FILOSOFANDO
Raimundo Floriano
Vira e mexe, e eu fico a evocar a Seção de Habitação da Câmara dos Deputados.
Com justificado orgulho e real motivo. Participei do seu nascedouro, sob a direção do eruditíssimo doutor Goiano Braga Horta, o cobrão, em outubro de 1972. Quando assumi sua chefia, éramos 5 funcionários. Ao deixá-la, em junho de 1980, por irresistível compulsão e sagaz manobra que a transformou em Coordenação, perfazíamos o total de 52.
Pois bem, estávamos em outubro de 1979, e a ocasião se afigurava propícia aos trabalhos de impermeabilização dos tetos de todos os edifícios funcionais, duramente castigados no decorrer da última estação chuvosa, origem de constantes e pertinentes reclamações dos deputados quanto a ocorrência de infiltrações e vazamentos. Realizada a competente licitação, recebi a incumbência de elaborar um documento a ser assinado pelo 4º Secretário, comunicando aos ocupantes dos imóveis o início dos serviços. Ao redigi-lo, solicitei-lhes a benevolência da compreensão diante dos incômodos indesejáveis que a execução da obra fatalmente lhes acarretaria.
Encaminhada a minuta à apreciação superior, esbarrei com o severo crivo do doutor Goiano, então Chefe do Gabinete da Diretoria Administrativa, que me devolveu o esboço, anotando em sua margem: “Incômodos indesejáveis? Não é uma redundância?”
O Goiano é meu amigo. Prova disso é que, nos tempos das vacas magras, quando me vi em sérios apuros financeiros, ele foi meu avalista. Sempre tive a humildade de submeter à sua peneira as coisas que escrevo, e disso me vem uma grande recompensa, pois ele é sincero na apreciação e magnânimo no elogio. Se me manda cortar, eu corto. Se me ordena acrescentar, eu acrescento. Se desaprova tudo, papelada no lixo. É pessoa por quem nutro o máximo de respeito e admiração.
Saí da Seção de Habitação em 1976, como consta da correspondência ao final deste relato, e retornei em 1980, mercê de indicação sua, para chefiá-la.
Guardo dele um ensinamento:
– Raimundo, faço questão de publicar tudo o que produzo. Ver seus textos impressos em jornais ou revistas é, para quem escreve, o melhor prêmio.
E dele, também, relembro uma passagem engraçada.
Um dia, ele me disse:
– Sabe, Raimundo, eu agora estou tomando um medicamento que é tiro-e-queda para reavivar a memória!
– Então, Goiano, quem está precisando dele sou eu. Ando muito esquecido. Parece até que, como acredita a sabedoria popular, mijei dentro d’água. Tudo o que aprendo num dia, esqueço no outro. Como é o nome desse remédio?
– Espere um pouco!
Aí, ele pegou o telefone e ligou para alguém:
– Amor, como é o nome daquele remédio que estou tomando para a memória?
Depois de um breve diálogo, desligou e virou-se para mim:
–Raimundo, o nome é Phytina, com ipsilone!
– Goiano, no Maranhão, dizem que bom mesmo para a memória é pequi.
– Como assim?
– Falam por lá que quem come pequi, passa o dia todo se lembrando!
Mas voltemos às impermeabilizações.
Aquela observação buliu com as minhas incertezas. Fiquei a meditar sobre a sutileza do sofisma e, colocando em ordem minhas lucubrações, retornei o processo com a seguinte justificação, em folha de papel à parte:
“Doutor Goiano,
A Língua Portuguesa é cheia de armadilhas e atropelos. Na análise sintática, por exemplo, é imprescindível o estudo acurado da conjunção, cuja extensa classificação deve ser memorizada, bem como de cor deve-se aprender todo o emaranhado e enfadonho elenco das normas que regem o assunto. Nas rodas eruditas, quando a mulher se encontra no período, é certo ouvir-se dizer:
– Está de regras!
Receber socialmente, é uma arte. Frequentar, uma ciência. O momento apropriado de se chegar a uma residência e a hora exata de se bater em retirada dão o toque de distinção num bom relacionamento. Caso contrário, o cacete, a maçada e a amolação geram tédio e desprazer naqueles que abrigam ou acolhem. Nos ambientes sofisticados, se uma colunável vivencia o embaraço, dela afirma-se com segurança:
– Está de visita!
As providências de que trata este processo têm por finalidade sanar os transtornos causados pela umidade e pelas goteiras, cujos malefícios nossos arquitetos e engenheiros abominam, sendo tal o desconforto que, nas empreiteiras, se declara apropriadamente a respeito da mulher à qual acontece a ocorrência:
– Está de pingadeira!
A maresia e o balanço do mar são fontes frequentes de enjoos e indisposições, que acometem os novatos na faina de navegar. No litoral, a marujada é vezeira em asseverar quanto à mulher a quem sucede o veículo:
– Está de paquete!
A fluidez do catamênio, além de salutar, denota que a mulher se encontra em gozo de perfeita higidez e pronta para o maravilhoso milagre da multiplicação. A ausência de menarquia, nos dias esperados, irrita, aborrece e contraria, chegando a lhe exigir até mesmo o uso de remédios para provocar o ciclo. E sobre ela asseguram os médicos, ao lhe advir a menorreia:
– Está de incômodo!
Porque, segundo o Aurélio, conjunção, período, regras, embaraço, visita, escorrência, pingadeira, veículo, paquete, catamênio, menarquia, ciclo, menorreia e incômodo são sinônimos de menstruação. E não é, pois, a menstruação um incômodo desejável?”
Diante desses argumentos, foi a minuta, sem restrições, aprovada pela Alta Administração da Casa e assinada em sua forma original.
Tendo sido os serviços prestados a contento.
Paquete Norueguês Leeward: Raimundo Floriano
em cruzeiro pelo Caribe
Goiano Braga Horta, inestimável amigo e mentor:
severo na apreciação e pródigo no elogio