santíssimo Sacramento, que – propositadamente não falei digito – escrevo (é agora!) no computador, mas não o ligava à pessoa. Só há bem pouco, a Veroni me disse que se tratava de Gema Penido, minha colega da Câmara, você!

 

                        Quedo-me ali mais uns minutos, conversando trivialidades, esperando. Em vão!

 

                        Lá vem o João Ribeiro, todo eufórico com o sucesso da festa:

 

                        – Raimundo, escreve (é agora!) alguma coisa sobre o que estás vendo aqui!

                        – Mas eu só vim hoje. Não sei como foi ontem nem como será amanhã. Além do mais, acho que não sou a pessoa indicada.

                        – És! Escreve! És sim! (Bom, esse, ainda que não fale claramente, reconhece que escrevo. Já é uma vitória!).

 

                        E nada mais disse!

 

                        Na madrugada, ao despedir-me, a Mariinha, aposentada da Fundação Educacional do GDF, me surpreende:

 

                        – Sabe, Raimundo Floriano, eu li aquela interessante história que escreveste no jornalzinho dos aposentados.

 

                        Glória, hosana, aleluia, louvado seja, salve, salve!

 

                        Tive ímpeto de soltar fogos, gritar ao mundo, anunciar aos quatro ventos:

 

                        – A Mariinha me validou!

 

                        Mas, também, refletindo com humildade, relembrei aquela pergunta que o cantor Juca Chaves fez a uma fã que lhe dissera ter comprado seu último disco:

 

                         Ah, então foste tu?

 

 

João Ribeiro e Mariinha: ele reconhecendo,

e ela validando Raimundo Floriano como escritor

 


Do Jumento ao Parlamento sexta, 24 de fevereiro de 2017

OS PSORÍACOS

OS PSORÍACOS

Raimundo Floriano

 

 

                        O Deputado Januário Feitosa é um homem lutador. Nascido em Cajazeiras, na Paraíba, em 1914, construiu sua vida política no Estado do Ceará, onde iniciou, em 1958, sua caminhada parlamentar como deputado estadual. Em 1970, elegeu-se deputado federal.

 

                        É o criador do município cearense de Barro, para o progresso do qual empenhou grande parte de sua existência. Mais de 30 empreendimentos de vulto, como escolas, hospitais, postos de saúde, energia elétrica, agência do correio, açude, telefone e outros tantos atestam a dedicação com que lutou pelo desenvolvimento da cidade e da região.

 

                        Conhecemo-nos quando eu, aposentado, chefiava, como secretário parlamentar, o gabinete do Deputado Sérgio Cury, PDT-RJ, e ele, já afastado das lides legislativas, batalhava junto aos antigos colegas, visando à obtenção de verbas para entidades beneficentes que fundara e das quais era o principal mantenedor. Alto, magro, belo porte, tem o físico e a aparência de um astro do cinema ou da televisão.

 

                        Foi amizade à primeira vista, surgida de incômodo detalhe. O deputado entrou no gabinete, de terno preto, com os ombros cobertos por um pó branco, que eu bem conhecia. Eu, sentado em minha poltrona, também de terno escuro, olhei para meus ombros e certifiquei-me de que aquela mesma poeirinha, que eu sempre trazia comigo, estava lá, intacta. Avaliamo-nos com divertida curiosidade. Dei, com as mãos, uma espanejada em mim, ele repetiu o gesto em si, e entre nós começou a existir uma grande empatia, embora jamais tocássemos diretamente no assunto.

 

                        Desde então, víamo-nos quase que diariamente. Descobrimos outra particularidade em comum: fôramos, ambos, almocreves em nossa infância sertaneja, onde o jumento era figura sempre presente na labuta cotidiana.

 

                        Sendo ele agricultor e pecuarista, dono de fazendas no Ceará e no Piauí, podendo estar cuidando de seus interesses, de seus negócios, admirava-me o fato de se conformar com as migalhas que conseguia na destinação das verbas do Orçamento. Será que as ínfimas quantias ajudariam as instituições que representava? Um dia, questionei-o sobre isso, e ele sentenciou:

 

                        – Meu caro, é melhor 1% do todo que 100% do nada!

 

                        De tanto me ver redigindo pronunciamentos, cartas, telegramas, projetos, relatórios, pareceres e outras proposições, esse amigo me perguntou, um dia, por que eu não me aventurava no campo da literatura. Acanhado, procurei tirar o corpo fora, mas ele rebateu meus argumentos com uma frase que, até hoje, guardo como ensinamento:

 

                                    – Meu rapaz, não deixei passar em branco o valioso tempo que Deus me concedeu!

 

                        Incentivado por ele e por outros amigos, tomei coragem. Em 1993, o jornal O Diário de Alagoas começou a publicar meus escritos numa coluna dominical a que dei o título de Do Jumento ao Parlamento, do qual esta obra é homônima.

 

                        Ao ler os primeiros exemplares, o deputado Januário Feitosa me aplaudiu. E ressaltou uma quase coincidência: era de sua autoria o livro Do Sertão ao Parlamento, de grande aceitação. Mas enfatizou que via nisso apenas uma obra do acaso. Outro que escrevera e que obtivera excelente vendagem na região foi Sertão do Meu Tempo.

 

                        Certa vez, não me contive e quase lhe falei o nome da coisa que nos afligia. Depois de dar a costumeira espanadinha em meus ombros, com ele a me imitar, arrisquei:

 

                        – Deputado, eu estou usando o Denorex, o Triatop e o Crisan, xampus muito bem recomendados!

                        –  E está obtendo um bom efeito?

                        – Sim, deputado. Com o uso do Denorex, minha cabeleira deixou de embranquecer precocemente. Com o Triatop, meu couro cabeludo já não coça tanto. E o Crisan é bem baratinho!

 

                        Quase 10 anos depois, descobri seu paradeiro pela Internet e liguei para sua casa. Com 88 anos, a completar no dia 28.12.02, está alegre e muito lúcido. Conversamos um tempão. Informei-o sobre minha pretensão de lançar um livro e, dessa vez, fui direto ao ponto:

 

                        – Deputado, meu trabalho não estaria completo se não citasse seu nome e, com sua licença, não mencionasse um mal comum, que nos tem afligido por todos esses anos.

 

                                    Ele deu uma gargalhada e perguntou:

 

                        – A psoríase?

 

                        Como ouço pouco, insisti:

 

                        –Poderia repetir?

                        – P, s, o, r, í, a, s, e! – Escandiu ele.

                        – O que vem a ser isso, deputado?

 

                        – É a caspa, meu amigo! Somos psoríacos da pesada!

 

                        Pois é, vivendo e aprendendo!

 

Deputado Januário Feitosa: incansável lutador

 


Do Jumento ao Parlamento quinta, 23 de fevereiro de 2017

OS ALECTOROMAQUISTAS

OS ALECTOROMAQUISTAS

Raimundo Floriano

 

 

                        Em junho de 1988, fiz um pedido de elepês e livros à Funarte, que anunciava um grande lançamento de obras destacando, sonora e graficamente, nomes consagrados da Velha Guarda da Música Popular Brasileira. Para que não se confundissem quanto ao endereço, e também para lhe dar publicidade, anexei meu cartão de visita. Nele, e em todas as edições posteriores, me declaro alectoromaquista – pessoa que gosta de assistir a brigas de galo. Esse termo é derivado do grego. Alectoro quer dizer galo, e maquia significa combate.

 

                        A diretora-executiva da Funarte, achando-o original, mostrou-o ao humorista Millôr Fernandes, meu guru, que tinha uma coluna diária no Jornal do Brasil. No dia 6 daquele mês, Millôr publicou o cartãozinho em seu espaço no JB, e o sucesso foi mais que o inesperado, conforme já tive o ensejo de contar.

 

                        No quente da campanha eleitoral, em 1º de agosto de 1988, a página que Millôr assinava na revista IstoÉ Senhor ostentava esta matéria: Por que não tentar a alectoromancia? Essa palavra também vem do grego. Alectoro, galo, mais mancia, que é adivinhação. Com muita inteligência e graça, o autor explicava o modo de se escolher um candidato utilizando-se a antiga arte de predizer por meio de um galo que ia comendo os grãos de milho colocados sobre letras que formavam palavras. A coisa funcionava assim: se comesse os grãos sobre as letras s-v-o-a-c, formava Covas. No caso dum galo guloso, que devorasse i-n-r-u-e-n-a-l-a, o candidato escolhido seria Aureliano.

 

                        Fiquei orgulhoso. Meu guru – supus – inspirara-se em atributo meu para escrever tão bela peça literária!

 

                        O tempo se passou. E muito. Em dezembro de 2001, compareci ao Salão Negro do Congresso Nacional para o lançamento do livro Casos & Coisas, do publicitário Duda Mendonça, marqueteiro vitorioso dos grandes nomes da política brasileira. Após receber o autógrafo, fui apresentado a Alexandre Mendes de Oliveira, gerente de divulgações da Editora Globo, que patrocinava o evento.

 

                        Conversa vai, conversa vem, mostrei-lhe meu cartão. Alexandre gostou do que viu e me pediu que o destrinchasse. Ao decifrar-lhe alectoromaquia, ele me revelou:

 

                        – Então, o Duda também tem o mesmo gosto que você!

                        – Por quê?

                        – Possui mais de duzentos galos de briga!

                        – Então eu vou falar novamente com ele!

 

                        E fui. Aproximei-me dele, dando-lhe meu cartão:

 

                        – Duda, desculpe-me, eu até já peguei seu autógrafo, mas voltei, porque o Alexandre me informou que você, como eu, é alectoromaquista. Duda, surpreso, me interrogou:

                        – O que é isso?

 

                        E eu, peito inflado, falei bem alto, para que todos ali em volta me escutassem:

 

                        – É quem gosta de briga de galo!

                        – Que coisa, rapaz, eu não sabia!

 

                        E não sabia mesmo. Em Casos & Coisas, por cinco vezes menciona seu hobby, porém, em nenhum momento, cita a palavrinha mágica. Sinal de que o grande publicitário aprendera alguma coisa naquela noite.

 

                        Mas também me ensinara. De seu excelente texto, acessível e interessante para qualquer um que goste da boa leitura, extraí esta lição: tudo o que aconteceu de ruim em sua vida foi para seu próprio bem. Por isso, quando alguma coisa ruim aparece em seu caminho, ele logo vislumbra algo de bom se aproximando.

 

                        E a quem devo essa riqueza de vocabulário que inclui palavras tão exóticas? A resposta é uma só: ao doutor Antônio Neuber Ribas, meu primeiro chefe na Câmara dos Deputados.

 

                        Seu Ribas, como todos o chamávamos, mesmo depois dele colar grau em Direito e Administração, era um homem de vasta sapiência, grande cavalheirismo, seriíssimo no desempenho da função pública e um folgazão nas horas de lazer. Na Seção de Material da Diretoria do Patrimônio, exarava despachos, pareceres, ou esboçava correspondências a serem assinadas por autoridades do escalão superior, os quais eu tinha a incumbência de datilografar com o esmero exigido na confecção de todos os papéis daquela Casa. Aprofundando-me no estudo e na análise dos escritos magistralmente elaborados, nas ideias bem expostas, na mineirice ao se expressar, transformei-me num rato de dicionário, podendo hoje dizer – e nisso não o desmereço – que com Seu Ribas aprendi a redigir. E sua transmissão de conhecimentos aos auxiliares não se restringia apenas aos documentos oficiais. Gostava de comentar as notícias de jornais e tevês, ressaltando alguma gafe ou um vocábulo com acepção incomum. Aqui e ali, tirava um termo do bolso do colete, só para ver se pegava o interlocutor na curva. E isso me fazia mergulhar no Aurélio, à cata de sinônimos de palavras novas com que deparava na datilografia, na leitura dos escritores nacionais e estrangeiros, em que sempre fui viciado, ou na resolução de palavras cruzadas. Em nossas conversas, no intervalo do expediente, saía-se com perguntas desse tipo:

 

                        – Raimundo, o que é dintel?

                        – Ora, Seu Ribas, é o apoio lateral das prateleiras nas estantes!

                        – E o que é ambão?

                        – É um tipo de tablado, onde os oradores põem o texto que vão ler!

                        – Mas peanha você não sabe o que é!

                        – É um pedestal sobre o qual se assenta uma imagem!

                        – Você sabe o que é anônfalo?

                        – É a pessoa que não tem umbigo!

 

                        Ele se divertia com esses diálogos. E quanto mais ele perguntava, mais aguçava em mim a curiosidade e a vontade de aprender. De outra feita, atacava com as fagias:

 

                        – O que é andrófago?

                        – Pela etimologia da palavra, é quem come o homem!

                        – E ginecófago?

                        – Também, pela etimologia, é quem come a mulher!

                        – E sicófago?

                        – É quem come figo!

                        – Esta é até engraçada: o é coprófago?

                        –É quem come fezes!

 

                        Um dia, a casa caiu. Seu Ribas me apanhou de jeito. Detonou à queima-roupa:

 

                        – Raimundo, dê-me um sinônimo da palavra alectoromaquia.

                        – Olhe, Seu Ribas, agora o senhor me apertou sem me abraçar. Não sei!

 

                        Foi aí que Seu Ribas, meu mestre, me narrou o fato a seguir.

“Uma vez, Raimundo, na chefia da Assessoria Legislativa, eu estava assoberbadíssimo de serviço, despachando com o assessor Sonílton Campos Fernandes, quando entrou na sala o deputado paulista Minoru Massuda, que solicitou a redação da minuta de um projeto de lei permitindo a realização de brigas de galos em todo o território nacional. O deputado expôs seus motivos, afirmando que é até uma crueldade proibir esse esporte, uma vez que o galo é um animal guerreiro e só vive feliz quando se encontra em combate. Citou até o eminente chanceler Oswaldo Aranha, cujo galo Capacete de Aço era o terror das rinhas. Perguntado se apreciava essa modalidade de diversão, o deputado exibiu seu cartão de visita:

MINORU MASSUDA
Capitão PM
Deputado Federal
Galista

Ao vê-lo, o Sonílton sugeriu:

 

       – Deputado, não seria melhor colocar um nome mais apropriado para sua especialidade? Que tal alectoromaquista, termo que define todos os aficionados desse esporte?

 

                        Melhor não poderia haver. O deputado saiu felicíssimo, com o rascunho da proposição – que viria a ser o Projeto de Lei nº 3.500, de 1977 –  e com a bela palavra que, dali em diante, incorporaria a seu currículo.”

 

                        Após ouvir esse relato declarei:

 

                        – Seu Ribas, essa palavra que acabo de aprender passa a fazer parte do meu acervo intelectual e constará do meu cartão, pois fui um rinhadeiro militante nos meus tempos de criança.

 

                        Há poucos dias, rememorando com ele esses momentos de erudição, recebi mais uma aula:

 

                        – Raimundo, você podia acrescentar em seu cartão a palavra eolista!

                        – O que é isso, Seu Ribas?

                        – É a pessoa que curte o esporte de empinar papagaio ou pipa!

 

                        Verdadeira enciclopédia esse Seu Ribas!

 

Antônio Neuber Ribas: mineirice e sapiência

 

Uma alectoromaquia

 


Do Jumento ao Parlamento quarta, 22 de fevereiro de 2017

O VENTO - LITERATURA DE CORDEL

O VENTO

Raimundo Floriano

 

LITERATURA DE CORDEL

ROMANCE SOBREOCORRÊNCIA NA BANCA DE REVISTAS E JORNAIS  DA 215 SUL

 

A gente estava jogando

Dominó e conversando,

Todo mundo bem feliz,

Quando um vento podre e forte,

Desses com bafo da morte

Agrediu nosso nariz.

 

Sequinho, que é jornaleiro,

No grupo foi o primeiro

A dar o grito de alerta.

Disse: “Assim não fico ileso,

Soltaram quem estava preso,

Ficou a porteira aberta.”

 

Seu Francisco, cearense,

Disse assim: “Você nem pense

Que fui eu.” E não se entrega.

Disse mais: “Isso é castigo,

É veneno, é um perigo,

Se pegar no olho cega.”

 

Declarou seu Belarmino:

“Isso é coisa de menino.

Fique sabendo você:

Pra ir pro Show do Milhão,

Só como na refeição

Os produtos da Nestlé.”

 

Eu, Raimundo Floriano,

Mão de onça, pé de pano,

Falei a verdade pura:

“Vivo sempre na dieta,

O rango não me afeta,

Só como fruta e verdura.”

 

Reclamou o Severino,

Taxista nordestino:

“Assim minha vida atrasa.

Pra ser um bom companheiro

E não matar passageiro,

Só como o que é feito em casa.

 

Leonídia, a pacifista,

Disse para o taxista:

“Vá lá no bispo e se queixe.

Sou da paz e da beleza,

Amiga da natureza,

Em casa, só como peixe.”

 

Divina, moça educada,

Discreta e delicada,

E corretora do bicho,

Falou assim: “Tá danado,

Esse aí tá bem lascado,

Parece que comeu lixo.”

 

Alex, o ajudante,

Disse para um reclamante:

“Eu fico sem qualquer mágoa.

Na hora do acontecido,

Eu me achava protegido,

Estava entregando água.”

 

Bombeiro, coronel Puga

Exclamou: “Me ponho em fuga,

Tanto fedor me constipa.

Eu nunca corri do fogo,

Porém aqui neste jogo,

Tem mesmo é vento de tripa.”

 

Gélson, o homem do furo,

Disse: “eu não me aventuro

Pra passar decepção.

Se o assunto é minha boia,

Não sofro de paranoia,

Vou comer lá no Pirão.”

 

Reinaldo mostrou destreza

Pra fazer sua defesa

E do mano Rafael:

“Aqui é que a mula manca,

Só comemos nesta Banca

Enroladinho e pastel.”

 

O infante Ronaldinho,

Que é bem pequenininho

Pra já praticar besteira,

Disse assim: “Nessa eu tô fora,

Qualquer dia, qualquer hora,

Eu só tomo mamadeira.”

 

Waldir, vendedor de frutas,

Que detesta as coisas brutas,

Que só quer coisa bacana,

Disse: “Eu aqui levo gato,

Mas não ataco meu fato,

Me alimento com banana.”

 

Disse Frank, o motoboy:

“Essa catinga me dói,

Denuncia alguma tara.

Eu como boia escolhida,

Sadia e garantida,

Que minha mulher prepara.”

 

Seu Dedé, que vinha vindo

Na S-10, foi sentindo

Algo sufocar-lhe o peito.

Disse: “Rezem uma missa

Pra alma dessa carniça,

Que o corpo não tem mais jeito.”

 

Mestre Francisco Rufino

Disse assim: “O intestino

Desse cabra me irrita.

Como sou bem prevenido,

Evito o desconhecido,

E só como de marmita.”

 

A Lúcia da Gargalhada

Ficou tão apavorada,

Que saiu rindo e gritando:

“Esse pensa que fez vento.

Na verdade esse nojento

Tá mesmo é defecando.”

 

O Quinze, outro taxista,

Afirmou: “Está na vista

Que não fui eu quem ventou.

Com a educação que é minha,

Transporto Dona Dorinha

E ela nunca se queixou.”

 

Seu Bené, que é goiano,

Come pequi e tutano,

Macaxeira e jerimum,

Gritou: “Esse tá ferrado,

Com intestino arrombado,

Soprando com o bumbum.”

 

Seu Manoel, que é potiguar,

Começou a ofegar

E falou: “Soltou de novo?

Esse imundo está com a gota,

Está com a tripa rota,

Jogando fezes no povo.”

 

Seu Hélio, do Prodasen,

Disse “Aqui não fico bem,

Não aguento este repuxo.

Assim eu fico é careca.

Esse levado da breca

Tá ventando pelo bucho.”

 

O Alexandre, flamenguista,

Disse: “Esse tá na lista,

O fedor ninguém aguenta.

Até mais, eu vou-me embora.”

Saiu pelo mundo afora

Cuspindo e tapando a venta.

 

Seu Vicente ia passando,

Mas de longe farejando

Aquele fedor de rabo.

Disse assim: “Não se ofenda,

Prefiro ir pra fazenda

E amansar burro brabo.”

 

Quem fez bem foi seu Armando,

Que foi logo se mandando

Antes dessa agressão.

Hoje ele está bem folgado,

Comendo mandi assado

Em Caxias, Maranhão.

 

Eduardo, motoqueiro,

Ficou um tanto cabreiro,

E dele mesmo eu não maldo.

Disse assim: “Sou bem sabido.

De antemão advertido,

Eu só como ali no Caldo.”

 

Seu Lauro, que está enfermo,

Tomou o incidente a termo

E disse com emoção:

“Se voltar a acontecer,

Pego o que me pertencer

E volto pra Catalão.”

 

Seu Olavo, experiente,

Perguntou: “Quem foi o ente

Que o mau cheiro pressentiu?

Pois certo está o ditado,

O primeiro a dar o brado,

Bem dali é que saiu.”

 

Ronaldo, dono da Banca,

Foi olhando para a anca

De um freguês que estava perto

E disse: “Esse tá matando,

Nas calças já tá obrando,

Disso sim eu estou certo.”

 

Mas o garoto Reinaldo,

Que é filho do Ronaldo,

Disse: “Eu sei de onde sai.

Conheço bem esse vento,

Do jeito que é fedorento,

Só pode ser do meu pai.”

Sentados à mesa, no sentido horário: Raimundo Floriano,

com seu chapéu de sertanejo, seu Belarmino, seu Francisco

e Ronaldo, dono da Banca, suspeito número um

 


Do Jumento ao Parlamento sábado, 18 de fevereiro de 2017

OS PRAZERES DE RAIMUNDO

OS PRAZERES DE RAIMUNDO

Raimundo Floriano 

 

                        No começo de novembro de 2001, o Correio Braziliense publicou uma excelente resenha do livro Jackson do Pandeiro, o Rio do Ritmo – que nos traz, além da biografia do focalizado, uma visão geral do ambiente forrozeiro nordestino –, escrita pelo jornalista TT Catalão. Como ainda não possuía meu exemplar, a matéria me suscitou uma série de dúvidas, que procurei esclarecer, entrando em contato com seu autor.

 

                        Na troca de e-mails, TT Catalão manifestou interesse em fotografar as capas de todos os elepês do Jackson, de minha coleção, para serem arquivadas no jornal, com o que prontamente concordei. Dias depois, fui procurado em meu apartamento pela jornalista Conceição Freitas, desacompanhada do fotógrafo, que se atrasara, para conhecer meu acervo.

 

                        Mostrei-lhe elepês, fitas, cedês, livros, coleções de selos, MPB e Carnaval Brasileiro, meu cartão de visitas e uma papelada imensa. Conversamos muito, sobre tudo o que ela, com especial interesse examinou, detendo-nos mais nos dizeres do cartão. Conceição fez muitas anotações, pesquisou na Redação, telefonou para obter explicações, questionou grande parte dos sinônimos que eu adotara em meu pequeno currículo, consultou vários dicionários e enciclopédias. No dia 15 daquele mês, o jornal publicou, em página inteira, a matéria a seguir: 

 

OS PRAZERES
DE RAIMUNDO

 

Conceição Freitas

Da equipe do Correio

O cartão de visita de Raimundo Floriano de Albuquerque e Silva exige um dicionário. Foi o jeito que ele achou de mostrar que sabe das coisas. Um de seus muitos sonhos era ter uma caricatura. Aí está.

Quando era funcionário da liderança do PTB na Câmara Federal, o maranhense Raimundo Floriano de Albuquerque e Silva atendia a uma horda de candidatos a emprego. “O que tu apitas aqui?”, perguntavam os mais ousados. Raimundo resolveu mostrar que não era um qualquer e fez um cartão de visitas para que os insolentes soubessem com quem estavam falando. E declarou, no verso do cartão, suas devidas qualificações: Amanuense – Cinesíforo – Alectoromaquista – Melômano – Banjoísta – Íncubo – Rapsodo – Vascaíno – Diascevasta – Partenomante – Cruciverbista – Parafrasta – Calemburista – Abencerragem – Fescenino – Decifrador”.

 

Depois disso, Raimundo já renovou várias vezes o seu ilustrado cartão de visita. Abandonou alguns quesitos e acrescentou outros. É também trombonista, decifrador, matinador, filatelista, lusófono, toma-largura, mas continua cinesíforo, alectoromaquista, cruciverbista... No próximo cartão, que será feito tão logo acabem os exemplares do atual, Raimundo pretende substituir “trombonista” por “revascularizado”, e “partenomante” por “fescenino”.

Esse amanuense de 65 anos se diverte com a vida: pôs na rua a primeira banda de música de Brasília, em 1972, toca trombone, faz cordel, coleciona selos, tem gravadas todas as marchas e sambas de carnaval, fabricava cachaça, apostava em briga de galo e se considera vencedor de um torneio de palavras cruzadas.

Desde que foi socorrido por uma ponte de safena, em fevereiro passado, o trombonista teve de abandonar o sopro de seu velho instrumento. Lá se foram quase 30 anos de farra desde que, em 1972, quando Brasília era uma cidade sob a ameaça de se transformar em ruínas por conta do desinteresse em fazê-la funcionar, Raimundo pôs anúncio nos classificados do jornal.

“Professor de trombone de vara – Preciso de um, para os sábados, de 2 às 4 da tarde. Não quero erudição, o meu negócio é botar a Banda Urubu na rua, tocando algumas marchinhas e alguns frevinhos para arder e encardir. Tratar com Floriano – Fone 23-2763”.

Na primeira aula, já ardia e encardia: “Mulata bossa nova, caiu no hully-gully...”. Se apresentou na Festa dos Estados com seis músicos, avulsos e intrépidos como ele. Em dezembro do ano seguinte, os jornais da cidade noticiavam a banda que “passa, tocando de graça e fazendo vibrar mil gentes na praça”. O grupo de mestre Raimundo já somava 17 músicos, funcionários públicos, bancários, militares, comerciários e estudantes, que cortava os pilotis da Asa Sul e arrebanhava meia centena de pessoas. A essa altura, a banda tinha mudado de nome, passava a se chamar Capital Federal, porque urubu, além de ser um bicho muito do feio, não trazia bons presságios.

 

PARTENOMANTE

 

É esse o nome, partenomante, da pessoa que adivinhava se uma mulher era ou não virgem. Havia métodos para isso, mas o hoje comedido aposentado prefere não cavoucar detalhes. “Isso está fora de moda, por isso resolvi tirar o partenomante e colocar o fescenino”. Não toma jeito esse Raimundo. Fescenino quer dizer “obsceno” e “licencioso”, contador de piadas picantes.

No tempo em que podia beber, Raimundo fabricava em casa uma espécie de caipirinha batizada Flor de Maracujá ou, nome bem mais menos comportado, F. Mansinho, feita de pinga, açúcar e maracujá. A mistura ficava mais de um ano cevando num tonel de peroba até estar pronta para ser servida antes, durante e depois da apresentação da banda. E embalava os colegas de trabalho e quem quisesse comprar uma garrafa do precioso líquido.

O prazer da bebericagem se foi, mas o menino que foi apaixonado por Bob Nelson (“ô, tiroleeeei”), Jorge Veiga (“Etelvina, acertei no milhar...”) e filatelista desde os 9 anos cerca-se de outros interesses. Escreve seu livro de memórias Do Jumento ao Parlamento, por exemplo. Da infância no sertão, onde o jumento era o meio de transporte usual, ao Congresso, onde Raimundo entrou, concursado, para o cargo de auxiliar legislativo, foi revisor (o diascevasta), chefe da Seção de Habitação, bem como chefe da Secretaria do PTB e chefe de gabinete na Câmara Federal.

Copidesque de várias obras literárias de autores de Brasília, que ele guarda e exibe garbosamente, Raimundo até hoje quebra o galho dos amigos. Redige requerimento, ofício, carta de apresentação, pedido de lote, qualquer carta formal para quem tem pouco jeito com as palavras. “Sempre, sempre tem alguém vindo aqui para que ele escreva alguma coisa”, testemunha Veroni, 43, mulher de Raimundo há 20 anos, mãe de duas moças, Mara, 15 anos, e Elba, 18.

Aposentado há dez anos, Raimundo Floriano não tem tempo de sobra. Há dias, por exemplo, deu por concluída tarefa que lhe tomou uma década. Foi atrás do nome de cada um dos integrantes da gloriosa Seleção Balsense de Futebol de 1956, de Balsas (MA), sua cidade natal. Aquele foi o primeiro ano em que os balsenses derrotaram os arquirrivais de Carolina. Raimundo conseguiu a foto histórica do dia da vitória e, finalmente, os identificou: Osmar Coelho, Noroel, Solino, Sato, Dico, Jônathas, Ary, Valentim, Oliveiros, Morais, Joãozinho Botelho, Gemi, Marabá, Loia, Odílio e João Pedro.

O Melômano Raimundo Floriano já teve 2,2 mil elepês de música popular brasileira, doou metade por falta de espaço no apartamento da 215 Sul. Tem mais de 1.800 músicas de carnaval, desde a primeira, Zé Pereira, e guarda 16 elepês de Jackson do Pandeiro, que ele não vende, não empresta, não deixa ninguém pôr a mão. Matinador declarado, está de pé às 6h, toma café, lê o jornal e espera o telefone tocar. É o dono da banca de revista avisando que a turma do dominó já chegou. “Jogo mal, só dou palpite, nisso eu sou bom”. É um diletante esse Raimundo.

 

AMANUENSE – Funcionário público de condição modesta que fazia a correspondência e copiava ou registrava documentos.

CINESÍFORO – Motorista.

MELÔMANO – Aquele que tem paixão exagerada por música.

RAPSODO – Na Grécia antiga, cantor ambulante de rapsódia (trecho de composição poética).

TROMBONISTA DO CARNAVAL – tocador de trombone.

VASCAÍNO – Torcedor do Vasco.

DIASCEVASTA – Crítico que revê e corrige obras alheias.

PARTENOMANTE – Pessoa que pratica a antiga arte de adivinhar se era ou não virgem uma mulher, administrando-lhe uma bebida que ela não devia vomitar, ou cingindo-lhe ao pescoço uma fita que não podia ser tirada facilmente por cima da cabeça, caso a mulher estivesse pura.

CRUCIVERBISTA – Raimundo diz que é sinônimo de pessoa que faz palavras cruzadas. O Aurélio e o Caldas Aulete não registram o verbete. Registram apenas cruci, do latim crux, El. comp. = cruz.

MATINADOR – No dicionário, significa a mais importante figura da cavalhada, que dirige os ensaios e conduz os torneios nas festas dos padroeiros locais e no Natal. Seu Raimundo usa a palavra para definir uma pessoa que acorda cedo.

PARAFRASTA – Autor de paráfrase, na concepção de tradução livre ou desenvolvida.

CALEMBURISTA – Pessoa que faz trocadilho.

ABENCERRAGEM – O último abencerrage, indivíduo que se mostra de extrema dedicação a uma causa, o derradeiro paladino de uma ideia.

TOMA-LARGURA – No Aurélio, criado do paço. Seu Raimundo diz que já foi sinônimo de contador.

FILATELISTA – Colecionador de selos.

LUSÓFONO – Diz-se de ou indivíduo ou povo que fala o Português.

DECIFRADOR – Que ou aquele que decifra.

Raimundo tira de obras
literárias as palavras para
seu cartão de visitas.

 

Amanuense – de O Amanuense Belmiro, de Cyro dos Anjos.

Melômano – de uma crônica de Mário Henrique Simonsen.

Rapsodo e diascevasta – de A Pedra do Reino, de Ariano Suassuna.

Calemburista – de Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis.

Toma-largura – de Memórias de um Sargento de Milícias, de Manuel Antônio de Almeida.

 

 

 


Do Jumento ao Parlamento sexta, 17 de fevereiro de 2017

O REVASCULARIZADO

O REVASCULARIZADO

Raimundo Floriano 

 

                        O doutor José Luiz, diretor do Departamento Médico da Câmara dos Deputados, examinava os resultados dos exames que eu fizera no check-up anual, para dar seu diagnóstico rotineiro. Afinal, sempre fui um paciente disciplinado, diabético consciente, dieta rigorosa, glicemia – taxa de açúcar no sangue – e colesterol, nos desejados limites. Ele ia passando folha por folha, falando baixinho tarará, tarará, tarará. De repente, um grito de espanto: “Epa!”

 

                        Minha gente, vocês não sabem o que é o Epa! De seu médico num momento desses. Gela até os óculos!

 

                        – O que foi, doutor? – Perguntei assustado.

                        – Raimundo, seu teste ergométrico – prova de esforço – detectou uma isquemia na coronária direita.

 

                        Queria dizer que a artéria irrigadora direita do meu coração necessitava de limpeza.

 

                        – E é grave, doutor?

                        – Não posso afirmar isso agora. Depende de novos exames. Vou encaminhá-lo ao Hospital Santa Luzia. Lá, o doutor Edmur Carlos de Araújo, especialista no assunto, fará em você uma cineangiocoronariografia.

                        – Doutor, eu estou é lascado!

                        – Não, Raimundo. Não é bem assim. O Edmur faz mais de dez exames desses por dia. Não dói. A anestesia é apenas no local onde ele vai introduzir o cateter – atenção, minha gente, pronuncia-se catetér mesmo. É uma espécie de tubo fininho e compridíssimo que o médico enfia na gente pelo braço ou pela virilha, para ir futucar lá no coração. Em sua ponta vai uma câmera de TV para filmar e gravar o lance. O nome desse exame vem do grego cine, movimento + angio, vaso sanguíneo + coronarius (latim), próprio do coração + grafia, descrição.

 

                        Sou discófilo – colecionador de discos – especializado em MPB da Velha Guarda e Carnaval. Quando me vejo num apuro como esse, logo me vêm à lembrança a letra e a melodia de alguma canção relacionada com o fato. Não sem antes orar, pedir a proteção de Deus, de Nossa Senhora, dos santos de minha devoção. Lembrei-me, então, de um episódio ocorrido em 1983, que passo a narrar.

 

                        Naquele ano, o Presidente João Figueiredo precisou realizar o mesmo exame. Era comum as pessoas mais aquinhoadas de fortuna procurarem os hospitais norte-americanos nesses casos, e o nosso presidente não foi exceção. Sobre as consequências de seu cateterismo, falarei mais tarde. De imediato, os compositores Pedro Caetano e Alcyr Pires Vermelho, aproveitando a deixa, compuseram para o Carnaval de 1984 esta marchinha, gravada por Nara Leão:

 

CINEANGIOCORONARIOGRAFIA

 

Cineangiocoronariografia
O moderno exame de cardiologia
Quem é rico
Vai fazer lá nos isteites
Quem é pobre
Faz aqui de qualquer jeites...

 

                        Tendo a música a martelar-me a cabeça, encaminhei-me ao Santa Luzia. Foi mole. Lá, o doutor Edmur, com otimismo e muita competência, fez daquilo uma simples brincadeira. O diagnóstico, porém, não foi animador: a coronária direita estava obstruída, devendo eu ser submetido a uma angioplastia – de angio, vaso sanguíneo + plastia, reparação, restauração. Trocado em miúdos, enfia-se novamente o cateter, desta vez para desentupir a artéria.

 

                        A nova operação foi realizada no Hospital Santa Lúcia, a cargo da equipe formada pelos doutores Francisco de Assis Cruz e Vicente Paula da Mota, no dia 1º de dezembro de 1993. Não foi fácil. Na primeira tentativa, o balão instalado na ponta do cateter, para a desobstrução, estourou. Novo cateter foi usado, e dessa vez obteve-se um resultado relativo: cinco por cento!

 

                        Como foi constatado que minha coronária esquerda é de grosso calibre, ficou estabelecido que eu não seria submetido a uma cirurgia, e o tratamento se faria clinicamente. Bastava observar a medicação prescrita, fazer dieta, exercícios, caminhadas diárias. Tranquilo para mim. Desde 1990, devido à diabete, já cumpria essas ordens médicas sem sacrifício algum.

 

                        E assim se passaram sete anos e dois meses.

 

                        No início de fevereiro de 2001, na caminhada matinal, senti uma fisgada no peito esquerdo. Logo passou. No dia seguinte, novas manifestações de dor, que começaram a se repetir espaçadamente. Como sempre tenho comigo o medicamento Isordil, comecei a fazer uso dele, colocando um comprimido sob a língua, sempre que a dor surgia, obtendo efeito aliviador imediato. Não imaginava o perigo que estava correndo.

 

                        A revista Veja, da qual sou assinante, me salvou. Lendo-a, deparei com uma matéria sobre enfarte. Especificava todos os sintomas – os que eu estava apresentando – que levavam ao colapso vascular e o comportamento dos pacientes: uns relaxavam, alguns se automedicavam, outros rezavam. Apenas cinco por cento buscavam assistência médica, muitas vezes quando quase nada mais poderia ser feito.

 

                        Fiquei apavorado! Chamei a Veroni, minha mulher, arrumamo-nos apressadamente e pegamos um táxi em direção ao Serviço Médico da Câmara dos Deputados. Tão sobressaltado fiquei, que nem quis ir dirigindo. Lá, depois dos exames de praxe, fui colocado dentro de uma ambulância e enviado para o Santa Lúcia. No trajeto, perplexo, amedrontado, falei para a Veroni:

 

                        – Qualquer que seja a providência a ser tomada com relação à minha pessoa, não quero sair de Brasília. Temos aqui a família, os amigos, não vamos nos aventurar em São Paulo ou qualquer outra cidade.

 

                        Fomos recebidos pelo doutor Maurício Beze, cardiologista que cuida de meu bem-estar desde então. Novos exames e meu encaminhamento para mais uma cineangiocoronariografia, dessa vez a cargo dos meus velhos conhecidos doutores Francisco e Vicente. O diagnóstico não poderia ser outro: PONTE!

 

                        Internaram-me na Unidade de Terapia Intensiva – UTI. Meu companheiro de boxe, aparentando uns trinta e poucos anos, procurou me tranquilizar, dizendo que seu caso era igual ao meu, que fora tudo bem e que o único contratempo era quando ia tossir ou espirrar, porque isso forçava o local da incisão. Conversamos um bocado, o que serviu para me serenar o espírito.

 

                        A rotina da UTI é bem movimentada. São médicos, fisioterapeutas, enfermeiros, serviçais, familiares de pacientes, todos praticando um transitar constante. Tem os que choram, os que gemem, mas há também os que dialogam, riem e agradecem aos céus a cura que obtiveram para seus males. Em dezembro de 1993, na angioplastia, tive como vizinho do lado direito seu Genaro, de saudosa memória, dono do restaurante Kazebre 13, homem simpático, alegre, que conquistou todos os que ali se encontravam, tanto funcionários quanto enfermos.

 

                        Nem bem me instalara, uma enfermeira me comunica:

 

                        – Seu Raimundo, vamos ter que fazer uma tricotomia.

 

                        Será que ela queria bater um papo, falar da vida alheia? Isso não deveria ser. Fazer tricô, também não, pois nem agulhas trouxera, e, para meu gasto, tomia, era um sufixo grego que significava corte. O mistério rapidamente se desfez. A mocinha armou um biombo em volta de minha cama, desnudou-me, pegou um aparelho de barbear e raspou todos os cabelos do meu corpo, do joelho para cima, só deixando intactos os da cabeça e o das ventas. Só mais tarde, aprendi que trico, do grego, traduz-se por pelo, penugem. Esquisito aquilo. Se eu ia ser aberto no tórax, tinha ela que depilar até os meus países-baixos?

 

                        Naquela mesma UTI, em julho de 1982, ficara internado o cantor Jackson do Pandeiro – de quem sou fã atolado os quatro pneus –, nos últimos momentos antes de fazer sua viagem definitiva para o que ele chamava em seus rojões de “racional superior”. Ele realizara o que seria seu último show no dia 3 – data de meu aniversário –, sábado, na Associação dos Servidores do Ministério da Educação, num evento denominado III Festa Junina da Asmec. No dia seguinte, já no Aeroporto, sofreu um enfarte, sendo conduzido ao Hospital de Base e posteriormente ao Santa Lúcia. Na segunda-feira, dia 5, o Brasil disputaria uma semifinal – que perderia – da Copa do Mundo com a Itália, em jogo que ficou conhecido como a “Tragédia do Sarriá”. Jackson era flamenguista doente, como se pode ver na música Bola de Pé em Pé, que ele cantava com fervor. Além disso, alimentava especial admiração pelo jogador Zico, que era seu maior ídolo no futebol. Na terça-feira, ao acordar, e tendo à cabeceira dona Neuza, sua mulher, lembrou-se do jogo e esta foi a primeira pergunta que fez à companheira:

 

                        – Zico fez gol? O Brasil ganhou?

 

                        Fernando Moura e Antônio Vicente, em seu livro Jackson do Pandeiro, o Rei do Ritmo, confirmam esse sucedido.

 

                        Outra vez, a velha válvula de escape veio me acudir. Comecei, para afastar os maus presságios, a lembrar este frevinho gravado por Jackson:

 

URUBU

 

Xô, xô, urubu, xô, xô
Vá pousar no telhado
De quem lhe mandou
Xô, xô, urubu, xô, xô
Vá pousar no telhado
De quem lhe mandou

Você não vá ficar me agourando
Eu tenho medo, eu tenho medo
Urubu, quando pousa no telhado,
Vai gente pro céu mais cedo

 

                        Nisso, chegam uns enfermeiros, carregando um daqueles tubos de soro que ficam ligados ao braço da gente. Um deles conversa comigo, procura me acalmar, brinca, diz gracejos e me informa:

 

                        – Seu Raimundo, nós vamos lhe ministrar uma medicação para que o senhor fique relaxado e durma um pouco – e, em seguida, aplicou uma injeção no tubo já conectado.

 

                        Dentro em breve, estava eu ferrado em sono profundo. Sono gostoso, entremeado de sonhos variados, sendo o mais importante deles um em que eu estava numa festa, cantando Sina de Cigarra, Mané Gardino e Penerou, Gavião, forrós do repertório de Jackson do Pandeiro, acompanhado pelo Trio Siridó. Na vida real, só uma vez, e por extrema liberalidade do Torres, vocalista e dono do Trio, tive a oportunidade de entoar essas e outras músicas jacksonianas, com o conjunto nos refrãos. Isso acontecera no quintal do meu amigo Luiz Berto, lá nas 700 Norte. Noutras vezes, o sonho me transformava em pé-de-valsa, e eu pegava a Veroni e dançava rojões, baiões, cocos, todos os ritmos nordestinos.

 

                        Ao acordar, minha cama estava rodeada de gente; a Veroni, médicos, enfermeiros. Pensei: “Vai ser agora!”. Subitamente, todos começaram a sorrir e a dizer “Parabéns, Parabéns”. Como não era meu aniversário, só me cabia perguntar:

 

                        – O Vasco ganhou?

                        – Não – disseram todos. É que correu tudo bem!

 

                        Aí, apontaram para meu peito e para o braço esquerdo. Uma espécie de fita adesiva, de uns 25 centímetros de comprimento – hoje, não se dão mais pontos –, cobria um talhe feito ao longo do centro do tórax. Outra, de maior tamanho, protegia a incisão no braço. Só então compreendi que, durante aquele forrozão, eu estava sendo operado. Recebera duas pontes: radial – tirada do braço esquerdo – e mamária – ligação direta do peito. A cirurgia foi realizada por uma equipe do Cardiocentro, composta pelos doutores André Esteves Lima, Ricardo Carranza e Maria Cristina Rezende, todos desconhecidos para mim, eis que, durante todo o procedimento, como já disse, eu cantava e dançava forró. Desses três, quem executou o trabalho cirúrgico mais delicado, colocando as pontes e remendando tudo lá dentro foi a doutora Cristina, com as mãos guiadas por Deus.

 

                        Não demorou muito, e fui para o apartamento. Tão logo ali me instalara, o doutor Maurício apareceu e perguntou:

 

                        – Tudo certo, seu Raimundo?

 

                        Não sou paciente de reclamar, contrariar o ânimo positivo de meu médico, mas tinha de falar sobre algo que sempre me perturba em hospitais:

 

                        – Doutor, estaria tudo bem, se não fosse esse tubo de soro ligado em meu braço. Como sou diabético, a toda hora estou indo ao banheiro para o ato de micção – de urinar –, tendo que carregar toda esta parafernália.

                        – Pois muito bem, seu Raimundo. Vou mandar desligar o soro e lhe prescrever medicação oral.

 

                        Bendito doutor Maurício! Sou-lhe eternamente grato por essa decisão!

 

                        Aí, começaram as mordomias, fisioterapia, visitas, culminadas pelo excelente padrão de qualidade do Hospital Santa Lúcia.

 

                        Ainda que necessário, considerava ousado demais para o meu gosto o trabalho das fisioterapeutas Margareth, Mauriceia e Flávia. Dobravam-me, punham-me de lado, reviravam-me, mandavam encolher, espichar, puxar e soprar no exercitador respiratório, pedalar sem bicicleta, nadar na cama, não levando em conta que o meu coração acabara de ser costurado, que aquilo lá dentro poderia estourar. Ou levavam?

 

                        Chamava-me a atenção a presença, todas as manhãs, no apartamento, de uma bonita moça, simpática, alegre, que sistematicamente insistia:

 

                        – Sorria, seu Raimundo! Quero vê-lo alegre! Vamos, conte uma piada!

 

                        E eu ali sisudo, carrancudo intragável. Era ainda o medo que me atormentava.

 

                        Lá pela quarta vez, depois que ela saiu, perguntei à Veroni:

 

                        – De quem se trata? Quem é essa moça que todos os dias vem aqui para me ver sorrir?

                        – É a doutora Cristina – respondeu –, a que realizou a cirurgia, que colocou as pontes em você!

 

                        Daquele momento em diante, esforcei-me para mostrar otimismo em sua presença, pois passei a admirar o trabalho da médica que, assoberbada com seus compromissos profissionais, operando também em Taguatinga e no Hospital de Base de Brasília, ainda achava um tempinho pra ver seus pacientes. Disseram-me que, em São Paulo, o cirurgião vascular, depois que finaliza seu trabalho, nunca mais vê a pessoa operada. É uma santa essa moça!

 

                        Numa inspeção matinal, o doutor Maurício perguntou-me, como faz todos os dias, se estava tudo bem. Lembrei-me do caso do Presidente Figueiredo e falei:

 

                        – Doutor, o que me incomoda muito é esse repuxado, o mal-estar causado pela recolagem do esterno – osso frontal do tórax –, mediante amarração com fio de aço, a sensação de aperto, a dor nas costas, e na coluna vertebral. Em 1983, o Presidente Figueiredo recebeu as mesmas pontes nos Estados Unidos e, quando perguntado como se sentia, declarou: “É como se uma jamanta tivesse passado por cima de mim!”.

                        – Isso, seu Raimundo, foi naquele tempo, quando praticamente ainda se engatinhava nesse campo da Medicina. Hoje, a técnica é outra. Com a evolução, com os novos conhecimentos e métodos cardiológicos, posso lhe afirmar que por cima do senhor passou um Fusca!

 

                        Mas que passou um carro, isso passou! Aproveitei para satisfazer uma curiosidade:

 

                        – Doutor, eu não sou safenado, pois nenhuma veia foi transplantada dos membros inferiores. Recebi radial e mamária. Existe uma palavra que possa definir o que hoje sou?

                        – Sim, existe! O senhor é um revascularizado – que recebeu novos vasos sanguíneos!

                        – Joia, doutor! Vou tirar do meu cartão de visitas a palavra vascaíno e colocar revascularizado, que terá duplo sentido: indicará que recebi pontes no coração e que sou duas vezes torcedor do Vasco!

 

                        Era o bom humor que começava a retornar a minha personalidade!

 

                        Ainda na UTI, passei por uma saia-justa, um momento engraçado, que me fez ficar ruborizado por demais. Estava quase para ser removido de lá, quando uma enfermeira jovem, formosa, afável, popozuda – como essas que aparecem nas piadas de hospital –, aproximou-se de mim e comunicou:

 

                        – Seu Raimundo, precisamos colher uma amostra de sua secreção perianal!

                        – Pois não! Vai ser em qual andar? Onde está a cadeira de rodas?

                        – Não será preciso. A coleta será realizada aqui. Eu mesma farei isso. Vire-se de lado, com o bumbum em minha direção, abaixe o short do pijama e abra um pouco as pernas!

 

                        Aí, meus camaradas, ela pegou um cotonete e o lambuzou todinho. Sabem onde?

                        Bem na argola do meu fiofó!

 

Doutora Cristina em ação: mãos abençoadas

 


Do Jumento ao Parlamento quinta, 16 de fevereiro de 2017

O CRUCIVERBISTA DECIFRADOR

O CRUCIVERBISTA DECIFRADOR

Raimundo Floriano 

 

                        Há coisa de dois meses, passando pela Banca de Jornais da SQS 215 Sul, onde moro, fui desafiado pelo jornaleiro Ronaldo Alves, sócio-proprietário daquele estabelecimento, para uma partida de damas, atividade mental e manual ali praticada com muito empenho e dedicação. Sem saber que o antagonista era intitulado no tabuleiro, arrisquei-me, daí resultando levar uma costela e um porco, que são a impossibilidade de mover as pedras. No dia seguinte, nova disputa, agora no dominó, da qual me saí igualmente chamuscado – em quatro rodadas, um gato, ou seja, apanhei de 4 x 0.

 

                        Ora, pensei eu, por que vou continuar dando vexame, se posso enfrentar o Ronaldo e todos os circunstantes em algo no qual sou bom, que me dá real chance de também ser vencedor? Assim raciocinando, pus em prática uma provocação: que aparecesse alguém para disputar comigo, com tempo marcado, a resolução das palavras cruzadas que o Correio Braziliense publica diariamente.

 

                        Moderação à parte, sempre fui bom no cruciverbismo – do latim crucis, cruz + verbu, palavra –, ou seja, em palavras cruzadas. Às vezes, me dizem que essa palavra não existe, que o correto é palavra-cruzadista ou, simplesmente, cruzadista. Pensando desse modo, a Língua Portuguesa jamais evoluirá. Pois eu respondo que, se a palavra não existe mesmo, está inventada, e pronto!

 

                        Também sou frequentemente vencedor de torneios de decifração de mensagens codificadas, adivinhações, cartas enigmáticas e charadas, podendo confirmar essas minhas habilidades por meio deste certificado, concedido pela revista O Cruzeiro, o mais importante hebdomadário – semanal – do País até o final dos anos 60:

  

                        O desafio foi lançado no alvorecer de um domingo, quando, para demonstrar minha aptidão, pedi ao jornaleiro Samuel, sócio e irmão do Ronaldo – tendo como testemunha alguns taxistas do Ponto em frente à Banca e o pedestre Valério, morador da SQS 415 e assíduo frequentador do local –, que cronometrasse o meu desempenho. Comecei a solucionar o problema daquele dia às 6h37. Às 6h40, dei a tarefa por terminada. Em três minutos! Logo após, a página foi destacada do jornal e afixada em ponto bem visível e chamativo, para despertar a atenção dos possíveis concorrentes.

 

                        Semanas mais tarde, surgiu o primeiro adversário. Fui convocado às pressas para iniciar a contenda. Em minha presença, porém, o rival se sobrestimou e disse que aceitaria competir, mas no idioma dele, o Inglês. Topei no ato, e já providenciava a obtenção de uma revista especializada, quando o inimigo desconversou, alegando estar sem tempo, mas prometendo voltar noutro dia, e que eu me preparasse, pois traria para assessorá-lo seu microcomputador portátil.

 

                        Na data aprazada, ele apareceu na Banca com um laptop. Eu, com uma caneta Bic.

 

                        Cito alguns nomes de espectadores desse evento literário: Severino, Plínio, Augusto, Pires, Adão e Zé Pinto, todos taxistas; Divina, corretora zoológica; Waldir e seu irmão Wilmar, vendedores ambulantes de frutas; Leonídia, poetisa; seu Vicente, amansador de burro brabo; Sandro, mestre em solucionática; José Armando, professor de Português; seu Francisco e seu Belarmino, jogadores de dominó e damas; Nourival, pescador; seu Manoel Lima, economiário; Sequinho, jornaleiro da 416 Sul; dona Suely Bezerra, turismóloga; seu Lauro, meirinho – oficial de justiça – catalano; seu Olavo, militar e deputado potiguar; seu Manoel, funcionário do Senado Federal; seu Francisco Rufino, mestre-de-obras; Tião Eletricista; Gélson, técnico em serviços gerais; Seu Manoel de Jesus, doutor no tabuleiro; dona Dorinha, dona Jany e seu Bené, fregueses dos mais antigos; Ribamar Careca, Jurandir e Alex, caixeiros; Frank e Eduardo, motoqueiros; Manoel Loiola, negociante cearense; os infantes Reinaldo e Rafael, filhos do Ronaldo.

 

                        Sei que um computador ajuda muito, é indispensável na atualidade, mas igualmente tenho ciência de que para o cruciverbista, num torneio desses, com tempo marcado, é necessário mais que a tecnologia. Faz-se mister ter conhecimento de alguns macetes do metier, palavrinhas que se deve ter na memória. Por exemplo, diálogo entre esposos ou amantes é oaristo, fato passado anterior a outro também passado – o mais-que-perfeito – é aoristo, tatu bola é apar, coisas assim.

 

                        Cada qual recebeu a página do Correio Braziliense e, tendo o Ronaldo como juiz e cronometrista, recebeu o sinal para iniciar. Repeti a façanha anterior. Em três minutos, tudo estava preenchido. O opositor, porém, não conseguiu completar a tarefa.

 

                        Naqueles dias, a mídia dava ampla divulgação a um computador denominado Deep Blue, que estava desafiando – e vencendo-os enxadristas de todo o planeta Terra. Como tenho os olhos meio esverdeados, a plateia começou a me chamar de Deep Green. Todos, frustrados pelo combate que não houve – pois aquilo foi como tomar doce de criança –, passaram a me considerar de padrão internacional, vez que funcionários de embaixadas de diversos países, que pegam ali seus jornais, se declararam incompetentes para me encarar e também porque não me recusei à diversidade idiomática, não temi o Inglês, que é universal, nem tremi ante a ameaça de um computador.

 

                        E hoje, os fregueses da citada Banca, mais os moradores da 215 Sul, inflam o peito de orgulho, por constatarem que a Quadra, em modesto anonimato, possui, dentre seus concidadãos, dois campeões: Nílton Santos, mundial de futebol na Suécia e no Chile, e Deep Green, no cruciverbismo.

 

Deep Green e sua caneta, vencendo a parafernália tecnológica

 


Do Jumento ao Parlamento quarta, 15 de fevereiro de 2017

O AMANUENSE

O AMANUENSE

Raimundo Floriano 

 

                        Frequentemente, muito mais do que se possa imaginar, sou interpelado por alguém que me questiona:

 

                        – Raimundo Floriano, você é mesmo um sujeito polêmico. Diz que é amanuense, mas, no seu cartão de visita, declara que é do Maranhão. Como pode um maranhense ter nascido em Manaus?

 

                        Aí, eu tenho de explicar:

 

                        – Meu camarada, você está misturando as estações. Quem nasce em Manaus é manauense, manauara. O termo que uso para identificar uma de minhas profissões é amanuense, que, num sentido amplo, significa funcionário de repartições públicas.

 

                        Às vezes, logro convencer o desavisado.

 

                        Fui militar de fevereiro de 1955 a março de 1967. E amanuense de março de 1967 a fevereiro de 1994, no Parlamento Brasileiro, nomeado em virtude de aprovação em concurso público de âmbito nacional. No desempenho das diversas atribuições a mim confiadas, vivi situações um tanto hilariantes, algumas das quais ora tenho a oportunidade de deixar aqui consignadas.

 

                        O dia a dia nas repartições públicas exige de um chefe muito jogo-de-cintura no trato com seus subordinados, além de razoável tirocínio na resolução de contratempos e sortilégios de todos os matizes.

 

                        Um Chefe de Secretaria em Gabinete de Liderança ou de Membro da Mesa, na Câmara dos Deputados, por exemplo, regimentalmente é o responsável pelo expediente do órgão e pelo cumprimento das determinações superiores, cabendo-lhe também a redação da correspondência.

 

                        Diversos deputados titulares dos Gabinetes delegam a seus chefes de secretaria a resposta telegráfica de missivas rotineiras, o que requer boa dose de acuidade do funcionário, pois a qualquer momento seu trabalho poderá ser objeto de incertas ou pesquisas, devendo tudo estar convenientemente dentro dos conformes. Desse modo, ocorre, com frequência, um chefe de secretaria ficar a se corresponder com outrem, trocando amabilidades, figurinhas e até mesmo insultos, sem que o maioral, às vezes, jamais tome conhecimento do teor de seus escritos. A propósito, há, no folclore do Legislativo, o caso de dois deles que, após intensa e ríspida correspondência, repleta de afrontas, supostamente em nome de seus líderes, resolveram marcar um encontro, na Estação Rodoviária, para decidirem o caso no tapa.

 

                        Em 1983, eu era Chefe de Secretaria da Liderança do PTB, cuja titular, deputada Ivette Vargas (SP), como soía acontecer, a mim conferira a incumbência de manter atualizada e em ordem a comunicação com os eleitores e as partes que a ela se dirigiam, não só de São Paulo, mas de todo o Brasil.

 

                        Na manhã de 17 de julho daquele ano, aniversário da deputada, enviei-lhe este telegrama:

 

 

“Excelentíssima Senhora

Deputada Ivette Vargas

Neste dia especial, em que, aqui em nosso lar, comemoramos um ano de casamento, apresentamos-lhe efusivas congratulações pelo transcurso de seu aniversário. Respeitosamente, Raimundo Floriano e Veroni.”

 

                        À tarde, o telegrama, depois de dar uma passada pela ECT, chegou a minhas mãos. Abri-o, li-o, encaminhei-o à mesa da deputada, e, em seguida, já redigi a mensagem que, um dia após, através dos Correios, foi entregue em meu apartamento à SQS 416:

                       

“Raimundo Floriano e Veroni

Agradecendo os cumprimentos pela passagem de minha data natalícia, desejo-lhes a perenidade de um casamento harmonioso, sob a proteção de Deus. Deputada Ivette Vargas, Líder do PTB.”

 

                        Esse episódio lembra a manjada anedota de hospício, um louco perguntando a outro:

 

                        – O que estás a escrever?

                        – Uma carta.

                        – Para quem?

                        – Para mim.

                        – E o que dizes nela?

                        – Não sei, ainda não li.

 

******

 

                        Já vi muitas desculpas esfarrapadas e outras deveras criativas, para funcionário dar uma enrolada na chefia e matar o expediente, mas esta que me arranjou o Oefe Lima, por sua originalidade, merece registro.

 

                        Estávamos em plena azáfama no turno vespertino, quando o telefone tocou. Oefe atendeu, dialogou um pouco, desligou e dirigiu-se a mim:

 

                        – Chefe, tenho que ir para casa com a máxima urgência!

                        – Algum problema grave? – perguntei.

                        – É o seguinte, chefe. Minha esposa, há mais de três meses, não fica menstruada. Mas agora mesmo, você viu, ela ligou, dizendo que as regras acabam de chegar com toda a força!

 

                        Não me contive:

 

                        – Oefe, dá-me licença! Se fosse o contrário, se há mais de três meses ela estivesse com a escorrência, e hoje o fluxo tivesse cessado, eu te diria que saísses voando, para aproveitar, para tirar o atraso. Mas, havendo ocorrido o inverso, com o incômodo aflorando vigorosamente, o que é que tu vais fazer lá?

 

******

 

                        A estabilidade no emprego dos gepês – a nova denominação do Secretariado Parlamentar – é comparável à dos dentes de leite incisivos na boca de criança de sete anos. É zero. Por qualquer inconstância do tempo, por dá-cá-aquela-palha, eles tremem nas bases, na iminência de um bilhete azul. Vejamos este sucedido, corroborativo do que digo.

 

                        Dezembro de 1992. Início do recesso. Esperando na fila da xerox, no Anexo IV, batendo papo, um punhado de gepês, dentre eles seu Arthur, sexagenário bem-casado, folgazão e piadista, lotado no gabinete do deputado Elias Murad (PTB-MG), e uma jovem, não tanto assídua no pedaço, que, pelo porte, elegância e formosura, só podia ser a Miss Gepê. O assunto era AIDS. Sendo nosso amigo o que mais dava palpite, falei-lhe, por brincadeira:

 

                        – Cuidado, seu Arthur!

 

                        E ele, em cima da bucha:

 

                        – Eu, meu camarada, sou o único aqui que pode bater no peito e dizer que está livre disso. Acabo de fazer um teste de HIV, no meu check-up, e tudo está na mais perfeita ordem!

 

                        Todos riram e, com o atendimento rápido dos xerocadores, o grupo se dispersou.

 

                        Já estava no meu gabinete, quando a Miss Gepê bate à porta:

 

                        – Com licença?

                        – Pois não!

                        – Doutor Raimundo, poderia falar com o senhor em particular?

 

                        Como só havia nós dois ali na sala, perguntei-lhe do que se tratava.

 

                        – Doutor, desculpe-me a ousadia, este é um caso delicadíssimo. Venho procurá-lo porque me falaram que o senhor é sensível e prestativo, pronto para ajudar a todos, até a desconhecidos.

                        – Em que lhe posso ser útil?

                        – O senhor conhece bem o seu Arthur?

                        – Há uns cinco anos, ou mais.

                        – Pode fazer-lhe um pedido especial, em meu nome?

                        – Depende. Não sei até que ponto ele me atenderá.

                        – Escute, doutor Raimundo, sou uma gepê com aviso prévio verbal. O meu deputado encontra-se no exterior e, na sua volta, daqui a dois meses, me dispensará. Com a dificuldade atual de se arranjar colocação, não posso perder esse cargo.

 

                        Interrompo-a:

 

                        – Penso que nesse aspecto o seu Arthur nada poderá fazer.

                        – Deixe eu continuar, doutor. Estive me informando e fiquei sabendo que mulher grávida não pode ser demitida.

                        – É verdade. Você está esperando neném?

                        – Não!

                        – É casada?

                        – Também não. Se fosse, resolveria isso com meu marido.

                        – Colega, ainda não vislumbrei a maneira pela qual eu e seu Arthur a livraríamos da demissão.

                        – Doutor, tenho que providenciar uma barriga o quanto antes, mas de modo seguro, sem riscos, sem perigo, com pessoa altamente confiável, entende?

                        – E daí?

                        – Será que o senhor pediria ao seu Arthur para ele me engravidar?

 

                        Quase que a cara me cai!

 

Miss Gepê e seu chefe: estabilidade no emprego assegurada

 


Do Jumento ao Parlamento sábado, 11 de fevereiro de 2017

OS RAPSODOS

OS RAPSODOS

Raimundo Floriano 

 

                        Em 1993, já aposentado, eu exercia, na categoria de secretário parlamentar, a chefia de gabinete do deputado Sérgio Cury (PDT-RJ). Como auxiliares, havia o Gilmar, datilógrafo e desencalhador de processos nas diversas repartições de Brasília; o Stênio, motorista; e o Marcondes, estafeta e pau pra toda obra.

 

                        Era um trabalho árduo, mas gratificante, pois proporcionava, a nós servidores, na resolução dos mais variados problemas apresentados pelos eleitores fluminenses, o contato com pessoas interessantes, simpáticas e agradáveis, cujas presenças tornavam mais amena a pedreira que diariamente enfrentávamos no cumprimento de nossas tarefas.

 

                        Uma delas foi o doutor Eugênio José dos Santos, bacharel em Direito, que frequentou o gabinete por um longo período, na luta – verdadeira guerra de foice –  visando à sua nomeação para um cargo na Justiça Trabalhista. Debalde foram todos os esforços – do deputado, dele, nossos. Sem obter o almejado, despediu-se ele e retornou a sua cidade, o Rio de Janeiro, deixando-nos saudades.

 

                        Poucos dias após seu regresso, chega-nos a seguinte correspondência:

                       

Rio de Janeiro, 15 de dezembro de 1993.

 

“MODESTO AGRADECIMENTO

Embora vencido na batalha
Não posso dos amigos esquecer
Senão soaria canalha
E não mereceria vencer

Falo de Marcondes e de Raimundo
Passando por Stênio e Gilmar
Pelo seu empenho a fundo
No desejo de ajudar

Do fundo do coração
O nosso maior agradecimento
Pela grandeza da atuação
Com nobreza e sentimento

Digam ao ilustre deputado
O quanto estou agradecido
Pelo staff por ele ofertado
Embora saísse eu vencido

Se de sua equipe dependesse
Não seria um juiz qualquer
Pois se o Itamaraty pretendesse
Seria eu um chanceler

No seu gabinete tranquilo
Sem vinculação com o “Orçamento”
Tudo se faz ao estilo
De quem tem bom sentimento

Um Feliz Natal e um generoso Ano Novo
são os votos a quem tudo merece.

 

EUGÊNIO JOSÉ DOS SANTOS - Advogado”

 

                        Foi surpreendente. Pela vez primeira, recebíamos mensagem desse calibre. Nela, o doutor Eugênio se revelava um amante da poesia e, consequentemente, uma pessoa dotada de alta sensibilidade e portadora de grandes emoções.

         Eu, de minha parte, sempre me considerei também um rapsodo – versejador, seresteiro, cantor ambulante de modinhas. Nunca um poeta inspirado, mas um cordelista que glosa os fatos e se vale, quando em apuros para achar uma rima perfeita, de frases consagradas de outros vates nordestinos como Orlando Tejo, Patativa do Assaré e Zé Limeira. E isso não é plágio, meus amigos, é citação.

 

Retribuindo tão elogiosas palavras, enviei-lhe, orgulhoso e agradecido, estas sextilhas:

RESPOSTA A UM DOUTOR PEDRA-NOVENTA

São Lucas, nas Escrituras,
Fala de dez belas curas
Que Cristo realizou.
Eram dez homens leprosos
Que com atos milagrosos
O Mestre recuperou.

Porém, diz o Evangelho,
Como neste mundo velho
É muito fácil esquecer,
Desses dez agraciados
Apenas um dos curados
Voltou para agradecer.

Cá, em nosso gabinete,
Eu já conheço o macete
De alguns que vêm pra pedir
Devido à necessidade,
Tratam-nos com intimidade,
O rosto sempre a sorrir.

E tudo é na brincadeira,
Na gozação prazenteira,
Amizade é o que se vê.
Se a gente os chama doutor,
Dizem, até com dissabor,
– Só me trate de você.

Sérgio Cury, o deputado,
Diz para o necessitado:
– Este gabinete é seu.
Para o bom atendimento,
Use sem constrangimento,
O staff e tudo o que é meu.

E franqueia o telefone,
O Fax, nós da “ASPONE”,
O carro, a cota postal,
A sala, o apartamento,
A bebida, o mantimento,
Et cetera e coisa e tal”.

Mas é só ser nomeado,
Com o ato já publicado
No Diário Oficial,
A coisa se transfigura,
O cabra muda a postura,
Assume pose formal.

E diz pra nós que o ajudamos,
Que com esforço o levamos
À feliz benemerência:
– Gosto muito de respeito,
Doravante é desse jeito:
Só me chamem de Excelência.

Fala mais a autoridade:
– Eu aqui nesta cidade
Consegui tudo sozinho.
Meu prestígio eu empenhei,
Implorei, pedi, chorei,
Mas nada devo ao Serginho.

Isso, quando à nossa frente,
Porque a coisa é diferente,
Estando com o deputado.
Diz: “Serginho, olha bem,
Teu gabinete só tem
Incompetente e folgado.

Quem avisa amigo é,
Por isso, ouve com fé,
Pra felicidade tua:
Ali só tem picareta,
Pega logo na caneta
E bota os quatro na rua!”

Eu, Raimundo Floriano,
Por ser dos quatro o decano
E imune a tal torpeza,
Pelos meus colegas falo,
Na injustiça não me calo,
Assumo sua defesa.

A equipe é admirável,
Trabalhadora, incansável,
Tudo faz para servir.
Dando duro no batente,
Merece o apoio da gente
Forçoso é admitir.

Raimundo, chefe e analista,
Stênio, bom motorista,
Gilmar na burocracia,
Marcondes no mais que resta,
“Na boca de quem não presta,
Os quatro não têm valia”.

Doutor Eugênio, eu imagino,
Se um dia for seu destino
Alcançar o galardão,
Vai ter fogos de artifício,
Festança sem sacrifício,
Alegria em profusão.

Meu prezado, a ciência,
O saber, a experiência,
São marcantes no senhor.
Sua verve, seu tirocínio
E o veloz raciocínio
Atestam o seu valor.

Infelizmente a vitória
– Disso está cheia a História –
Despremia quem merece.
Quando vale é Quem Indica,
O sábio por terra fica,
E o insipiente é quem cresce.

Conhecê-lo, meu amigo,
Escute o que ora digo,
Foi como ganhar na loto.
Portanto, vamos em frente,
Concorra pra Presidente
E conte com o meu voto.

Raimundo Floriano,
mão de onça, pé de pano

 

 

Doutor Eugênio, rapsodo carioca

 


Do Jumento ao Parlamento sexta, 10 de fevereiro de 2017

CURYOSIDADES

CURYOSIDADES

Raimundo Floriano 

 

                        Numa de nossas reuniões nordestino-culturais diárias, no Restaurante do Anexo III, meu amigo Luiz Berto, penso que para tirar sarro com minha cara, saiu-se com esta:

 

                        – Depois que o Raimundo Floriano passou a trabalhar com o deputado Jorge Cury, em tudo quanto fala, tem que meter seu nome no meio da conversa!

 

                        Quanta maldade!

 

                        Motivos eu tinha para assim proceder. Admirava o deputado. E também gostava dele. É mole, ou quer mais? Então, lá vai tinta!

 

                        Devido a essa admiração e a essa amizade, volto a me referir ao nobre sírio-libanês do Estado do Rio de Janeiro, primeiro líder do atual PTB, de quem fui chefe do gabinete até janeiro de 1987. São quatro pequenas histórias, que incorporei a meu repertório sobre o folclore político no Parlamento Brasileiro.

 

******

 

                        24 de abril de 1986, expediente matutino. Estou aferrado no trabalho, atolado até o pescoço em minhas atribuições, e eis que chega o deputado. Após as saudações de praxe, comunico-lhe:

 

                        – Deputado, hoje é aniversário do Presidente da República. O senhor quer enviar alguma mensagem especial?

                        – Pelo contrário! Não mande nada não! E não sei onde estou, que não vou à tribuna aplicar umas cacetadas nesse plano econômico destinado a dar com os burros n’água, tão logo passem as eleições!

 

                        Obediente, retornei a meus afazeres. Não demorou uma hora, e o deputado me interroga:

 

                        – Doutor, já telegrafou para o Presidente?

                        – Ainda não, senhor!

                        – Ora, doutor, o senhor quer que até isso eu providencie?

 

                        Imediatamente, redigi o costumeiro:

 

“Excelentíssimo Senhor

Presidente da República

Queira Vossa Excelência aceitar respeitosos cumprimentos pelo transcurso de seu aniversário natalício. Deputado Jorge Cury.”

 

                        Quando o estafeta ia saindo em direção aos Correios, o deputado o interceptou, leu o texto e me questionou:

 

                        – Doutor, que coisa é essa de aniversário natalício? Se é aniversário, só pode ser natalício. É, ou não é?

                        – Deputado, existe também aniversário de casamento, noivado, formatura...

                        – Mas não gostei. Corte esse termo!

 

                        Bom soldado, cumpri a determinação.

 

                        Dias depois, veio a resposta que, após destacar seu conteúdo com marca-texto fosforescente, fiz questão de entregar em mãos. Mais ou menos assim:

 

“Exmo. Sr. Deputado Jorge Cury

Sensibilizado agradeço as gentis palavras alusivas à passagem de meu aniversário natalício. José Sarney, Presidente da República.”

 

Partindo de um membro da Academia Brasileira de Letras...

 

******

 

                        No desempenho de minhas atribuições funcionais de chefe, tinha o encargo adicional de controlar o dinheiro que o deputado recebia como subsídio da Câmara, cujo montante era utilizado aqui mesmo em Brasília, em suas despesas pessoais, salários e previdência de empregados domésticos, caridade, material de expediente, publicidade e na ajuda a pessoas que acorriam ao gabinete na busca de algum refrigério, notadamente solicitando passagem para retornar ao Rio de Janeiro. Assim, um talão de cheques, assinado em branco, ficava sempre em meu poder.

 

                        Estávamos no final do recesso, e a correspondência, aberta, lida e selecionada, se avolumava na mesa do deputado. Num detalhe, Jorge Cury costumava pegar em meu pé: adorava chegar às sete horas, quando o expediente principiava às nove! Naquele primeiro dia de reinício das atividades, já o encontrei no batente, acompanhado de José Henrique Nazaré, o popular Very Well, funcionário do Comitê de Imprensa do Palácio do Planalto.

 

                        Nem bem me instalo, e recebo a voz de comando:

 

                        – Doutor, faça aí um cheque bem salgado para o Very Well, que ele vai casar a filha!

                        – Mas deputado...

                        – Doutor, não argumente, que meu amigo está muito apressado!

                        Sapequei o cheque e o entreguei ao Very Well que, rapidamente, se retirou.

 

                        De sua mesa, lendo a papelada que se amontoara no recesso, de repente, o deputado me grita:

 

                        –Doutor, venha cá, correndo!

 

                        Corri.

 

                        – Veja, doutor, o Very Well me levou na conversa. A filha dele está casada desde janeiro. Olhe aqui o convite!

                        – Deputado, era isso que eu queria falar, e o senhor não permitiu!

 

                        Mas Jorge Cury não era homem de dar, facilmente, o braço a torcer. Sem pestanejar, retrucou:

 

                        –Doutor, o convite era para o casamento, não era? O cheque que o senhor deu foi para ajudar nas despesas, não foi?

                        – Sim senhor, deputado!

                        – Pois então? Casou, tá casada. Deu, tá dado. E estamos conversados. Tô certo, ou tô errado?

 

******

 

                        Abril de 1989. Jorge Cury não mais detinha um mandato parlamentar. Víramo-nos, pela última vez, em fevereiro de 1987. Sabendo que ele viria a Brasília, ofereci-me para ir pegá-lo no Aeroporto, alegando ter necessidade de lhe falar pessoalmente, não adiantando, porém, o assunto da conversa.

 

                        Às onze horas, ele chegou, não escondendo o interesse:

 

                        – Doutor, do que se trata?

                        – Por favor, deputado, calma, falarei no estacionamento.

 

                        Em lá chegando, a revelação:

 

                        –Deputado, eu queria era lhe dar uma carona no meu Santana novo, pois sei que o senhor muito se sacrificou andando naquele meu velho Gol BX, ano 1985!

 

                        O deputado ficou satisfeito com meu progresso, mas notei que ele relutava em visitar o Congresso Nacional, só o fazendo depois de minha insistência, no que laborei com acerto. Foi uma festa o reencontro dele com antigos colegas e funcionários. Parecia um recém-eleito. Depois do almoço, pediu-me que o conduzisse ao Tribunal Superior do Trabalho – TST e ali o esperasse, para levá-lo de volta ao Aeroporto, visto que embarcaria às seis da tarde de regresso para o Rio de Janeiro. Nem bagagem trouxera.

 

                        Às cinco, cinco e meia, ele não apareceu. Deu seis, deu sete, o pátio do TST se esvaziou. Deu oito, deu nove, os últimos carros saíram da garagem subterrânea e as luzes do prédio se apagaram. Nada mais ali havendo a tratar, rumei, preocupadíssimo, para minha residência.

 

                        De lá, liguei para seu apartamento no Rio de Janeiro. Ele mesmo atendeu. E levou o maior susto:

 

                        – Doutor, pelo amor de Deus, me desculpe!

 

                        Pegara um táxi e esquecera-se de mim no estacionamento!

 

******

 

                        Recebo convite para o casamento de Jorge Cury, no dia 26.11.93, com a Senhorita Sandra Maria, prendada flor da alta sociedade niteroiense. Mas não se trata do veterano líder. Esse é o também advogado, doutor Jorge Said Cury Filho, o Jorginho. Entrado agora na maturidade, Jorginho, que soube aproveitar, no tempo certo, sua juventude e vitalidade, predispõe-se a se acomodar à vida caseira, com vistas a reforçar o grande clã dos Curys, construindo um lar que, rogo ao Altíssimo Pai, será feliz, próspero e abençoado.

 

                        Na adolescência, Jorginho aprontou das suas.

 

                        Uma noite, em meados dos anos 80, o deputado Jorge Cury está em casa, no Rio, preparado para dormir – de pijama, duas televisões ligadas, dois controles remotos a metralhar os canais –, crente que Jorginho, àquelas alturas, já se recolhera ao leito, quando o telefone toca. Era o próprio:

 

                        – Papai, venha aqui depressa! Tive um probleminha no trânsito e acabei me enrolando com alguns detalhes na delegacia policial!

                        – Está bem, meu filho! Espere só eu trocar de roupa, que estarei aí num segundo. De onde é que você está falando?

 

                        – Do Uruguai!

 

 

Deputado JorgeCury: sírio-libanês de boa têmpera

 


Do Jumento ao Parlamento quinta, 09 de fevereiro de 2017

DEPENDÊNCIA QUÍMICA

DEPENDÊNCIA QUÍMICA

Raimundo Floriano 

 

                        Comecei a fumar em 1951, com quinze anos de idade. No início, sem marca definida. Experimentei o pau-ronca – brabo, de rolo –, passei pelo Astória e, finalmente, me firmei no Continental Filtro, longo. Para ser sincero, devo dizer que, enquanto desempregado, a espécie mais saboreada era mesmo a se-me-dão.

 

                        Aos dezesseis anos, ocorreu-me um insucesso que marcou minha epopeia de fumante. Estando numa fazenda, nos arredores de Balsas, Maranhão, minha cidade natal, e desprovido de cigarro, senti à noite uma enorme dificuldade em pegar no sono sem antes dar umas tragadas. Foi quando vi, a um canto, algo queimando lentamente. Perguntei ao vaqueiro do que se tratava, e ele me informou ser aquilo estrume de jumento, ressequido ao sol, muito usado para espantar mosquitos. Minha imaginação funcionou a mil. Num pedaço de palha de milho, enrolei certa porção daquele estrume, dando-lhe o formato tubular, acendi o produto e o fumei, antegozando essa ventura com uma aromática caneca de café. Tal artimanha não ficou impune. Logo mais, fui acometido de enjoo seguido de vômito, sendo obrigado a tomar eficaz mezinha da roça, que me devolveu o bem-estar. Já recuperado, fiz ali mesmo, diante da mata e da folhagem que me salvara, o solene juramento de que, quando começasse a ganhar dinheiro, jamais me faltaria cigarro no bolso. Principiei a cumpri-lo fielmente a partir de fevereiro de 1955, quando sentei praça no Exército. Desde então, reservava para isso uma boa soma do meu soldo, e mantinha um estoque sobressalente de no mínimo dez carteiras.

 

                        Essa exemplar dedicação ao fumo, para muitos elogiável, se me proporcionava momentos de grande embevecimento, provocava, também, às vezes, constrangimentos, observações maldosas da parte dos intolerantes. Na Polícia do Exército de Brasília, onde eu seguia carreira como sargento, era constantemente alfinetado pelo colega Dílson Montibeller, que vivia a proclamar:

 

                        – Todo fumante é porco!

 

                        E o sargento Montibeller explicava que, em casa, o fumante usa cinzeiros, mas estando na residência alheia ou num órgão público, joga palitos de fósforo, baganas e cinzas no chão, fuma até à mesa, durante as refeições, e comete a grossura maior de depositar as guimbas nos pires e nas xícaras. Embora eu discordasse, pois na instrução militar é ensinado que, na rua ou no campo, à falta de cinzeiros, deve-se rasgar o toco do cigarro, deixar que o fumo se espalhe pelo vento, e fazer uma bolinha com o papel, guardando-a no bolso para depois se desfazer dela no local apropriado, Montibeller rebatia, pedindo que eu olhasse em derredor. E aí, infelizmente, sua teoria se confirmava.

 

                        Outra qualidade de implicante que conheci foi a das mães de crianças em idade lactente, que não respeitavam, nem por mera conveniência, o vício dos seus semelhantes. Aconteceu-me certa vez, após pegar num miúdo dos seus seis meses, fazer-lhe festinhas e devolvê-lo à babá, aparecer de repente a mãe que, recebendo sua cria, a cheirou e perguntou com asco:

 

                        – Quem foi o nojento que envenenou meu menino?

 

                        Porém nem tudo era amolação. Ao ser empossado na Câmara dos Deputados, em 1967, já tendo consagrado a fama de prevenido, fui saudado na Diretoria do Patrimônio como o marajá dos cigarros e festejado por minha sabida prodigalidade para com os outros inveterados pitadores. Dentro em pouco, computados os fumados e os concedidos aos filantes, meu consumo diário atingia a média de três dezenas. Para mim era uma afirmação, um tipo de muleta, o ato de tomar um cafezinho, sentar-me folgadamente e ficar a chupar na rabada de um gostoso Continental.

 

                        Se insuperável era o deleite da fumaça, da tragada, os alimentos começaram a perder aquele sabor de infância, e passei a perceber que o ritual das refeições estava se tornando enfadonho, a comida servindo somente para encher o estômago, porquanto não mais oferecia agrado ao paladar nem aprazia ao olfato. Também as gripes se sucediam amiúde, deixando indissipáveis sequelas nos olhos, nariz e garganta, além de memoráveis dores de cabeça.

 

                        Por essa época, eu e o escritor Luiz Berto, ex-camarada de farda e então colega no Patrimônio e companheiro de gandaia, ambos solteiríssimos e largados do talo, estávamos numas de pesquisar a Música Popular em suas mais legítimas raízes, o que nos levava, constantemente, à Boate Bola Azul, em Alexânia, Goiás, onde um conjunto formado por trombonista, sanfoneiro, baterista, pandeirista e um cantor nascido e criado ali mesmo, que cantava até em francês, nos fornecia preciosos subsídios e transbordava de originalidade.

 

                        Exatamente lá, na noite de 10 de março de 1972, sexta-feira, entre um e outro gole de cachaça, e após a execução de um apreciado número musical pelo citado conjunto, subitamente, sem prévio amadurecimento da ideia, anunciei para todos os presentes no salão:

 

                        – Deixei de fumar!

 

                        Luiz Berto soltou uma gargalhada. O sanfoneiro, de nome Fiinho, vendo comigo um maço de cigarros ainda intocado, quis logo tirar vantagem, dizendo:

 

                        – Pois me dá essa carteira aí!

                        – Não, Fiinho. Isto aqui é para provar que serei resistente à tentação.

 

                        E parei mesmo. Na segunda-feira, Luiz Berto se antecipou na chegada à Câmara, comunicando a todos minha inacreditável resolução. A recepção, dessa vez, não foi festiva. Sebastião Rodrigues Lima, o Tiãozinho, um dos habituais fregueses, dirigiu-se a mim, deveras contrariado:

 

                        – Raimundo Floriano, não foi essa nossa combinação!

 

                        Mas eu estava decidido. E, para comprovar minha força de vontade, sempre que tomava um cafezinho, pegava o maço de cigarros, aspirava sua fragrância e o recolocava no bolso, extasiando os circunstantes e deixando os eternos reincidentes, aqueles que não logravam se libertar dos malefícios da nicotina, abarrotados de inveja. Decorrido um mês, desfiz-me dos cigarros

 

                        Honrei a palavra!

 

                        Recentemente, no entanto, em rotineiro check-up, o doutor José Luiz, diretor do Departamento Médico da Câmara, que me traz sob rígido controle, sentenciou:

 

                        – Raimundo, olhe aqui: pressão, 12 por 8; colesterol, 160; peso, porreta; glicose, 80; ácido úrico, batuta. Só tem uma coisa. Se você continuar fumando desse jeito, não sei não...

 

                        – Mas doutor – defendi-me –, está fazendo mais de vinte e um anos que não ponho um cigarro na boca!

                        – Deixe de mentira!

                        – Verdade, doutor. E tem mais: na minha família ninguém fuma, graças a Deus!

                        – E, em sua sala de trabalho, quantos fumam? – Perguntou o doutor.

                        – Uns quatro! – Respondi.

                        – Apois oxente!

 

 

Raimundo Floriano quando fumava,
na visão do artista plástico Rodrigo

 


Do Jumento ao Parlamento quarta, 08 de fevereiro de 2017

URUBUSSERVAÇÕES

URUBUSSERVAÇÕES

Raimundo Floriano 

 

                        É impressionante a ausência de urubus no sertão sul-maranhense, outrora santuário daquelas aves de cabeça pelada. Mas não foram eles vítimas de qualquer tipo de ação exterminadora ou de um fatídico urubucídio não. A história é bem outra.

 

                        Antigamente, Balsas, com uma lavoura essencialmente de subsistência, tinha na atividade pecuária sua fonte principal de riqueza. Por ser o centro comercial da região, recebia produtores do norte de Goiás – hoje Tocantins –, do sul do Piauí e de seus arredores, que ali adquiriam artigos industrializados e sal, numa forma de escambo em que as moedas mais fortes eram o couro de gado vacum e a pele de animais silvestres.

 

                        Para evitar que o mau cheiro de carne em decomposição, inerente aos couros recém-tirados, afetasse a saúde da população, foi escolhido um local bem afastado – hoje, está integrado à área urbana –, em que todos eles seriam armazenados, cada um com a marca de seu proprietário, onde construíram dois prédios. No primeiro, ficavam estocados os couros já em condições de serem embarcados, por via fluvial, para os grandes mercados manufatureiros. No segundo, erigia-se um enorme tanque, abastecido de água e sabão de veneno, no qual eram mergulhados os couros e peles, ação preventiva contra traças e outros predadores. Entre os dois prédios, havia um largo pátio, onde os couros, com armações semelhantes às das pipas, ficavam espichados, em pé, para secarem ao sol, quando ainda frescos ou após o banho desinfetante. A esse conjunto de armazém, tanque e pátio, situado à beira do Rio Balsas, deram o nome de Depósito.

 

                        Devido à intensa catinga que exalava, o Depósito era o ponto preferido dos urubus, que ficavam por ali a beliscarem os couros espichados ainda úmidos, retirando-lhes os pequenos resíduos de carne, alimentando-se e prestando serviços de limpeza, numa simbiose que só a natureza sabe proporcionar.

 

                        No Maranhão, todo bairro fronteiriço a uma cidade, na margem oposta de um rio, denomina-se tresidela. Na Tresidela de Balsas, em frente ao Depósito, desemboca um riachinho, em cuja foz se forma diminuta ilha, onde os urubus, depois de garimparem a carniça, iam se banhar e pegar um bronzeado, tornando aquele recanto para sempre conhecido como Praia dos Urubus. Lá, num dia de sorte, podiam eles ser contados às centenas.

 

                        Houve um deles que ficou famoso entre a meninada e o povo balsenses, chegando até a ganhar um apelido, Urugancho, pelo motivo que ora me disponho a esclarecer.

 

                        O pátio do Depósito, se vazio ou com poucos couros espichados, era usado pela molecada como campo de futebol. Um dia, estávamos ali a disputar um jogo de campeonato, quando vimos a figura esquisita de um urubu debatendo-se no chão, parecendo uma bola, rolando e ciscando, agonia das danadas. Se fosse um outro bicho, teríamos ido nele de pedradas, chutes e cacetadas. Mas todos nós conhecíamos a maldição de que quem mata urubu, tem sete anos de atraso na vida. Em vez de maltratá-la, pegamos carinhosamente a maçaroca viva e empenada, descobrindo algo desconcertante e deveras singular. Era o seguinte: o pobre urubu tinha a ponta do bico recurvada. Naquela infortunada hora, ao tentar se coçar no uropígio – extremidade triangular onde se implantam as penas da cauda, também conhecida como “sobre” –, enganchou a referida ponta no esfíncter – argola que tranca o ânus –, provocando tamanho sufoco e desassossego. O que originou o apelido.

Desprendemos-lhe o bico e o soltamos. Urugancho caminhou um pouco, olhou para nós, fez gufo-gufo em agradecimento, e bateu asas rumo ao coqueiro mais próximo, planta que, devido à altitude de sua copa, é preferida pelos de sua espécie para o descanso e a dormida.

 

                        Ficamos, entretanto, a lamentar, por não nos ter ocorrido a ideia de aparar o bico do Urugancho antes de libertá-lo. E não levou muito tempo para que Urugancho caísse noutra. De novo, ao esgravatar o fiofó, engastalhou o bico no anel de couro, e a cena se repetiu. Dessa feita, já prevenidos, pegamos o desgraçado, limamos-lhe o bico e amarramos, bem firme, em sua perna direita, com arame, um chocalhinho. Daí em diante, e por muitos anos, o distinto urubu anunciou a chegada, presença ou sobrevoo nas redondezas, mediante características badaladas.

 

                        Aí, aconteceram a implementação do Proálcool e a transformação de nossa pátria num país agrícola, com a meta de produzir, no mínimo, setenta milhões de toneladas de grãos. O sertão, em decorrência, virou uma gigantesca roça, entremeada por imensos canaviais. Ante o desequilíbrio ecológico, desapareceram, com a selva, os componentes de toda sua fauna. Inexistindo as matas, onde os corpos dos quadrúpedes mortos apodreciam e serviam de repasto para os urubus, passaram tais cadáveres a serem atirados nos rios, o depósito público de lixo mais conhecido pelos sertanejos.

 

                        Sendo da única estirpe de animal carnívoro que não mata, mas, vendo carniça, come, os urubus foram os que menos sofreram. Hedonistas e manemolentes por convicção, cedo acharam um jeito de sobreviverem. A cada bicho morto atirado ao rio, passou a corresponder uma dezena, ou mais de urubus que, montados naqueles restos, viajavam dias seguidos, aguardando o apodrecimento, para poderem se alimentar. E os mil e duzentos quilômetros de volta jamais eram retomados, em obediência à lei do menor esforço, que os sustinha pelo litoral. Numa dessas, Urugancho também se foi.

 

                        Ditas partidas sem retorno fizeram com que não mais se encontre no interior e nas cabeceiras dos rios um espécime sequer, nem mesmo para uma fotografia de lembrança. Como diz o povo, em sua sabedoria, pra baixo, todo santo ajuda, e as águas correm é para o mar.

 

                        Teoria comprovada, lei natural infalível e incontestável? Negativo! Caso contrário, não haveria urubus aos milheiros no Planalto Central Brasileiro. Aqui, tem ocorrido fenômeno inverso, com os urubus navegando contra a correnteza, na expectativa da putrefação dos despojos, tão logo cheguem às nascentes das águas, com acentuado recrudescimento desde o começo de setembro de cada ano.

 

                        Vejo-os, então, em esquadrilhas, ensombreando a Praça dos Três Poderes e antegozando o momento propício para o repasto. São nuvens deles que, aos magotes, se vão acercando e pousando sobre o Congresso Nacional. São urubus de outra laia, nenhum da irmandade do velho Urugancho.

 

                        Representam as empreiteiras e multinacionais que, nas pessoas de seus lobistas, procuram sugar o derradeiro alento que embala o povo brasileiro, por meio do saque perpetrado contra o Orçamento da União, numa vergonhosa e insaciável apropriação do butim em que transfiguraram nosso querido Brasil. 

 

Urugancho: sufoco ao coçar o uropígio

 


Do Jumento ao Parlamento sábado, 04 de fevereiro de 2017

O MERECIDO REPOUSO

O MERECIDO REPOUSO

Raimundo Floriano 

 

                        Aquele 12 de dezembro de 1990, uma quarta-feira, tinha tudo para ser igualzinho aos demais dias úteis vividos nos últimos anos. Acordei às cinco horas da manhã, realizei a higiene pessoal, vesti o uniforme de ginástica, saí às seis para caminhar, voltei às sete, banhei-me, tomei café, assisti ao primeiro noticiário na TV, li o Correio Braziliense, vesti o terno e, às oito e meia, saí para mais uma jornada de trabalho na Câmara dos Deputados. Tudo na velha e imutável rotina. Pois bem!

 

                        Ao entrar na Casa, pela Portaria do Anexo II, era grande o rebu. Um grupo de velhos funcionários veio a meu encontro, e um deles, o Sebastião de Oliveira Brito, meu amigo desde os tempos do 25º Batalhão de Caçadores, falou:

 

                        – Raimundo Floriano, você vai ter que se aposentar hoje!

                        – O que é isso, rapaz, eu vou me aposentar em março, já tenho até a data marcada, dia 27!

                        – Você é que pensa!

 

                        Saí dali em direção a minha sala pensando: “A Rádio dos Corredores está insuperável. Até o Sebastião foi envolvido. Eita cambada de boateiros!”

 

                        Ao chegar na Sala da Chefia, encontrei o colega Ivannoeh. Sua palidez e a gravidade de seu semblante já me diziam que algo inusual estava ocorrendo. Falei-lhe sobre o boato, e ele me confirmou:

 

                        –É verdade, Raimundo. Acabo de dar entrada em meu pedido no Departamento de Pessoal!

 

                        E deu a necessária explicação. Na noite anterior, o presidente Fernando Collor vetara, dentre outros, o artigo 250 da Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990 – Regime Jurídico Único. Tal veto retirava dos servidores vantagens construídas durante toda uma vida funcional. Por esse motivo, a Câmara deixara o protocolo do dia 11 em aberto, para todos aqueles que desejassem, aposentando-se, garantir seus direitos. A decisão deveria ser tomada até o final da tarde. Era a última chance.

 

                        Não tive outra opção. Computadas as licenças-prêmio não gozadas, eu já contava com mais de 37 anos de serviço. Naquele dia, eu e mais de cem outros colegas – não sei o número exato – solicitamos a passagem para a inatividade.

 

                        Se aquilo foi um tranco para nós, muito mais a Câmara se ressentiu. Sem esperar, estava perdendo um grupo seleto de funcionários, todos concursados, e não se via em condições de, em curto prazo, preencher as vagas. Assim, foi-nos liberando aos poucos.

 

                        A concessão de minha aposentadoria foi publicada no Boletim Administrativo nº 38, de 26.02.1991. Levei todo o dia 27 esvaziando as gavetas e passando a função para meu substituto. No dia 28, como ato final, apresentei minhas despedidas ao deputado Gastone Righi.

 

                        Por coincidência, éramos da mesma idade e entráramos na Câmara no mesmo ano – 1967. O deputado Gastone Righi foi um dos líderes que, juntamente com Jorge Cury e Ivette Vargas, consolidaram o novo PTB. Trabalhou como estivador, exerceu o jornalismo e mantém conceituado escritório de advocacia em São Paulo. Em sua atividade parlamentar, ressaltam-se duas marcantes conquistas: a devolução da autonomia político-administrativa à cidade de Santos – na época, os municípios com mais de 200.000 habitantes tinham os prefeitos nomeados, não os elegia – e a Lei das Baleias, que as protege contra a caça predatória.

 

                        Nosso contato era funcional, extremamente formal. Trabalhávamos em andares diferentes, e só nos víamos nas ocasiões em que eu lhe levava papéis para serem assinados. Portanto, nosso adeus não teve delongas. Foi tchau e bênção!

 

                        A partir daí, todos sabiam que eu estava aposentado, menos um: meu relógio biológico. Diariamente, eu acordava às cinco, cumpria o habitual roteiro matinal e depois ficava imaginando como preencheria as demais horas vagas. Assim estava eu, no dia 06.03.1991, uma quinta-feira, quando o interfone tocou. Era o Odon Ferreira Lima, funcionário da Liderança. Disse que tinha uma correspondência para mim. Pedi que subisse.

 

                        Todo acanhado diante do ex-chefe, o Odon não quis demorar. Entregou-me um envelope e se mandou.

 

                        O conteúdo daquele envelope me encheu de orgulho e contentamento. Que eu saiba, nenhum de meus colegas possui algo parecido. Minha vontade foi exibi-lo a todo o Congresso Nacional, a toda a Brasília, a todo o Brasil. O que, agora, com a permissão do leitor, tenho a ocasião de fazer.

 

 

 

 

  Deputado Gastone Righi: líder consolidador
do novo PTB

 

"

"


Do Jumento ao Parlamento sexta, 03 de fevereiro de 2017

ASSIM FALOU A IMPRENSA

ASSIM FALOU A IMPRENSA

Raimundo Floriano 

 

                        No episódio anterior, fiz alusão a minhas várias coleções e a um fariseu que, solerte e caviloso, tentou me depreciar junto a meu chefe e amigo Ivannoeh. Propositalmente, deixei de mencionar a coleção de cachaça, bebida de meu especial agrado, da qual possuía mais de cem diferentes exemplares, visando a lhe dedicar este capítulo especial.

 

                        Para uma residência de setenta metros quadrados, era estoque abarrotante, acrescido da literatura, fichário e catálogos alusivos ao tema.

 

                        Nas proximidades do Natal de 1989, mandei pintar meu apartamento e, numa daquelas faxinas em que muita coisa é doada ou vai para o lixo, resolvi me desfazer de minhas aguardentes – delas, sim, com imensa dor – por absoluta falta de espaço na nova decoração que se planejava. No dia 4 de dezembro, coloquei um anúncio no Correio Braziliense e, levando em conta que tudo em casa estava amontoado, dei como referência o número do telefone de meu trabalho.

 

                        Na manhã seguinte, nenhuma ligação, nenhum interessado. À tardinha, o primeiro – e único – telefonema de curioso. Era um repórter do Jornal do Brasil. Marcamos uma entrevista, e ao anoitecer, chegou ele ao gabinete, acompanhado de fotógrafo, que tirou uma batelada de fotos minha e do gabinete e se mandou. O repórter, munido de um caderno de taquigrafia, demorou longo tempo, mais de duas horas, num diálogo que abordava todos os fatos peculiares de minha vida.

 

                        Falei-lhe da família, da infância no Maranhão, dos estudos no Piauí, da vida na caserna, do concurso para a Câmara, das outras coleções, da devoção pela MPB, em especial por Jackson do Pandeiro, do desempenho como trombonista da Banda da Capital Federal e da Banda do Pacotão, da formação universitária e de mais outros assuntos, que fizeram daquele encontro – assim me pareceu – uma verdadeira aula de cultura.

 

                        No dia 6, corro para a Banca, compro o JB e sou surpreendido com esta matéria, digo, esta bordoada no focinho:

Cachaça à venda no Legislativo

Funcionário dá telefone
da Câmara dos Deputados
em anúncio para negócio

Ricardo Miranda Filho 

BRASÍLIA – Há quase 40 anos, Raimundo Floriano de Albuquerque e Silva mantém uma tradição etílica cultivada pela família no interior do Maranhão: o gosto pela cachaça. Aos 16 anos, foi apresentado à bebida pelo tio Frutuoso, cujo lema estampado no rótulo de uma garrafa caseira jamais esqueceu: “Um gole de cachaça é como o beijo da mulher amada à sombra de um juazeiro em flor”.

Aos 53 anos, Raimundo, um cachaceiro assumido e dono de uma coleção de mais de 100 rótulos, decidiu vender suas relíquias e com isso conseguiu provocar um congestionamento nas linhas telefônicas do gabinete da Liderança do PTB na Câmara dos Deputados. Funcionário da Câmara há 22 anos, através de um anúncio em jornal local, Raimundo colocou as cachaças à venda dando como contato o telefone de seu gabinete na Liderança do PTB. As linhas ficaram congestionadas. Até o meio da tarde, ele recebeu 30 ligações.

“Coleção de cachaça – 115 marcas. NCz$ 2 mil. Tratar com Raimundo”. Dizia o anúncio publicado no jornal, indicando o telefone da Liderança do PTB na Câmara, onde o colecionador trabalha como técnico legislativo. O telefone não parou de tocar.

Ex-sargento do Exército, ex-tocador de trombone na extinta Banda da Capital Federal, Raimundo sempre conciliou sua coleção de cachaças com outras de selos comemorativos e discos da velha guarda da Música Popular Brasileira. Mas, pressionado pela esposa e sem espaço em casa, teve de se separar da coleção, que chegara mesmo a catalogar. Garante, porém, que não vai interromper a tradição da família.

 

                        Depois dessa, restava-me aguardar a reação do líder, deputado Gastone Righi. Que foi das melhores. Contaram-me que ele e outros deputados da Bancada Petebista, ao tomarem conhecimento da matéria, deram boas e sonoras risadas.

 

                        Pegou bem mais leve a revista Visão, de ampla circulação naquela época, que também se ocupou do assunto. Em sua edição de 20 de dezembro, assim se expressou:

MOSAICO

Raimundo Floriano de Albuquerque e Silva, funcionário da Câmara dos Deputados, mantém em Brasília uma tradição de amor à cachaça que é cultivada no Maranhão por toda a sua família, colecionando pingas de truz. Dono de um acervo de mais de cem marcas famosas, Raimundo resolveu desfazer-se de suas preciosidades e botou um classificado num jornal da capital, anunciando: “Coleção de 115 marcas raras de cachaça está à venda, tratar com Raimundo”, indicando o telefone da Liderança do PTB na Câmara dos Deputados, onde trabalha como técnico legislativo, para atendimento aos interessados. O resultado foi um congestionamento total das linhas que atendem àquele gabinete, já que o telefone não parou de tocar durante dias, acionado por pinguços apreciadores da boa água-que-passarinho-não-bebe. Sereno, Raimundo não se afobou com a quizumba criada, lembrando a todos que estrilavam: “Um gole de cachaça é como o beijo da mulher amada à sombra de um juazeiro em flor”.

 

                        Mas nem só com pauladas na moleira foi tratado meu especial prazer em tomar uma boa pinga, que tive de abandonar em setembro de 1990, quando, ao me descobrir portador de diabetes, passei a consumir apenas refrigerantes diet. O fescenino Luiz Berto, nos agradecimentos de seu premiadíssimo livro O Romance da Besta Fubana, refere-se ao meu nome com loas que não posso deixar de consignar:

O Romance da Besta Fubana

Uma palavra de agradecimento

Proeminente foi a participação de Raimundo Floriano, maranhense com o sentimento dos Palmares, revisor do trabalho e amigo de todas as horas, que, com seu grande senso crítico e enorme espírito científico, me ajudou a pôr uma metodologia à pesquisa e engrandeceu de maneira fantástica este livro. Sensível músico, que preenche com seu mavioso trombone as carnavalescas noites do Planalto Central, Raimundo Floriano destacou-se por sua inteligência e pela paciência e profundidade que dedica a tudo que faz. Fabricante, contrabandista e grande consumidor de aguardente, é ele o criador deste néctar que faz sonhar os cachacistas de todo o País: a insuperável bebida FM (F. Mansinho ou, em família, Flor de Maracujá). Grande copo, grande figura. Sua enorme sabedoria e persistência foram de valia incalculável. Para ele, minha gratidão eterna.

 

                        Conclusão: assim é, se lhe parece!

 

                        Como estabelece um verso do poeta cômico latino Terêncio, divisa da inglesa Ordem da Jarreteira: “Honni soit qui mal y pense”. É Francês, pronuncia-se assim: oni suá qui mal i panç.

 

                        Pode ser traduzido como: Envergonhe-se quem pensar mal disso, ou melhor, mal haja quem nisso põe malícia”.

 

 

 


Do Jumento ao Parlamento quinta, 02 de fevereiro de 2017

TODOS CANTAM SUA TERRA

TODOS CANTAM SUA TERRA

Raimundo Floriano 

 

                        “Minha terra tem palmeiras onde canta o sabiá.” Assim o poeta maranhense Antônio Gonçalves Dias iniciou sua Canção do Exílio, escrita em Coimbra, Portugal, quando lá se encontrava em tratamento de saúde. Esse poema calou fundo na alma do povo deste país e parte dele foi aproveitada no Hino Nacional Brasileiro: “nossos bosques têm mais vida, nossa vida (no teu seio) mais amores”.

 

                        Mas Gonçalves Dias não foi o único a cantar o Maranhão. A cada geração, despontam em nosso Estado grandes menestréis, todos bem conhecidos da população: João do Vale, Ferreira Gullar, José Sarney, Alcione, Bandeira Tribuzi.

 

                        Balsas, meu precioso e amado torrão sul-maranhense, também teve seus trovadores.

 

                        No começo dos Anos 40, passou por lá um cometa bufarinheiro ludovicense – caixeiro-viajante são-luisense vendedor de bufarinhas, ou seja, miudezas, mercadorias de pouco valor –, que se encantou com a cidade, a beleza de suas morenas, o banho nas águas cristalinas do rio Balsas. Dominavam o cenário musical brasileiro os sambas-exaltação: Aquarela do Brasil, de  Ary Barroso, Canta, Brasil, de David Nasser e Alcyr Pires Vermelho, Onde o Azul é Mais Azul, de João de Barro, Alcyr Pires Vermelho e Alberto Ribeiro, Brasil Pandeiro, de Assis Valente, Natureza Bela, de Henrique Mesquita e Felisberto Martins.

 

                        Esse bufarinheiro, de cujo nome ninguém se recorda, gostava muito de fazer serestas nas noites enluaradas, sempre acompanhado pelo músico da cidade, o saxofonista Martinho Mendes. Numa delas, compuseram um samba em louvação a Balsas. Já naquele tempo, se mostraram vanguardistas, antecipando-se à nova onda dos compositores atuais, que misturam os pronomes “tu” com “você”, como fez Roberto Carlos, o Rei, na belíssima canção Nossa Senhora: “Nossa Senhora, me dê a mão, cuida do meu coração...”

 

                        O aludido samba, que recebeu o nome de Balsas, Cidade Sorriso, caiu nas graças de velhos e moços. Eu mesmo o cantava toda vez em que, bem distante, em Teresina, sentia saudades de minha família, de minha casa, de minha rua, de meu rio. Ei-lo:

“BALSAS, CIDADE SORRISO

Balsas,
Não sei como te chamar
Se princesa, fada ou rainha
Você vai me desculpar
Balsas,
Morena de encantos mil
És a cidade sorriso
Sorriso do meu Brasil

És a terra encantada e rica do verde sertão
Do sertão majestoso e belo do meu Maranhão
Oh Balsas,
Você também me pertence
Basta eu ser maranhense
Vive no meu coração
(por isso é que eu canto)”

 

                        Ao rimarem “encantos mil com Brasil”, os autores demonstraram a grande sintonia que mantinham com o estilo em voga no chamado sul do país – São Paulo e Rio de Janeiro.

 

                                    Em 1974, o gaiteiro e compositor Augusto Braúna, filho de Leonizard Braúna, o Beethovem do Sertão, produziu a marcha-rancho Balsas Querida, que passou a ser entoada como se fosse o hino da cidade. Cantada nas solenidades e salões carnavalescos, mantém, até hoje, o consagrado sucesso, e qualquer balsense, menino ou adulto, vibra ao cantá-la.

 

                        Foi-me ela apresentada no Carnaval de 1975. De cara, gamei! Posso dizer que me tornei um de seus maiores divulgadores, pois passei a executá-la várias vezes em cada baile, fazendo com que “pegasse” em definitivo. No reinado momesco, ela tem um andamento bem rápido, entre a marcha e o frevo. É quando o salão pega fogo. De contagiante melodia e simplicidade na letra, é fácil de se decorar:

 

“BALSAS QUERIDA

Balsas querida
Cidade dos meus amores
Quando estou distante estou chorando
Lembrando também tuas cores
Quando estou perto vivo a cantar
Balsas querida, igual a ti não há

Cidade muito boa
De grandes corações
Foi onde assisti
Melhores foliões
Balsas, cidade querida,
Por ti serei capaz de dar a própria vida”

 

                        O enorme cartaz alcançado por Augusto Braúna incomodava alguns. Numa tocata, fui procurado por um invejoso derrotista fementido – falso, perjuro, enganoso –, que me falou:

 

                        – Raimundo Floriano, não sei por que você perde tempo executando essa música. Não passa de plágio!

                        – Plágio de quê?

                        – Não me lembro bem, mas me parece tê-la ouvido em outra ocasião!

                        – Pode ser engano – argumentei –, quase todas as marchas-rancho são escritas em tom menor e têm esse andamento vagaroso, fazendo com que se pareçam. Por isso mesmo, incremento-a com um ritmo mais vibrante. Aliás, tem uma melodia que se casa muito bem com o trombone.

 

                        O fementido não se conformou:

                        – E os erros de Português? Ele diz que assistiu melhores foliões. Quem assiste, assiste a alguma coisa. O verbo pede objeto indireto!

                        – Não neste caso! – encerrei o assunto. O Augusto Braúna é estudante de Medicina. Talvez faça referência a alguém que se excedeu na brincadeira e nos goles, a quem ele deu socorro!

 

                        Em 1988, o prefeito Heliodoro Souza realizou um concurso para que fosse instituído o hino oficial para a cidade. Foi vencedora a balsense Edilza Virgínia Pereira, cuja obra laudatória passou a ser entoada nas escolas do município e executada nas festividades oficiais:

“HINO DE BALSAS

Ó cidade de Balsas amiga
És enlevo do meu coração
O teu rio teus campos percorrem
E enriquece a planície de grãos
No trabalho e na luta constante
Resplandece viril geração
Terras férteis assim cultivadas

Dão progresso ao nosso sertão

REFRÃO

Avante, Balsas, jardim em flor
Avante, Balsas, és o meu eterno amor

Brilha o sol na amplidão do horizonte
Florescendo buritis e arrozais
Lentamente pasta o gado no cerrado
Ao festival da sinfonia dos pardais

Cai a tarde no seio da mata
Com os raios dourados da lua
Clareando cachoeiras e cascatas
Elevando a beleza que é tua

Da verde relva desabrocha flor silvestre
Que encandece arco-íris multicor
Minha terra de bravos escritores
Que ardorosos cantam teu louvor
Coqueirais abrem as palhas verdejantes
E os teus frutos enobrecem o teu chão
Acendendo a chama viva da grandeza
Da princesinha do sul do Maranhão”

 

                        O baiano Antônio Ferreira Jacobina é reconhecido como o pioneiro fundador de Balsas. Chegou, ao final do século XIX, no pequeno povoado, inicialmente conhecido pelo nome de Vila Nova. Jacobina assumiu a direção da localidade e escolheu, em homenagem a seu próprio nome, Santo Antônio como padroeiro. Logo, o povoado passou a se denominar Vila de Santo Antônio de Balsas, ou, simplesmente, Balsas, sendo elevado à categoria de município em 1918.

 

                        A devoção por Santo Antônio é muito acentuada em todo o Estado. Em todas as cidades que o têm como protetor, canta-se o alegre e esplendoroso hino composto pelo maranhense Eleutério Rezende:

 

“HINO DE SANTO ANTÔNIO

A Santo Antônio glorioso
Cantemos hino triunfal
Pois foi na terra milagroso
No céu habita imortal
No céu habita imortal

A ti, Santo portentoso
Sempre daremos louvor
Pois és o nosso zeloso
Vigilante protetor

Milagrosos são teus passos
Portentoso o teu poder
Maravilha em teus braços
Jesus Infante se vê

Luzeiro em densas trevas
Em que o mundo mergulhou
Tu, Antônio, nos elevas
Teu exemplo iluminou”

 

                        Em honra do anônimo bufarinheiro compositor, e para que as peças musicais acima mencionadas não se percam com a passagem dos anos, adiante transcrevo suas partituras. 

 

********

Aqui vão os áudios das canções acima citadas:

Balsas Querida, grvação de Deusamar Santos:

Hino de Balsas, com o Coral do Colégio São Pio X:

Hino de Santo Antônio, com Mércia Cairis e Coro:

Balsas, Cidade Sorriso, com Felipe Rodrigues:

 

 

"


Do Jumento ao Parlamento quinta, 02 de fevereiro de 2017

O COLECIONADOR, O SÁBIO E O FARISEU

O COLECIONADOR, O SÁBIO E O FARISEU

Raimundo Floriano

 

 

         Coleciono itens variados desde a tenra infância. Das coleções que tive – besouros, tampinhas de garrafa, maços de cigarro, peças íntimas femininas – e das que ainda tenho – livros, romances de cordel, elepês, fitas, carnaval brasileiro, MPB da velha guarda e selos – nem sempre cuidei bem.

 

         Colecionar implica o emprego de organização e método. Caso contrário, a pessoa é um simples ajuntador, um amontoador, de coisas. Uma coleção, para ser assim chamada, requer a adoção de sistema que proporcione uma busca rápida e fácil. Aprende-se isso com o tempo e na convivência com colegas de hobby. Minha coleção de selos é exemplar.

No passado, essas peças sofriam muitas agressões. Eram pregadas diretamente no álbum, razão pela qual muitas delas, bem antigas, se apresentam esmaecidos, desbotadas, lavadas, de tanto ficarem de molho, para se soltarem da folha e serem negociadas. Tempos depois, surgiu a charneira, pequena tira de papel para fixação nos álbuns, o que dava na mesma. Hoje, existe o hawid, também conhecido como maximaphil, envelope de acetato, comprido e estreito, aberto na extremidade superior e nas laterais, de fundo preto e autoadesivo, e face frontal transparente, onde se coloca o selo. Apenas o envelope é colado à página do álbum, depois de recortado no tamanho requerido, com a face escura preta a emoldurar a peça.

 

         Em minha coleção, uso, para maior segurança, folhas de álbum fotográfico japonês, superproteção que possibilita seu manuseio até por crianças.

 

         Embora existam os oficiais, os beneficentes e os propagandísticos, podemos classificar os selos em dois tipos: ordinários – ou comuns – e comemorativos. Os ordinários servem apenas para cobrar as taxas devidas aos Correios pela remessa de correspondência ou encomendas. Os comemorativos referem-se a um fato histórico, a um personagem ilustre ou a evento importante.

 

         Uma coleção pode ser temática – esporte, política, ciência, aviões, aves – ou geográfica – continentes, países, hemisfério.

 

         A 26 de maio de 1840, a Grã-Bretanha emitiu o primeiro selo postal adesivo do mundo. Com o valor de 1 penny, ficou para sempre conhecido como penny black. Não o possuo – quem dera! A cópia a seguir é reprodução de peça publicitária:

 

          O Brasil foi o segundo país do mundo a emitir selo postal. No dia 1º de agosto de 1843, lançou aquele que, por seu desenho, ficou conhecido como olho-de-boi, nos valores de 30, 60 e 90 réis. São selos ordinários, pois a nada se referem. Até mesmo o nome da moeda da época é omitido. Em perfeito estado de conservação, sem carimbo, alcançam alto preço no mercado especializado. Os que adiante se veem, pertencem a meu acervo, defeituosos, claro:

  

         Só em 1900, com as festividades relativas ao 4º Centenário do Descobrimento, o Brasil passou a emitir selos comemorativos.

 

         Comecei a colecioná-los em 1945, aos 9 anos de idade. Naquele tempo, uma das poucas diversões culturais dos meninos do interior. É com orgulho que exibo meus primeiros exemplares, homenagem à FEB – Força Expedicionária Brasileira: 

                         Ainda que de muito longe, vivenciávamos o ambiente da 2ª Guerra Mundial, quando a FEB, na Itália, se incorporara ao 5º Exército americano, daí o A 5. A cobra fumando é o símbolo que identificava nossos soldados, também conhecidos como pracinhas.

 

         Coleciono apenas selos comemorativos brasileiros. Possuo desde o primeiro até o que saiu na semana passada. Não faz muito tempo, quando alguém folheava meus álbuns, era, às vezes, inevitável a pergunta:

 

         – Você tem o olho-de-boi?

 

         Visando a evitar a longa explicação de que tal selo é ordinário, fora, portanto, do contexto, adquiri uma série por baixo preço, para matar a curiosidade de alguns. E isso me confere, também, um certo status.

 

         Em 1976, obtive o cobiçado Prêmio Olho-de-Boi, concedido pela ECT - Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos. Em seguida, essa companhia me pediu por empréstimo a coleção e a levou para expô-la, no Rio de Janeiro e em outros Estados, por mais de seis meses. Meu acervo era igual ao dos demais concorrentes. O que o diferenciou foi – modéstia à parte – a esmerada apresentação.

 

         Se, por um lado, a notoriedade adquirida com minhas coleções e outras atividades, tais como mestre de banda e diretor de bloco de carnaval, era gratificante, por outro, despertava ciúme e inveja em mentes doentias.

 

         Para ilustrar essa negativa faceta, solicito permissão para falar de um sábio, grande amigo, excelente e fraternal colega, com quem tive a honra de trabalhar na Câmara dos Deputados. Trata-se do mineiro Ivannoeh Lopes Rosas. O leitor pode achar um despropósito sua inclusão neste capítulo, mas eu digo que tem tudo a ver.

 

         Trabalhávamos na Liderança do PTB, ele exercendo o cargo de Chefe de Gabinete, eu, por indicação sua, o de Chefe de Secretaria e seu substituto eventual. Ocupávamos ambos a mesma dependência, num pequeno espaço denominado pelos demais funcionários como Sala da Chefia.

 

         No primeiro dia em que assumi as funções naquela sala, cheguei carregado de livros: dicionários, enciclopédia, manuais técnicos. Ao ver-me arfando com o peso daquilo tudo, Ivannoeh quis saber o porquê de tanto esforço, e eu respondi que era uma velha mania, que tais calhamaços me garantiam, dentro daquela filosofia de que burro carregado de livros é doutor. Ele, sem qualquer intenção de menosprezo, proferiu esta lapidar frase latina:

 

         – Omnia mea mecum porto! (Tradução: levo comigo tudo o que tenho.)

 

         Com isso, queria dizer que todo o seu conhecimento se encontrava guardado no cérebro. E não era jactância. Redigia qualquer proposição ou pronunciamento parlamentar sem recorrer a fonte de consulta alguma e sem reler o que já escrevera. À medida em que enchia cada folha de rascunho, um funcionário a levava ao datilógrafo em outra sala e, no final, saía um trabalho perfeito, sem carência de revisão. Outra frase sua, que o caracterizava:

 

         –Raimundo, eu não tenho esquinas, não tenho arestas, tudo o que bate em mim, resvala.

 

         Se assim falava, melhor procedia. Quando deputados da Bancada lhe encomendavam a minuta de pronunciamento sobre determinado tema, só um esclarecimento pedia:

 

         – Contra ou a favor?

 

         Igualmente, não admitia maledicências, desfazia ressentimentos, apaziguava inimizades.

 

         Contaram-me – não presenciei essa ocorrência – que, a um homem desses, que não tem arestas, que não se dá a fofocas, dirigiu-se, certa vez, um fariseu – pessoa conceituada na Bíblia como falso, fingido e hipócrita, cujo nome, se mencionado, só traria desdouro a estas páginas –, com o intuito de me passar uma rasteira:

 

         – Ivan, toma cuidado, acautela-te desse tal de Raimundo Floriano com quem divides a Sala da Chefia. Corres muito perigo!

         – Por quê? – Surpreendeu-se o sábio.

         –Nem te conto, Ivan. Disseram-me que o cara é hemofílico, sifilítico, ou coisa parecida! – Disparou o fariseu.

         – Nada disso. O Raimundo é filatélico, filatelista!

         – E daí? Não é perigoso da mesma forma?

         – Não! Filatelista é quem coleciona selos, e ele, nesse ramo, é um dos mais conceituados do país!

         –Ivan, Ivan, tu estás é por fora! Até em seu cartão de visitas, ele se intitula parafrasta, sujeito de comportamento duvidoso, que não gosta do sexo oposto!

         – Novo engano seu. O Raimundo pertence à linhagem de Jerônimo de Albuquerque, o Adão Pernambucano. Ele é parafrasta, sim! Neste gabinete, faz traduções e decifra cartas ilegíveis de eleitores – esclareceu Ivannoeh.

         –Agora, Ivan, sai desta: eu soube que, no interior do Maranhão, ele é pedófilo!

         Ivannoeh não perde a calma:

         – Que pedófilo, que nada! Ele é mesmo é pedólogo, edafólogo!

         – E então, não é uma tara, uma aberração?

         Imperturbável, o sábio encerra o papo:

         – Não, colega. O pedólogo ou edafólogo é especialista no estudo do solo. Atividade que o Raimundo Floriano frequentemente pratica, lá no sertão, quando vai arrancar minhocas para pescar!

 

         Esgotado todo seu veneno, o fariseu se retirou. Saiu da Sala da Chefia com o rabo entre as pernas, deixando no ar uma forte catinga de enxofre e chifre queimado.

 

         Assim me contaram!

  

Ivannoeh Lopes Rosas: competência
e sinceridade sem arestas

 

"


Do Jumento ao Parlamento sábado, 28 de janeiro de 2017

O INTERNACIONAL

O INTERNACIONAL

Raimundo Floriano 

 

         Já tive oportunidade de contar a história de meu cartão de visitas e dos motivos que me levaram a criá-lo. Como ele até hoje continua causando furor e espanto onde é exibido, não me acanho em, de quando em vez, voltar a mencionar o enorme sucesso obtido desde sua primeira edição em 1985.

 

         A treze de junho de 1988, o humorista Millôr Fernandes agraciou-me com esta publicação em sua coluna – abstraído o que não interessa ao aqui narrado – no Jornal do Brasil:

 

 

         Em que pese a honrosa homenagem prestada pelo grande mestre e guru, não posso deixar de relembrar o verdadeiro festival de badalação em que se transformou aquele dia: as linhas telefônicas de minha área completamente congestionadas; chamadas do país e do exterior afrontando os fusos horários; a imprensa escrita, falada e televisada implorando-me a esmola de uma entrevista.

 

         Dois dias depois, o Jornal do Brasil repetia a dose:

O rapsodo Raimundo

Funcionário fica famoso
por causa de cartão
  

Ricardo Miranda Filho

BRASÍLIA – Um contador de 52 anos, funcionário da liderança do PTB na Câmara dos Deputados, saiu esta semana do anonimato para ser conhecido nacionalmente. É o maranhense Raimundo Floriano de Albuquerque e Silva, que vem recebendo telefonemas em sua residência, na Superquadra Sul 416, “de pessoas de todo o Brasil”, não por gostar de briga de galos, mas por ter tido o seu incomum cartão de apresentação publicado na coluna do Millôr, no JORNAL DO BRASIL.

Em seu cartão, Raimundo se apresenta como “Amanuense, Cinesíforo, Alectoromaquista, Melômano, Banjoísta, Propedeuta, Íncubo, Rapsodo, Diascevasta, Partenomante, Cruciverbista, Parafrasta, Pessarista, Calemburista, Fescenino e Decifrador”, além de “Compadre de Dona Carmem”. “Não pude escrever um livro, escrevi um cartão”, é a justificativa de Raimundo para a sua iniciativa de mandar imprimir os cartões. O cartão “já foi parar até nas mãos do presidente José Sarney”, lembra com orgulho a esposa Veroni Albuquerque e Silva, depois de explicar que “Sarney foi amigo de infância de José Albuquerque, irmão de Raimundo”.

Brincadeiras com amigos – Raimundo contou que a ideia de fazer os cartões surgiu há dois anos como forma de “gozar com os amigos”. Na primeira impressão durante a época de ouro do Plano Cruzado, ele, por ser maranhense, de Balsas, se apresentava como “conterrâneo do homem”. “Naquele tempo ficava bem, mas aí houve um revertério na política econômica e então resolvi tirar a frase, pouco apropriada depois da queda da popularidade do presidente”, explicou o “Compadre de Dona Carmem.”

O maranhense faz questão de explicar que a frase “compadre de dona Carmem” se deve a uma comadre baiana da família, moradora da cidade satélite de Taguatinga, no Distrito Federal, e não à mulher do presidente da Assembleia Legislativa da Bahia durante o governo João Durval, “que se tornou conhecida quando o Diário Oficial do Estado publicou, inadvertidamente, seu nome como madrinha das contratações”, conforme explicou Veroni, esposa de Raimundo.

“O Millôr provocou uma reação na minha casa que ele não imagina”, contava o “amanuense” ontem, depois da publicação do cartão com endereço e telefone. O aparelho não parava de tocar, com várias pessoas curiosas e interessadas em conferir a existência do maranhense misterioso.

Em seu cartão, Raimundo se apresenta, enumerando 16 vocábulos pouco usados e escolhidos “a dedo”. Ele se intitula, por exemplo, um melômano (quem tem paixão por música); calemburista (aquele que faz trocadilho); partenomante (arte de adivinhar se a mulher é virgem ou não); cruciverbista (aquele que faz palavras cruzadas); cinesíforo (motorista); amanuense (escrivão) e alectoromaquista (quem gosta de briga de galo). Além dessas qualificações, ele ainda afirma ser colecionador de discos e também que gosta de tocar trombone.

 

                        Na madrugada seguinte, sou acordado por minha filha Elba, de cinco anos, a secretária eletrônica lá de casa:

 

                        – Pai, tem um homem falando esquisito no telefone!

 

                        Atendi. Era da Bielorrússia. O cabra do outro lado do mundo se esforçava, esbravejava, gaguejava, gemia, berrava que nem porco na faca. Tentei estabelecer uma conversação em Inglês, mas o indivíduo não morou no assunto e ficou ainda mais nervoso. Passados uns quinze minutos sem entendimento, sem que eu pescasse palavra sequer daquele babélico interlocutor, a ligação foi interrompida.

 

                        Quando narro esse episódio, sempre aparece algum incrédulo para duvidar:

                        – Raimundo, tu entendes alguma coisa do idioma bielorruso?

 

                        – Nem um pingo!

 

                        – Então, como é que tu sabes que o sujeito era de lá?

 

                        – Só vim a saber bem mais tarde, ao me ser enviada a conta da Telebrasília. O telefonema do comunista tinha sido a cobrar!

 

 

 


Do Jumento ao Parlamento sexta, 27 de janeiro de 2017

AQUI ME TENS DE REGRESSO

AQUI ME TENS DE REGRESSO

Raimundo Floriano 

 

         Liderança do PTB! Quanta recordação! Quanta saudade. Foi onde, em outubro de 1980, sob a batuta do deputado Jorge Cury, seu primeiro líder, conheci Veroni, com quem me casei e com quem produzi as encantadoras meninas Elba e Mara, alegrias do meu coração. E, falando em coisas materiais, foi ali que incorporei meu DAS.

 

         Gratas lembranças, algumas nem tanto. Saí de lá em setembro de 1983, cabisbaixo, dispensado em decorrência de maquinação urdida por ambiciosa assessoria que, desejando minha vaga para outrem, orquestrara a defenestração. Retornei no começo de 1987, por indicação de antigos colegas e designado pelo novo líder, deputado Gastone Righi, a quem eu não conhecia pessoalmente.

 

         Publicada minha nomeação no Boletim Administrativo, para o cargo de chefe de secretaria, dirigi-me à Liderança, na intenção de cumprimentar seu titular. Como sou daquele tipo que quando sai de um lugar em condições adversas jamais volta lá, nem mesmo para ir ao banheiro, notei que, em quatro anos de ausência, mudanças houvera. Ao tentar, já com a mão na maçaneta, penetrar no gabinete, fui interceptado por um contínuo que, sentado a uma mesinha na antessala, me alertou:

 

         – Aí ninguém pode entrar!

 

         – É que eu desejava falar com o líder – ponderei.

 

         – Ele ainda não chegou de São Paulo, e mesmo que tivesse chegado, aí ninguém pode entrar sem ser da Liderança!

 

         –Você sabe com quem está falando? – Apelei.

 

         – Sei não. Só sei é que, se não for funcionário da Liderança, aí não entra!

 

         Apontei para meu crachá, pendurado na lapela esquerda do paletó:

 

         – Pois olhe para isto aqui!

 

         – Isso não vale nada – retrucou –, todo mundo na Casa tem!

 

         Vi-me, então, compelido a lhe dar uma carteirada. Saquei do bolso do colete e lhe exibi estas credenciais:

 

 

 

         O moço olhou o documento, deteve-se um pouco no exame e, afinal, prometeu:

 

         – Vou entregá-lo ao deputado, tão logo ele esteja aqui.

        

         Retirei-me para meu local de trabalho, um andar abaixo, no térreo. Isso na parte da manhã. Mais ou menos às três da tarde, Ivannoeh Lopes Rosas, chefe do gabinete, chamou-me para que subíssemos à sala do líder, que acabara de chegar. Feita a apresentação, o deputado me perguntou assim, de primeira:

 

         – Raimundo, o que você acha do parlamentarismo?

 

         Eu, sempre autêntico, sem primeiro sondar a posição do líder, fui logo mergulhando de ponta-cabeça:

 

         – Sou contra!

 

         – Por quê? – Inquiriu o deputado.

 

         – Porque vivi a experiência parlamentarista no início dos anos 60, tendo ela sido dolorosa e frustrante, servindo apenas para deslustrar a biografia de homens do quilate de Hermes Lima, San Thiago Dantas, Carvalho Pinto e Brochado da Rocha.

 

         – Mas o parlamentarismo – ensinou Gastone Righi – valoriza o funcionário concursado, competente e estável, pois, diante da instabilidade do Gabinete, necessária se faz uma estrutura administrativa eficiente e capaz, completamente protegida da troca de ministros, alheia às mudanças na Chefia do Governo e imune da alternância partidária no poder.

 

         – Mesmo assim, deputado, não acredito num parlamentarismo como o que querem implantar, onde não é prevista a dissolução do parlamento.

 

         – Está bem! – Disse o deputado – encerrando o assunto.

 

         Ao sairmos, Ivannoeh virou-se para mim e falou:

 

         – Ih, rapaz!

 

         No final do expediente, irrompe na Secretaria um desconhecido, nordestino moreno, alto, forte, bigode de escovão, que, pelo jeito, supus, só podia ser da Polícia Federal. Sentou-se e, sem mais delongas, interrogou:

 

         – Quem é o Raimundo aqui?

 

         – Sou eu! – Entreguei-me.

 

         – É verdade que você deu uma carteirada, ou melhor, uma cartãozada no contínuo da Liderança?

 

         – Sim, mas foi de brincadeira – confessei.

 

         – Posso ver o cartão?

 

         – Perfeitamente! – Concordei.

 

         De posse do dito cujo, fazendo perguntas sobre o que nele se continha e indagando a respeito de assuntos diversos, o homem começou a tomar meu depoimento, anotando as respostas, com admirável rapidez, num bloco de rascunho. Terminada a oitiva, o bigodudo disse tchau e se mandou.

 

         Aquilo me deixou um tanto baratinado, mas só até a manhã seguinte quando, inadvertidamente, abro o Estadão e me deparo com esta matéria:

 

                     O exótico secretário do PTB

 

O líder do PTB, deputado Gastone Righi, está eufórico porque contratou o maranhense Raimundo Floriano de Albuquerque e Silva para chefe da secretaria da liderança do partido, tendo em vista o currículo constante de seu cartão de visitas.

“ Raimundo Floriano de Albuquerque e Silva”

“Maranhense – Conterrâneo do homem” e, como se não bastasse, em letras menores ajunta outros títulos: “amanuense – trombonista – propedeuta – íncubo – rapsodo – diascevasta – partenomante – cruciverbista – parafrasta – pessarista – toma-largura – fescenino – decifrador” e, por último, em letras maiores “Compadre de Dona Carmem”.

“Este cartão é salvo-conduto para passar pelo Piauí sem ser assaltado”, assim Raimundo Floriano de Albuquerque e Silva, ex-sargento do Exército, funcionário concursado da Câmara dos Deputados desde 1964, maranhense de Balsas, chefe da secretaria do gabinete da liderança do PTB, define seu cartão de visita,

Ele se negou a revelar seu salário: “Ganho 7.997,79 de salários fixos. Não ganho o que mereço, mas estou satisfeitíssimo com o que ganho”. Explicou uma de suas qualificações: “Sou pessarista, o que bota DIU nas mulheres”.

 

GLOSSÁRIO DO “COMPADRE”

Amanuense – Funcionário público, escrevente
Trombonista – Tocador de Trombone
Cinesíforo – Motorista (neologismo)
Banjoísta – Tocador de banjo
Alectoromaquista – Promotor de brigas de galo
Propedeuta – Preceptor, professor
Íncubo – Demônio sedutor
Rapsodo – Poeta ou cantor popular
Diascevasta – Crítico de obras alheias
PartenomanteQue pratica a partenomancia (antiga arte
de adivinhar se uma mulher era ou não virgem)

CruciverbistaAdepto de palavras cruzadas
Parafrastaque faz paráfrases, isto é, desenvolve
ou resume textos conservando as ideias originais

Toma-larguraCriado do Paço – funcionário público
FesceninoCriador de versos licenciosos

 

                        Só então, fiquei sabendo que o estranho bigodudo era nada mais nada menos que o famoso jornalista e ilustre sobralense Lustosa da Costa.

 

                        E, assim, estava eu de volta ao velho PTB.

 


Do Jumento ao Parlamento quinta, 26 de janeiro de 2017

O FOGO DE MARIBONDO

O FOGO DE MARIBONDO

Raimundo Floriano 

 

O Maranhão é um Estado interessante!

 

         Mas não por causa da gestação da miríade de eleitores capazes de o rotular como o único Estado a eleger, no pleito de 15 de novembro de 1985, para prefeito de sua capital, um candidato do PDS. Nem por ter gerado, para a honra e glória da humanidade, nomes da magnitude de Graça Aranha, Gonçalves Dias, Ferreira Gullar, João do Vale, Alcione e Maestro Zuza; de fundadores da Academia Brasileira de Letras, como Aluízio Azevedo, Coelho Neto, Raimundo Correia e Artur Azevedo, e ilustres membros daquela Casa de Chá, do quilate de Viriato Correia, Odilo Costa Filho e Josué Montello. Também em nada contribuiu para seu louvor a particularidade de ter dado à luz um filho que chegou à Vice-Presidência da República, tendo assumido a Presidência. Falo do douto intelectual, habilíssimo político, deputado e senador Urbano Santos, único maranhense eleito vice-presidente da República pelo voto direto, tendo substituído o presidente Venceslau Braz, em setembro e outubro de 1917. Tais nomes engrandeceram o Maranhão e projetaram, nas artes, na ciência e na cultura o nome do Brasil no concerto das nações artística, científica e culturalmente evoluídas.

 

         Interrompo-me para responder a alguém que me pergunta:

 

         – Mas esse aí, douto intelectual, habilidoso político que foi deputado, senador, vice e assumiu no lugar do presidente da República e também escreveu O Fogo de Maribondo não é o Sarney?

 

         E eu rebato:

 

         – Não, meu camarada, o presidente José Sarney assumiu em caráter efetivo, governará por cinco anos, de cabo a rabo, é o maior nome da política e cultura do Novo Maranhão, também membro da ABL, e o nome de um de seus best-sellers é Os Maribondos de Fogo. O título deste meu trabalho é uma paródia a essa obra-prima e uma homenagem ao nobre coestaduano, que estudou em Balsas, no Educandário Coelho Neto, do lendário professor Joca Rego.

 

         O Maranhão é grande porque a terra é boa, e seu ventre, mesmo em nada nele se plantando, tudo dá. A soja e o arroz, se bem cultivados, dão na colheita, na soca, na ressoca e na contrassoca, fazendo com que o Estado, mais precisamente sua região sul, cujo centro cultural, econômico e financeiro é a cidade de Balsas, seja, hoje, o maior produtor brasileiro de grãos por hectare.

 

         Essa admirável fecundidade é alcançada por meio de métodos racionais e modernos processos de plantio, com o emprego de tratores, colheitadeiras, adubos, fumigação aérea e tudo o mais que a tecnologia possa conceber para diminuir o trabalho e aumentar a rentabilidade dos agricultores. Há, ali radicada, uma população de gaúchos – calculada em mais de mil famílias – que trouxe consigo as novas técnicas e deu aos sul-maranhenses um inesperado tempo de progresso e prosperidade. Enquanto seu Philipsen, de origem holandesa, planta trinta mil hectares de soja, os balsenses Chico Coelho, Luiz Pires, Odilon Botelho e Antônio Pires semeiam quarenta mil hectares de arroz.

 

         Nem sempre foi assim. Há coisa de vinte anos, pouco mais ou menos, predominava por lá uma lavoura de subsistência, tocada a cabo de enxada. Não havia estradas vicinais, e o transporte da parca produção excedente, da roça para os centros consumidores, era feito em costa de jumento, único semovente capaz de vencer qualquer tipo de terreno. Para tanto, havia grandes transportadoras, compostas de até pra mais de cinquenta jegues, cujos proprietários eram os magnatas da paróquia, donos do dinheiro e senhores dos destinos de seus serviçais, quer asininos, quer humanos.

 

         Deles, o mais conhecido era Luiz Otávio da Silva, fazendeiro rico, lavrador bem-provido, transportador de alto coturno. Esse coronel começara do nada. Pedreiro de profissão, começou construindo muros, aplicando emboços, caiando paredes, tirando goteiras, andou bancando a Loteria Esportiva por uns tempos, fez 13 pontos num bolão, aforou alguns terrenos lá pras bandas do bairro Catumbi, onde furou poço, plantou verduras e outras hortaliças, diversificou sua lavoura e finalmente, alcançou a tão almejada fortuna. Por ser o homem mais alto da cidade, passaram a chamá-lo de coronel Luizão.

 

         Esse coronel mantinha sob sua paga, como chefe-de-tropa, um cabra que, por ter sempre à mão um ferrão – pau comprido, roliço e fino, com uma extremidade metálica pontiaguda – para açular os jumentos preguiçosos a ele subordinados, desde cedo ficou conhecido pela alcunha de Maribondo, dele não se sabendo outro denominativo.

 

         Maribondo não gostava de usar o ferrão, carregava-o apenas como símbolo de autoridade, como preventivo, e cada agulhada que aplicava nalgum de seus comandados, isso em caso de extrema necessidade, lhe doía fundo, porque ele amava aqueles asnos, ajudantes fiéis, fontes de seu sustento, amados como o seriam os filhos que até então não conseguira ter, pois nem casado era.

 

         Aí, chegaram os gaúchos, com sua mecanização e maquinização. Qualquer dos grandes tratores de lâmina fazia, num só dia, o trabalho de uma centena de homens. As colheitadeiras dispensavam os apanhadores e catadores, geralmente mulheres e meninos, e os pequenos tratores CBT 2105 – fabricados pela Companhia Brasileira de Tratores – rebocavam imensas carretas, transportando, numa só carrada, a produção de dez ou mais das antigas roças.

 

         Decretou-se a aposentadoria do jumento, e o CBT, por substituí-lo, ganhou logo o apelido de jerico. De fácil manejo, o jerico pode ser conduzido por qualquer criança, ou por qualquer mão-de-obra desqualificada, o que faz com que seus maquinistas sejam os que menor salário percebem, somente indicados para a função quando não há coisa pior a executar. No advento do CBT, era comum esta frase dos escabreados balsenses que se enfileiravam diante da Agência da SAGRIMA – Secretaria de Agricultura do Maranhão –, à procura de emprego:

 

         – Me diga que eu sou corno, mas não me chame de “jeriqueiro”!

 

         Foi, então, que se sucedeu a desgraça! Coronel Luizão, vendo o ar afortunoso dos gaúchos, bem como dos balsenses que lhes seguiram o exemplo, resolvera, de uma hora para a outra, desativar a frota de jumentos e equipar sua lavoura e a transportadora com as coisas da modernice. Assim, na manhã de um dia comum, igualzinho aos demais, quando Maribondo chegou na sede da fazenda, para iniciar mais uma jornada, recebeu um positivo a cavalo, do Coronel Luizão, que o chamava para uma conversa em sua residência na cidade. Maribondo previu coisa séria, medonha, a ponto de obrigá-lo a interromper, pela primeira vez na vida, aquela rotina que há tantos anos executava. Seguiu, juntamente com o positivo, na garupa do quadrúpede. Nem menos deu bons-dias, e coronel Luizão foi direto ao assunto, como é consuetudinário aos que arrotam poder:

 

         – Maribondo, junte todo o elenco de jegues e leve até uma jamanta estacionada em frente ao Mercado. Já ajustei o preço. É só embarcar!

 

         –Oxente, seu coronel Luizão, eu nunca tinha visto levar jumento para passear de caminhão! Eu posso ir junto?

 

         – Não é para passear, sua cavalgadura! O homem da jamanta vai levá-los para um frigorífico, e de lá para o Japão, onde o povo é doido por salsicha de carne de jumento!

 

         – Mas seu coronel Luizão, e eu, o que será de mim?

 

         – Volte aqui à tardinha, pra aprender a pilotar um jerico que acabei de comprar.

 

         Maribondo dali se retirou, amargurando um tríplice sofrimento: separar-se de suas alimárias, sabê-las destinadas ao abate, transformar-se em jeriqueiro. Rumando para a sede, remoía sua dor e, para amenizá-la, comprou um litro de pinga na primeira quitanda com que deparou. Bebendo e chorando, chorando e entornando, já chegou na sede meio adernado. Foi ao potreiro e, munido de seu ferrão, reuniu as azêmolas, reencetando o percurso para a cidade, o último que faria acompanhado de seus amados bocas-empoadas.

 

         Palmilhando seu calvário, danou-se a sorver, em solenes goles, seu cálice de fel, última homenagem àqueles diletos auxiliares. Brandia o ferrão, tomava uma lapada e gritava:

 

         – Pra você, Mão-de-Pilão!

 

         O ferrão vibrava no ar, o gargalo adentrava sua boca, e o brado ecoava:

 

         – Badalo, meu filho, até o Dia do Juízo!

 

         Na entrada da cidade, comprou outro litro de cana, dando continuidade ao adeus derradeiro a seus beiçudos, uma brandida do aguilhão e um gole em despedida a cada qual:

 

         – Alavanca!... Chaminé!... Mangará!... Três Palmos!... Sax-Tenor!... Mangueirão!... Cinco-Pernas!...

 

         Nem bem chegou à Praça do Mercado, pôs em debandada seu esquadrão de orelhudos e, bambeando e tropeçando, ferrão em punho, botou-se para a casa do patrão. Acompanhavam-no, agora, os desocupados, os gozadores, alguns cabungueiros – limpadores de penico – e a indefectível cambada de meninos, um dos quais se adiantou, na carreira, para anunciar a novidade:

 

         – Coronel Luizão, o Maribondo tá de fogo, largou os jumentos na rua e vem aí, de ferrão na mão, arremetendo que nem anta bravia!

 

         – Chame a polícia! – gritou o coronel para um de seus caseiros.

Maribondo chegou e viu. Estacionado junto à calçada, cheirando a óleo queimado, rebrilhando aos tênues raios do sol que se escondia, quedava-se o jerico, em posição de desafio.

 

         Rente com Maribondo, chegou o coronel, já garantido por uma patrulha da Força Pública. Bancando o diplomata, muito jeitoso, coronel Luizão falou para Maribondo:

 

         – Rapaz, eu estava mesmo a esperá-lo. Suba logo no jerico, que o técnico da SAGRIMA vai deixar você bem traquejado!

 

         – Subo não, seu coronel Luizão! Não vejo aqui homem capaz de fazer eu trepar nesse excomungado!

 

         Folgazão, o coronel quis levar o negócio na base da brincadeira e gritou para os fardados:

 

         – Peguem ele, botem-no lá em riba, no assento. Quem sabe, assim ele se anima e muda de ideia!

 

         No que os praças avançaram, Maribondo, qual um gladiador romano, enristou o ferrão e passou a se defender como podia, dando estocadas e pauladas a torto e a direito. Vendo que o caldo podia entornar, o coronel ordenou à guarnição:

 

         – Vão de facão no homem, e piniquem esse ferrão!

 

         Maribondo, tendo à frente os meganhas com seus metais desembainhados, prontos para o bote, bramiu:

 

         – Seu coronel Luizão, podem me arrebentar, mas em jerico eu não monto!

 

         Os homens foram nele. Maribondo fez finca-pé. Tomaram-lhe o ferrão. Maribondo reagiu, embolando-se com os cabras, numa luta desigual. Quando deu fé, um facão trespassou-lhe o bucho, rasgando-lhe as tripas.

 

         E ali, sem jamais trair a devoção a seus amados jegues, Maribondo se findou.

 

         Ao longe, um jumento preto zurrava em funeral!

 

              Maribondo e seus queridos jumentos: último adeus

 


Do Jumento ao Parlamento quarta, 25 de janeiro de 2017

TROÇO PRA BURRO

TROÇO PRA BURRO

Raimundo Floriano 

 

         O fenômeno é mundial. A posse de um chefe de governo, em qualquer nação do planeta, seja nos Estados Unidos, na Rússia, na Alemanha, na Bósnia-Herzegóvina ou no Paraguai, caracteriza-se por conchavos de gabinetes e acertos nos bastidores, estrelados pelas maiores capacidades do país, pressurosas em dar sua cota de sacrifício na composição dos primeiro, segundo e terceiro escalões do organograma governamental.

 

         A Nova República do Brasil, iniciada em 1985, não foi exceção. Deixo de lado, aqui, a formação do estado-maior e preenchimento dos demais cargos na administração do saudoso Presidente Tancredo Neves, porque o centro das operações se situou, como foi amplamente divulgado na época, nas mãos de Dona Antônia, a quem cabia a confecção do nacionalmente famoso Mapa de Nomeações. Refiro-me à segunda fase, quando principiou a Era Sarney.

 

         Aí, sim, a coordenação ficou pulverizada, espargindo-se sobre muitos gabinetes parlamentares do Congresso Nacional, cujos membros eram assediados, como já disse, por desprendidos patriotas, incondicionalmente dispostos ao holocausto na aceitação de qualquer incumbência, a mais espinhosa que fosse, no intuito de colaborar para o fortalecimento das instituições, a consolidação da democracia e a rápida inclusão de nossa Pátria no fechado círculo dos novos integrantes do Primeiro Mundo.

 

         Talvez devido à pressa, alguns se descuidavam na apresentação de seus currículos, trazendo-os manuscritos em papel de rascunho. A quase totalidade, em compensação, compunha-se de reconhecidas sumidades, caprichosas e perspicazes, cujos nomes tornariam fulgurante a gestão do Presidente José Sarney, caso este os agraciasse com a deferência de sua escolha.

 

         Na época, eu chefiava o gabinete do Deputado Jorge Cury, PTB-RJ, primeiro líder do Partido Trabalhista Brasileiro na atual fase, solicitadíssimo por seus conterrâneos e correligionários, que nele viam o caminho seguro para o almejado atendimento às suas postulações.

 

         Trabalhar com o Deputado Jorge Cury foi um inestimável prazer e enriqueceu sobremaneira minha vida funcional. Um dos mais brilhantes advogados do fórum trabalhista, redação primorosa, oratória fluente e inflamada, invejável cultura geral, sólido conhecimento da gramática e do léxico, o Deputado Jorge Cury detinha como qualidades principais a sinceridade, a franqueza, a amizade, a generosidade, o desapego às coisas materiais e um coração do tamanho do mundo.

 

         De projetos seus derivaram-se a lei dispondo sobre a emissão regular, pela Caixa Econômica Federal, de extratos individuais correspondentes às contas vinculadas do FGTS, e a que permite às viúvas pensionistas do INSS contraírem novas núpcias sem perderem o direito ao benefício, porquanto pela legislação anterior eram forçadas à vida em concubinato ou ao restante da existência em completa castidade.

 

         Sem o Deputado Jorge Cury, a sigla PTB estaria, desde 1981, em poder de Leonel Brizola. Com o Deputado Jorge Cury e sua destemida dissidência em 1984, revogou-se o instituto da fidelidade partidária, possibilitando a esmagadora vitória de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral.

 

         Exigente no comando, sabia valorizar um chefe e não renunciava aos preceitos da autoridade e hierarquia. Como todo bom sírio-libanês, tinha seus momentos de exaltação e ciclotimia, e o desempenho das atividades junto a ele requeria muito manejo e diplomacia, o que não me faltou, resultando do nosso quotidiano um relacionamento respeitoso e fraterno, que soubemos consolidar com o passar do tempo.

 

         Mas retomemos o fio da meada.

 

         Naquela conjuntura, a mim competia o recebimento e a guarda dos currículos, entregando-os ao deputado conforme sua determinação. Cabia-me, também, atender a todos os candidatos, proporcionando-lhes infraestrutura, apoio e orientação na Casa. Paulatinamente, estabelecemos uma afável convivência, caracterizada pela cordialidade e singeleza, chegando um deles a me perguntar, certa vez, com visível curiosidade:

 

         – Raimundo, o que é que tu apitas?

 

         Foi aí que me dei conta da minha total indigência no campo das credenciais. De todos os engravatados presentes naquele gabinete, eu era o único a não possuir um registro organizado de seus títulos e aptidões, e essa constatação provocou-me a imediata resolução de elaborar um documento que, sendo simples e resumido, chamasse logo a atenção do leitor e externasse concisa e precisamente as seletas habilidades a mim inerentes. Produzi, assim, o seguinte cartão:

  

         Traduzo, embora tudo se encontre no Aurélio, no Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, ou algumas palavras sejam formadas obedecendo-se à etimologia:

 

         Dona Carmem: Pessoa tão importante na Bahia, que um ato oficial saíra publicado mais ou menos assim: “...no uso de suas atribuições, nomeia Fulana de Tal (sobrinha de Dona Carmem) para o cargo de...” Carmem, igualmente, é o nome de uma comadre minha, baiana, residente em Taguatinga.

 

         Maranhense: Nascido no Maranhão.

         Conterrâneo do Homem - O homem que nomeava, também era de lá.

         Amanuense - Servidor público.

         Cinesíforo - Motorista.

         Alectoromaquista - Apreciador de brigas de galo.

         Melômano - Apaixonado pela música.

         Banjoísta - Batedor de banjo.

         Íncubo - Anjo sedutor.

         Rapsodo - Seresteiro.

         Vascaíno - Torcedor do Clube de Regatas Vasco da Gama.

         Diascevasta - Revisor de textos.

         Partenomante - Perito na arte de adivinhar se é virgem ou não uma mulher, ministrando-lhe beberagens ou mediante outros expedientes.

         Cruciverbista - Viciado em palavras cruzadas.

         Parafrasta - Tradutor.

         Calemburista - Trocadilhista.

         Abencerragem - De extrema dedicação.

         Fescenino - Sacana.

         Decifrador - Solucionista de enigmas, problemas e charadas.

         Discófilo - Colecionador de discos.

 

         O sucesso do cartão foi estrondoso, transformando-o rapidamente em matéria do Jornal do Brasil, Diário de Pernambuco, Estadão e Coluna do Millôr Fernandes. O primeiro frequentador do gabinete a recebê-lo apressou-se em mostrá-lo ao deputado, que achou genial a ideia e me chamou à sua presença:

 

         –Doutor Raimundo, por que o senhor não acrescentou aqui: “Chefe do gabinete do deputado Jorge Cury?”

 

         –Porque, deputado, conhecendo-o tão bem como conheço, sei que a estas horas o senhor estaria me dizendo: “Que é isso, doutor? Misturando o serviço com brincadeira? Pode tirar meu nome disso aí!”

 

 

Deputado Jorge Cury,

o primeiro líder do PTB moderno

 


Do Jumento ao Parlamento sábado, 21 de janeiro de 2017

RELEMBRANDO ORLANDO TEJO

RELEMBRANDO ORLANDO TEJO

Raimundo Floriano 

 

         Em 1984, eu respirava cultura na Câmara dos Deputados. Cultura nordestina, da melhor qualidade. Fazia parte de um grupo que se reunia, todos os dias, à hora do almoço, no Restaurante do Anexo III, ou antes do expediente matinal, no Café do Salão Verde, para conversar, trocar ideias, comentar o que ia pelo ambiente literário e musical brasileiro. Era um elenco de intelectuais do Rio Grande do Norte, Pernambuco e Paraíba. Eu, que nasci no Maranhão e estudei no Piauí, mas sem produção bibliográfica alguma, me via aceito naquele seleto bando por uma especial qualidade: ouvia atenta e embevecidamente, fazia perguntas pertinentes e era revisor ortográfico da maioria deles.

 

         Tinha o potiguar Manoel Damasceno, autor de O Jerimum de Chico Melão; o pernambucano Luiz Berto Filho, de A Prisão de São Benedito, A Serenata, A Guerrilha de Palmares e o premiadíssimo O Romance da Besta Fubana; o cordelista potiguar Celestino Alves de O Nordeste e As Secas, Dinarte Mariz, o Menestrel do Seridó e A Morte de Mário Eugênio; o pernambucano Maurício Melo Júnior, de Os Hóspedes de Antanho, O Palhaço que Perdeu o Riso, A Revolta do Cascudo e A Lenda do Vaqueiro Misterioso; o paraibano Esmeraldo Braga, de Danação em Terra Quente e A Hora e a Vez do Jumento, peça teatral em parceria com Orlando Tejo; e tinha o igualmente paraibano Orlando Tejo, criador da obra-prima da literatura regionalista Zé Limeira, o Poeta do Absurdo. Todos, fora o Celestino, servidores do Congresso Nacional.

 

         O Tejo é uma figura ímpar, a quem rendíamos respeito, consideração e todas as honras possíveis. Dono de um papo agradável e fluente, podia ficar horas e horas contando os desafios e cantorias que presenciara, sem perder um mínimo detalhe, pois detinha uma inigualável aptidão para repetir fielmente qualquer peleja de cantadores, tendo em nós plateia garantida.

 

         Correu, naqueles dias, pelas dependências da Casa, o boato – jamais confirmado – de que o funcionário João Canindé Tolentino Ribeiro estava emprestando um dinheirinho com juros subsidiados, muita vez a fundo perdido, coisa de pai para filho. Estando o Tejo desapercebido – desguarnecido de numerário –, procurou Luiz Berto que, também sem grana, e sabedor da notícia alvissareira, encaminhou um pedido de ambos ao Canindé, visando a conseguir trinta mangos para cada um.

 

         O amazonense Canindé, em vez de dar logo a decisão, dizer que não operava no mercado financeiro, que procurassem o Banco do Brasil, preferiu usar da diplomacia, cozinhar em banho-maria, procrastinar. A demora no atendimento estourou a paciência do Tejo. Um dia, já cansado de telefonar, pegou ele do papel e fez os seguintes versos, que Luiz Berto datilografou e remeteu ao protelador:

 

“LOUVAÇÃO A CANINDÉ

 

Estando sem um tostão,
E me encontrando bem perto,
Fui procurar Luiz Berto
Para alguma solução.
Berto disse: ‘Meu irmão,
Eu também queria até
Fazer um querrequequé
Daquele que o diabo pinta
Para ver se arranco trinta
Do bolso de Canindé’.

E toca a telefonar
E Canindé a correr,
Mas não pôde se esconder
E teve que tapear:
‘Pela manhã, não vai dar,
Porque de tarde é que é
Bom para a coisa dar pé.
Aguarde, portanto, amigo’.
Berto ficou de castigo,
Esperando Canindé.

E eu, que necessitava
Também da mesma quantia,
Me fiei nessa franquia
Que Canindé propalava.
Quando menos eu esperava,
O safado, de má-fé,
Filho da puta que é,
Disse que hoje não tem nada.
Ah! Uma foice amolada
No chifre de Canindé!

Eu já podia notar,
E mudar de interesse,
Que um cabra com um nome desse
Não poderia prestar.
Entretanto, vou esperar
Até amanhã com fé
Se ele me deixar a pé,
Juro por Nossa Senhora:
Corto de pau uma tora
E vou matar Canindé.

O cabra fuma e não traga,
Faz  do crime o seu idílio!
Onde está Flávio Marcílio,
Que não demite essa praga?
Ao menos dava-se a vaga
Pra um sujeito de fé,
Já que esse indivíduo é
Um tratante e delinquente,
Haja chumbo grosso e quente
No rabo de Canindé.

Por capricho do destino,
De satanás ou deus Brahma,
O bicho também se chama
Coisa e tal e Tolentino,
Doido, avarento e mofino,
Não conhece a Santa Sé,
Faz da cola o seu rapé,
Vive da desgraça alheia.
Devia estar na cadeia
Esse tal de Canindé.

Não sei como Luiz Berto,
Esse escritor inspirado,
Toma dinheiro emprestado
De um ladrão tão esperto,
Que representa um deserto
De trabalho, amor e fé,
Que anda de marcha à ré
Pela estrada da virtude,
E além de covarde e rude,
Se assina por Canindé.

Antes quero outro ‘pacote’,
Desemprego, moratória,
Ver Delfim contar história,
Comer carne de caçote,
Levar chumbo no cangote,
Me abraçar com jacaré,
Beber caldo de chulé,
Dar o rabo a marinheiro,
Do que tomar um cruzeiro
Emprestado a Canindé.”

 

                  Ao recebê-los, o Canindé tremeu nas bases. Nunca, em sua vida fora alvo de ameaça desse porte. Para que não a visse cumprida, preencheu, imediatamente, um cheque com os trinta solicitados e mandou entregar ao poeta. Era o que o Tejo queria. No mesmo instante, pediu que Luiz Berto se sentasse à máquina e ditou este desagravo:

 

“NOSSO AMIGO CANINDÉ

 

Um sujeito despeitado
Desses de baixa maré,
Inventou que Canindé
É um canalha safado.
Eu fiquei preocupado
Com a informação ralé,
Porém não perdi a fé
Em quem merece louvores.
E haja palmas e haja flores
Na fronte de Canindé.

Tenho dito e sustentado,
Todo mundo sabe disso,
Que na Câmara, esse cortiço,
Há um cidadão honrado,
Pai de família extremado,
Homem de bem e de fé!
O Papa já disse até
Que há no torrão brasileiro
Padre Cícero em Juazeiro
E, em Brasília, Canindé.

Sei que o Papa tem razão,
Mas ninguém quer saber disto.
Se já falaram de Cristo,
Que se dirá de um cristão.
Porém a fofoca não
Atinge um homem de fé
E se eu descobrir quem é,
Meto a mão do pé do ouvido
Do sem-vergonha enxerido
Que falar de Canindé.

Canindé - nome decente!
Tolentino - ô nome macho!
Ribeiro - lindo riacho,
Que mata a sede da gente!
Honrado, amigo e valente,
Subiu da glória o sopé.
A Virgem de Nazaré
Já lhe envolveu com seu manto,
Por isso um caminho santo
Vai trilhando Canindé.

Canindé pra ser beato,
Só falta mesmo a batina.
Pois tem vocação divina
Pureza, fé e recato!
Por isso, ele é o retrato
Mais fiel de São José
E já se comenta até
Que Frei Damião Bozano
Sugeriu ao Vaticano
Canonizar Canindé.

Mas sabe por que razão
Já querem canonizá-lo?
É por causa de um estalo
Que recebeu nosso irmão,
Lá, nas margens do Jordão,
Ao lado de São Tomé,
Quando dava um cafuné
Numa velhinha doente,
E morreu a penitente
Nos braços de Canindé.

Nesse chão, onde ele pisa,
Por ser grande patriota,
Se faz até de agiota,
Pra ajudar a quem precisa.
Mas não comercializa
A sua alma de fé!
Jamais ganhou um café
Pelo dinheiro que empresta.
A caridade é uma festa
Para a alma de Canindé.

Santo Agostinho, dos santos,
Foi o mais puro entre os ermos,
Que consolava os enfermos
E lhes enxugava os prantos,
Obrava milagres tantos,
Pela pureza e fé.
Pois acreditava até
Em fala de passarinho.
Mas, sabem? Santo Agostinho
É pinto pra Canindé.” 

         Canindé leu as rimas laudatórias e, aliviado, reagiu bem-humoradamente, levando tudo na esportiva. 

         E a paz voltou a reinar no Parlamento Brasileiro.

 

 

Orlando Tejo: patrimônio cultural nordestino e

João Canindé: perdão e socorro ao grande poeta

 


Do Jumento ao Parlamento sexta, 20 de janeiro de 2017

FILOSOFANDO

FILOSOFANDO

Raimundo Floriano 

 

         Vira e mexe, e eu fico a evocar a Seção de Habitação da Câmara dos Deputados.

 

         Com justificado orgulho e real motivo. Participei do seu nascedouro, sob a direção do eruditíssimo doutor Goiano Braga Horta, o cobrão, em outubro de 1972. Quando assumi sua chefia, éramos 5 funcionários. Ao deixá-la, em junho de 1980, por irresistível compulsão e sagaz manobra que a transformou em Coordenação, perfazíamos o total de 52.

 

         Pois bem, estávamos em outubro de 1979, e a ocasião se afigurava propícia aos trabalhos de impermeabilização dos tetos de todos os edifícios funcionais, duramente castigados no decorrer da última estação chuvosa, origem de constantes e pertinentes reclamações dos deputados quanto a ocorrência de infiltrações e vazamentos. Realizada a competente licitação, recebi a incumbência de elaborar um documento a ser assinado pelo 4º Secretário, comunicando aos ocupantes dos imóveis o início dos serviços. Ao redigi-lo, solicitei-lhes a benevolência da compreensão diante dos incômodos indesejáveis que a execução da obra fatalmente lhes acarretaria.

 

         Encaminhada a minuta à apreciação superior, esbarrei com o severo crivo do doutor Goiano, então Chefe do Gabinete da Diretoria Administrativa, que me devolveu o esboço, anotando em sua margem: “Incômodos indesejáveis? Não é uma redundância?”

 

         O Goiano é meu amigo. Prova disso é que, nos tempos das vacas magras, quando me vi em sérios apuros financeiros, ele foi meu avalista. Sempre tive a humildade de submeter à sua peneira as coisas que escrevo, e disso me vem uma grande recompensa, pois ele é sincero na apreciação e magnânimo no elogio. Se me manda cortar, eu corto. Se me ordena acrescentar, eu acrescento. Se desaprova tudo, papelada no lixo. É pessoa por quem nutro o máximo de respeito e admiração.

 

         Saí da Seção de Habitação em 1976, como consta da correspondência ao final deste relato, e retornei em 1980, mercê de indicação sua, para chefiá-la.

 

         Guardo dele um ensinamento:

 

         – Raimundo, faço questão de publicar tudo o que produzo. Ver seus textos impressos em jornais ou revistas é, para quem escreve, o melhor prêmio.

 

         E dele, também, relembro uma passagem engraçada.

 

         Um dia, ele me disse:

 

         – Sabe, Raimundo, eu agora estou tomando um medicamento que é tiro-e-queda para reavivar a memória!

 

         – Então, Goiano, quem está precisando dele sou eu. Ando muito esquecido. Parece até que, como acredita a sabedoria popular, mijei dentro d’água. Tudo o que aprendo num dia, esqueço no outro. Como é o nome desse remédio?

 

         – Espere um pouco!

Aí, ele pegou o telefone e ligou para alguém:

 

         – Amor, como é o nome daquele remédio que estou tomando para a memória?

 

         Depois de um breve diálogo, desligou e virou-se para mim:

 

         –Raimundo, o nome é Phytina, com ipsilone!

 

         – Goiano, no Maranhão, dizem que bom mesmo para a memória é pequi.

 

         – Como assim?

 

         – Falam por lá que quem come pequi, passa o dia todo se lembrando!

 

         Mas voltemos às impermeabilizações.

 

         Aquela observação buliu com as minhas incertezas. Fiquei a meditar sobre a sutileza do sofisma e, colocando em ordem minhas lucubrações, retornei o processo com a seguinte justificação, em folha de papel à parte:

 

         “Doutor Goiano,

A Língua Portuguesa é cheia de armadilhas e atropelos. Na análise sintática, por exemplo, é imprescindível o estudo acurado da conjunção, cuja extensa classificação deve ser memorizada, bem como de cor deve-se aprender todo o emaranhado e enfadonho elenco das normas que regem o assunto. Nas rodas eruditas, quando a mulher se encontra no período, é certo ouvir-se dizer:

 

– Está de regras!

 

Receber socialmente, é uma arte. Frequentar, uma ciência. O momento apropriado de se chegar a uma residência e a hora exata de se bater em retirada dão o toque de distinção num bom relacionamento. Caso contrário, o cacete, a maçada e a amolação geram tédio e desprazer naqueles que abrigam ou acolhem. Nos ambientes sofisticados, se uma colunável vivencia o embaraço, dela afirma-se com segurança:

 

– Está de visita!

 

As providências de que trata este processo têm por finalidade sanar os transtornos causados pela umidade e pelas goteiras, cujos malefícios nossos arquitetos e engenheiros abominam, sendo tal o desconforto que, nas empreiteiras, se declara apropriadamente a respeito da mulher à qual acontece a ocorrência:

 

– Está de pingadeira!

 

A maresia e o balanço do mar são fontes frequentes de enjoos e indisposições, que acometem os novatos na faina de navegar. No litoral, a marujada é vezeira em asseverar quanto à mulher a quem sucede o veículo:

 

– Está de paquete!

 

A fluidez do catamênio, além de salutar, denota que a mulher se encontra em gozo de perfeita higidez e pronta para o maravilhoso milagre da multiplicação. A ausência de menarquia, nos dias esperados, irrita, aborrece e contraria, chegando a lhe exigir até mesmo o uso de remédios para provocar o ciclo. E sobre ela asseguram os médicos, ao lhe advir a menorreia:

 

– Está de incômodo!

 

Porque, segundo o Aurélio, conjunção, período, regras, embaraço, visita, escorrência, pingadeira, veículo, paquete, catamênio, menarquia, ciclo, menorreia e incômodo são sinônimos de menstruação. E não é, pois, a menstruação um incômodo desejável?”

 

                        Diante desses argumentos, foi a minuta, sem restrições, aprovada pela Alta Administração da Casa e assinada em sua forma original.

 

                        Tendo sido os serviços prestados a contento.

 

 

Paquete Norueguês Leeward: Raimundo Floriano

em cruzeiro pelo Caribe

 

 

 

Goiano Braga Horta, inestimável amigo e mentor:

severo na apreciação e pródigo no elogio

 


Do Jumento ao Parlamento quinta, 19 de janeiro de 2017

OS LUSÓFONOS

OS LUSÓFNOS

Raimundo Floriano 

 

         Inegavelmente, o início da 46ª Legislatura foi, na Seção de Habitação, uma parada pra desmantelo.

 

         A reforma das moradias funcionais seguia a toque de caixa, e muitas das empresas contratadas se viam a braços com o sério problema da ausência de mão-de-obra qualificada no mercado brasiliense, daí advindo, às vezes, a tentativa de entregar, como produto acabado, serviços que nem de longe correspondiam às especificações constantes da nota de empenho.

 

         Rigorosos e inflexíveis, nossos arquitetos vistoriavam com olhos de lince cada dependência do imóvel reformado, anotando as imperfeições encontradas, e o laudo final era encaminhado ao fornecedor, para que cumprisse as exigências no mais curto prazo, sem o que incorreria em pena de multa.

 

         Quem mais sofria nesse impasse era o parlamentar ocupante da unidade residencial, principalmente aquele que nela já se encontrava instalado com sua família, suportando os naturais transtornos causados por uma pintura que, por adicional azar, deveria ser refeita. Muitos se exasperavam, e tais desconfortos em seus lares abalavam até as relações com as demais pessoas integrantes de seu círculo particular ou profissional.

 

         Numa tarde de março, estava eu enfincado nos processos, apertadíssimo-de-costura, quando o telefone tocou. Atendi prontamente:

 

         – Seção de Habitação!

 

         – Quero falar com o chefe!

 

         – Pois não, é ele, o Raimundo!

 

         – Raimundo, aqui quem fala é o Nelson Marchezan!

 

         – Às suas ordens, deputado!

 

         – Raimundo, tu sabes bem Português?

 

Exultei! Dizem que quando alguém está a exalar o último suspiro, todas as cenas vividas passam à sua frente, como se numa tela de cinema, à velocidade da luz. Em mim tudo aconteceu de modo inverso. Aquele telefonema representava um renascer. Menos de um segundo gastei para relembrar que o Deputado Nelson Marchezan acabara de assumir a Liderança do Governo na Câmara e, decerto, para compor seu gabinete, estava selecionando funcionários dentre os inúmeros gabaritados existentes na Casa. Sempre me considerei um lusófono – pessoa que fala a Língua de Camões – de boa qualidade, estudioso, atento, e via os meus esforços serem recompensados. Chegara a minha vez de brilhar! Volto à pergunta:

 

– Raimundo, tu sabes bem Português?

 

Não fui modesto:

 

– Dá pro gasto, deputado!

 

– Então, para com a porra daquela pintura no meu apartamento!

 

– Sim senhor, deputado! Mais alguma coisa?

 

– Vai pra puta que te pariu!

 

E desligou.

 

                        Permaneci um tempão absorto, avaliando o quanto o deputado se aturdira diante da imperícia ou negligência de alguma equipe de maus pintores a cometer toda espécie de desacerto no recinto de seu lar. Decidi-me a esquecer o assunto, guardando-o comigo em segredo.

 

                        Malgrado meu propósito, havia, suponho, plateia na outra ponta da linha, eis que nos dias seguintes passei a ser saudado por alguns colegas em tom de galhofa, com a interrogação:

 

                        – Raimundo, tu sabes bem Português?

 

                        Após o que, danavam-se a rir.

 

                        Fui aguentando, relevando e tirando de letra.

 

                        Passou-se uma semana, e novo chamado:

 

                        –Seção de Habitação!

 

                        – Raimundo, sabes o que tu és?

 

                        Reconheci a voz:

 

                        –Penso que sim, deputado!

 

                        –Tu és um irresponsável!

 

                        Ponderei:

 

                        – Por favor, deputado, o senhor vai começar novamente?

 

                        – Olha, chê, me respeita, que eu posso te destituir dessa função!

 

                        – Sim senhor, deputado! Só lhe peço que não me mande mais para a puta que pariu, porque não serei obrigado a ouvir!

 

                        – Meu chefe de gabinete vai aí cuidar deste caso. E tem mais, chê, esse palavrão que tu mencionaste, eu não me lembro de ter falado!

 

                        Interpretei a negativa do deputado como pedido de desculpas. Afinal, cada um tem o seu dia e a sua hora de perder a elegância, e o deputado, sendo jovem e humano, não constituiria exceção.

 

                        No que estava eu redondamente correto.

 

                        Ao Deputado Nelson Marchezan, quando Presidente da Câmara, devemos todos nós funcionários o pagamento da hoje GAL – Gratificação de Atividade Legislativa – de forma integral. Até então, ela era auferida apenas pelo efetivo em exercício, apurado dia a dia, e por isso ninguém gozava recesso, férias, licença-prêmio, nem ousava adoecer. As gestantes se afastavam quando já iniciados os trabalhos de parto, retornando daí a uma semana. Quem se aposentasse, estaria condenado à penúria.

 

                        E não ficou só nisso. Em 1982, redimiu-se com o vernáculo. No Natal daquele ano, brindou os parlamentares e toda a Casa com as mais belas edições do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, organizado pela Academia Brasileira de Letras, e do Novo Dicionário da Língua Portuguesa, o “Aurélio”, de Aurélio Buarque de Hollanda Ferreira, obras essenciais na mesa de qualquer amanuense que se preze, e das quais ora me valho para escrever estas maltraçadas.

 

                        Ao autografar o Vocabulário, assim se expressou o deputado:

 

“Entre as responsabilidades que assumimos como representantes do povo, uma delas, embora não explicitada em lei ou regra, diz respeito ao amor que devemos manter pelo traço de união que nos liga a todos os brasileiros: a língua nacional. Este vocabulário mostra a riqueza de nosso idioma e será, além de um livro de utilidade específica, uma recordação do Natal de 1982, que encerra mais uma legislatura que nos uniu como parlamentares e como homens que lutaram pelo bem do Brasil e de seu povo.

Nelson Marchezan”

                        Urge, portanto, que volte!

 

 

 Deputado Nelson Marchezan, o benemérito


Do Jumento ao Parlamento quarta, 18 de janeiro de 2017

PRISÃO DOMICILIAR

PRISÃO DOMICILIAR

Raimundo Floriano 

 

         Os primeiros meses da 46ª Legislatura, iniciada a 1º de fevereiro de 1979, foram uma pesadíssima barra.

 

         Que o digam Antônio Ribeiro Pinto, Damiana de Jesus Santos Gusmão, Djaci de Miranda, João Ferreira, Maria Aparecida Lima, Maria Rosa Alves, Mário Cerqueira Caldas Filho, Marta Coeli de Souza Ferreira, Neide Fernandes de Aguiar, Sandra Giometti Sandoval Santos e Uíres Lindembergue Santana Marques, funcionários da então Seção de Habitação – da qual me era dada a suprema honra de ser o chefe –, a braços com a reforma do mobiliário e dos imóveis funcionais destinados à acomodação dos deputados recém-empossados.

 

         Além do crônico déficit de moradias com que a Câmara se deparava, Brasília apresentava sua capacidade hoteleira completamente abarrotada, com as unidades ocupadas ou reservadas por lobistas, convidados e curiosos, não necessariamente por causa da retomada das atividades legislativas, mas, principalmente, pela posse do Presidente Figueiredo, marcada para o dia 15 de março.

 

         A Quarta Secretaria, responsável pelo setor habitacional da Casa, ante a imperiosa necessidade da presença dos deputados na Capital – pois eles é que dariam posse ao general –, e diante da inexistência de vagas nos hotéis, resolvera conceder um auxílio pecuniário a cada qual dos não-reeleitos que devolvessem o apartamento funcional até o final de janeiro.

 

         Tão logo os imóveis eram desocupados, a chave era encaminhada à Seção de Habitação que, com suas equipes externas e se valendo das empresas adredemente contratadas, desencadeava os procedimentos necessários à sua colocação em condições de uso no mais curto prazo.

 

         No 8º Andar do Anexo I, em sala com área inferior a trinta metros quadrados, aglomeravam-se os onze abnegados supramencionados, a chefia, oito mesas, duas unidades de controle Visi-record, máquinas de escrever, calcular e contabilidade, prateleiras, arquivos, fichários,  com os funcionários literalmente vazando pelo ladrão. A Sandra, por exemplo, trabalhava num cantinho gentilmente cedido pela Seção contígua. O Antônio, que cuidava do arquivamento de processos e demais papéis, trabalhava sempre de pé, descansando, quando podia, numa cadeira na copa. Somem-se a isso os fornecedores recebendo empenhos ou entregando faturas, os vistoriadores com seus pareceres, os fiscais com seus relatórios, os novos deputados e suas famílias escolhendo modelos e cores, e as emergências de praxe, para se ter uma ideia do sufoco que era a rotina diária daquela repartição, prolongando-se pela noite e não respeitando sábados, domingos e feriados.

 

         E foi nesse aperreio que, um dia, ainda no comecinho de fevereiro, recebi na Seção o seguinte bilhete:

 

“Se entrar, uso o revólver!
Se entrar, a bala come!
(a) Deputado Antunes de Oliveira”

 

Não dei a devida atenção à mensagem. O deputado Antunes de Oliveira, do Amazonas, com mandato findo, tinha feito os devidos acertos na Quarta Secretaria, ficando estabelecido que o Apartamento 501, do Bloco J, da SQN 302, onde residira, seria destinado ao deputado Nagib Haickel, que seguira para o Maranhão com a finalidade de arrumar e trazer sua mudança. Como a chave já se encontrava em nosso poder, eu julgara estar vazio o imóvel e autorizara às empresas a execução dos serviços.

 

         Ignorava, portanto, que o ex-deputado Antunes de Oliveira se arrependera quanto ao combinado e, de posse de uma cópia da chave, mantida consigo, voltara ao apartamento com a intenção de nele permanecer.

 

         A primeira empresa que lá chegou foi proibida de entrar e serviu de portadora da ameaçante mensagem.

 

         A segunda empresa, desconhecendo o que ocorria, tentou penetrar no imóvel, provocando a ira do ex-parlamentar, que resolveu vir à Câmara e proferir  pessoalmente a intimidação.

 

         Pelo meio-dia, ele chegou à Seção. Era um homem alto, forte e sua voz denotava firmeza e determinação. Recuando, vez em quando, a aba do paletó, para que eu e todos os circunstantes víssemos o que parecia ser o cabo de um tresoitão à cintura, reiterou a promessa:

 

         – Se entrar, uso o revólver! Se entrar, a bala come!

 

         E se foi, radiante com o efeito provocado por sua atitude.

 

         Nesse ínterim, a firma com a pintura a seu cargo, portando uma duplicata da chave, e alheia à gravidade do momento, encontrava-se no apartamento e, em obediência às exigências constantes das especificações elaboradas por nossos arquitetos, principiara a retirada de todos os espelhos e tomadas, luminárias, maçanetas e metais externos das portas, gavetas e armários.

 

         Estava quase cumprido esse item, quando foram os pintores surpreendidos pelo ex-deputado que, arma em punho, os expulsou do local.

 

         Aí, a coisa aconteceu. O ex-deputado entrou, bateu a porta com violência e, depois de algum tempo, dirigiu-se ao banheiro, batendo – presume-se – também a porta com a mesma energia, fez lá o que pretendia ou necessitava, porém, quando tentou sair, se viu impedido: estava irremediavelmente trancado, e da maçaneta nem sinal, ou melhor, só o vão.

 

         Sem ter como se liberar, e talvez desprovido da arma para estourar a fechadura, restou-lhe o único recurso conhecido nesses impasses – gritar.

 

         Gritar e chutar a porta do banheiro, foi o que ele fez, chamando a atenção dos outros moradores e da Equipe de Manutenção da Quadra, cujo encarregado me ligou, apavorado, solicitando instruções. Pedi-lhe um tempo, prometendo pensar rapidamente numa solução que a todos satisfizesse.

 

         E pensei. Pensei na Segurança da Câmara, pensei em chamar a Polícia, pensei em acionar o Corpo de Bombeiros. Acima de tudo, pensei na repercussão negativa para a imagem do Congresso Nacional, caso houvesse um tiroteio durante a operação de resgate. Tomei a decisão:

 

         – Mantenham-se atentos! Esperem que Sua Excelência fique calmo, até dar a certeza de completa ausência de perigo de reação ou fogo cruzado. Constatado isso, subam lá e soltem-no!

 

         O que levou mais de hora!

 

                     No dia seguinte, dei de cara com ele na agência do Banco do Brasil. Ao me ver, abriu um sorriso bonachão, me estendeu  a mão e falou:

 

         – Você viu, Raimundo, em que trapalhada eu me meti? Se não fossem vocês, eu teria ficado preso o dia todo!

 

         Aquele sorriso me tranquilizou. O perigo não mais existia. Mesmo assim, timidamente balbuciei:

         – Pois é, deputado. O medo que eu tive foi de que a bala me comesse!

 

         – Isso é porque você não me conhece. Sou muito brincalhão, gozador, e só queria dar um susto em vocês. Aquilo tudo não passava de brincadeira!

 

         Limitei-me a concordar:

 

         – Então, tá!

 

     Deputado Antunes de Oliveira,

  o amazonense gozador

 

"


Do Jumento ao Parlamento sábado, 14 de janeiro de 2017

SERTANEJIDADES

SERTANEJIDADES

Raimundo Floriano

 

 

         A 15 de agosto de 1974, o consagrado jornalista Ari Cunha, do Correio Braziliense, publicou em sua coluna Visto, Lido e Ouvido, a matéria, que, com a necessária atualização gramatical, ora reproduzo: 

A PACA MAL CAÇADA - Certa vez, eu passei pelo restaurante dele e recebi um pedido: “Homem, dê uma nota em sua coluna. Eu fiquei dentro desse mato, pago um caçador para matar pacas para vocês virem comer aqui, e ninguém procura divulgar meu trabalho pioneiro. Imagine que aqui temos um caçador profissional, com carteira assinada, ganhando um salário mínimo por mês só para matar pacas para o restaurante. Isso pode ser uma boa notícia!”

 

No dia seguinte, eu fiz uma nota. No domingo, o restaurante ficou cheio. Foi paca a não mais valer.

 

Na outra semana, chega um cidadão à minha porta e entrega uma carne temperada: “Tome, foi seu Geraldo que mandou. É paca, e já vem temperada, pronta para assar.”

 

Em casa, não deu outra coisa no almoço. Paca assada. E que delícia! Era um pernil, gordo, bonito, e o tempero espalhava cheiro de alho por toda a cozinha. Na hora de servir, uma faca longa me ajudava a cortar fatias finas e perfumadas. Em meio caminho, uma esfera de chumbo. Outra mais. O pernil estava todo crivado pela carga da espingarda.

 

Foi uma alegria, afinal, comer a parte da caça atingida pelos tiros, é privilégio e dá boa sorte. Reunimos todos os carocinhos de chumbo. Aquilo seria sinal de boa sorte. Estava uma beleza o pernil de paca.

 

Passam-se os meses, vou sabendo da verdade. O caçador não caçava nada, coisa alguma. A sua carteira marcava uma profissão que ele não conhecia. Era uma espécie de “farol da casa”.

 

E a verdade era mais crua ainda. Aquele pernil não era de paca. Era de cabrito, e um tiro proposital dado na carne servia apenas para registrar uma marca que nem o dono conhecia.

****** 

                         – Essa, não! – Pensei ao ler a coluna. Um deputado pode ser tomado por senador; uma loura, por ruiva; uma carroça, por charrete; um jumento, por burro; mas isso, não! 

                        E o resultado de minhas divagações se fez consignado na edição do dia 27, quando o nobre Ari Cunha usou todo o seu espaço para estampar o texto que adiante reproduzo: 

Sem querer esnobar o Raimundo Floriano, transcrevo sua carta para mostrar que não entendo nada de paca. É que, na verdade, para mim, saindo de javali, só mesmo carne de boi... Eis a carta: 

Meu Caro Ari Cunha, 

Dizer que sou leitor viciado do Correio Braziliense, seria chover no molhado, já que, morador nesta Brasília desde os seus primeiros anos, me acostumei à marca, além da qualidade e do conteúdo. É com avidez que procuro a coluna Visto, Lido e Ouvido, por ser a que mais se identifica com nossas coisas, a que mais se dedica a nossos pitorescos assuntos mesmo quando sérios o são.

 

Você, estimado Ari, já chegou às raias da perfeição na difícil arte de escrever e, principalmente, de descrever. Foi com lágrimas, de certa feita, que cheguei ao final de sua coluna, aquela em que descrevia os meninos assando castanhas de caju na lata ou testo furado, mexendo-as com uma vara de comprimento suficientemente calculado, para livrá-los do leite quente que, invariavelmente, provocava nas partes atingidas do corpo umas pintinhas pretas, indeléveis. Tenho-as ao longo dos meus braços, ainda vivas, para comprovar, mesmo decorridas décadas após a marcação. E a cambada jogando terra sobre as castanhas em chamas? Naquela leitura, eu me transportei a um quintal bem distante lá no meu Maranhão, onde tinha instalada minha trempe (existe algum garoto em Brasília que sabe o que é uma trempe?) de pedras, e o pilão para, depois de quebradas as castanhas, fazer aquela inesquecível paçoca, adicionando farinha seca, rapadura e sal, o eterno e indispensável tempero, mesmo para as coisas doces. Foi uma página de saudade, que reavivou a lembrança de momentos outros arquivados na memória deste nordestino por nascimento, sotaque e querer.

 

Mas amigo Ari, hoje, dia 15 em A Paca Mal Caçada, você se machucou. Das duas, uma: ou você não é cearense, como acreditei o fosse, e aí tem razão no que escreveu; ou, sendo um pau-de-arara, teve a rara e inacreditável infelicidade de nunca ter comido paca em sua vida.

 

Conhece você aquele modo popular de se dizer que o Fulano comeu gato por lebre, quando lhe passaram os pés? É que, mesmo com a diferença de gosto só ligeiramente perceptível, é possível que uma vítima não desconfie, caso o cozinheiro seja um bom temperador. No mais, gato e lebre, tirados o couro, a cabeça e as unhas, são idênticos, com pequenas diferenças apenas na espessura dos ossos. O que vulgarmente acontece, neste Brasil em que os bichos comestíveis estão a se extinguir, pela guerra indiscriminada e intempestiva, aliada à tecnologia cada vez mais sofisticada na arte do extermínio, é ver-se o neófito comer cuandu por caititu (conhece-os?) rato por preá, bode por veado, peba por tatu, teiú por camaleão e leitoa por paca.

 

Em 1961, consegui enganar algumas pessoas, dentre elas um aparentado meu, doutor Adelmar Neiva de Souza, hoje Delegado Regional do Trabalho em Fortaleza, fazendo-as comer uma leitoa bem temperada com leite de coco e outros ingredientes, cabendo aqui o mérito da preparação a minha irmã Maria Isaura que, supondo também tratar-se de paca, se esmerou em seus tantas vezes reconhecidos e elogiados dotes culinários. Nem mesmo o doutor Adelmar, conhecedor juramentado do dito roedor no sertão maranhense, principalmente no tempo das anajás, desconfiou, pois fácil lhe seria descobrir o engodo, estivesse ele de sobreaviso: os ossos da paca são mais finos que os da leitoa. Isso é apenas um exemplo, que relembro com saudade.

 

Mas prezado Ari, comer cabrito por paca, é patada das grandes. É o mesmo que comer, por falar em patada, pato por ema, piau por bacalhau, tilápia por bagre, mandacaru por palmito. Paca e cabrito são fundamentalmente diferentes nos seguintes aspectos: ossada, tamanho, conformidade, cheiro, cor e, principalmente, gosto. E tem mais, muito mais.

 

Para ser sucinto, termino dizendo que cabrito é bicho de couro tirável, muito usado no Carnaval, para a confecção de tamborins e outros instrumentos de percussão. Paca, dileto Ari, é bicho do qual se pela o couro, tal como se lhe fizesse a barba, usando, em vez de sabão, água quente. O couro da paca é parte inerente à carne, pregado nela.

E, meu caro Ari, couro de paca, bem temperado, é bom paca! 

Sinceramente seu, 

Raimundo Floriano de Albuquerque e Silva 

 O bode e a paca: diferenças milenares

 

"


Do Jumento ao Parlamento sexta, 13 de janeiro de 2017

O CINESÍFORO, O ABENCERRAGEM E O DIASCEVASTA

O CINESÍFORO, O ABENCERRAGEM E O DIASCEVASTA

Raimundo Floriano

 

            No episódio anterior, falei de meu amigo, colega e conterrâneo Manoel Augusto Campelo Neto – também conhecido como Capitão Asa, porque voava baixo em seu Fusquinha –, dos problemas que enfrentou no DETRAN, onde se submetia a uma bateria de testes psicotécnicos que, segundo consta, durou por todo o ano de 1973, e das multas rotineiramente recebidas no estacionamento do Senado Federal. Trago novamente seu nome à colação, para contar caso sucedido após a concessão de sua tão esperada Carteira Nacional de Habilitação.

 

         Trabalhávamos numa sala do 8º Andar do Anexo I, onde funcionavam o Serviço de Administração, chefiado por Jair Pereira Barbosa, e a Seção de Habitação, da qual eu era contador, chefiada por Goiano Braga Horta, subordinados ao Departamento de Administração. Não havia divisórias, de modo que os funcionários se misturavam no desempenho de suas funções.

 

         Campelo e eu tínhamos algo em comum: gostávamos de estudar. E, também, de testar os conhecimentos um do outro. À noite, em casa, armávamos a cilada para, no dia seguinte, na primeira oportunidade, embaraçarmos o oponente.

 

         No início de 1974, Campelo estava radiante, exibindo a todos os companheiros sua carta de chofer, quando o interrompi:

 

         – Campelo, agora, com a aprovação no psicotécnico, você pode se considerar um bom cinesíforo!

 

         Peguei-o no contrapé. Ele desconhecia o termo e perguntou:

 

         – O que isso significa?

         – Cinesíforo quer dizer motorista, Campelo. Vem do grego cines(i), ação de mover, movimento, mais foro, que conduz.

 

         Campelo não se dá por achado. Consulta um dicionário e retruca:

 

         – Essa palavra não existe, Raimundo!

         –Pois passou a existir, Campelo, está inventada!

 

         Noutro duelo literário, Campelo me encurralou:

 

         – Raimundo, corrige a pontuação desta frase: “Quem paga contribuição de melhoria, nesse imposto se vicia.”

 

         Percebi logo a maldade dele, misturando Direito Tributário com regras de pontuação. Mas fui incauto. Em vez de meditar um pouco, fui logo dando uma de letrado:

 

         –Campelo, aí existem dois erros. Primeiramente, contribuição de melhoria não é imposto, é tributo; em segundo lugar, a vírgula está sobrando!

      – Sobrando por quê? – Exultou ele.

     – Porque é um crime separar o sujeito do predicado por vírgula!

     – Correto, mas esse é um período composto!

 

         Percebi que cometera uma grande mancada. Mas sou um abencerragem. Esse termo designa o indivíduo persistente, de extrema dedicação a uma causa, o derradeiro defensor de uma ideia, mas, também, o sujeito teimoso, cabeça-dura. E foi nessa pior acepção que essa característica se apossou de mim. Não iria dar o braço a torcer. Turrão, finquei o pé:

 

         –Porque sim! Mas amanhã, eu vou dizer a fonte em que me baseio para sustentar isso!

 

         No dia seguinte, no entanto, Campelo já esperava minha explicação. Como eu nada tinha a apresentar de novidade, mantive minha teimosia. E o ambiente na sala, desde então, passou a se assemelhar a uma lagoa com os sapos a cantarem:

 

         – Tem vírgula!

         – Não tem!

         – Tem!

         – Não tem!

 

         Para dirimir a questão, o Goiano sugeriu a intermediação de um diascevasta – revisor, crítico que corrige obras alheias – e indicou o que melhor conhecia: Anderson Braga Horta, seu irmão.

 

         Outro mais capaz não poderia existir. Anderson, quando em atividade, foi Redator de Anais e Diretor Legislativo, dentre outros importantes cargos que ocupou. Em 2001, foi agraciado com o Prêmio Jabuti de Literatura, na área de poesia. Quando interveio em nosso bate-boca, desempenhava as funções de Assessor Legislativo. Iniciou a solução do litígio com muita diplomacia:

 

         – O Raimundo Floriano tem razão. Os termos essenciais da oração – sujeito e predicado – jamais poderão ser separados por vírgula.

         – Pronto, um a zero para mim! – Comemorei.

 

        Mas Anderson prossegue:

 

         – A proposição ora em exame requer um estudo especial. É um período composto por subordinação. Há nele duas orações substantivas. A principal é nesse imposto se vicia, oração predicativa. A subordinada, quem paga contribuição de melhoria, é oração subjetiva. Quando a oração subordinada vem anteposta à principal, a vírgula é obrigatória!

 

         Campelo inchou de orgulho. Eu, sem qualquer argumento, ao invés de aceitar a derrota, conservei-me o cabeçudo de sempre:

 

         – Mas que tem vírgula, isso tem!

 

         Anderson, calmo e comedido, depois da magistral lição, optou por se retirar, constatando que me era muito difícil aceitar os quícios, quer dizer as dobradiças.

 

     Há poucos dias, encontrei-o no bar-livraria Café com Letras, onde o Goiano, acompanhado de sua irmã Glória Horta, ambos cantores, se apresentam em animadíssimos saraus. Lembrei-me desse passado e tive vontade, ali, de comentá-lo com ele e, trinta anos depois, entregar os pontos. O ambiente de música, cerveja e muito barulho não o permitiu. Por isso, faço questão de registrá-lo aqui e proclamar aos envolvidos na peleja:

 

         – Anderson, Campelo, Goiano, dou a mão à palmatória!

 

                     Antes tarde do que nunca!

  

Anderson Braga Horta: momento de descontração

no Café com Letras

 


Do Jumento ao Parlamento quinta, 12 de janeiro de 2017

O CAPITÃO ASA

O CAPITÃO ASA

Raimundo Floriano

 

               Olhando hoje para esse grande parqueamento recém-inaugurado na Câmara dos Deputados, com capacidade para mais de mil e tantos carros, o meu Santanão ali a me esperar, revejo aquele menino que fui, no Sul do Maranhão, tendo como único meio de transporte terrestre um jumento, também possuidor de seu estacionamento, que vinha a ser o tronco de uma mangueira, na esquina de nossa casa, ao qual ficava amarrado o citado semovente.

 

         Parece que foi sonho! Parece que foi ontem! Transcorridos 38 anos de labor, aposentadoria já conquistada, um contrato para o Secretariado Parlamentar, considero mesmo venturosa obra de encantamento essa trajetória, começando na sadia labuta com as coisas do mato e do sertão maranhense e culminando com o trabalho no Congresso Nacional, onde Deus me premiou, proporcionando-me o convívio diário com o melhor corpo funcional do serviço público brasileiro.

 

         Com esse início, uma coisa puxa outra. Pensando no jumento de outrora, nos colegas de há pouco e no estacionamento de agora, me vem à mente a pessoa de Manoel Augusto Campelo Neto, Técnico Legislativo, advogado e maranhense, que, vez por outra, me dizia:

 

         – Mulher encrenqueira e jumento, Raimundo, só quem procura, é o dono!

 

         Campelo voava baixo em seu Fusquinha, e essa vocação para aviador do asfalto lhe valera a alcunha de “Capitão Asa” e problemas com o DETRAN, que o obrigou a se submeter a uma bateria de exames psicotécnicos, os quais, não se sabe o motivo, se prolongaram por quase todo o ano de 1973.

 

         Naquele tempo antigo, era rigidíssimo o controle do ponto na Câmara, assinado seis vezes por dia, com apenas cinco minutos de tolerância, no início ou no término de cada turno. Para comparecer diariamente ao DETRAN, sempre na parte da tarde, Campelo tinha que, primeiramente, vir ao Departamento de Administração para assinar a folha de frequência até às 13h30, quando se iniciava o expediente vespertino, ficando, então, livre para sair, liberdade essa que durava até às 18h30, quando novo jamegão era exigido.

 

         Aí é que morava o enguiço. A Câmara só possuía um estacionamento: aquele adjacente ao Anexo I. Para conseguir vaga ali, era necessário chegar bem cedo. Quem saísse durante o expediente, estava fatalmente condenado a circular, no regresso, pela Praça dos Três Poderes e Esplanada dos Ministérios, até encontrar um bendito espaço onde largar o carro.

 

         Mas para Campelo isso não era embaraço. Ao retornar do DETRAN, estacionava no pátio do Anexo I do Senado, numa vaga sempre desocupada e reservada para uma ambulância que, segundo voz corrente, por lá nunca aparecia.

 

         O guarda de serviço na área, funcionário daquela Casa, sempre o mesmo, zeloso no cumprimento de suas atribuições, rotineiramente emitia uma notificação de multa, pregando-a – era adesiva – no para-brisa do Fusca. Tal multa, soube-se mais tarde, morria por ali mesmo, era só para assustar. Aquilo foi irritando o Campelo, levando-o ao extremo de sua resistência e fazendo-o, um dia, dirigir-se furioso ao guarda, disposto ao que desse e viesse:

 

         – Se você colocar de novo uma porcaria dessas no meu carro, eu vou lhe mandar para o inferno!

 

         Ato contínuo, o guarda registrou a afronta no Livro de Ocorrências da Segurança, e a matéria tramitou, rapidamente, passando pela Diretoria-Geral, Primeira Secretaria e Presidência do Senado, Presidência, Primeira Secretaria e Diretoria-Geral da Câmara, e chegando às mãos do doutor Alteredo de Jesus Barros, titular do Departamento de Administração, a quem nosso herói se subordinava, que lhe deu um prazo de 24 horas para apresentar, por escrito, sua defesa.

 

         E foi nesse sufoco que Campelo me procurou, buscando uma luz que o orientasse:

 

         –Raimundo, rapaz, desta vez eu me enrolei. Já fui advogado militante, defendi acusados de homicídios, tirei muita gente da cadeia, solucionei questões fundiárias, promovi desquites e reconciliações, mas, sinceramente, não sei o que escrever a meu favor neste caso.

 

         Eu, que já estava ciente do ocorrido, pedi para ver o processo, li-o com a devida atenção, e, finalmente, aconselhei:

 

         – Campelo, aqui está declarado que você prometeu mandar o guarda para o inferno. Mas não está dito que mandou. Logo, não foi cumprida a ameaça. Nem será, porque você asseverará que, doravante, jamais estacionará seu veículo nas circunvizinhanças daquela Egrégia Câmara Alta.

 

         O que foi feito. 

         E, assim, o Capitão Asa se safou.

 

         Capitão Asa e seu Fusquinha voador

 

 


Do Jumento ao Parlamento quarta, 11 de janeiro de 2017

MEU CHAPÉU DE SERTANEJO

MEU CHAPÉU DE SERTANEJO

Raimundo Floriano

 

         Sempre gostei de usar chapéu. Herdei esse hábito de meu pai que, durante toda sua vida, o manteve com exemplar fidelidade. Quando o médico lhe proibiu o de feltro, não se perturbou: comprou um de palha, permanecendo leal à indumentária.

 

         O uso do chapéu requer a observância de certas normas. É tirado quando se está à mesa de refeição, ou quando se entra numa igreja ou na casa alheia. Ao se mencionar o nome de Deus, leva-se a mão à aba, fazendo a menção de retirá-lo, gesto que também vale no cumprimento a uma senhora ou a uma pessoa a quem se deve respeito. No hasteamento da Bandeira Nacional, enquanto os militares fazem a continência, civis, caso estejam de chapéu, seguram-no à altura do peito. O modo de sua colocação na cabeça – reto, de lado, mais atrás ou cobrindo os olhos–, determina a personalidade do sujeito que o traz. Tudo isso aprendi com meu pai.

 

         Durante 30 anos, não tive problemas com esse costume. Ainda lactente, providenciaram-me um barrete, mais tarde substituído pelo boné. No ginásio, o casquete compunha o uniforme. No Exército, alternavam-se o gorro, o bibico, o bico-de-pato, o capacete e o quepe. Em 1967, ao ingressar na Câmara dos Deputados, tive que abrir mão da velha cegueira. A moda e as conveniências impunham outros procedimentos no trajar. Mas nunca esqueci as convenções, o cerimonial. Um dia, eu e meu amigo Luiz Berto íamos passando por um posto de gasolina, onde alguns frentistas hasteavam a bandeira da Shell, um deles com chapéu na cabeça. Aproximei-me e disse-lhe baixinho:

 

         –Tire o chapéu, rapaz!

         O frentista nem olhou para mim. Com energia, gritei:

         –Tire o chapéu!

Ai, ele se tocou e me perguntou enfurecido:

         –Quem é você?

         –Sou o síndico de meu bloco! – Bradei.

 

         O sujeito, então, mansamente, retirou o chapéu. Eu e Luiz Berto seguimos em frente na busca de novas aventuras.

 

         Desde 1967, passei a andar descoberto, sentindo nisso um certo mal-estar. Meu regime foi quebrado no início dos anos 70, com o lançamento do filme Midnigt Cowboy – Perdidos na Noite, no qual um vaqueiro texano, interpretado por Jon Voight, chegava a Nova York com o intuito de enriquecer como prostituto de mulheres ricas. Foi uma febre, que se alastrou por todo o Brasil. Na noite brasiliense, quer no Gilberto Salomão, no Conjunto Nacional ou em qualquer boate, tinha-se a impressão de estar vivendo numa típica cidade do faroeste americano. No ano de 1973, a nova onda estava completamente arraigada no dia-a-dia candango. Presidia a Câmara dos Deputados, nessa época, o Deputado Flávio Marcílio.

 

         Até então, três pessoas de quem gosto, das quais me lembro todos os dias, tiveram em comum duas particularidades: usavam chapéu e dificilmente sorriam. A primeira era meu pai, homem espirituoso e irônico, mas que, durante os 37 anos de nossa convivência, nunca vi emitir algo que chegasse perto de uma gargalhada. A segunda era Jackson do Pandeiro, o Rei do Ritmo. Com seu chapéu de lado, típico malandro do forró, embora suas músicas transmitissem alegria, júbilo e prazer, externava um semblante sombrio, tristonho. A terceira era eu mesmo. Posso estar na maior animação, mas não esboço nada mais que um esgar, um inútil esforço para demonstrar o que sinto no meu interior. Ainda que não usasse chapéu, eu teria que incluir nessa lista o nome do sisudo parlamentar.

 

O Deputado Flávio Marcílio, nascido em Picos – PI, representava o Estado do Ceará. Exerceu os mais altos cargos que uma pessoa possa almejar. Foi advogado, professor, juiz, ministro de tribunal, deputado e, interinamente, Presidente da República. Preparadíssimo para todas essas funções, de humor penetrante e invejável presença de espírito, conduziu a Câmara com propriedade e desenvoltura por três vezes. Apenas uma coisa, pelo menos publicamente, não sabia fazer: sorrir!

 

         Foi durante sua gestão que voltei a entonar o velho amigo. Como sou patriota, não procurei imitar os caubóis do asfalto, os gringos do Texas. Meu chapéu era de mateiro mesmo, de matuto, com barbicacho e aba larguíssima rebatida do lado esquerdo, para não atrapalhar a espingarda que sempre levava em bandoleira, quando nas caçadas pelos sertões afora. Mas, admitamos, quando eu me apresentava de terno escuro, engravatado, com aquele chapelão bege, poderia ser confundido com personagens como o JR, do seriado Dallas, exibido posteriormente.

 

         E foi assim trajado que, num dia igualzinho aos demais, cheguei para o expediente matutino na Câmara. Ao entrar no elevador, cujo ascensorista era o Josué Araújo, deparo com um solitário passageiro, que embarcara no subsolo: o Presidente Flávio Marcílio!

 

         Subimos até o 8º Andar, onde desembarquei. À saída para o almoço, encontro-me com o Josué, que me fala:

 

         –Raimundo Floriano, hoje pela manhã, quando tu entraste no elevador, o Presidente Flávio Marcílio ficou atentamente a te examinar. Assim que nos deixaste, ele se virou para mim e, circunspecto como sempre, me interrogou: 

         –Quem é o tipo exótico?

 

 

Raimundo Floriano, preito à tradição - Deputado Flávio Marcílio, fleugma nordestina


Do Jumento ao Parlamento sábado, 07 de janeiro de 2017

A BANDA DA CAPITAL FEDERAL

 

A BANDA DA CAPITAL FEDERAL

Raimundo Floriano

 

 

         Passei o Carnaval de 1972 no Rio de Janeiro e voltei de lá com a firme determinação de que foi a primeira e a última vez, pelo motivo que depois explicarei, e também fortemente impressionado por um fenômeno que ali observei: a Banda de Ipanema, com a espontaneidade de seus componentes e a confraternização entre o povão, os artistas e a intelectualidade cariocas.

 

         Diferente era – assim me pareceu – o desfile das escolas de samba, onde as evoluções só duravam enquanto os sambistas passavam em frente aos palanques oficiais, sem qualquer participação ou vibração da assistência das extremidades e com a maioria dos figurantes querendo apenas fazer pose para a televisão.

 

         A Banda de Ipanema, ao contrário, era a reedição dos blocos de sujo de minha infância. Para seu sucesso, bastavam a boa vontade, a alegria e a criatividade dos foliões. Com um trombone, um pistom, um saxofone, um bombo, um tarol e um repenique era possível armar na rua uma ambientação caracteristicamente carnavalesca. A massa faria o resto.

 

         Retornando a Brasília, estava completamente absorvido pela ideia de aqui constituir um esquema análogo. Para começar, convidei o escritor Luiz Berto, meu colega na Câmara dos Deputados e presepeiro de truz, que topou no ato. Em seguida, empossados, eu como Mestre e ele como Contramestre, passamos a difundir o plano e a arregimentar outros adeptos.

 

         Arregaçando as mangas, resolvemos que aprenderíamos a tocar instrumentos de sopro, para que nunca faltasse o mínimo necessário à apresentação da banda. Obtê-los foi tarefa relativamente fácil. Instituímos um Livro de Ouro, fazendo-o circular entre os funcionários do Legislativo e alunos da AEUDF e UnB, onde eu e Luiz Berto, respectivamente, estudávamos, angariando os donativos em espécie suficientes à compra de um pistom, um saxofone e a pancadaria: dois bombos, dois surdos e um tarol. Do meu amigo Ricardo Caparaó, seresteiro de Belo Horizonte, recebi de presente um trombone de vara. O folião aposentado Osvaldo Gadelha de Souza ofertou um velho tarol, com couro de bode, que por mais de trinta anos o acompanhara em suas incursões momescas.

 

         Conhecida preliminarmente como Banda Urubu – o que não mata, mas come –, logo esse título foi descartado, por lembrar um certo time do futebol carioca e, portanto, desvirtuar a universalidade de nosso projeto. O nome da banda foi objeto de concurso, com premiação e tudo, ao término do qual, em 09.03.72, democraticamente desclassifiquei todos os concorrentes e, em homenagem à melhor peça musical encenada no teatro brasileiro nos últimos quinhentos anos, A Capital Federal, do maranhense Artur Azevedo, escolhi a denominação, unanimemente aprovada pelos participantes. A Comissão Julgadora era formada por Paulo Augusto Soares Bandeira, Asclepíades Vasconcelos Abreu, Volmar Renê Dornelles, Augusta Maria Vasconcelos, Mauro Paulo Correia D’Ávila, Luiz Antônio Batista Machado e Jurandir Menon, todos funcionários da Câmara.

 

         Devidamente equipados, contratamos um professor de música, o sargento Daniel Nascimento de Souza, trombonista, que foi, posteriormente, um grande reforço em nossos desfiles. As aulas começaram, a 17 de junho, comigo no trombone de vara e Luiz Berto no pistom – que depois trocou pelo tarol. Mas tínhamos pressa. Queríamos realizar o primeiro desfile da banda no dia 24, dali a uma semana, no pátio da Festa dos Estados, atrás da Torre de Televisão. Para tanto, só dispúnhamos do estandarte – uma clave de sol e o nome da banda em caracteres brancos, sobre fundo verde –, caprichosamente confeccionado por Maria das Dores, minha irmã, e uma incalculável dose de otimismo. Se bem assim o pensáramos, melhor o fizemos, marcando o início da tocata para a data mencionada, às 19h, com concentração na Torre.

 

         Um dia antes, eu, portando um trombone, e Luiz Berto, um banjo, em sondagem ao ambiente, chegamos a uma barraca, sem saber tirar qualquer nota decente daqueles instrumentos. O encarregado, ao nos aproximarmos, incorreu em gravíssimo erro: todo eufórico, mandou servir-nos bebida e boia à vontade, gritando que era tudo de graça, por conta do que faríamos depois, desconhecendo o ensinamento elementar de que a músico só se dá comida depois de acabada a festa. Assim, comemos e bebemos, enquanto a barraca se enchia de gente a aguardar o nosso show. Aí, o encarregado pediu que déssemos a primeira audição, para o que não nos fizemos de rogados. Peguei o trombone e comecei a esturrar, com Luiz Berto a meu lado a agredir as cordas e o couro do pobre banjo. Foi o bastante. O encarregado, esbaforido, berrou para nós:

 

         – Podem parar! Podem parar!

 

E depois, mais baixo, para que só nós escutássemos:

 

         – Vocês são dois filhos da puta!

 

         No dia seguinte, 24.06.72, à hora aprazada, demos vida à Banda da Capital Federal. Constam da ata desse primeiro e histórico desfile, além do Mestre e Contramestre, os nomes de Rita Maria, da UnB, Madrinha da Banda; e dos percussionistas José Augusto, meu saudoso sobrinho, Hélio Sarapico, fardado de General da Banda, Juan, o Espanhol, José Mário, e Luiz Antônio Pena Granja, os três últimos da UnB.

 

         Com Rita Maria à frente, carregando o estandarte, rebolando e saudando a multidão, dirigimo-nos para a Festa dos Estados, numa barulheira insana, pois, embora a bateria se esmerasse no ritmo, eu não conseguia tirar do trombone qualquer melodia inteligível. Mesmo assim, os circunstantes iam-se incorporando ao cordão, cantando e pulando, e muitas garotas se acercavam da Madrinha, em solidariedade àquela única componente feminina do grupo.

 

         Inesperadamente, aproximou-se de mim um baixinho – arrepio-me toda vez que relembro este lance –, nordestino chegado a índio, cara de Cantinflas, que bateu no meu ombro, interrompendo a zoeira que eu fazia, me tomou o trombone e sapecou, de modo afinadíssimo e vigoroso a introdução da marcha A Jardineira, fazendo com que o arrebatamento dos desfilantes redobrasse e seu número se multiplicasse, em progressão geométrica. À banda se entregaram os corações de todos os populares que por ali se encontravam como à espera daquele algo que os fez renascer para a descontração e a incontida alegria. Dito baixinho, garantidor de todo o estrondoso sucesso, filiou-se à banda desde então e vem a ser o Fideles, funcionário do Ministério das Minas e Energia.

 

         Estava, finalmente, fundada a Banda da Capital Federal.

 

         Adotamos um lema: o Carnaval de nossa cidade não morrerá enquanto estivermos aqui na rua, fazendo música. E, para nós, rua eram as superquadras, no interior e através das quais preferíamos realizar as passeatas, desprezando as avenidas e as pistas oficiais.

 

         Nas tardes domingueiras, saíamos 20, da SQS 403, e chegávamos à SQS 410 com mais de 1.000, séquito esse formado por cidadãos pais de família, donas-de-casa, mães com criancinhas nos braços, a juventude e a meninada brasilienses, e alguns bêbados, igualmente bem acolhidos no cortejo.

 

         Na Copa do Mundo e nas grandes competições esportivas, fomos o único grupo a animar os torcedores, com um detalhe que era nossa maior vaidade: tocávamos sem remuneração, de graça, visando tão-somente ao bem-estar que sabíamos produzir com nossa arte.

 

         Além dos pioneiros já citados, enriqueceram o efetivo da banda os maravilhosos sonhadores que adiante relaciono. Porta-Estandartes: Edlenúzia Paiva Portela, Graça Souza e Edna Neves. Percussionistas: Tenente Boaventura, o Fogo Eterno, falecido Miltão, João Amazonense, Ivan e Gordo da SQS 306, João Monteiro, Antônio do Guará, Levy, Teófilo, falecido Taumaturgo e os irmãos Pequeno: Ayrison, Ayrton, William, e falecido Wilson, vulgo Pará. Compositores e ritmistas: Tarcísio Marujo, Tonico da Portela, Alvinho da ARUC e o falecido Agostinho. Passistas: Vera e Vilma Neves, Marilene Schreider, Sônia, a Noiva, Rosa Maria, Graça Maranhão, Vera do Romeu e Ann Sheridan. Saxofonistas: sargento Severino, Luiz Antônio Jambeiro, cabo Cícero e Otávio, o Alemão. Pistonistas: João Aquarela, Fausto do BB, sargento Brandão e João Sobradinho. Tubista: sargento Alves. Trombonistas: Sebastião Neves – pai de Edna, Vera e Vilma – Luiz Mendonça, Romeu do Itamaraty, Odílio Alves da Xerox e Antônio Cavalcante. Vezes incontáveis, voluntários das Bandas de Música do Exército, Marinha, Aeronáutica, Polícia Militar e Corpo de Bombeiros davam uma canja em nossa brincadeira.

 

         A Banda da Capital Federal passou a fazer parte de programações no Plano Piloto e nas Cidades Satélites, cujos administradores a convidavam para aniversários, feiras, exposições, festivais e retretas. Paradoxalmente, passei a ser constante frequentador de Delegacias de Polícia, convocado para me justificar por estarmos fazendo barulho na rua com nossa música, em decorrência de queixas apresentadas por pessoas metidas a sebo.

 

         O recrudescimento das reclamações fez com que as autoridades constituídas passassem a exigir de mim Certidão da Ordem dos Músicos, Alvará do Departamento de Parques e Jardins, Alvará do Corpo de Bombeiros, Alvará do Detran, Autorização da Delegacia de Polícia e pagamento de Direito Autoral a cada desfile que realizávamos. Por essas e outras, encerrei as intensas atividades da banda em 1975, passando a apresentá-la somente em ocasiões muito especiais.

 

         Desde então, todos os movimentos congêneres surgidos em Brasília diferenciam-se do nosso em duas particularidades: não desfilam pelas superquadras, e os músicos só atuam mediante paga. A primordial finalidade, portanto, de tais esquemas, é a lucrativa, a comercial. E com o apoio total da imprensa falada, escrita e televisada, o que à Banda da Capital Federal foi sistematicamente sonegado.

 

         Sim, agora esclareço a razão pela qual tomei aquela resolução de que o meu primeiro Carnaval no Rio de Janeiro seria também o último. Muito simples. No Maior Espetáculo da Terra, enquanto lá embaixo, na passarela, a Acadêmicos do Salgueiro se arrastava cantando “Tengo-tengo”, na arquibancada, diante dos indiferentes olhares da plebe em derredor, dois pivetes me assaltavam.

 

Raimundo Floriano, Mestre da Banda, e Luiz Berto, Contramestre

 

Fideles, o primeiro músico, e Sebastião, o mais assíduo

 

Graça Souza, Porta-Estandarte, e Edna Neves, Porta-Estandarte

 

Logotipo da Banda

 


Do Jumento ao Parlamento sexta, 06 de janeiro de 2017

COM A BOCA NO TROMBONE

 

COM A BOCA NO TROMBONE

Raimundo Floriano

 

                        Pronto, acabou-se o tabu! Depois que a Tv Globo exibiu a novela Roda de Fogo, no horário nobre e no Vale a Pena Ver de Novo, com o personagem Tabaco, simpático e astucioso trambiqueiro, competentemente interpretado pelo ator Osmar Prado, essa palavra, que já teve uma conotação chula, passou a ser pronunciada nos salões mais seletos, no ambiente familiar, virando, simplesmente, nome de gente. É o caso também de pentelho – como sinônimo de quem é enxerido, atrapalha, perturba –, que hoje é empregada até nas redações infantis.

                        Faço essa introdução para poder contar, mais adiante, a forma pela qual descobri minha devoção pela música popular brasileira e o fascínio por um instrumento que me proporcionou muita alegria e realização, de que ora falo com saudade, eis que dele afastado devido a motivos anatômicos.

                        Vi-o, pela primeira vez, em 1947, em Balsas, minha terra natal, trazido por uma missionária protestante, a Miss Ila – pronuncia-se missiáila –, louríssima americana dos seus dois metros de altura, que, para ensinar aos catecúmenos as melodias dos hinos, antes as executava num trombone de vara, até que ficassem bem assimiladas.

                        A impressão inicial, que perdurou por três anos, foi a de que o trombone de vara era exclusivo e característico das igrejas de crentes, assim como, me parecia, o harmônio só servia para tocar em templos católicos.

                        Para continuar, devo proclamar aqui: nasci, me criei e estudei o primário no Maranhão; e o secundário, no Piauí!

                        Em 1950, aos catorze anos, recém-chegado a Teresina, nova descoberta. Passando, por acaso, perto de uma solenidade militar, vi um magote de músicos fardados, em formatura, interpretando uma bonita e excitante marcha. Para mim, mais de cinco músicos juntos era coisa inusitada, maravilha com que jamais sonhara. De um colega de escola, a quem manifestei meu espanto, recebi a explicação de que tal agrupamento se chamava “banda”, aquela era a Banda do 25º Batalhão de Caçadores, e a marcha que ouvíamos era um “dobrado”.

                        Naquela banda, o que mais me chamou a atenção foi a presença de dois trombones de vara, tocando ao mesmo tempo e com movimentos diferentes, fazendo-me reformular o conceito inicial: trombone de vara era apropriado para músicas sacras e marchas militares.

                        O som por ele produzido com intensidade, firmeza e longo alcance, sempre me causou espécie. Se uma banda estava tocando à distância, digamos, de um quilômetro, os únicos instrumentos que se ouviam eram o surdão e o trombone de vara. Só de perto, é que os outros apareciam, à exceção do pistom, terceiro na escala do barulho.

                        No segundo semestre de 1950, fui morar com minha tia Antônia, residente na capital piauiense, à rua Teodoro Pacheco, esquina com a João Cabral. A um quarteirão, ficava a rua Paissandu, a partir da qual concentravam-se a vida noturna, a vida boêmia, a doce vida de teresinenses. Desde a primeira noite que ali passei, o som de um longínquo trombone de vara vinha acalentar-me e acariciar-me o sono. Eram melodias diferentes daquelas ouvidas nos cultos e nas paradas, fazendo-me ficar em minha rede a me revolver, procurando a melhor posição para a escuta e a imaginar quem estaria, sem saber, embalando-me os devaneios.

                        Não demorou muito e, em certas madrugadas, quando todos de casa estavam a dormir, eu saía para o quintal, escalava o muro, e rumava para o som. Com o intuito de apreciá-lo, protegia-me na escuridão das paredes e dos pomares, pois se a polícia me flagrasse no ponto, adeus, saudade! O local ficava a uns trezentos metros, na rua João Cabral, no meio do quarteirão entre a Paissandu e a Félix Pacheco. Chamava-se Boate Sete Tabacos. Esse nome derivava das sete marcas de cigarro ali vendidas –  Continental, Astória, Hollywood, Yolanda, Lincoln, Beverly e Selma.

                        Bem no centro da Sete Tabacos, arrodeado por sete quartos, correspondentes às sete irmãs proprietárias e relações públicas do estabelecimento, ficava o salão de danças, obrigatório em todos os cabarés daquele tempo. A um canto, sobre pequeno estrado, acomodava-se o conjunto regional, composto de baterista, pandeirista, sanfoneiro, banjoísta e um trombonista muito setenta, que marcou minha existência e me abriu os olhos para a grande revelação: o trombone de vara servia para tocar samba, frevo, rumba, bolero, baião, mambo, enfim, traçava qualquer gênero da música popular, qualquer ritmo, não importando a velocidade de seu andamento.

                        A partir de então, passei a admirar todos os trombonistas de vara e a fantasiar como seria minha vida, em afirmação e alegria, se eu também fosse um deles.

                        O tempo marchou. Em 1972, aqui em Brasília, ao contar essa quimera para um velho amigo dos tempos da caserna, Ricardo Caparaó, de Belo Horizonte, seresteiro e aprontador, obtive a promessa da doação de um trombone de vara, o que se concretizou em seguida. Ao recebê-lo, fui logo colocando-o na boca, soprando como se fosse um berrante e tentando graduar o som com o vaivém  da vara. Aí, é que eu vi que o buraco era mais em cima.

                        Quando ouço alguém a enaltecer os dotes musicais de pessoa que toca mais de dez instrumentos, e os especifica: surdo, repenique, tarol, cavaquinho, banjo, violão, bandolim, sanfona, piano, órgão, clarineta, saxofone e outros mais, todos de percussão, corda, teclado e palheta, não resisto à tentação de especular:

– E quantos de bocal?

– Bom, de bocal, nenhum – é a resposta. 

                          Porque, meus camaradinhas, com instrumento de bocal é preciso estudo, é essencial força no bico, é imprescindível a firmeza no lábio superior, a trombada é federal. Conheci, durante todo esse tempo em que tenho convivido com a iluminada classe, um único músico que, num baile, ficava a se revezar no trombone, no saxofone, na clarineta e no pistom, por cinco, seis horas, sem jamais quebrar as embocaduras, as notas mais cristalinas e redondas à medida em que a função se prolongava. Não bastasse tudo isso, era um virtuoso na gaita-de-boca. Refiro-me ao maestro, arranjador, compositor, instrumentista, autodidata, o fora de série, que atende pelo nome de Leonizard Braúna, para mim o Beethoven do sertão sul-maranhense. De um mortal comum o instrumento de bocal requer muito esforço, dedicação e persistência. 

                        A 20 de maio de 1972, o Correio Braziliense publicava este anúncio:                       

PROFESSOR DE TROMBONE DE VARA 

Preciso de um, para os sábados, das duas às quatro da tarde. Não quero erudição, o meu negócio é botar a Banda Urubu na rua, tocando algumas marchinhas e alguns frevinhos para arder e encardir. Tratar com Floriano –

Fone: 223-2763. 

                        Como de praxe, não faltaram os tradicionais trotes, como este: 

                        –Você quer mesmo é um professor de trombone?

                        –Sim! – dizia eu, esperançoso.

                        – E a vara, você não quer? 

                        No dia 12 de junho, apareceu um mestre de verdade, na pessoa do sargento Daniel Nascimento de Souza, hoje oficial e maestro do Exército Brasileiro, que, com muito empenho, entusiasmo, boa vontade e eficiência, me colocou em condições de, já no Carnaval de 1973, alegrar as superquadras e avenidas de Brasília, com os desfiles e retretas de nossa gloriosa banda.

 

                        Meu mandato de trombonista durou de 1973 a 1988, quando fiz a última tocata, integrando a Banda do Pacotão. Naquele ano, a perda da firmeza na arcada dentária superior me confiscou a embocadura. Não posso afirmar que definitivamente. A tecnologia odontológica poderá me reintegrar à atividade musical. É o que garantem os doutores Delfino Damas Soares, implantodontista nova-iorquino – nasceu em Nova Iorque, MA –, e Jorge Probst, protético catarinense.

 

                        Veremos! 

                        Houve, no entanto, entre o Carnaval de 1973 e o de 1988, a Banda da Capital Federal, cuja história será rememorada em outra oportunidade. 

 

Leonizard, o Beethoven do sertão, e Daniel, o eficiente professor

 


Do Jumento ao Parlamento quinta, 05 de janeiro de 2017

A INAUGURAÇÃO DO CONJUNTO NACIONAL BRASÍLIA

A INAUGURAÇÃO DO CONJUNTO NACIONAL BRASÍLIA

Raimundo Floriano

 

                        24 de novembro de 1971! Inauguração do Conjunto Nacional Brasília e suas duas âncoras principais: o Supermercado Pão de Açúcar, que ficaria mais conhecido pelo nome de Jumbo, e o Banco Econômico!

 

                        Os jornais da cidade – Correio Braziliense e Diário de Brasília – estampavam grandes anúncios e convidavam a população em geral para comparecer ao evento, que marcaria o início das operações do primeiro shopping da capital, com a presença de Pelé, já então considerado Rei do Futebol.

 

                        Aquele empreendimento ainda não tinha sido bem assimilado pelo povo candango, e muitas lojas, mesmo a preço de banana, permaneciam fechadas, por falta de interessados. A verdade é que não sabíamos bem o que era um shopping. Fazíamos nossas compras na W/3, ou no Núcleo Bandeirante, mais conhecido como Cidade Livre. Os supermercados de que dispúnhamos, mesmo os do Plano Piloto, não passavam de meras quitandas bem sortidas.

 

                        O Conjunto Nacional Brasília assinalou, portanto, a chegada da modernidade empresarial no Planalto Central Brasileiro.

 

                        Era uma manhã de quarta-feira. Eu trabalhava na Câmara dos Deputados e havia combinado com meu colega e amigo Luiz Berto que tomaríamos parte nos festejos até ao meio-dia, pois o expediente normal no Congresso só começava às 13h30. Esse Luiz Berto viria mais tarde a ser autor de várias obras premiadas, como O Romance da Besta Fubana, A Prisão de São Benedito e A Guerrilha de Palmares. E por que eu o cito aqui? Porque ele não me deixa mentir.

 

                        Estávamos vivendo o milagre econômico, e o Ministro Delfim Netto – atualmente, deputado federal –, titular da Fazenda, era figura infalível nos noticiários noturnos das estações de TV. Eu, gordinho, com uma bela papada e óculos, me parecia um bocado com ele. Tanto que meus filhos, Zezinho e Floriano, de 6 e 5 anos, quando viam aquela autoridade na telinha, exclamavam:

 

                        – Olha o papai!

 

                        Devidamente enfatiotados para o turno vespertino – terno escuro e gravata –, eu e Luiz Berto chegamos ao Conjunto e, por não conhecermos nada ali, nem o protocolo da solenidade, nos encaminhamos diretamente ao Banco Econômico, onde era servido um lauto coquetel, como se podia notar através das paredes de vidro. Muita gente bonita e elegante enfeitava o ambiente. Ao chegarmos à porta, fomos barrados por um segurança que, educadamente, falou:

 

                        – Por favor, o convite!

                        – Não temos convite – respondi.

                        – Então, infelizmente, os senhores não podem entrar.

                        – Mas espere aí – disse eu –, os jornais convidaram todo o povo de Brasília para a inauguração!

                        – É, mas eles se referiam às outras lojas. Aqui, só mediante convite.

 

                        Já íamos nos retirar, quando um cidadão bem-apessoado, que fazia parte da Diretoria do Econômico, se dirigiu apressado ao segurança, falando rispidamente:

 

                        – O que é isso? Não vê que é o ministro?

                        E, virando-se para mim, franqueou-nos a entrada:

                        – Ministro, por gentileza!

 

                        Se calados estávamos, calados ficamos.

 

                        Aproveitamos o mais possível.

 

                        À noite, ao verem na TV as reportagens sobre o acontecimento, meus filhos, cheios de razão, orgulhosos apontavam:

 

                        – Olha o papai!

 

Raimundo Floriano - Ministro Delfim Netto

 

O Conjunto Nacional Brasília: modernidade empresarial


Do Jumento ao Parlamento quarta, 04 de janeiro de 2017

O TOMA-LARGURA

O TOMA-LARGURA

Raimundo Floriano

 

 

                        Treze, sexta-feira, dezembro de 1968. Ato Institucional nº 5. Congresso Nacional fechado. Recessão da braba. Pindaíba de lascar.

 

                        Os primeiros atingidos pela crise fomos nós, os funcionários do Poder Legislativo, que, logo de cara, tivemos cortada a Gratificação por Serviços Extraordinários – hoje a GAL, Gratificação de Atividade Legislativa –, ou seja, ficamos com os rendimentos mensais reduzidos a um mísero terço do normal.

 

                        Uns desesperaram e venderam todos os bens de raiz, para enfrentarem os gastos e compromissos inadiáveis. Outros descambaram para o misticismo, apelando para sonhos, adivinhações e demais meios que os fizessem acertar na loteria ou no bicho. Houve os que se entregaram ao choro e às lamentações. Alguns, porém, como eu, foram à luta.

 

                        Com a parte da manhã livre – só com a implantação do Plano de Classificação de Cargos o Serviço Público passou a exigir tempo integral e dedicação exclusiva –, credenciei-me como vendedor da CAPEMI, o que me proporcionou um bom respaldo financeiro, mas também uma imensa dose de remorso, que até hoje perdura, por ter induzido muitas pessoas a caírem naquele conto-do-vigário da aposentadoria em que eu, na qualidade de sócio, piamente depunha fé.

 

                        Explico. Em junho de 1967, subscrevi um plano no qual, contribuindo mensalmente com Cr$21,00, teria direito, após 25 anos, a uma aposentadoria mensal de Cr$540,00, o que representava 25,35 vezes a contribuição. Em agosto de 1992, requeri o tão esperado benefício, na expectativa de que, naquela proporção de 25,35 por um, receberia Cr$15.133.950,00 mensais, pois descontara Cr$697.000,00 em julho, sendo sufocado por atroz surpresa: a CAPEMI informava que eu só fazia jus a Cr$136.732,20, tudo isso em cruzeiros velhos. Ora, apenas aqueles Cr$597.000,00, que paguei em julho, se aplicados em caderneta de poupança, renderiam mais de Cr$137.000,00 mensais. E agora eu pergunto: a troco de quê, passei um quarto de século dando dinheiro para a CAPEMI?

 

                        Hoje, vejo com reserva essa previdência privada recém-criada e incentivada pelos órgãos governamentais, fazendo a pergunta que não quer calar: “Como será daqui a 25 anos? Repetir-se-á a história?”

 

                        Retomemos a narrativa. Naquele tempo, inocente quanto ao grande engodo que oferecia a meus semelhantes, estava ganhando uns bons trocados, quando essa pequena mina foi descoberta pelos outros colegas batalhadores do Congresso, e daí a pouco o que mais se via na Casa era funcionário carregando a característica pasta azul debaixo do braço. Acabara-se a bonança. Saturara-se o mercado. Fazia-se imperiosa a mudança de ramo.

 

                        Devidamente autorizado por um certificado de aperfeiçoamento em Inglês, expedido pela Casa Thomas Jefferson - USIS, enveredei na atividade de Intérprete e Guia Turístico, logo esbarrando com a velha mania dos americanos de falarem muito rápido, de propósito, para que a gente não os entenda, e com o detalhe de que diversas turistas só queriam incutir o guia a levá-las para lugares escuros e ermos. Demorei-me pouco nesse ofício.

 

                        Parti para o exercício de uma atividade à qual estava credenciado: a de toma-largura!

 

                        Cabe aqui uma ligeira explicação sobre esse termo. Os toma-larguras chegaram ao Brasil em 1808, com a corte de Dom João VI. O nome deriva-se de tomar, na acepção de medir + largura, no sentido de tamanho, dimensão, magnitude.

 

                        Em seu livro Memórias de um Sargento de Milícias, Manuel Antônio de Almeida fala de um toma-largura que desempenhava suas funções na Ucharia – Estabelecimento de Subsistência – do Palácio Real. Nesse caso, ele era o atual almoxarife ou aprovisionador. Na Marinha, essa função, quando se trata de material, se denomina fiel. No Exército, quando o mister é a elaboração de folhas de pagamento, usa-se o termo furriel. Quando, porém, a incumbência é o estudo do patrimônio de uma pessoa, física ou jurídica, tal terminologia, que já foi guarda-livros, designa o atual contador.

 

                        Alguns gozadores aceitam outra etimologia para o termo. No mencionado livro, o autor afirma que, embora o toma-largura fosse gente da Casa Real, pertencia à última classe. Isso também se observa hoje. Quando o empresário se vê em dificuldades, o primeiro que corta de sua folha de pagamento é o contabilista. Depois vêm, nesta ordem, o aluguel, o telefone, os empregados, os fornecedores, a água e a luz. Agindo assim, começa a se esconder do contador, a passar ao largo dele. Em consequência – afirmam os maledicentes –, o profissional “toma uma largura” do inadimplente.

 

                        Tendo concluído o curso de Técnico em Contabilidade no Elefante Branco, abri, no segundo semestre de 1969, um escritório na sobreloja do Edifício Casa de São Paulo. No começo, não faltaram os costumeiros trotes, de autoria mais que conhecida. Colegas da Câmara, disfarçando a voz, ficavam a telefonar, repetindo manjadíssimas piadas como esta:

 

                        – Raimundo, tu fazes conta de cabeça?

 

                        Ou esta:

                        – Tu sabes tirar o líquido do bruto?

 

                        Outros se demoravam na empulhação:

                        – Contador, quem de dois tira um, quantos ficam?

                        E eu, pacientemente:

                        – Fica um!

                        – Fica mais – retrucava o galhofeiro –, porque minha mãe e meu pai se casaram e tiraram eu. Então, ficamos três.

 

                        Aí, aconteceu algo estonteante, perturbador, sublime. O Brasil sagrou-se tricampeão mundial de futebol e entrou naquela fase de País pra Frente, do Milagre Brasileiro, do Am-you-or-day-she-you, do Ame-o ou Deixe-o.

 

                        Havendo dinheiro vazando até pelo ladrão nos cofres do Erário, inflaçãozinha vagabunda, que começou 1969 com 19% e terminou 1973 com 15% ao ano, repito, ao ano – só no mês de março de 1990 foi de 80% –, o governo, sem saber onde gastar, criou uma série de incentivos fiscais, principalmente nas áreas da SUDENE, SUDECO e SUDAM, possibilitando às empresas e pessoas físicas investirem em indústrias ali instaladas, com recursos que seriam deduzidos do Imposto de Renda devido, apurado na declaração anual. Surgiu, em decorrência, a profissão de Corretor de Investimentos.

 

                        Trajando irrepreensíveis terno e gravata, e portando a inseparável Pasta 007, que teve nesse período o seu apogeu, tais corretores eram conhecidos à distância. De perto, eram simpáticos e fluentes, a maioria com uma conversa envolvente e a tranquilidade daqueles que nadam em prosperidade. Um dos seus alvos preferidos eram os escritórios contábeis, mediante os quais os clientes escolhiam onde aplicar. Nós, os toma-larguras, alcunhávamos esses corretores, carinhosamente, de “atracas” ou “marreteiros”, no bom sentido.

 

                        Certo dia, recebi a visita de um deles. Bem-apessoado, já entrado nos cinquenta, discorreu sobre uma grande indústria que se instalava com incentivos da SUDECO e, num dado momento, quando eu fazia minhas anotações, respondeu-me, ao lhe perguntar como se chamava:

 

                        – Mauro Borges!

 

                        – Interessante – falei –, esse nome é famoso por aqui. Mauro Borges é também o filho do fundador de Goiânia, Pedro Ludovico, foi oficial do Exército, Deputado Federal e Governador de Goiás, cargo do qual o depuseram em novembro de 1964, numa operação militar que mobilizou todas as unidades sediadas na Região Centro-Oeste e que colocou em seu lugar, como interventor, o Coronel Carlos de Meira Matos.

 

                        – Sou eu o próprio! – Interrompeu-me o corretor.

                        – Moço, deixe de conversa – duvidei –, um homem que foi tanta coisa na vida, não estaria aqui neste escritoriozinho angariando migalhas!

                        – É, mas eu preciso trabalhar, para sustentar a família.

                        – Desse modo? – Perguntei.

                        – Sim! Porém houve quem chegou a dizer que eu me locupletava na função pública.

 

                        Pois bem, ali, à minha frente, aquele corretor afigurou-se-me um gigante, um lutador, um sujeito pai-d’égua, um nota dez. Que soube, depois, dar a volta por cima, elegendo-se senador em 1982 e deputado federal em 1990.

 

                        Se tive sucesso na Contabilidade? Tive, sim! Pra dizer em poucas palavras tudo, fui contador da escritora e empresária Vera Brant – quem não a conhece, nem de nome, também desconhece a história viva de Brasília –, desde o início das atividades do escritório até o segundo semestre de 1973, quando me afastei em definitivo, premido pela adoção do Plano de Classificação de Cargos da Câmara dos Deputados, que acabou com aquela boca de meio expediente.

 

                        Para não perder o compasso, continuo a contabilizar patrimônios. Todos os anos, faço a Declaração do Imposto de Renda de parentes, amigos e colegas aposentados.

 

                        É o toma-largura atualizado, por dentro que nem talo de jaca!

 

 Senador Mauro Borges, goiano de fibra


Do Jumento ao Parlamento sexta, 30 de dezembro de 2016

DEZ SEGUNDOS DE GLÓRIA

DEZ SEGUNDOS DE GLÓRIA

Raimundo Floriano

 

 

                        Quando tomei posse como funcionário concursado da Câmara dos Deputados, em março de 1967, a 43ª Legislatura, iniciada no dia primeiro, ainda engatinhava.

 

                        Não existiam os Anexos III e IV, nem gabinetes individuais, e por isso os deputados só se viam mesmo era nos plenários, nas agências bancárias ou na sala privativa, que funcionava onde hoje é o café também privativo, com uns três datilógrafos e telefones para ligações interurbanas a sua disposição.

 

                        Assim, vindo de casa diretamente para as reuniões nas Comissões ou para as sessões, os deputados quase não tinham oportunidade de confraternizar ou de se relacionarem, e os novatos, que eram a maioria, praticamente não conheciam uns aos outros. Só algum tempo depois é que foi instituído aquele distintivo dourado que agora os parlamentares ostentam na lapela.

 

                        Eu, também recém-chegado, gorduchinho, óculos de aros de tartaruga, terno escuro, semblante solene, costumeiramente era saudado pelos guardas, na portaria do Edifício Principal, com atenciosas continências, o que não me causava espécie, pois, egresso da Polícia do Exército, atribuía aquilo às últimas honrarias prestadas ao velho sargentão.

 

                        Mas não eram não. Um dia, estando eu no balcão do Banco do Brasil, a preencher uma ficha, aproxima-se alguém, bate no meu ombro e pergunta:

 

                        – Tudo bem?

                        Virei-me. Era um deputado novato. Falei:

                        – Graças a Deus!

                        E ele:

                        – O colega representa qual Estado?

                        – Sou maranhense – respondi.

                        – Você viu o Ney? – Interrogou.

                        E eu:

                        – Que Ney?

                        – O Ney Maranhão, pô! Estou doido para falar com ele – disse o deputado novato, afastando-se.

 

                        Percebi então que tanto os seguranças quanto o deputado me supunham também um parlamentar principiante.

 

                        Se toda pessoa, como é sabido, tem na vida quinze minutos de fama, eu, devido a tais confusões, de minha parte involuntárias, tive já meus dez segundos, conforme adiante se verá.

 

                        Lotado na Diretoria do Patrimônio, no 9º Andar do Anexo I, estava eu, certa manhã, concentrado num complicado processo de licitação, quando entra na sala o baiano Euclides Neres de Santana, o portador dos bons boatos, apregoando a plenos pulmões:

 

                        – Olhaí, rapaziada, a Caixa Econômica abriu inscrição para empréstimo!

 

                        Foi um verdadeiro rebu. Todos, mais de vinte, saíram em desabalada carreira rumo aos elevadores e às escadas. Menos eu, que preferi me informar melhor. Dirigi-me ao Euclides:

 

                        – Rapaz, como é que a gente se inscreve?

                        – Ora, sargento, é só ir lá, botar o nome no livro preto, e esperar.

 

                        Desci. Chegando à Caixa, topei com uma grande barafunda, um empurra-empurra, um abafa daqui, um aperta dali, o bolo formado, e já ia desistindo, quando percebi dois contínuos do Plenário conversando junto ao bafafá, e o livro preto bem ao lado, sem que os outros notassem.

 

                        Discretamente, peguei o mencionado, que já continha calculadamente umas quinhentas assinaturas, deixei meu nome na primeira linha em branco e, igualmente de fininho, voltei para o Patrimônio. Os outros levaram um tempão para retornar. Com mais um pouco, encerrou-se o turno matutino.

 

                        À tarde, aconteceu!

 

                        Começa a Sessão Vespertina. Os alto-falantes, em sua totalidade, ligados. É lido o expediente. Tem início o período de breves comunicações. Preside os trabalhos, cumprindo escala, o deputado Lacorte Vitale, Primeiro Suplente da Mesa. Os oradores vão-se alternando na tribuna, quando o Senhor Presidente anuncia:

 

                        – Com a palavra o nobre deputado Raimundo Floriano!

 

                        (Pausa)

 

                        – Tem a palavra o nobre deputado Raimundo Floriano!

 

                        (Pausa)

 

                         Ausente!

 

                        O livro que eu assinara, no tumulto da Caixa Econômica, era o de inscrição para o Pinga-Fogo.

 

 

Pinga-Fogo: parte da Sessão em que os  oradores se revezam ao microfone,

de cinco em cindo minutos

 

"


Do Jumento ao Parlamento quinta, 29 de dezembro de 2016

MEU CONCURSO PARA A CASA DO POVO

MEU CONCURSO PARA A CASA DO POVO

Raimundo Floriano

 

                         Éramos seis!

 

                        Moacyr de Arruda Menezes, paraibano, Dineu Mazzalli Seixas, paulista, Nélson Santa Cruz Quirino, pernambucano, Vili Santo Andersen, gaúcho, um, cujo nome não me vem, e este seu colega, maranhense, todos sargentos do Exército Brasileiro e moradores no Cruzeiro Velho. Dentre os inúmeros companheiros de farda inscritos no concurso para Auxiliar Legislativo da Câmara dos Deputados, formávamos um grupinho à parte, mais pela proximidade de nossas residências do que pelo conhecimento anterior, pois até servíamos em diferentes unidades militares.

 

                        Aliás, nosso Exército sempre foi um grande fornecedor dessa mão-de-obra altamente qualificada para a Câmara dos Deputados. Perdia ótimos sargentos que, vindos de todas as Regiões do País, e submetidos a árduo crivo intelectual, iriam enriquecer o quadro funcional daquela Casa do Povo. Compunham esse seleto elenco, entre outros: João Rodrigues Amorim, do Pará; Paulo Augusto Soares Bandeira e Simeão dos Reis Ribeiro, do Maranhão; Altino Ferreira da Cruz e Zorando Moreira de Oliveira, do Piauí; José Altomar Faria Lima e Sindulfo Chaves Filho, do Ceará; Antônio Gomes da Silva e Roberto Medeiros Guimarães, da Paraíba; Luiz Berto Filho e Orlando Costa, de Pernambuco; Edson Borges de Carvalho e Leonílson Xavier de Oliveira, da Bahia; Afonso Waltencir Fabre, Antônio de Pádua Ribeiro, Aristheu Gonçalves de Melo, Geraldo da Silva, Henrique Eduardo Ferreira Hargreaves, Jolimar Corrêa Pinto, José Botelho Filho, Paolo Orlando Piacesi e Sylvio Rômulo Guimarães de Andrade, de Minas Gerais; Américo Dias Ladeira e Ivan Roque Alves, do Rio de Janeiro; João Resina Reina, de São Paulo; José Capistrano Pereira, de Mato Grosso; Constante Caetano Turchiello, do Rio Grande do Sul.

 

                        A doutora Atyr Emília de Azevedo Lucci – conforme já salientei no episódio Os Fesceninos –, titular da Diretoria do Patrimônio, batalhava para conseguir o máximo de ex-sargentos lotados naquele órgão. Num certo período, o Patrimônio ficou também conhecido como BGP – Batalhão da Guarda Presidencial.

 

                        Corria o mês de abril de 1964, e o advento da Revolução de 31 de Março quase não deixava chances de nos encontrarmos para estudo ou troca de ideias, com a tropa aquartelada, em rigorosa prontidão. Este seu colega, por exemplo, servindo na Polícia do Exército, só conseguiu tempo para inscrever-se no dia final do prazo, e mesmo assim envergando uniforme de campanha e capacete de aço.

 

                        A única oportunidade que tínhamos de reunião era no dia das provas. Vínhamos no carro do Vili, um Chevrolet 49. Chamar o carrão do Vili de automóvel era, no mínimo, uma imprecisão. Aquilo era uma belonave, que ocupava nos estacionamentos as vagas de uns dois fuscas. Tão imenso era, que acomodava os seis sem qualquer esforço, no maior conforto.

 

                        Enfrentamos a primeira prova, a de Português. Passamos todos. Criou-se entre nós o mito de que aquele carango verde nos trouxera sorte e de que nele nos devíamos transportar até o final do certame, vez que sorte era mesmo o de que mais precisávamos: 16.000 candidatos para 21 vagas – naquele tempo, ainda sob o manto da Constituição de 1946, só se entrava na Câmara mediante prestação de severíssimo concurso público, de âmbito nacional, aplicado pela inflexível Dona Nayde Figueiredo.

 

                        E assim procedemos nos testes que se sucederam: Direito Administrativo, Técnica Legislativa, Língua Estrangeira e Datilografia.

 

                        Decorrido, hoje, quase um quarto de século, relembro com saudade aqueles tempos de batalha, e, com alegria, aqueles velhos camaradas.

 

                        O Moacyr, o mais jovem de nós seis, veio a ser o melhor datilógrafo do Congresso Nacional. E mais. Num domingo, ao tentar, no Lago Paranoá, salvar o amigo Teobaldo – com ele lotado no Departamento de Pessoal e como ele não sabendo nadar –, afundou junto, consagrando-se nesse episódio como o primeiro herói dentre os funcionários da Casa. O Dineu, Assessor de Orçamento, aposentou-se e goza de merecido ócio nas praias nordestinas. O Quirino é Assessor Técnico na Liderança do PDS. O Vili é Diretor do Departamento de Finanças. Este seu colega continua aqui, lutando, labutando, vendo, tratando e pelejando, como dizia Camões.

 

                        E aquele um, cujo nome não me vem à memória? Bem, aquele um, por moto próprio, relegou-se ao esquecimento. Para a última prova, desprezou o carrão da sorte e veio de táxi.

 

                        Queria mesmo era tomar vitamina ferro!

 

Chevrolet da sorte: Cinira, jovem esposa do Vili, embeleza a foto


Do Jumento ao Parlamento quarta, 28 de dezembro de 2016

NA CASERNA - NA POLÍCIA DO EXÉRCITO DE BRASÍLIA

NA CASERNA

NA POLÍCIA DO EXÉRCITO DE BRASÍLIA

Raimundo Floriano

 

Companhia de Polícia do Exército da 11ª Região Militar:

vista aérea do primeiro quartel de Brasília

 

Batalhão de Polícia do Exército de Brasília: vista aérea

 

Fui transferido para a Companhia de Polícia do Exército da 11ª Região Militar no dia 27 de dezembro de 1960. O quartel era provisório, de madeira, localizado às margens do lago Paranoá, entre o Brasília Palace Hotel e o Palácio da Alvorada. Foram tempos difíceis aqueles primeiros anos da Capital Federal. A votação da chamada Lei da Inelegibilidade dos Sargentos e a renúncia do presidente Jânio Quadros fizeram com que a tropa ficasse em rigorosa prontidão a maior parte do tempo.

 

Em setembro de 1961, a PE ocupou suas definitivas instalações no Setor Militar Urbano. Com poucos efetivos de oficiais e praças, a barra continuou pesadíssima, especialmente na debelação da Revolta dos Sargentos, a 12 de setembro de 1963, vindo os ânimos a se amenizarem depois da posse do presidente Castello Branco, coroando a Revolução de 31 de Março de 1964.

 

A 9 de abril de 1964, a Cia. Pol. Ex./11ª RM foi transformada no Batalhão de Polícia do Exército de Brasília – BPEB, que dispunha de muitas vagas a serem preenchidas, o que não foi difícil, pois grande parte dos militares de outros Estados almejava servir nessa nova unidade, considerada de elite do Exército Brasileiro. Dentre os muitos recém-transferidos, foi com satisfação que vi, no Boletim Interno, o nome de um grande amigo, o 3º sargento Dorgival Ribeiro Damasceno.

 

Para falar no Dorgival, tenho que remontar a meus bons tempos no 12º RI.

 

Quando ali cheguei, fui designado para a Companhia de Petrechos Pesados do Primeiro Batalhão – CPP- 1, onde o Dorgival já era praça antiga. Em nosso primeiro contato, descobrimos que éramos gêmeos: nascêramos ambos no dia 3 de julho de 1936. Se tínhamos o mesmo signo, forçosamente igual seria nosso temperamento. Como eu passara o ano de 1956 na vida civil, o Dorgival fora promovido a sargento antes de mim. Era mais antigo, tinha precedência. Trocado em miúdos, era meu superior.

 

Em 1958, eu – ainda – era bem magro. Para torrar minha paciência, o Dorgival logo me pôs o apelido de sargento Minhoca. Não só devido à minha esbeltez. Dizia ele que, nos acampamentos, só os sargentos antigos tinham o direito de dormirem nas camas de campanha. Os sargentos recrutas, como era meu caso, dormiam no chão, igual às minhocas. Sempre que nos encontrávamos, no quartel ou na rua, me futucava com essa zombaria, que muito o divertia.

 

Certo dia, em visita ao Zoológico da Pampulha, deparei com um viveiro de jacarés, dos quais um, o jacaré de luneta, com suas costas retas como uma tábua, tórax e abdômen proeminentes, era a figura perfeita do sargento Dorgival.

 

Chegando ao quartel, depois de ouvir pela enésima vez o apelido, comentei consigo, no meio de outros colegas, a semelhança que notara entre o bicho e ele, ouvindo, dos circunstantes, risos de aprovação. Imediatamente, chamei-o de Tio Jaca, no que fui imitado por todos. Foi a arma que eu e o resto da sargentada usamos, dali para a frente, quando ele se metia a engraçado.

 

Com o tempo, ficamos amigos. No ano seguinte, o minhoca já era outro sargento novato. Como sempre gostei de estudar a Língua Portuguesa, era a mim que ele procurava para tirar suas dúvidas, preparando-se para fazer o Curso de Aperfeiçoamento de Sargentos – CAS.

 

Voltemos ao BPEB. Em nome da velha amizade, prometi a mim mesmo que jamais divulgaria sua alcunha, até porque, se o fizesse, estaria arriscando a ver turvada uma harmonia construída a muque. Cautela que se revelou inócua.

 

Certa manhã, um grupo de sargentos conversava animadamente, e eis que ele surgiu no pátio. Detalhe: eu me encontrava bem longe, trabalhando na Tesouraria. Ao vê-lo, o sargento Bandeira, o Sonhador – hoje funcionário aposentado da Câmara dos Deputados –, gritou:

 

– Olhem lá, aquele sargento é um jacaré, sem tirar nem pôr!

 

As gargalhadas dos outros companheiros atestaram que acabava de chegar ao Planalto Central o simpático Tio Jaca!

 

O Retorno

 

Em outubro de 1997, mais de 30 anos após meu licenciamento do Exército, retornei a Três Corações, para a comemoração dos 40 anos da Turma EsSA/1957. Compareceram 32 ex-alunos, um instrutor e um monitor, a maioria acompanhada de suas famílias. A Escola forneceu hospedagem a todos. Foram 3 dias de festividades, com apoteótico desfile junto à tropa.

 

A seguir, fotos de todas as unidades aqui mencionadas e do quadro alusivo ao reencontro.

  

Turma EsSA/1957: 40 anos 

                        Ouçamos a Canção do BPEB - Batalhão de Polícia do Exército de Brasília, de Paulo Roberto Yog de Miranda Uchôa, com a Banda de Música daquela Unidade:

 

 


Do Jumento ao Parlamento sábado, 24 de dezembro de 2016

NA CASERNA - NO 12º REGIMENTO DE INFANTARIA

NA CASERNA

NO 12° REGIMENTO DE INFANTARIA

Raimundo Floriano

 

12º Regimento de Infantaria: vista aérea

 

Apresentei-me no 12º RI, o Doze de Ouro, no dia 31 de janeiro de 1958. O quartel é uma das mais belas vistas de Belo Horizonte, incrustado no alto de um morro, na confluência das ruas Brito Melo e Timbiras, no bairro Barro Preto.

 

Para mim, nordestino e sertanejo, a vida naquela capital configurava um verdadeiro glamour. Bons cinemas, alguns exigindo dos homens paletó e gravata na entrada; namoro na praça Raul Soares; caol – prato composto de carne, arroz, ovos e linguiça – na lanchonete anexa ao Cine Candelária; quermesses na paróquia de São Sebastião; desfile das mocinhas casadoiras na avenida Afonso Pena, nas imediações do Pirulito; bailes na sede social do Cruzeiro; o dancing Montanhês, onde os minutos dançados eram marcados num cartão, picotado pelos chefes de pista; a gafieira Elite, cujo ingresso valia para toda a noite.

 

Havia algo mais que sobremaneira me fascinava: as lutas livres, aos sábados, no Ginásio Paissandu. Eu acreditava, piamente, que toda aquela encenação era verdadeira e muito sofria quando algum dos meus lutadores preferidos era trapaceado ou levava a pior num combate.

 

Dentre todos os contendores, alguns me ficaram na memória. O deputado Waldomiro Lobo, homem caridoso, que mantinha uma fundação de assistência a carentes da periferia, enfrentava Renato, o Galã da Televisão, que, ao levar uma queda, se levantava, tirava um pente do bolso e compunha a cabeleira. O massagista do Atlético Mineiro e da Seleção Brasileira Knock-Out Jack encarava o Valdemar Sujeira. Era lindo quando do Knock-Out Jack voava com as pernas estiradas para a frente, aplicava uma “tesoura” no pescoço do Valdemar e o lançava para fora do ringue. O confronto mais renhido, o que mais me empolgava, era o travado entre o grego Kostolias e o Máscara Negra, o único que não deixava suas feições à mostra.

 

Kostolias era um cara decente, do bem, lutava de acordo com as normas e recomendações do juiz. Já o Máscara era um sujeito ruim, dava chutes no baixo ventre, atacava sem a permissão do árbitro, agredia os pipoqueiros e fotógrafos, fazendo com que a plateia o odiasse. Em todas as noitadas, devido a um golpe desleal, Kostolias, que já era considerado o vencedor, acabava cedendo a vitória para o brutamontes.

 

De uma feita, porém, o juiz conseguiu manter o respeito às regras pré-estabelecidas até o fim, e não deu outra. Kostolias acabou com o Máscara Negra, que teve de ser carregado na padiola, com a assistência de médicos e enfermeiros. Da arquibancada, rugíamos de contentamento. Na segunda-feira, a notícia nos jornais e na TV: Máscara Negra, mesmo todo quebrado, exigia uma revanche, que seria realizada no sábado. Era o assunto da cidade.

 

Eu, particularmente, vibrava com a notícia. Queria ver o Kostolias arrasar de uma vez por todas com aquele mascarado. Torcia para que o dia da peleja final chegasse rapidamente. Mas, na sexta-feira, um transtorno: fui escalado para o serviço de guarda ao quartel no sábado. Para consolo meu, uma novidade: inexplicavelmente, Máscara Negra anunciou que não lutaria naquele fim de semana. Felizmente!

 

No sábado, estava eu cumprindo meu dever de militar. Após as 22h, no Corpo da Guarda, fui abordado por um colega, o sargento Zanandres, também de serviço, que esperava seu turno de fazer a ronda. O Zanandres era daquele tipo parrudo, grandalhão, risonho, que conquista a amizade de qualquer um à primeira vista. Foi direto ao assunto que mais me empolgava:

 

– Floriano, você gosta muito de luta livre, não gosta?

– Rapaz, eu não perco uma! – respondi.

– Eu o vejo sempre lá no Ginásio Paissandu. Você torce com muita paixão!

– Engraçado – estranhei –, nunca vi você lá. Da próxima vez, poderemos ir juntos. Quero ver se o Máscara Negra sai do hospital, se tem coragem para se balançar pro lado do Kostolias.

– Floriano, você tem muita raiva do Máscara Negra?

– Demais! Passei toda a semana sonhando com a revanche e levei um baita susto quando vi meu nome na escala de serviço para hoje. A estas horas, já deve estar acontecendo o combate principal. Ainda bem que o bandido me fez o favor de não aparecer por lá!

– Nem poderia! – assegurou o amigo Zanandres.

– Por quê? – indaguei curioso.

– Porque o Máscara Negra sou eu!

 

            A seguir, a Canção do 12º RI/12º BI, de Carlos de Oliveira Campos, com a Banda de Música do 12º Batalhão de Infantaria:

 


Do Jumento ao Parlamento quinta, 22 de dezembro de 2016

NA CASERNA - NA EsSA - ESCOLA DE SARGENTOS DAS ARMAS

NA CASERNA

NA EsSA -  ESCOLA DE SARGENTOS DAS ARMAS

Raimundo Floriano

 

Escola de Sargentos das Armas: vista aérea, com o rio

Verde formando um dos três corações da cidade

 

1957 foi um ano mágico. O lançamento do primeiro satélite artificial da Terra, a vitória da tenista Maria Ester Bueno em Wimbledon e a convocação de Pelé, ilustre desconhecido tricordiano, para a Seleção Canarinho não me deixam mentir.

 

Chegando a Três Corações no dia 27 de fevereiro, fui, sem que ninguém me consultasse, aquartelado no Esquadrão de Cavalaria da EsSA, onde cumpriria o período de adaptação. Logo eu, que só cavalgara jumentos no sertão sul-maranhense e detinha apenas pequena militância no manejo com muares, obtida na Companhia de Petrechos Pesados do 25º BC. Cavalos mesmo, velozes, ariscos, possantes e garbosos, como aqueles da Escola, nem nos filmes de caubói os vira.

 

A cidade tem esse nome porque os meandros do rio Verde, que a circunda, configuram três sinuosidades no formato de corações.

 

De cara, tive que me familiarizar com palavras mágicas como baia – apartamento dos equinos –; potreiro – espécie de spa para cavalos e muares; estrumeira – depósito da alimentação digerida e expelida pelas alimárias; rasqueadeira, ou rascadeira – pente de ferro para limpar o pelo das cavalgaduras; guaxuma – planta semelhante à malva, com que se faziam as vassouras para a varrição das baias.

 

No primeiro dia, querendo me enturmar com um aluno que estava de plantão no alojamento, perguntei-lhe o nome, recebendo, de pronto, a resposta:

 

  • Leja Buiú Ji!

Sem entender bulhufas, arrisquei:

– De qual Estado você é?

– Ziã Guiú – retrucou o colega.

– Mas de qual cidade? – insisti, fingindo que estava pescando alguma coisa.

– Zã dreí – vociferou o cara, já meio agastado com o interrogatório.

 

Danou-se, pensei, reconhecendo que teria de assimilar outros idiomas, se quisesse obter sucesso no curso. Mais tarde, constatei que o tal colega se chamava Élgio Benhur Ribas, era natural do Rio Grande do Sul e viera de Dom Pedrito, sua terra natal, na fronteira com o estrangeiro. Até hoje, pouca gente consegue compreender as palavras que ele pronuncia.

 

Além dos gaúchos e mato-grossenses da fronteira, havia os mineiros, os paulistas, os aratacas – nordestinos – e outros mais. Num grupinho de alunos, a conversa se assemelhava à confusão de línguas que se sucedeu na bíblica Torre de Babel. Para exprimir o mesmo pensamento, tal como uma interjeição, o gaúcho dizia “bah, chê!”; o mineiro falava “uai!”; e o nordestino exclamava “Oxente”. Cada qual na sua.

 

Para os gaúchos, meia era carpim, chifre era guampa, fila era bicha. Os paulistas diziam farol, em vez de semáforo, guia, em vez de meio-fio, pingado, em vez de café com leite. Costumeiramente, truncavam os esses dos plurais, constituindo-se em cena engraçadíssima a entrada de algum deles num boteco para pedir:

 

– Me dá dois ovo e um pastéis!

 

Idiomas à parte, e já poliglota calejado, fui tomando gosto pela Cavalaria, esmerando-me na confecção de vassouras, aperfeiçoando-me no uso da rasqueadeira, na capina da grama que teimava em nascer entre as fendas do calçamento das baias e especializando-me na limpeza destas, em que pese o aspecto de que o cavalo militar é como o tucano, ave que parece sofrer de incontinência intestinal, pois o que entra pela boca sai imediatamente pela retaguarda. Além disso, havia o ensinamento de que o cavalo não podia se deitar durante a noite, tinha que ficar sempre de pé, sob pena de o aluno se ferrar. Cavalo deitado é doença, com certeza.

 

Se não permaneci no Esquadrão, optando pela transferência para a Infantaria, foi por um pequeno detalhe, que ora, acanhadamente, revelo. Na primeira aula de equitação, ajustei as perneiras, afivelei as esporas, e, enquanto aguardava meu turno de montar, resolvi ficar de cócoras, a posição típica do nordestino preguiçoso. Indescritíveis foram as ferroadas que levei em ambos os glúteos – nádegas –, eis ter-me esquecido de que os até então inusitados utensílios, com suas rosetas afiadas, tanto davam no cavalo como no cavaleiro.

 

Promovido a 3º sargento, com curso de aperfeiçoamento, fui transferido para o 12º Regimento de Infantaria.

 

De todos os alunos da Turma de 1957, apenas um alcançou projeção internacional. Chamava-se Hector Hoffmeister. Moreno gaúcho de olhos verdes, pediu desligamento ainda no mês de junho, na intenção de se dedicar à ribalta. No ano seguinte, já estrelava os shows do Carlos Machado, o Rei da Noite do Rio de Janeiro, com performances em que imitava a atriz italiana Sophia Loren. Isso no tempo em que pontificavam no teatro de revista as consagradas vedetes Íris Bruzzi, Anilza Leoni, Eloína, Darlene Glória, Norma Bengell e Rosinda Rosa. A perfeição de seu trabalho correu mundo. Foi capa das revistas O Cruzeiro e Manchete e matéria em vários magazines estrangeiros como Time e Life.

 

Um verdadeiro Luxo!

 

                     A seguir, a Canção da EsSA - Escola de Sargentos das Armas, de Djalma C. Doudement e Venturelli Sobrinho, com Banda de Música daquela Unidade de Ensino Militar:

 

 

"

"


Do Jumento ao Parlamento quarta, 21 de dezembro de 2016

NA CASERNA - NO 25º BATALHÃO DE CAÇADORES

NA CASERNA

NO 25º BATALHÃO DE CAÇADORES

Raimundo Floriano

Pertenci às fileiras do Exército Brasileiro por mais de onze anos. Fui incorporado ao 25º Batalhão de Caçadores, 25º BC, em Teresina, PI, a 11 de fevereiro de 1955, e licenciado no dia 15 de fevereiro de 1956. A 11 de março de 1957, em virtude de concurso público, reingressei no serviço ativo, onde permaneci até 28 de março de 1967, quando, também em decorrência de concurso público, fui nomeado para a Câmara dos Deputados.

 

Além do 25º BC, servi na Escola de Sargentos das Armas, EsSA, em Três Corações, Minas Gerais, no 12º Regimento de Infantaria, 12º RI, em Belo Horizonte, capital mineira, na Companhia de Polícia do Exército da 11ª Região Militar e no Batalhão de Polícia do Exército de Brasília – BPEB –, os dois últimos no Distrito Federal.

 

Nesses onze anos, fui cabo, 3º sargento, 2º sargento e, ao ser transferido para a reserva, recebi a promoção ao posto de 2º tenente QOA R/2.

 

O Exército me deu excelente formação, responsabilidade, condições para estudar e me ensinou a trabalhar. Ao deixá-lo, sentia-me apto a enfrentar qualquer desafio na vida funcional. Por isso, guardo comigo, até hoje, o amor a essa instituição e a saudade dos bons tempos em que ali me dediquei à pátria.

 

Dentro dos propósitos deste livro, que é mostrar o lado alegre e divertido de situações por mim vividas, não poderiam ficar de fora os colegas da farda verde-oliva. Selecionei um episódio para cada uma das unidades acima citadas.

 

No 25º Batalhão de Caçadores

 

25º Batalhão de Caçadores: pavilhão do comando

 

No meu primeiro dia como soldado, deu para ver que os tempos de moleza eram coisa do passado: ganhei apelido, trabalhei feito um mouro e levei sonoríssima bronca.

 

Naquele tempo, eu era muito magro e tinha os ombros aguçados, apontando para o céu. Ao me ver, o colega recruta Alencar, que eu acabara de conhecer, botou-me o apelido de Morcego, que imediatamente pegou. Na parte da manhã, gastamos o tempo no recebimento de uniformes e equipamentos.

 

Fui lotado na Companhia de Petrechos Pesados, CPP, cujo armamento – metralhadoras e morteiros – era transportado em lombo de burros. Para mim, a pessoa mais importante da CPP, depois de seu comandante, era o sargenteante, uma espécie de chefe de pessoal. Fazia a chamada, transmitia as ordens, elaborava as escalas de serviço, lia, em frente à companhia, o Boletim Interno, no final do expediente. Para se falar com qualquer autoridade superior, era necessário pedir sua permissão.

 

No começo, eu e muitos colegas pensávamos que ele era alcunhado de sargento hiante – que tem a boca aberta – porque, no desempenho de suas funções, estava constantemente a falar com a tropa, sempre em voz alta. Por esse motivo, temíamos pronunciar tal nome perto dele. Alguém do antigo jornal Pasquim, não me lembro quem, também fez essa confusão em seu tempo de conscrito.

 

Nosso sargento hiante, digo, sargenteante era o 2º sargento Hílton. Alto, moreno, robusto, tinha o porte do sargento Garcia do seriado O Zorro. Mas só a aparência. Era ágil e esperto, bom de ginástica e um dos melhores juízes da Federação Piauiense de Futebol.

 

Pois bem, naquele primeiro dia, logo depois do rancho do almoço, o cabo Chiquito, praça velha engajada, me pegou como voluntário para ir cortar capim na Catarina, granja onde o 25º BC cultivava o pasto necessário à alimentação dos muares e cavalos argolados – em serviço no quartel.

 

Na parte da tarde, duas novidades na instrução militar. A primeira era de que o baixe-a-mão caíra. A partir de 1955, ao subordinado que se apresentasse a um superior bastaria fazer a continência, identificar-se e, em seguida, desfazer o gesto, não sendo mais necessário aguardar a ordem “baixe a mão!” A segunda era a que proibia o costume em voga nas escolas da cidade de se gritar boa! – boooooa! – quando se ouvia a voz de comando fora de forma, marche! No Exército, ao recebê-la, caberia ao militar romper a marcha – dar um passo à frente, como se fosse marchar – em absoluto silêncio.

 

Um detalhe crucial: eu, naquele turno vespertino, encontrava-me na Catarina, sob o inclemente sol teresinense, me arrebentando no corte de capim, e não recebera tão importantes recomendações. De volta ao quartel, às cinco da tarde, participei da formatura da companhia para o encerramento da jornada. Cumpriu-se, então, a rotina diária de qualquer unidade militar.

 

Veio o sargento Hílton e leu o Boletim e a escala de serviço, transmitiu as ordens para o dia seguinte e, ao final, exclamou:

 

– Companhia, sentido!

Obedecemos.

– Fora de forma, marche!

Inocentemente, eu, como fazia no Colégio Diocesano, enchi o peito e berrei:

– Booooooooooa!

 

O sargenteante bramiu:

 

– Quem foi o filho duma égua que relinchou aí?

Todos me apontaram:

– Foi o Morcego, sargento!

– Seu Morcego – sentenciou o sargento Hílton –, você vai ficar uma semana na Catarina, cortando capim, pra deixar de ser voador!

 

A Seguir, a Canção do 25º Batalhão de Caçadores, de Gustavo Barbosa, com a Banda de Música daquela Unidade:

 

 


Do Jumento ao Parlamento sábado, 17 de dezembro de 2016

TRÊS ENCONTROS

DO LIVRO DO JUMENTO AO PARLAMENTO

TRÊS ENCONTROS

(Raimundo Floriano)

 

Deputado Neiva Moreira e seu amigo Lauro Maranhão Ayres:

pausa para um descontraído papo

 

                        Balsas possui, atualmente, sete clubes sociais: a AABB, o Oito de Julho, a Associação Atlética BASA, o Centro de Tradições Gaúchas, a Associação Atlética do Banco do Nordeste do Brasil, a Liga Operária e o Clube Recreativo Balsense. Tratando-se de uma cidadezinha no sertão sul-maranhense, é clube para encardir. Há coisa de três décadas, esse número se reduzia a zero.

 

                        As festas dançantes de então eram realizadas nas residências. Os habitantes mais abastados reuniam-se em casas de família situadas na Praça Getúlio Vargas – a da Matriz –, ou nas imediações, e o arrasta-pé recebia a denominação de “vesperal” se ocorresse à tarde, ou de “baile” se à noite. Os menos apercebidos congraçavam-se nas ruas secundárias, e qualquer função, diurna ou noturna, era ali conhecida como pipiral. No arrabalde, festejavam os que Luiz Gonzaga, Rei do Baião, classificaria de “lascados”, cujo pagode se intitulava pirão-frio.

 

                        Naquele ano de 1957, o município assistiria à sua primeira festa de debutantes. Por ser inédito o acontecimento, fizeram-se contas de chegar nas idades das meninas, em arredondamentos necessários à participação no grande evento, de tal forma que Maria Iris, minha irmã, aos dezenove, foi uma das agraciadas com o artifício.

 

                        Completando exatos quinze aninhos, no dia trinta de janeiro, a pincesinha era Genoveva, filha do casal Lauro Maranhão Ayres e Ana Luíza Fonseca Ayres, locomotivas políticas e sociais que abriam as portas de seu lar para a grande festividade. Aliás, aquela moradia, numa das esquinas da Praça da Matriz, constituía-se no melhor ponto para se dançar, com seu amplo salão e moderna radiola, sem a ajuda da qual nenhum sarau poderia ser considerado chique. Havia, além de tudo, a inexcedível simpatia dos anfitriões.

 

                        A maior atração do programa, porém, viria do Rio de Janeiro, na pessoa do deputado Neiva Moreira, especialmente convidado para bailar a valsa com a Genoveva.

                        Neiva Moreira foi deputado estadual pelo PSP/MA desde 1950 e federal a partir de 1956 e até 1964, quando teve seu mandato cassado pelo Ato Institucional nº 1. Presidiu a Comissão de Transferência da Capital Federal para Brasília, sendo Segundo Secretário da Mesa de 1959 a 1960, período em que deu a mão a muitos conterrâneos que, com sua intercessão, se ajeitaram na vida e no serviço público. Em 1957, era Vice-Líder da Maioria e do PSP, quer dizer, poderoso à beça.

                        Verdadeira noite de gala assinalou a magnífica comemoração. As adolescentes, envergando os tradicionais vestidos longos, e a rapaziada, trajando a rigor, davam um brilho especial e inesquecível àquele ato sem precedentes. Na radiola, os números musicais se alternavam. A Volta do Boêmio, com Nélson Gonçalves; Conceição, com Cauby Peixoto; Only You e The Great Pretender, com The Platters; Saudosa Maloca e Iracema, com Os Demônios da Garoa; A Mulher do Aníbal, com Jackson do Pandeiro.

 

                        Depois da valsa, dançada à meia-noite, os sucessos carnavalescos também se insinuaram, com especial destaque para Maracangalha, com Dorival Caymmi; Jarro da Saudade, com Carmen Costa; Evocação, com o Bloco Carnavalesco Batutas de São José; Vai com Jeito, na voz de Emilinha Borba. Mas a coqueluche do momento, predileção da juventude balsense, era o Samba no Arpège, com Waldir Calmon e seu Conjunto.

 

                        No dia seguinte, já com caráter eleitoreiro, realizou-se um pipiral, no Grupo Escolar Didácio Santos, ou Escola da Peteca – Maria Peteca era a zeladora –, à Rua Coelho Neto, ou Rua do Zé Bento, animado por Martinho Mendes do Sax e seu Regional.

 

                        Naquela época, eu, com meus vinte e um incompletos, poderia ser definido como um ente que ouvia música popular. Num folguedo daquele jaez, ficava sempre por perto dos tocadores, enchendo-lhes os copos com cerveja ou bebida quente, munindo-os de tira-gostos ou fazendo-lhes pequenos mandados.

 

                        Nesse pipiral, encontrava-me no batente, quando Enoc, banjoísta – ou banjista –, largou seu instrumento sobre um tamborete e foi lá fora, atendendo a um chamado. Peguei o banjo e, sem a mínima noção quanto a seu manuseio, fiquei ali a lhe espancar as cordas, enquanto Martinho se esmerava no solo de um esquentado frevo.

 

                        Nesse momento, chegaram o deputado Neiva Moreira e sua comitiva. Não havia o folclórico malaquias – homem da mala com dinheiro –, mas o próprio parlamentar sacou um maço de notas de cem cruzeiros e passou a distribuí-las entre os músicos, enfiando uma cédula no bolso de cada qual do conjunto, inclusive no meu. Tremi de emoção diante daquela primeira recompensa que o apego à fascinante MPB me proporcionava. E sem remorso, porque o Enoc, ao voltar, não se deu por achado. Dirigiu-se ao deputado, chorou e igualmente recebeu sua pelega.

 

                        Cumprida toda a agenda, seguimos nossos rumos. O deputado Neiva Moreira, para a Capital Federal, onde, com o fulgor de sua inteligência, continuaria enriquecendo os trabalhos do Congresso Nacional. Eu, para um duríssimo curso em Três Corações, Minas Gerais, na Escola de Sargentos das Armas.

 

                        Muito tempo depois, em 1963, os caprichos do destino nos ocasionaram um reencontro em circunstância no mínimo curiosa.

 

                        O deputado, detido na Polícia do Exército em Brasília. Eu, sargento, Comandante da Guarda daquele quartel, responsável pela segurança.

 

                        Dirigi-me a ele, falando-lhe da famosa festa, da nota de cem e, também, da alegria que meu pai, Rosa Ribeiro, e Maria Isaura, minha irmã, sentiam ao receberem seus cartões de Natal e Ano Novo, o que o levou a esboçar uma certa expressão de alívio e manifestar seu desejo de fazer a barba e de se banhar. Providenciei, devidamente autorizado pelo Oficial de Dia, para que o barbeiro da unidade o atendesse e, mediante escolta, propiciei-lhe a oportunidade de um reconfortante banho. Era, naquela conjuntura, o que estava a meu alcance.

 

                        Em abril de 1964, enveredamos por novos caminhos em nossas vidas. O deputado, para exilar-se na Bolívia, no Uruguai, na Argentina e no México, só retornando ao Brasil em 1979, beneficiado pela Lei da Anistia. Eu, para prestar pesadíssimo concurso público de âmbito nacional para a Câmara dos Deputados, logrando a aprovação que me deu condições de ingressar em seu preeminente quadro funcional.

 

                        Hoje, como ilustres desconhecidos, cruzamo-nos, quase todos os dias, pelos corredores do Parlamento Brasileiro.

 

                        Neiva Moreira, Presidente nacional do Partido Democrático Trabalhista - PDT, prestes a assumir, na qualidade de terceiro suplente da Bancada pedetista maranhense, uma cadeira na Câmara. Eu, servidor legislativo aposentado e recontratado, a macular, com meu atrevimento, a brancura deste papel.

 

Que Deus o guarde e a mim não desampare!

 


Do Jumento ao Parlamento sexta, 16 de dezembro de 2016

O PALHAÇO O QUE É?

DO LIVRO DO JUMENTO AO PARLAMENTO

O PALHAÇO O QUE É?

Raimundo Floriano

 

Hoje tem marmelada!

 

                        1956! Eita ano danadinho de rançoso para mim!

 

                        De bom, mesmo, só as glórias do futebol balsense. Durou mais de quatrocentos dias, parecia não querer acabar, arrastando-se naquele calorão teresinense!

 

                        O ano anterior fora de altas bonanças, bolso cheio, folgança e divertimento. Incorporado ao Exército Brasileiro, em fevereiro, no 25º Batalhão de Caçadores, em junho já era promovido a cabo. E, como prêmio por ter logrado o 1º lugar na CPP - Companhia de Petrechos Pesados, cabo desarranchado. Isso significava muita grana. Quando o salário mínimo era de Cr$2.400,00, e o empresariado piauiense só pagava, na realidade, Cr$1.500,00, um cabo desarranchado ganhava Cr$4.500,00. Tal bem-aventurança se prolongou inesperadamente, pois, em novembro, época em que deveria dar baixa, fui beneficiado pela decretação de um estado de sítio, o que me proporcionou a permanência até fevereiro naquela tranquilidade financeira.

 

                        Licenciado do serviço ativo, estava eu ali, “vendo alma”, como se diz em Teresina, tomando chupa de laranja de boca de jumento.

 

                        Meu pai até que tentara ajudar, enviando carta a um primo de minha mãe, Benedito Vasconcelos, o Beni, gerente do Banco do Brasil naquela capital, solicitando-lhe o empenho em me arranjar um emprego no comércio, qualquer coisa. Beni, parente amigo e obsequioso, preferiu oferecer-me sua residência para que nela, com casa e comida, eu pudesse continuar meus estudos. Só aceitei essa ajuda porque tencionava prestar, no fim do ano, exames para a Escola de Sargentos da Armas - ESA, o que veio a ocorrer. Com minha aprovação, retornei no ano seguinte ao Exército, dando início à carreira que me propiciou condições de, mais tarde, através de concurso público de âmbito nacional, ingressar na Câmara dos Deputados, em Brasília, onde, em 1991, me aposentei.

 

                        Mas voltando à pindaíba, embora a mesa do Beni fosse farta e de primeira, faltava-me o trocado até para o cigarro. Aos vinte anos, essa prontidão era de lascar, doía fundo.

 

                        Certo dia, deparei, na Praça Rio Branco, com ex-companheiro de farda, o Adriano, ou melhor, o Jatobá, palhaço e acrobata de circo, cuja trupe se encontrava em exibição no bairro Piçarra. Conversa vai, conversa vem, contei-lhe minha desventura monetária, e ele, penalizado, prontamente me acenou com uma viração lá no circo, não era coisa muita, apenas para garantir o vício tabagista.

 

                        Ante meus argumentos de que nada entendia do metiê, Jatobá até me animou, dizendo que aquilo seria moleza, e que eu iria mesmo era resolver um problema deles, pois necessitavam de um substituto para o ajudante de palhaço, que adoecera. Nessa função, também chamada de escada – explicou-me –, eu contracenaria com ele, preparando a piada e sempre levando a pior no seu final. Comecei no dia seguinte.

 

                        O Cometa do Norte não tinha cobertura nem camarotes, só a arquibancada acomodava o respeitável público. Seu proprietário, Mister Kapa, era trapezista, mágico e hipnotizador. Jatobá, além de palhaço e trapezista, se apresentava também nas argolas. Havia outros artistas, cujos nomes não me ocorrem, e a rumbeira Francisquinha, que dançava seminua, rebolando e cantando paródias com letras bem apimentadas, constituindo-se na segunda atração da companhia. A primeira, o grande sucesso daquele mambembe, era a peça teatral que, com chave de ouro, fechava cada noite de espetáculo.

 

                        Acumulei o ofício de escada com o de relações públicas, fazendo propaganda pelas ruas do bairro. Não havia televisão e, ademais, o circo não dispunha de recursos sequer para anúncio no rádio ou no jornal. A publicidade era feita no gogó mesmo, na forma usual em todos os circos de igual porte. Como eu não sabia andar de pernas de pau, utilizava outro meio, também muito conhecido: um jumento alugado. Às tardes, montado nele, de costas para a frente, ou de frente para o rabo, como preferirem, cara pintada, eu apregoava o evento de logo mais, seguido por ensaiado pelotão de meninos que, após a passeata, eram marcados com uma cruz na testa, o que lhes garantia a entrada grátis no show.

 

                        Pelo que ainda me lembro, eu cantava, e a molecada respondia, como segue:

 

                        – O raio do Sol suspende a Lua!

                        – É o palhaço que está na rua!

                        – O raio do Sol suspende a Lua!

                        – É o palhaço que está na rua!

                        – Tombei, tombei, mandei tombar!

                        – Pedra fina no meio do mar!

                        – Essa noite, à meia-noite, o pinto piou no ovo!

                        – Foi a mulher do padeiro que teve um padeiro novo!

                        – Ô bela menina, vá dizer a sua patroa!

                        – Que hoje lá no circo há novidade e coisa boa

                        – O balanceiro da usina tá danado pra roubar!

                        – Tanto rouba na balança, quanto rouba no pesar!

                        – O cachorro quando late no buraco do tatu!

                        – Bota escuma pela boca e chocolate pelos olhos!

                        – Olha o toco no caminho!

                        – Arriba o pé!

                        – Olha o toco no caminho!

                        – Arriba o pé!

                        – Pisei na copa de meu chapéu!

                        – Mulher papuda não vai pro céu!

                        – A cama da velha não tem lençol!

                        – Por riba e por baixo é molambo só!

                        – Eu vou ali mas volto já!

                        – Vou comer maracujá!

                        – Dona Mariquinha, meu cachorro entrou aí?

                        – Entrou, entrou mas tornou a sair!

                        – Ai, Miquelina, se eu fosse como tu!

                        – Tirava a mão do bolso e enfiava no outro bolso!

                        – Mamãe, olha ela!

                        – Olha a cara dela!

                        – Mamãe, olha ela!

                        – Olha a cara dela!

                        – Eu vou-me embora, eu vou-me embora!

                        – Adeus, adeus!

                        – Segunda-feira que vem!

                        – Adeus, adeus!

                        – Quem não me conhece chora!

                        – Adeus, adeus!

                        – Que dirá quem me quer bem?

                        – Adeus, adeus!

                        – Ô João Gouveia!

                        – Sapato e meia!

                        – Ô João Gouveia!

                        – Sapato e meia!

                        – O tatu subiu no pau!

                        – É mentira do palhaço!

                        – Olha o sapo na lagoa!

                        – Xenhenhém, xenhenhém!

                        – Olha o sapo na lagoa!

                        – Xenhenhém, xenhenhém!

                        – Subi na bananeira pra pegar um urubu!

                        – Caiu de lá de cima e rasgou as pregas do bolso!

                        – Hoje tem espetáculo?

                        – Tem, sim senhor!

                        – Às oito horas da noite?

                        – Tem, sim senhor!

                        – No circo do Mister Kapa?

                        – Tem, sim senhor!

                        – Hoje tem marmelada?

                        – Tem, sim senhor!

                        – Hoje tem goiabada?

                        – Tem, sim senhor!

                        – O palhaço o que é?

                        – É ladrão de mulher!

                        – O palhaço o que é?

                        – É ladrão de mulher!

                        – Arrocha, negrada!

                        – Eeeeeeeeeei!

                        – Arrocha, negrada!

                        – Eeeeeeeeeei!

 

                        Em dezembro, o circo levantou os panos e arribou para outras plagas, encerrando minha carreira artística. Aí, eu já readquirira o otimismo e a esperança, com a aprovação no concurso para a EsSA.

 

                        Hoje, passado tanto tempo, procuro deixar na memória de meus amigos esse pregão encantador. Sempre que me é dada a oportunidade, em festinhas infantis de aniversário, faço empenho em repeti-lo, minhas filhas Elba, 10 anos e Mara, 8 anos, caprichando nas respostas. E, com enorme contentamento, posso dizer que essa malhação não foi em ferro frio. O grande escritor, jornalista e apresentador de televisão Maurício Melo Júnior acaba de perenizá-lo em seu livro O Palhaço que Perdeu o Riso, Edições Bagaço.

 

                        Com ajudas desse quilate – espero –, os palhaços sempre sorrirão, e o circo jamais morrerá.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


Do Jumento ao Parlamento quinta, 15 de dezembro de 2016

CABANO, O MELHOR GOLEIRO DO MUNDO

 

DO LIVRO DO JUMENTO AO PARLAMENTO 

CABANO, O MELHOR GOLEIRO DO MUNDO

Raimundo Floriano

 

Cabano, em defesa eletrizante: fenômeno mundial

 

                        Os festejos de junho de 1956 foram coroados por uma estrondosa ocorrência: a seleção futebolística da Liga Esportiva Balsense impusera à seleção de Carolina duas inéditas derrotas, culminando com a fratura da mão direita de João Jácome, guardião das traves carolinenses, num canhonaço do goleador Marabá. Estava lavada a honra de Balsas, freguesa de caderno daquela aprazível e hospitaleira cidade sul-maranhense. As férias de julho começaram, conseqüentemente, sob imensa euforia, e todos enchiam o peito de orgulho, saboreando o meritório feito. Nesse ambiente, teve lugar, com início no primeiro domingo, o campeonato do meio do ano.

 

                        Havia em Balsas dois times: o Bangu e o América. O Bangu era o time da elite, da alta sociedade. O América, o da classe operária, dos artífices, dos artesãos. Com um detalhe: no América, jogavam atletas da elite, e o plantel do Bangu era também composto por pessoas pinçadas do operariado. Por representar o proletariado, o América era o mais simpático, o mais querido. Em contrapartida, o Bangu era o mais vitorioso. Para quebrar a rotina dos triunfos banguenses, dar mais tempero, graça e emoção ao torneio, surgiu um terceiro time, o Flamengo, formado por balsenses alunos de colégios noutras cidades. Era o time dos estudantes. Não fugindo à regra, a equipe rubro-negra mesclava-se de jogadores do alto e do baixo clero.

 

         Na penúltima rodada, a competição estava, rigorosamente, embolada. O América, já praticamente classificado, esperava o resultado do jogo Bangu x Flamengo. Aí, a porca torcia o rabo. Se o Bangu vencesse ou empatasse, faria a finalíssima com o América. Se perdesse, a decisão seria contra o próprio Flamengo.

 

         Os banguenses, com o objetivo de mais uma vez pisarem nos brios do time operário, resolveram que, naquele jogo, ninguém do seu time chutaria com a intenção de fazer gol, ficando essa tarefa a cargo dos adversários, para que, vitoriosos, desclassificassem o América e fossem à disputa do título, no último domingo das férias. Não houve unanimidade nessa artimanha, pois a defesa do time optou pelo exercício de uma ferrenha marcação, não dando chance aos opositores de lhe vazar a meta.

 

         A partida foi empolgante, as três facções ansiando por um resultado que as favorecesse. A galera americana, diante do evidente corpo-mole praticado pelo Bangu, esperava pelo menos um empate, para tentar se sagrar campeã dali a uma semana. Os flamenguistas, esbarrando na forte defesa inimiga, suavam por todos os poros, na busca de um resultado positivo. E os banguenses, com seus chutadores ineficientes na pontaria, torciam para que os rubro-negros marcassem o seu tão esperado golzinho. O primeiro tempo terminou empatado, sem abertura do marcador.

 

         Um dos artilheiros do Bangu tinha, em decorrência de seus poderosos e certeiros petardos, o apelido de Simite – corruptela de Smith, derivada de Smith & Wesson, marca de famoso e temível revólver de fabricação ianque. Ficou ele encarregado, então, de cometer um pênalti nos minutos finais do jogo, se persistisse o empate, o que, como penalidade máxima sempre resultava em gol, classificaria os rubro-negros para o tão esperado desfecho. E assim foi feito. O apito derradeiro consignava a vitória do Flamengo pelo escore de 1 x 0. E a melancólica despedida do popular América.

 

                    

O regulamento do certame determinava que, na última rodada, não haveria jogo, declarando-se campeão o time que saísse vencedor numa cobrança de pênaltis, cinco para cada lado. E mais: apenas um jogador por time faria as cobranças. E pior: não previa alternância. Um time executaria sua série de cinco tiros e, logo após, daria lugar ao adversário para que efetivasse a respectiva.

 

         A cidade fervilhou na semana da decisão. Em todas as rodas, esquinas e calçadas, o assunto era um só. Com o América fora do páreo, a quase totalidade da população passou a depositar suas esperanças no Flamengo.

 

                     Ao Bangu restou insignificante parcela da torcida e a imensa confiança nos seus atletas, o centro-avante Simite e o goleiro Antônio Sampaio, carteiro do município, também conhecido no futebol pelo apelido de Cabano.

 

                     Pelo Flamengo, entrariam em campo o arqueiro Jônathas, goleiro da seleção, verdadeira muralha no supracitado jogo contra Carolina, e o artilheiro Luiz Henrique, o Lulu, revelação do esporte balsense. Por aqueles dias, visitava a cidade Padre Deusdedith, diretor do Colégio Arquidiocesano do Piauí, onde o Lulu estudava, que lhe serviu de conselheiro e psicólogo, tentando amenizar-lhe o peso da responsabilidade naquele jogo de adultos. E não era para menos. O garoto tinha apenas 14 anos de idade. Nos treinamentos, tanto o Lulu quanto o Simite se mostraram dignos da confiança que neles fora depositada pelos companheiros.

 

         Chegou, finalmente, a hora da onça beber água. Feito o sorteio, coube ao Flamengo executar a primeira série de cobranças. Silêncio na assistência. Cabano posiciona-se. Lulu toma distância e chuta, colocando no ângulo direito. Cabano voa lá e segura! Em seguida, carregando a bola, vai até ao Lulu, entrega-a e o cumprimenta. Catimba das mais perfeitas. Um tanto abalado, Lulu desfere o segundo disparo, dessa vez mandando a pelota para o ângulo esquerdo. Novo vôo do Cabano, que volta a segurá-la! Repete-se a catimba. Seguem-se mais três chutes do Lulu, três defesas do Cabano, dois cumprimentos com catimba e um aperto de mão de despedida.

 

                         Desolação na torcida flamenguista. Incrédula, abatida, restava-lhe, porém, um fio de esperança, eis que seu golquíper igualava-se a um paredão quase imbatível diante das linhas antagonistas e poderia – por que não? – reeditar a proeza anterior. Jônathas assume seu posto. Dá o sinal de “pronto”. Simite lasca o tirambaço, rasteiro, no cantinho. Jônathas não vê nem a cor da bola.

 

                        E o Cabano, defendendo os cinco pênaltis, ganha o título para o Bangu e consagra-se como herói de uma façanha jamais vista, antes e depois, em todo o futebol balsense, maranhense, brasileiro e mundial, digna de constar no Guiness Book of Records.

 

******

 

                        Trinta anos depois, em julho de 1986, logo após a desclassificação do Brasil pela França, nos pênaltis – Zico desperdiçara sua cobrança –, na Copa do Mundo do México, estava eu de férias em Balsas e, numa roda de moradores da cidade, formada por antigos balsenses e munícipes recém-chegados – a maioria gaúchos, plantadores de arroz e soja –, mencionei, a propósito, a histórica performance do Cabano. Os veteranos não se lembravam mais, e os novatos, simplesmente, não acreditaram!

 


Do Jumento ao Parlamento quarta, 14 de dezembro de 2016

A GRANDE SELEÇÃO

DO LIVRO DO JUMENTO AO PARLAMENTO

A GRANDE SELEÇÃO

Raimundo Floriano

 

A SELEÇÃO BALSENSE DE 1956

 De pé: Osmar Coelho - Noroel - Solino - Sato - Dico - Jônathas - Ary -

Valentim - Oliveiros - Morais

Agachados: Joãozinho Botelho - Gemi - Marabá - Lóia - Odílio - João Pedro

 

A rivalidade no futebol entre Balsas e Carolina podia ser comparada, em proporções muito maiores, à que hoje existe entre Brasil e Argentina.

 

Com uma diferença: Balsas sempre foi freguesa de Carolina. Freguesa de caderno. Todos os anos, a história se repetia, em dolorosa e vexatória rotina: no jogo de ida, em junho, durante os festejos de Santo Antônio, a Seleção Carolinense deslocava-se para Balsas e descia a ripa; no jogo de volta, em outubro, nos festejos de São Pedro de Alcântara, a Seleção Balsense dirigia-se para Carolina e entrava na taca.

 

Houve uma e vez em que, devido a problemas no sistema de comunicação entre as duas cidades, os balsenses chegaram a comemorar uma tão ansiada porém falsa vitória. Meu irmão José Albuquerque e Silva, hoje bancário aposentado, poeta e cantor, mais conhecido como Carioquinha das Meninas, que presenciou o episódio, assim o relata:

 

“Lá pelos idos da década de quarenta, dentre os acontecimentos esportivos mais importantes do Sul do Maranhão, sobressaíam os confrontos futebolísticos entre as cidades de Balsas e Carolina.

 

“O amadorismo era integral e puro. Não havia mordomias e não se falava de salários, nem de luvas, nem de bichos. A recompensa do atleta limitava-se à vitória, e a derrota era uma desonra para a cidade vencida.

 

“Não havia técnico para complicar, nem médico para justificar. Em Balsas, o futebol era comandado por meu tio Cazuza, ao passo que, em Carolina, pontificava o esforçado Dr. Ruy.

 

“Por volta de 1940, foi organizado em Balsas o mais poderoso escrete de todos os tempos, e nos arrancamos para quebrar a castanha dos pretensiosos carolinenses em seu próprio terreiro. Ainda menino, não assisti ao primeiro jogo, realizado em Carolina. Lá pelas seis da tarde do dia do jogo, o Parsondas Coelho, nosso telegrafista, matraqueou insistentemente no seu velho morse na tentativa infrutífera de saber o resultado. As monstruosas pilhas de sulfato de cobre estavam arriadas e tivemos que recorrer ao Montano, o mais conhecido medium de nossa cidade. Através dele, ficamos sabendo de nossa vitória, pelo placar de 3 X 1. Enchemo-nos de alegria e de orgulho, logo desfeitos, pois, restabelecida a comunicação telegráfica, verificamos que o espírito, informando o escore, não mencionou o time vencedor, ficando a nossa vitória por conta de uma patriotada do Montano.

 

“O jogo decisivo foi em Balsas e, dessa vez, tio Cazuza tinha uma arma infalível para derrotar os arrogantes carolinenses: o Conradinho. O desinfeliz Conradinho, no esplendor dos seus dezessete anos, era um moleque trigueiro, atarracado, de estatura mediana, cabeça de coco seco, ombros de xavante, musculatura avantajada, fortes pernas arqueadas. Seu chute, com o pé ou com a cabeça, era violento, certeiro, mortal. Era um driblador emérito e um individualista terrível. Quando arrancava para o gol como um possesso, era incontrolável e não deixava para ninguém. “Comia” toda a defesa adversária e entrava com bola e tudo.

 

“No dia da grande revanche, depois de um lauto almoço, nossos atletas foram levados para a loja de meu tio Cazuza, que funcionava como ponto de reunião e como vestiário. Já uniformizados, e ouvidas as últimas recomendações, iniciavam a longa caminhada até o campo de futebol, quando o Conradinho chamou meu tio à parte, queixando-se de uma tremenda dor de cabeça. Meu tio procurou tranqüilizá-lo e administrou-lhe uma Cafiaspirina. Jogadores à frente e torcedores logo em seguida, todos vibravam de alegria e de entusiasmo, prelibando a vingança contra o tradicional inimigo. Somente o Conradinho seguia sorumbático e cabisbaixo.

 

“Na hora do toss, nosso herói mantinha o pescoço encolhido, como se quisesse esconder a cabeça entre os ombros arqueados para a frente.

 

“Dada a saída, os carolinenses vieram logo para cima de nós. Seu time tinha disciplina tática e era bem arrumadinho num WM impecável. O infernal ataque “costurava” à vontade, e tome porrada contra nossa meta, bravamente defendida pelo Preto do Zé Valério.

 

“Lá na frente, nossos atacantes penavam tanto quanto nossa defesa. Conradinho que, a princípio, corria de lá para cá e daqui para lá como uma barata tonta, já não tinha mais pernas. Eventualmente acionado por um chutão da nossa defesa, não “pegava” na bola. Nós não conhecíamos esse negócio de regra três, e, assim, o Conradinho teve que se agüentar até o final, posto que futebol, naquele tempo, era “jogo para homem”. Encerrada a partida, amargamos uma derrota de 2 x 1, e a taça foi para Carolina.

 

“Ninguém soube dizer o que aconteceu com nosso salvador da pátria. Somente 57 anos mais tarde, ao relembrarmos o sucedido, explicou-me meu engenhoso irmão Pedro Silva que o Conradinho era bom de bola somente nas peladas, e que as chuteiras, que lhe foram impostas, funcionaram em seus pés como peias para burro.”

 

E os anos foram-se passando, sem novidade alguma, até que veio a Copa do Mundo de 1954, na Suíça, quando a Seleção Húngara encantou o planeta com seu magnífico e arrasador futebol. Aquele timaço, com estrelas do porte de Bozsik, Kocsis, Hideghuti e Puskas, fora medalha de ouro nas Olimpíadas de 1952 e, no Mundial, atropelou todos os adversários, só perdendo na final, para a Alemanha Ocidental, a quem vencera na 1ª fase por 8 x 0. Daí para a frente, todos procuraram seguir aquele exemplo e se adaptar a uma nova filosofia de organização e planejamento.

 

Balsas não ficou atrás. Em 1956, imbuída de firmes e benéficos propósitos, deu início à tão almejada reação.

 

Para começar, foi formada uma Comissão Técnica. Dela participara o advogado Esmaragdo de Sousa e Silva, meu primo, o dentista Orlando Medeiros e o também dentista Osmar de Araújo Coelho, que acumulou as funções de técnico.

 

Para o combate dos Festejos, desencadeou-se uma preparação verdadeiramente húngara, com treinamento intensivo, condicionamento físico, assistência médica, táticas, concentrações e palestras nas quais se procurava levantar o moral de todos os jogadores, tão depreciado pelos sucessivos fracassos.

 

E os carolinenses vieram! Calmos, confiantes, donos do pedaço! Dessa vez, no entanto, receberam duas belas cipoadas!

 

No primeiro jogo, o placar foi de 2 x 1, com gols dos balsenses Lóia e Marabá. Aristides marcou para os carolinenses. Esse Lóia é o mesmo Luiz Rocha, que mais tarde se elegeu deputado estadual, deputado federal, governador do Estado e, por fim – glória maior – prefeito de Balsas. Marabá, com um vigoroso pelotaço, causou a fratura da mão direita do goleiro titular de Carolina, o excelente João Jácome, que, ao desviar a bola para escanteio, sacrificou sua integridade física.

 

No segundo jogo, a contagem foi a que mais se considera definitiva no esporte: 1 x 0, gol de João Pedro.

 

******

 

Hoje, as conquistas se alternam, ora de um lado, ora do outro. Mas, na memória de todos, ficou gravada aquela maravilhosa seleção, que ora tenho a satisfação de apresentar aos que não a viram, imbatível, atuar nos gramados sul-maranhenses.

"


Do Jumento ao Parlamento sexta, 09 de dezembro de 2016

POR QUEM OS SINOS TOCAM?

DO LIVRO DO JUMENTO AO PARLAMENTO

POR QUEM OS SINOS TOCAM?

Raimundo Floriano

 

Igreja matriz, vendo-se ao fundo, à esquerda,

a casa do doutor Didácio Santos

 

O campanário da igreja matriz de Santo Antônio de Balsas, no Maranhão, é apetrechado por três sinos inesquecíveis: o grave, um dos maiores do mundo, cujo estrondo é ouvido a mais de légua de distância; o médio, de som mavioso; e o repenique, meigo e delicado.

 

Quando a Deus é servido o comparecimento à sua presença de algum cristão dali, os sinos anunciam a todos essa partida, pedindo orações, de modo sentido e piedoso, com o competente toque de sinal: duas batidas no grave e uma no médio para homem, duas no médio e uma no grave para mulher, ficando o repicado do menor dedicado às crianças. Se os três tocam juntos, em carrilhão, é chamando para missas e rezas ou manifestação de alegria.

 

Naquela madrugada, em janeiro de 1950, as jubilosas badaladas comunicavam que o dia seria de grande festa, festa de arromba. Alternando-se com elas, Martinho Mendes do saxofone e seu conjunto, no coreto da praça, em frente à igreja, abrilhantavam a alvorada, enquanto o foguetório ajudava a acordar a cidade para a inédita comemoração.

 

Pela primeira vez, Balsas receberia a visita de um senador da República. Mas não um senador qualquer. Tratava-se, simplesmente, de Vitorino Freire, do PSD maranhense, o político mais poderoso que todo o Estado já conhecera. Natural de Laje da Raposa, Pernambuco, vitorioso na Revolução de 30 e na Contra-Revolução de 32, fez carreira no Maranhão como constituinte de 1946, deputado federal até 1947 e senador daí a 1971, exercendo uma política caracterizada pela prepotência, que se denominou vitorinismo, a qual cobriu de 1947 a 1964, quando todos os governadores eleitos foram seus correligionários e por ele indicados.

 

Vitorino chegou de avião antes do meio-dia, hospedando-se no lindo casarão atrás da referida matriz, residência do farmacêutico e deputado doutor Didácio Santos, antigo e futuro prefeito, chefe político da Situação, e meu padrinho de batismo por procuração.

Com fartura, havia comida e bebida para todos os munícipes, não importando a tendência partidária. A dança era também ininterrupta, num forrobodó denominado “popular”, típico do período eleitoral, onde pobres e ricos se misturavam em sadia confraternização. Para garantir a função, de Carolina vieram Clodomir e sua orquestra. E era maravilhoso quando Clodomir pegava o pistom, executava a introdução e, dando uma de cantor, ensinava os sucessos carnavalescos para aquele ano, como o samba Nega Maluca, de Fernando Lobo e Evaldo Rui:

 

Tava jogando sinuca
Uma nega maluca
Me apareceu
Vinha com um filho no colo
E dizia pro povo
Que o filho era meu...

Ou a marchinha Daqui Não Saio, de Paquito e Romeu Gentil:

Daqui não saio
Daqui ninguém me tira
Onde é que eu vou morar
O senhor tem paciência de esperar
Ainda mais com quatro filhos
Onde é que eu vou parar...

 

Igualmente era ensaiado o hino do partido:

 

PSD é a voz do Brasil Unido
PSD nunca foi nem será vencido
Faça do voto a sua arma, o seu fuzil
Que o pessedista está de pé pelo Brasil...

 

Na comitiva do senador, como ponto culminante do evento, havia um malaquias – o homem com a mala do dinheiro. À noite, antes do comício, a meninada entrou em fila para receber cada qual uma pelega de dez cruzeiros, nota carismática que, além da cor esverdeada e do alto poder aquisitivo, trazia estampada a figura eletrizante de Getúlio Vargas.

 

Os discursos, transmitidos por potente amplificadora – serviço de alto-falantes –, interromperam só um pouco o arrasta-pé e a comilança, que tiveram seqüência logo após o pronunciamento do último orador, prolongando-se o folguedo até o sol raiar.

 

De volta para São Luís, Vitorino deixava a aplaudi-lo um povo feliz, e seguia na certeza de que, em Balsas, seus recomendados seriam bem-sufragados no pleito de três de outubro.

 

Passa-se o tempo. Agosto de 1954. Vitorino retorna a Balsas para um comício de apresentação de seus candidatos às eleições vindouras. Dessa vez, porém, já com os eleitores devidamente controlados, sua visita não teria a mesma pompa de outrora, pois não haveria alvorada, rega-bofe e “popular”, e, o que era pior, ausente estaria, também, o malaquias.

 

Programou-se apenas a queima de fogos. O comício seria precedido de música mecânica, transmitida pela amplificadora instalada na casa de meu padrinho Didácio. À tardinha, o senador embarcaria para a capital.

 

Previra-se que o senador apontaria na praça da matriz às dez horas, quando a foguetada e a música estariam dominando o ambiente. Mas, desde as oito horas, os sinos dobravam pela alma de um vivente que se fora. Aquilo constrangeu os organizadores da recepção, que decidiram esperar enquanto durasse o ato religioso.

 

Quando Vitorino Freire ali despontou, encontrou o povo contrito, os alto-falantes aguardando, os fogueteiros a postos e os sinos a gemer, o que lhe causou forte irritação, fazendo-o tomar a resolução de se dirigir à multidão de viva voz, no que foi impedido pelo reboar do sino grave.

 

Às duas da tarde, inteiramente contrafeitos, o senador e seu estado-maior se despediram e tomaram o rumo do aeroporto, antecipando o regresso. No que o avião decolou, os sinos pararam com suas plangentes troadas.

 

Só muito tempo depois, a cidade e todo o Estado vieram a saber que, naquele dia, o operário Raimundo Morais, chefe político da Oposição, mais conhecida como Pé-Rapado, contratara com a Casa Paroquial, mediante pessoa de sua inteira confiança, por pura picardia, a inusitada desconformidade de seis horas de sinal.

 

Senador Vitorino Freire:

domínio político no Maranhão

"


Do Jumento ao Parlamento quinta, 08 de dezembro de 2016

OS FESCENINOS

DO LIVRO DO JUMENTO AO PARLAMENTO

OS FESCENINOS

Raimundo Floriano

 

Luiz Berto, o fescenino-mor

 

                        No decurso desta obra literária, duas figuras serão recorrentes, vez em quando virão à baila: meu cartão de visitas que, com sua forma de definir, de modo rebuscado, habilidades corriqueiras, tem provocado uma série de divertidas situações, e o escritor Luiz Berto Filho, pernambucano de Palmares, de quem agora me ocupo.

 

                        Nossa amizade vem dos tempos da caserna. Eu, na graduação de 2º sargento, servindo no Batalhão de Polícia do Exército de Brasília – BPEB, era monitor do Curso de Formação de Sargentos, ministrado para vários cabos – entre os quais Luiz Berto –, enviados pelas diversas unidades da 11ª Região Militar.

 

                        Tão logo foi promovido a 3º sargento, Luiz Berto, elevado a nosso círculo, começou a ser melhor conhecido como pessoa, revelando-se um cara de muita cultura, devorador de livros, escritor iniciante, com alguns trabalhos já publicados em revistas de Goiânia, de onde viera, e de uma fabulosa presença de espírito para formar frases de efeito. É daqueles que podem perder o amigo, mas não perdem a piada, geralmente ferina, que ele dispara numa rapidez acachapante.

 

                        Naquele quartel, tomamos parte – eu como coadjuvante – em várias brincadeiras e gozações, dentro da sã camaradagem que ali reinava, tendo como alvo principal o barbeiro Osmar, funcionário civil habitante de nosso alojamento, que pegava corda com muita facilidade. Só para registrar, aqui relembro que esse amigo paisano, num dia de muita sorte, ganhou na Loteria Federal, ficou rico e, astucioso que era, passou a nos devolver todas as empulhações de que fora vítima.

 

                        Em março de 1967, deixei o serviço ativo do Exército e ingressei na Câmara dos Deputados. Em agosto de 1968, Luiz Berto seguiu o mesmo caminho, ficando lotado, a pedido meu, na Diretoria de Patrimônio, onde eu já trabalhava.

 

                        Nossa diretora era a doutora Atyr Emília de Azevedo Lucci, a quem nós chamávamos de “dona Atyr”, bela morena mato-grossense, mãe do escritor Fafão, que fazia questão de ter, trabalhando consigo, o maior número possível de ex-sargentos. Houve época em que o Patrimônio era também conhecido como BGP – Batalhão da Guarda Presidencial. Gostava ela de nos chamar para uma conversa descontraída e se divertia com nossas tiradas, principalmente das do espirituoso Luiz Berto. Chegava a explodir em sonoras gargalhadas, o que fez, um dia, dona Esther Maria Piquet Martin, chefe da Mecanografia, colega expansiva e muito querida por todos os funcionários da Casa, perguntar, sorridente e curiosa:

 

                        – Atyr, quem são esses dois sujeitos com cara de nordestino e sotaque idem que tanto a divertem?

 

                        Ao que dona Atyr, com sua refinada ilustração e exemplar elegância, respondeu:

 

                        – São dois fesceninos!

 

                        Com isso, ela queria dizer que éramos satíricos, jocosos, facetos, irônicos, contávamos histórias sensuais e piadas um pouco apimentadas, que sabíamos serem do agrado de todos. Em resumo, seríamos, hoje, denominados sacanas, no bom sentido.

 

                        A partir de 13 de dezembro de 1968, quando o Congresso Nacional foi fechado pelo AI 5, pouca coisa tínhamos a ocupar nosso intelecto durante o expediente. Aí, Luiz Berto deu asas a sua fertilíssima imaginação. Criou o conjunto Os Demônios da Copa, comigo no cavaquinho, Wolmar Renê Alves Dornelles no violão, Aurino Sant’Ana das Neves, o Tira-Teima, no pandeiro e Asclepíades Vasconcelos Abreu e ele no vocal, o qual, nas horas de folga e em datas festivas, exibia seus dotes sonoros. Em seguida, instituiu a Ordem do Rabo e da Espora, com que agraciava os colegas descuidados, pregando-lhes, nas ancas ou nos calcanhares, os mencionados adereços.

 

                        Mas, como já disse, eu era um simples figurante. Luiz Berto, sim, era um fescenino qualificado. Seu primeiro livro, A Guerrilha de Palmares, tem como centro das ações a Zona do Baixo Meretrício – ZBM de Palmares. No segundo, A Prisão de São Benedito, o santo vai preso por se encontrar entronizado na mesma ZBM. O Romance da Besta Fubana, seu terceiro e premiadíssimo livro, cuida de uma república separatista com sede na citada ZBM. Em A Serenata, seu quarto livro, desenrola-se uma embevecedora seresta na indefectível ZBM. Quanto ao quinto e último livro, uma peça teatral, o nome já diz tudo: Peibufo Etc. e Coisa e Tal, ou Esta Zona Tem Governo.

 

                        Muito me desvanece a honra de ter sido o revisor de toda essa produção.

 

                        Só apresentava sua declaração de Imposto de Renda no último dia e na última hora. Dizia que, até lá, o governo poderia editar nova lei beneficiando-o. No que tinha certa dose de razão: naquele tempo, o prazo era, invariavelmente, prorrogado por mais trinta dias!

 

                        Luiz Berto poderia, hoje, reivindicar para si o mérito de ter inventado o mal do século, o vírus, num tempo em que nem existiam ainda os microcomputadores. Em 1970, o Patrimônio recebeu uma calculadora Olivetti Divisuma, máquina de última geração, que executava uma divisão ou extraía uma enésima raiz em poucos segundos. Era um avanço. Luiz Berto logo se assenhoreou de seu manuseio. Como a máquina era de uso comum, ele, ao desligá-la, deixava-a armada de tal forma – acho que programava a divisão do número 1 por 999.999.999.999.999 – que o próximo usuário, ao plugá-la, era surpreendido pelo desencadear de um inevitável trek-trek-trek, com a Olivetti a desenvolver as operações, parecendo um engenho de quebrar pedra, o que durava uns dois minutos.

 

                        Os colegas não se agastavam. Deviam-lhe favores, porque ele era um mestre na Matemática. Naquele tempo, todos estudavam, em busca do diploma universitário, e Luiz Berto os ajudava, levando-os a entender a terrível disciplina. Era – habilidade que até hoje conserva, potencializada pelo teclado do micro – um dos melhores datilógrafos que conheci e, de bom grado, quebrava o galho de qualquer um que a ele recorresse.

 

                        Relevando suas presepadas, os colegas laboravam em pleno acerto. Luiz Berto não é de esquentar a cabeça. Leva a vida numa boa, não guarda rancores, perdoa a todos. Mas ai de quem com ele se aborrece. Chove no molhado. A filosofia de Luiz Berto pode se resumir na letra do forró Valsa, Neném, de Jackson do Pandeiro:

 

“Quem tiver raiva de mim

E não puder se vingar,

Bote a corda no pescoço

E dê-me a ponta pra puxar.”

 

                        Nunca foi pessoa de se ater muito tempo ao que quer que seja. Mas era um cabra bom para dar início a qualquer armação. Em 1972, falei-lhe, sem muito entusiasmo, sobre minha pretensão de fundar uma seita, mas sem caráter religioso – não tomo em vão o santo nome de Deus –, e lhe dei as coordenadas. Topou no ato! Na semana seguinte, já realizávamos os primeiros cultos da Igreja Sertaneja, da qual éramos antístites – bispos, como nas inúmeras seitas que hoje por aí existem –, cujos templos englobavam todos os bares, botecos e biroscas da cidade, onde se pudesse consumir uma boa cachaça. Tínhamos um jornal, O Gole – sendo ele o redator-chefe –, onde esbanjávamos criatividade e bom humor. Paralelamente, a todo vapor, funcionava a Banda da Capital Federal, objeto de página especial neste livro. A Igreja Sertaneja durou até 1975. Se havia ovelhas tresmalhadas nesses movimentos etílico-musicais? Sobrando, meus amigos, aos magotes, a dar com pau, numa proporção de 14 por 1! Em 1976, partimos para mais outra: fundamos o bloco de sujos Sumo do Guará.

 

                        Emblemático é seu desapego pelas coisas materiais. Ajuda a todos, principalmente a seus amigos de Palmares, quando por aqui chegam à busca de orientação ou refrigério. Só por isso, já merece uma estátua no principal logradouro público daquela cidade.

 

                        Essa figura ímpar sumiu de Brasília. Foi para Pernambuco, que é seu pasto, seu berço. Pelo que conheço dele, sei que deve estar pintando e bordando por lá.

 

                        Ainda há pouco, tive notícias suas. Encontrei-me com a Isaura Costa Garcia, a mais formosa e faceira aposentada afro-baiana do Parlamento Brasileiro. É sempre uma grande alegria rever a Isaura. Natural de Brejolândia, fraternal conterrânea de minha mulher, com ela converso animada e descontraidamente, sem papas na língua. Nesse dia, tinha ela novidade para me contar:

 

“Raimundo Floriano, em dezembro, eu estava dando um giro pelo Nordeste e, lá no Recife, entrei em contato telefônico com o Luiz Berto. Para matarmos a saudade, combinamos nos encontrarmos no dia seguinte em frente ao Banco do Brasil. Cheguei antes da hora combinada e fiquei à espera. Um tempão depois que o banco abriu, ele apontou. Estacionou o carro, e aí aconteceu algo que me cortou o coração. Com dificuldade, ele desembarcou, apoiando-se em duas muletas. Ao cumprimentá-lo, não me contive e perguntei:

– O que foi isso, cara, não sabia que você estava nessa. Foi paralisia? Desastre?

 

E ele, sem se perturbar, com a cara mais sonsa do mundo:

 

– Que nada, Isaurinha, o trânsito aqui no Recife está de lascar. Por isso, sempre que venho ao centro, trago estas muletas, para poder utilizar as vagas destinadas aos deficientes físicos!”

 

É ou não é um rematado fescenino esse nosso amigão?

 


Do Jumento ao Parlamento quarta, 07 de dezembro de 2016

OS ALMOCREVES

DO LIVRO DO JUMENTO AO PARLAMENTO

OS ALMOCREVES

Raimundo Floriano

 

Dom Ratinho, Raimundo Floriano, Afonso e Rosimar:

Três em riba dum!

 

                        Sei que vou enfrentar uma pedreira! Ainda nem comecei a narrar os acontecimentos, e já aparece um indivíduo, desses que só sabem é meter gosto ruim, querendo impugnar meu trabalho. Abstenho-me de identificá-lo. Nutro por todas as pessoas citadas nominalmente neste livro um sentimento de respeito, ou de admiração, ou de simpatia, ou de amizade, ou de tudo isso junto.

 

                         O sujeitinho se aproxima e fala assim:

 

                        – Raimundo Floriano, você está cometendo um plágio. A obra Do Jumento ao Parlamento já existe. Foi escrita pelo padre Antônio Vieira, jesuíta português, lá por volta de 1650.

 

                        Santa ignorância! Não perco o tempo com o energúmeno, por duas simples razões: nunca dei colher de chá pra muquirana e não sou lagoa, pra refrescar fiofó de pato. Esse nobre jesuíta, orador sacro e escritor, autor de Cartas e Sermões, viveu no Brasil no século XVII, e nosso Poder Legislativo só começou a funcionar no início do século XIX. O padre a quem ele se refere é outro, que teve marcante atuação no cenário religioso, político e cultural brasileiro no século passado, sendo, também, o principal e mais ilustre almocreve de nosso país.

 

                        Almocreve, como todos estão cansados de saber, é a pessoa que lida com mulos, o mesmo que muares, o mesmo que burros. Como os muares são filhos de jumento com égua, ou de cavalo com jumenta, almocreve, por extensão, é a pessoa que cuida de jegues.

 

                        O padre Antônio Vieira a quem me reporto, eleito deputado federal para a legislatura 1967-1971, nasceu em 1919, na cidade de Várzea Alegre, Estado do Ceará. Fez seus estudos eclesiásticos no Crato e Fortaleza. Ordenado sacerdote, foi professor durante 11 anos no Seminário do Crato onde dirigiu também o jornal da Diocese. Foi vigário de Icó e cura da Catedral de Iguatu. Escreveu habitualmente em jornais do Ceará, e seus artigos sempre trouxeram mensagens de bondade, esperança e amor. Seus livros Cem Cortes Sem Recortes e O Verbo Amar e Suas Complicações se esgotaram em poucos meses.

 

                        O Jumento, Nosso Irmão é sua obra-prima. Publicado em 1964 pela Livraria Freitas, é um tratado sobre o jumento, focalizando-o na História, Religião, Economia, Folclore e Literatura. Esgota o assunto.

 

                        Nesse tratado, ficamos sabendo que os primeiros jumentos aqui chegados parece terem sido trazidos por dona Ana Pimentel, esposa e procuradora de Martim Afonso de Sousa, donatário das capitanias hereditárias de São Vicente e do Rio de Janeiro, em 1534, na caravela Galga, e que tal alimária vive, normalmente, de 25 a 30 anos.

 

                        A Câmara dos Deputados conheceu também outro grande almocreve, na pessoa do deputado paraibano Januário Feitosa, representante do Ceará. Dele cuidarei mais adiante, dedicando-lhe página especial. Em Januário Feitosa, Uma Vida e Muitas Lutas, Raimundo Eufrásio Oliveira narra esta sua aventura no início da adolescência: aos 14 anos, recebeu do pai a incumbência de conduzir de Lagoa do Mato para Cajazeiras, na Paraíba, uma tropa de burros e jumentos, com 18 cargas de rapadura, pesando cento e vinte quilos cada uma. Em um dia e meio de viagem, ele cumpriu a tarefa com pleno êxito.

 

                        Grandes almocreves são o poeta Orlando Tejo e o escritor Esmeraldo Braga. Funcionários do Senado Federal, ambos produziram a peça teatral A Hora e a Vez do Jumento, que aborda o tema da extinção dos jericos na desenfreada matança para exportação de sua carne.

 

                        Sobre idêntico extermínio, outro letrado almocreve, o cordelista alagoano Enéias Tavares dos Santos, no romance Lamentação de um Cavalo Indo para o Matadouro, versejou:

 

   “O povo vive à deriva,

Sem religião, sem nada.

Por isso é que um fazendeiro,

Criatura desalmada,

Agora, em Minas Gerais,

Vendeu vários animais

Para uma charqueada.

 

Na carrada, iam jumento

Cavalo, burro e cachorro.

Um zurrava, outro latia,

Como quem pede socorro,

Ou, talvez, fossem dizendo:

Pelo jeito que estou vendo,

Desta vez eu sei que morro!

 

                              Damião Galdino da Silva, o Damião do Jegue, foi o mais popular almocreve do Parlamento.

 

                             Também funcionário da Câmara Alta, Damião nasceu no município paraibano de Espírito Santo. Em 1962, como soldado do Exército Brasileiro, integrou o Batalhão Suez e, no Oriente Médio, recebeu condecoração da ONU. De volta ao Brasil, reingressou na vida paisana e foi admitido no Senado como Motorista.

 

                           Em Brasília, equipou um jumento com faróis, sinaleiras, pisca-pisca, buzina, freios, velocímetro, bateria e outros acessórios. A esse veículo, deu o nome de Jericar. Bastou dar uma circulada na Praça dos Três Poderes com sua invenção, para ter, no dia seguinte, o nome e as fotos, dele e do jegue, publicados nos maiores jornais de todo o mundo.

 

                           Simpatizei com Damião do Jegue na primeira vez em que o vi, por um motivo pra lá de especial: sabia ele todo o repertório de forrós, sambas, marchinhas e frevos compostos ou interpretados por Jackson do Pandeiro, o Rei do Ritmo. Sendo eu um jacksoniano juramentado, ouvi-o por mais de hora. Cantou muitas músicas que eu não conhecia e me ensinou a letra completa de várias outras.

 

                                 Em 1980, Damião resolveu doar o Jericar ao Papa João Paulo II, quando de sua visita ao Brasil. Criou-se, aí, um problema diplomático, e o Itamaraty não sabia como proceder para entregar o presente ao Santo Padre em Roma. A CNBB ficou de estudar o assunto.

 

                             Em 1983, depois de tanta espera, Damião iniciou uma série de atos de protesto. Subiu a rampa do Palácio do Planalto com o Jericar, acorrentou-se à Torre de TV, escalou o mastro da Bandeira Nacional e ameaçou suicidar-se, fez greve de fome, tudo isso sob o pretexto de conseguir mais atenção para o sofrido povo nordestino. Mais tarde, chegou a se candidatar a um cargo eletivo, obtendo votação inexpressiva.

 

                                     Era um agitador cultural, um cara criativo, um sonhador. Pena que tenhamos sido prematuramente privados de seu convívio!

 

                        Também eu fui um almocreve em minha infância e no Exército Brasileiro, servindo na Companhia de Petrechos Pesados - CPP do 25º Batalhão de Caçadores, Escola de Sargentos das Armas e 12º Regimento de Infantaria, onde todo o armamento de grande porte – metralhadoras e morteiros –, munição e suprimentos era hipotransportado, quer dizer, nas costas de muares, isso até fins de 1958, quando se iniciou a motorização.

 

                             Quando eu era menino, meu pai possuía dois jegues: o Jumento Velho e o Dom Ratinho. O Jumento Velho, como o próprio nome faz perceber, já trintenário, recebera carta de alforria e era mantido, na ração e no pasto, com tratamento especial, em merecida aposentadoria. Por seu turno, o Dom Ratinho, moço ainda, esbanjava polivalência, constituía-se em pau para toda obra.

 

                                      Naquele tempo, não existiam, ainda, nas plagas sul-maranhenses, água encanada e botijão de gás. Todos os dias, bem cedinho, púnhamos a cangalha no lombo do Dom Ratinho, pendurávamos nela dois caixotes, cada qual com duas latas de querosene vazias de 18 litros, e íamos ao rio buscar o precioso líquido. Uma vez por semana, à tarde, colocávamos-lhe a cangalha, equipada com 4 cambitos, e rumávamos para a mata, em busca de lenha para uso nos fornos e fogões. Na época da colheita, ele trazia de nossa roça, a 12 quilômetros da cidade, vencendo íngremes ladeiras, em abarrotados jacás, toda a produção de melancia, jerimum, macaxeira, milho, arroz, feijão e fava, num constante vai-e-vem.

 

                                       Aos domingos, todo encilhado, transformava-se em veículo de passeio. Levava-nos ao campo de aviação para vermos a chegada dos passageiros, uma das poucas diversões da cidade.

 

                                  Ocorria, muitas, vezes, não termos muita paciência para gastar tempo botando-lhe arreios. Era apenas um cabresto, e olhe lá. Como só dispúnhamos do Dom Ratinho, eu e dois dos meus irmãos, Afonso e Rosimar, montávamos em seu espinhaço, em pêlo, e saíamos a dar um giro pela cidade. Ao passarmos pelas ruas, era arriscado ouvirmos algum gaiato gritar:

 

                                            – Três em riba dum! A berruga é no cu dum!

 

                                              É como dizia o deputado Padre Antônio Vieira, ao prefaciar sua obra-prima:

 

Há um jumento na história de todo menino do sertão.

 


Busca


Leitores on-line

Carregando

Arquivos


Colunistas e assuntos


Parceiros