TU TENS MEDO
Cecília Meireles
Acabar.
Não vês que acabas todo o dia.
Que morres no amor.
Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo.
Que te renovas todo dia.
No amor.
Na tristeza
Na dúvida.
No desejo.
Que és sempre outro.
Que és sempre o mesmo.
Que morrerás por idades imensas.
Até não teres medo de morrer.
E então serás eterno.
Não ames como os homens amam.
Não ames com amor.
Ama sem amor.
Ama sem querer.
Ama sem sentir.
Ama como se fosses outro.
Como se fosses amar.
Sem esperar.
Tão separado do que ama, em ti,
Que não te inquiete
Se o amor leva à felicidade,
Se leva à morte,
Se leva a algum destino.
Se te leva.
E se vai, ele mesmo…
Não faças de ti
Um sonho a realizar.
Vai.
Sem caminho marcado.
Tu és o de todos os caminhos.
Sê apenas uma presença.
Invisível presença silenciosa.
Todas as coisas esperam a luz,
Sem dizerem que a esperam.
Sem saberem que existe.
Todas as coisas esperarão por ti,
Sem te falarem.
Sem lhes falares.
Sê o que renuncia
Altamente:
Sem tristeza da tua renúncia!
Sem orgulho da tua renúncia!
Abre as tuas mãos sobre o infinito.
E não deixes ficar de ti
Nem esse último gesto!
O que tu viste amargo,
Doloroso,
Difícil,
O que tu viste inútil
Foi o que viram os teus olhos
Humanos,
Esquecidos…
Enganados…
No momento da tua renúncia
Estende sobre a vida
Os teus olhos
E tu verás o que vias:
Mas tu verás melhor…
… E tudo que era efêmero
se desfez.
E ficaste só tu, que é eterno.
A BOA VISTA
Castro Alves
Era uma tarde triste, mas límpida e suave…
Eu — pálido poeta — seguia triste e grave
A estrada, que conduz ao campo solitário,
Como um filho, que volta ao paternal sacrário,
E ao longe abandonando o múrmur da cidade
— Som vago, que gagueja em meio à imensidade, —
No drama do crepúsculo eu escutava atento
A surdina da tarde ao sol, que morre lento.
A poeira da estrada meu passo levantava,
Porém minh’alma ardente no céu azul marchava
E os astros sacudia no vôo violento
— Poeira, que dormia no chão do firmamento.
A pávida andorinha, que o vendaval fustiga,
Procura os coruchéus da catedral antiga.
Eu — andorinha entregue aos vendavais do inverno.
Ia seguindo triste p’ra o velho lar paterno.
Como a águia, que do ninho talhado no rochedo
Ergue o pescoço calvo por cima do fraguedo,
— (P’ra ver no céu a nuvem, que espuma o firmamento,
E o mar,-corcel que espuma ao látego do vento…
Longe o feudal castelo levanta a antiga torre,
Que aos raios do poente brilhante sol escorre!
Ei-lo soberbo e calmo o abutre de granito
Mergulhando o pescoço no seio do infinito,
E lá de cima olhando com seus clarões vermelhos
Os tetos, que a seus pés parecem de joelhos!…
Não! Minha velha torre! Oh! atalaia antiga,
Tu olhas esperando alguma face amiga,
E perguntas talvez ao vento, que em ti chora:
“Por que não volta mais o meu senhor d’outrora?
Por que não vem sentar-se no banco do terreiro
Ouvir das criancinhas o riso feiticeiro
E pensando no lar, na ciência, nos pobres
Abrigar nesta sombra seus pensamentos nobres?
Onde estão as crianças-grupo alegre e risonho
— Que escondiam-se atrás do cipreste tristonho…
Ou que enforcaram rindo um feio Pulchinello,
Enquanto a doce Mãe, que é toda amor, desvelo
Ralha com um rir divino o grupo folgazão,
Que vem correndo alegre beijar-lhe a branca mão?…~
É nisto que tu cismas, ó torre abandonada,
Vendo deserto o parque e solitária a estrada.
No entanto eu estrangeiro, que tu já não conheces—
No limiar de joelhos só tenho pranto e preces.
Oh! deixem-me chorar!… Meu lar… meu doce ninho!
Abre a vetusta grade ao filho teu mesquinho!
Passado— mar imenso!… inunda-me em fragrância!
Eu não quero lauréis, quero as rosas da infância.
Ai! Minha triste fronte, aonde as multidões
Lançaram misturadas glórias e maldições…
Acalenta em teu seio, ó solidão sagrada!
Deixa est’alma chorar em teu ombro encostada!
Meu lar está deserto… Um velho cão de guarda
Veio saltando a custo roçar-me a testa parda,
Lamber-me após os dedos, porém a sós consigo
Rusgando com o direito, que tem um velho amigo..
Como tudo mudou-se!… O jardim ‘stá inculto
As roseiras morreram do vento ao rijo insulto…
A erva inunda a terra; o musgo trepa os muros
A ortiga silvestre enrola em nós impuros
Uma estátua caída, em cuja mão nevada
A aranha estende ao sol a teia delicada!…
Mergulho os pés nas plantas selvagens, espalmadas,
As borboletas fogem-me em lúcidas manadas…
E ouvindo-me as passadas tristonhas, taciturnas,
Os grilos, que cantavam, calaram-se nas furnas…
Oh! jardim solitário! Relíquia do passado!
Minh’alma, como tu. é um parque arruinado!
Morreram-me no seio as rosas em fragrância,
Veste o pesar os muros dos meus vergéis da infância,
A estátua do talento, que pura em mim s’erguia,
Jaz hoje — e nela a turba enlaça uma ironia!…
Ao menos como tu, lá d’alma num recanto
Da casta poesia ainda escuto o canto, —
Voz do céu, que consola, se o mundo nos insulta,
E na gruta do seio murmura um treno oculta.
Entremos!… Quantos ecos na vasta escadaria,
Nos longos corredores respondem-me à porfia!…
Oh! casa de meus pais!… A um crânio já vazio,
Que o hóspede largando deixou calado e frio,
Compara-te o estrangeiro, caminhando indiscreto
Nestes salões imensos, que abriga o vasto teto.
Mas eu no teu vazio — vejo uma multidão
Fala-me o teu silêncio — ouço-te a solidão!…
Povoam-se estas salas…
E eu vejo lentamente
No solo resvalarem falando tenuemente
Dest’alma e deste seio as sombras venerandas
Fantasmas adorados — visões sutis e brandas…
Aqui… além… mais longe… por onde eu movo
o passo,
Como aves, que espantadas arrojam-se ao espaço,
Saudades e lembranças s’erguendo — bando alado
— Roçam por mim as asas voando p’ra o passado.
BÁLSAMO
Casimiro de Abreu
Eu vi-a lacrimosa sobre as pedras
Rojar-se essa mulher que a dor ferira!
A morte lhe roubara dum só golpe
Marido e filho, encaneceu-lhe a fronte,
E deixou-a sozinha e desgrenhada
- Estátua da aflição aos pés dum túmulo! -
O esquálido coveiro p'ra dois corpos
Ergueu a mesma enxada, e nessa noite
A mesma cova os teve!
E a mãe chorava,
E mais alto que o choro erguia as vozes!
.......................
No entanto o sacerdote - fronte branca
Pelo gelo dos anos - a seu lado
Tentava consolá-la
A mãe aflita
Sublime desse belo desespero
As vozes não lhe ouvia; a dor suprema
Toldava-lhe a razão no duro trance.
"Oh! padre! - disse a pobre s'estorcendo
Co'a voz cortada dos soluços d'alma -
"Onde o bálsamo, as falas d'esperança,
"O alívio à minha dor?!"
Grave e solene,
O padre não falou - mostrou-lhe o céu!
IGREJA
Carlos Drummond de Andrade
Tijolo
areia
andaime
água
tijolo.
O canto dos homens trabalhando trabalhando
mais perto do céu
cada vez mais perto
mais
— a torre.
E nos domingos a litania dos perdões, o murmúrio das invocações.
O padre que fala do inferno
sem nunca ter ido lá.
Pernas de seda ajoelham mostrando geolhos.
Um sino canta a saudade de qualquer coisa sabida e já esquecida.
A manhã pintou-se de azul.
No adro ficou o ateu,
no alto fica Deus.
Domingo...
Bem bão! Bem bão!
Os serafins, no meio, entoam quii ieleisão.
TROVA 024
Belmiro Braga
Politiqueiros... Que súcia!
Segundo as leis de Lavater
O que lhes sobra de astúcia
É o que lhes falta em caráter
POR QUE MENTIAS?
Álvares de Azevedo
Por que mentias leviana e bela?
Se minha face pálida sentias
Queimada pela febre, e minha vida
Tu vias desmaiar, por que mentias?
Acordei da ilusão, a sós morrendo
Sinto na mocidade as agonias.
Por tua causa desespero e morro...
Leviana sem dó, por que mentias?
Sabe Deus se te amei! Sabem as noites
Essa dor que alentei, que tu nutrias!
Sabe esse pobre coração que treme
Que a esperança perdeu por que mentias!
Vê minha palidez- a febre lenta
Esse fogo das pálpebras sombrias...
Pousa a mão no meu peito! Eu morro! Eu morro!
Leviana sem dó, por que mentias?
SONETO - A GALERA DE CLEÓPATRA
Alberto de Oliveira
(Grafia original)
Rio abaixo lá vai, de proa ao sol do Egito,
A galera real. Cinquenta remos lestos
Impelem-na. O verão faz rutilar, aos estos
Da luz, de um céu de cobre o horizonte infinito.
Pesa, abafado e quente, o ar circunstante. Uns restos
De templo ora se veem, lembrando velho rito;
E inda um pilono erguido, uma esfinge de granito,
De empoeirada figura e taciturnos gestos.
De quando em quando à flor do Nilo se destaca,
D’água morna emergindo, a escama de um fakaka;
O íbis branco revoa entre os juncais. Entanto,
Numa sorte de naos, Cleópatra procura
Su’alma distrair, prestando ouvido ao canto
Que a escrava Carmion tristemente murmura.
POEMA PARA A AMIGA - FRAGMENTO 2
Affonso Romano de Sant'Anna
Eu sei quando te amo:
é quando com teu corpo eu me confundo,
não apenas nesta mistura de massa e forma,
mas quando na tua alma eu me introduzo
e sinto que meu sangue corre em ti,
e tudo que é teu corpo
não é que um corpo meu
que se alongou de mim.
Eu sei quando te amo:
é quando eu te apalpo e não te sinto,
e sinto que a mim mesmo então me abraço,
a mim
que amo e sou um duplo,
eu mesmo
e o corpo teu pulsando em mim.
A PONTE DE VAN GOGH
Vinícius de Moraes
O lugar não importa: pode ser o Japão, a Holanda, a campina inglesa.
Mas é absolutamente preciso que seja domingo.
O azul do céu ecoa na esmeralda do rio
E o rio reflete docemente as margens de relva verde-laranja
Dir-se-ia que da mansão da esquerda voou o lençol virginal de miss
Para ser no céu sem mancha a única nuvem.
A calma é velha, de uma velhice sem pátina
As cores são simples, ingênuas
A estação é feliz: o guarda da ponte chegou a pintar
De listas vermelhas o teto de sua casinhola.
E, meu Deus, se não fossem esses diabinhos de pinheiros a fazer caretas
E a pressa com que o homem da charrete vai:
- A pressa de quem atravessou um vago perigo
Tudo estivesse perfeito, e não me viesse esse medo tolo de a pequena ponte levadiça
Desabe e se molhe o vestido preto de Cristina Georgina Rosseti
Que vai de umbrela especialmente para ouvir a prédica do novo pastor da vila
SONHO DOMADO
Thiago de Mello
Sei que é preciso sonhar.
Campo sem orvalho, seca
A frente de quem não sonha.
Quem não sonha o azul do vôo
perde seu poder de pássaro.
A realidade da relva
cresce em sonho no sereno
para não ser relva apenas,
mas a relva que se sonha.
Não vinga o sonho da folha
se não crescer incrustado
no sonho que se fez árvore.
Sonhar, mas sem deixar nunca
que o sol do sonho se arraste
pelas campinas do vento.
É sonhar, mas cavalgando
o sonho e inventando o chão
para o sonho florescer.
A FILOSOFIA DE UM TROVADOR SERTANEJO
Patativa do Assaré
O FLIRT
Olegário Mariano
Retirei um breve instante
Das minhas cogitações,
Para falar-vos do Flirt,
A epidemia elegante
Dos salões.
Nasce de um sorriso mudo,
De um quase nada que, enfim
Vale tudo
Para elas e para mim.
O Flirt. Haverá no mundo
Quem não sinta essa embriaguez
De um momento, de um segundo,
De quinze dias, de um mês?
Ele é efêmero e fortuito,
Vale pouco ou vale muito,
Conforme o Diabo o compôs.
É um simples curto-circuito
Entre dois.
Uma carícia inflamável
Doidinha por incendiar,
Um micróbio insuportável
Que vai de olhar para olhar.
Ou antes: um precipício
Que a gente olha sem pavor.
O divino instante, o início
Do êxtase imenso do amor.
Um galanteio, uma frase
Intencional
Que sendo frívola, é quase
Um madrigal.
A mão que outra mão afaga,
O pé que pisa outro pé.
Carícia lânguida e vaga...
Só quem ama e quem divaga
Pode saber o que isto é.
A orquestra soluça um tango:
Dois. Ela folle, ele fou.
Flor de Tango. — A flor de Tango,
Diz ele baixinho, és tu.
E assim vai num tal crescendo,
Que ela se debate em vão.
Parece que está morrendo
Nos braços do cidadão.
Quando passa o áureo momento,
Vem a tragédia em três atos.
Três atos
Com um epílogo. Depois,
Um noivado, um casamento,
Um bruto arrependimento
E ao fim divórcio entre os dois.
A UM GRANDE HOMEM
Olavo Bilac
Heureuse au fond du bois
Ia source pauvre et pure!
Lamartine.
Olha: era um tênue fio
De água escassa. Cresceu Tornou-se em rio
Depois. Roucas, as vagas
Engrossa agora, e é túrbido e bravio,
Roendo penedos, alagando plagas.
Humilde arroio brando!...
Nele, no entanto, as flores, inclinando
O débil caule, inquietas
Miravam-se. E, em seu claro espelho, o bando
Se revia das leves borboletas.
Tudo, porém: - cheirosas
Plantas, curvas ramadas rumorosas,
Úmidas relvas, ninhos
Suspensos no ar entre jasmins e rosas,
Tardes cheias da voz dos passarinhos, -
Tudo, tudo perdido
Atrás deixou. Cresceu. Desenvolvido,
Foi alargando o seio,
E do alpestre rochedo, onde nascido
Tinha, crespo, a rolar, descendo veio...
Cresceu. Atropeladas,
Soltas, grossas as ondas apressadas
Estendeu largamente,
Tropeçando nas pedras espalhadas,
No galope impetuoso da corrente...
Cresceu. E é poderoso:
Mas enturba-lhe a face o lodo ascoso...
É grande, é largo, é forte:
Mas, de parcéis cortado, caudaloso,
Leva nas dobras de seu manto a morte.
Implacável, violento,
Rijo o vergasta o latego do vento.
Das estrelas, caindo
Sobre ele em vão do claro firmamento
Batem os raios límpidos, luzindo...
Nada reflete, nada!
Com o surdo estrondo espanta a ave assustada;
É turvo, é triste agora.
Onde a vida de outrora sossegada?
Onde a humildade e a limpidez de outrora?
Homem que o mundo aclama!
Semideus poderoso, cuja fama
O mundo com vaidade
De eco em eco no século derrama
Aos quatro ventos da celebridade!
Tu, que humilde nasceste,
Fraco e obscuro mortal, também cresceste
De vitória em vitória,
E, hoje, inflado de orgulhos, ascendeste
Ao sólio excelso do esplendor da glória!
Mas, ah! nesses teus dias
De fausto, entre essas pompas luzidias,
- Rio soberbo e nobre!
Hás de chorar o tempo em que vivias
Como um arroio sossegado e pobre...
Um livro de poesia feito inteiramente de plástico reciclado
Nova obra de Pedro Tancini explora o tema do plástico para buscar o amor, o futuro e a literatura entre a violência do capitalismo
Poemas de Plástico, novo livro de poesia de Pedro Tancini, vai além da abstração e se torna a primeira obra de literatura do mundo produzida inteiramente com plástico reciclado e reciclável. As páginas são impressas em um papel sintético com as mesmas propriedades do papel de celulose, feito principalmente de tampinhas de garrafa PET coletadas por catadores. Já as capas de cada exemplar são personalizadas pelo próprio autor, com colagem de pedaços de plástico que ele retirou das praias do estado de São Paulo.
O projeto se baseia na contradição do plástico no mundo contemporâneo: ao mesmo tempo que é um material tão descartável, leva mais de quatrocentos anos para se decompor na natureza. É esse paradoxo que conecta os poemas, sejam os que denunciam a descartabilidade de tudo, inclusive do amor, na sociedade capitalista, sejam os que procuram um futuro diferente do fim para o qual o mundo está se encaminhando.
Como evitar as cada vez mais intensas e frequentes catástrofes ambientais se até as corporações que se posicionam como "amigas” do meio ambiente estão devastando o planeta? Como a vida psíquica e emocional é afetada pelo império do desperdício? Qual o poder da poesia dentro do sistema capitalista? Essas e outras questões são propostas pelo escritor entre poesias repletas de metalinguagem e ironia.
é nossa a culpa?
os castelos
que erguemos
para os inúteis reis
desta terra
e talvez seja a ilha
(de plástico)
nosso refúgio
mais doentio
nossa revolta
mais possível
nossa mais duradoura
destruição
(Poemas de Plástico, p. 41)
Em meio a versos que desbravam as margens da folha e desafiam as estruturas padrões de um trabalho poético, o livro em si é a tentativa de se fazer durar em uma realidade onde tudo parece inútil. A grande ironia é que, para fazer isso, Pedro Tancini utiliza o plástico, material que é produzido e descartado de forma irrestrita.
“Fiz questão de que o livro fosse produzido com plástico reciclado e reciclável para que o seu impacto ambiental se aproximasse do zero. Porém, a proposta da obra é alertar que, infelizmente, a saída não está no âmbito individual, pois o verdadeiro responsável pelas catástrofes ambientais e sociais que estamos vivendo é o sistema em si. O livro é uma tentativa de sobreviver psiquicamente e emocionalmente nesse mundo que nos violenta diariamente e, mais do que isso, vislumbrar caminhos possíveis de superação do capitalismo também por meio da poesia”, comenta o autor.
Poemas de Plástico tem o apoio do Governo do Estado de São Paulo, por meio da Secretaria de Cultura, Economia e Indústrias Criativas.
FICHA TÉCNICA
Título: Poemas de Plástico
Autor: Pedro Tancini
ISBN: 978-65-01-12872-6
Páginas: 64
Preço: R$ 50
Onde comprar: Amazon
Sobre o autor: Pedro Tancini é poeta, dramaturgo, ator, diretor, produtor e fundador do Coletivo Parêntesis de Teatro. É graduado em Comunicação Social pela ESPM, mestre em Comunicação e Práticas de Consumo também pela ESPM e pesquisa sobre os impactos do capitalismo contemporâneo nas sociedades do século XXI. Como autor, escreveu oito peças de teatro, publicou o livro de contos “Nove Autores – Nova Histórias” e a edição “Erramos” da revista literária “Moreia” junto de outros escritores. Teve, ainda, poemas, dramaturgias e crônicas selecionados por diversos editais e premiações. Em 2024, lançou os livros “Teatro à Venda”, “Professores Online” e Poemas de Plástico.
Redes sociais do autor:
Instagram: @pedrotancini e @coletivoparentesis
SEGUNDA CANÇÃO DE MUITO LONGE
Mário Quintana
Havia um corredor que fazia cotovelo:
Um mistério encanando com outro mistério, no escuro…
Mas vamos fechar os olhos
E pensar numa outra cousa…
Vamos ouvir o ruído cantado, o ruído arrastado das correntes no algibe,
Puxando a água fresca e profunda.
Havia no arco do algibe trepadeiras trêmulas.
Nós nos debruçávamos à borda, gritando os nomes uns dos outros,
E lá dentro as palavras ressoavam fortes, cavernosas como vozes de leões.
Nós éramos quatro, uma prima, dois negrinhos e eu.
Havia os azulejos, o muro do quintal, que limitava o mundo,
Uma paineira enorme e, sempre e cada vez mais, os grilos e as estrelas…
Havia todos os ruídos, todas as vozes daqueles tempos…
As lindas e absurdas cantigas, tia Tula ralhando os cachorros,
O chiar das chaleiras…
Onde andará agora o pince-nez da tia Tula
Que ela não achava nunca?
A pobre não chegou a terminar o Toutinegra do Moinho,
Que saía em folhetim no Correio do Povo!…
A última vez que a vi, ela ia dobrando aquele corredor escuro.
Ia encolhida, pequenininha, humilde. Seus passos não faziam ruído.
E ela nem se voltou para trás!
MASCARADA
Manuel Bandeira
Você me conhece?
(Frase dos mascarados de antigamente)
- Você me conhece?
- Não conheço não.
- Ah, como fui bela!
Tive grandes olhos,
que a paixão dos homens
(estranha paixão!)
Fazia maiores...
Fazia infinitos.
Diz: não me conheces?
- Não conheço não.
- Se eu falava, um mundo
Irreal se abria
à tua visão!
Tu não me escutavas:
Perdido ficavas
Na noite sem fundo
Do que eu te dizia...
Era a minha fala
Canto e persuasão...
Pois não me conheces?
- Não conheço não.
- Choraste em meus braços
- Não me lembro não.
- Por mim quantas vezes
O sono perdeste
E ciúmes atrozes
Te despedaçaram!
Por mim quantas vezes
Quase tu mataste,
Quase te mataste,
Quase te mataram!
Agora me fitas
E não me conheces?
- Não conheço não.
Conheço que a vida
É sonho, ilusão.
Conheço que a vida,
A vida é traição.
SABIÁ COM TREVAS - IV
Manoel de Barros
IV
(a um Pierrô de Picasso)
Pierrô é desfigura errante,
andarejo de arrebol.
Vivendo do que desiste,
se expressa melhor em inseto.
Pierrô tem um rosto de água
que se aclara com a máscara.
Sua descor aparece
como um rosto de vidro na água.
Pierrô tem sua vareja íntima:
é viciado em raiz de parede.
Sua postura tem anos
de amorfo e deserto
Pierrô tem o seu lado esquerdo
atrelado aos escombros.
E o outro lado aos escombros.
PAISAGEM
Luís Guimarães Júnior
O dia frouxo e lânguido declina
Da Ave-Maria às doces badaladas;
Em surdo enxame as auras perfumadas
Sobem do vale e descem da colina.
A juriti saudosa o colo inclina
Gemendo entre as paineiras afastadas;
E além nas pardas serras elevadas
Vê-se da Lua a curva purpurina.
O rebanho e os pastores caminhando
Por entre as altas matas, lentamente,
Voltam do pasto num tranqüilo bando;
Suspira o rio tépido e plangente,
E pelo rio as vozes afinando,
As lavadeiras cantam tristemente
PRESSÁGIO
Júlio Dinis
Era em florente Junho; A Lua se ostentava Serena em seu brilhar; A brisa
na alameda Saudosa suspirava
Nas folhas ao passar.
Contigo, eu só no bosque
Ouvia-te, tao triste,
Soltar, mais triste, a voz;
Falavas magoada
Da paz que só existe
Da fria morte após.
E os olhos lacrimosos
Fitavas nos espaços
Da mais amena cor,
Como se desejasses
Romper terrenos laços
E o azul do céu transpor.
Calado eu te fitava,
Porém ao ver-te o pranto
Banhar-te a face assim,
Não sei que dor pungente,
Não sei que mago encanto,
Me fez falar-te enfim.
E disse-te: «Não chores, Na Terra é tudo flores, No Céu
é tudo luz.
Escuta os sons do bosque, Respira os seus odores,
O aroma que seduz.»
Olhaste-me e sorriste; E quanto não diziam Então os olhos
teus! Quão íntima tristeza,
Que dor não reflectiam
Quando os erguestes aos céus!
E eu ficava mudo, Olhando-te inquieto,
Sem bem te compreender; E um ramo de cipreste,
O arbusto teu dilecto, Vieste-me oferecer.
«Bem vês, da campa à beira Também a flor rebenta»,
Disseste-me a sorrir,
«Também no chão da morte De seiva se alimenta, Também
a vês florir.
«Quem vir esta campina
Virente e matizada
Viçar à luz do Sol,
Dirá, que neste manto
Se envolve a fria ossada
Do morto em seu lençol!»
De novo emudeceste,
E eu, triste, contemplei-te:
Mas não, não te entendi,
Parecia que na mágoa
Achavas um deleite,
Qual nunca igual senti!
Mas cedo teus perfumes
Da Terra aos Céus subiram,
E soube tudo então!
Era uma voz profética
Das que o poeta inspiram,
Falando ao coração.
No meio dos festejos Da estiva natureza, Sentias só a dor,
Vias a campa aberta
E em sua profundeza
Sumir-se a esp’rança em flor.
E hoje, sim, compreendo Tua conversa triste, Quando comigo a sós…
E porque a entende agora? Não sei. Talvez existe
Em mim a mesma voz.
Oh! sim, ele me mostre
No meio destas galas,
Que vejo em torno de mim,
A terra húmida e fria,
Do cemitério as valas
E o esquecimento enfim.
O VERBO AMAR
J. G. de Araújo Jorge
Te amei: era de longe que te olhava
e de longe me olhavas vagamente...
Ah, quanta coisa nesse tempo a gente sente,
que a alma da gente faz escrava.
Te amava: como inquieto adolescente,
tremendo ao te enlaçar, e te enlaçava
adivinhando esse mistério ardente
do mundo, em cada beijo que te dava.
Te amo: e ao te amar assim vou conjugando
os tempos todos desse amor, enquanto
segue a vida, vivendo, e eu, vou te amando...
Te amar: é mais que em verbo é a minha lei,
e é por ti que o repito no meu canto:
te amei, te amava, te amo e te amarei!
OS ANDAIMES
Guilherme de Almeida
Na gaiola cheia
(pedreiros e carpinteiros)
o dia gorjeia.
RÚSTICA
Francisca Júlia
Da casinha, em que vive, o reboco alvacento
Reflete o ribeirão na água clara e sonora.
Este é o ninho feliz e obscuro em que ela mora;
Além, o seu quintal, este, o seu aposento.
Vem do campo, a correr; e úmida do relento,
Toda ela, fresca do ar, tanto aroma evapora
Que parece trazer consigo, lá de fora,
Na desordem da roupa e do cabelo, o vento...
E senta-se. Compõe as roupas. Olha em torno
Com seus olhos azuis onde a inocência boia;
Nessa meia penumbra e nesse ambiente morno,
Pegando da costura à luz da claraboia,
Põe na ponta do dedo em feitio de adorno,
O seu lindo dedal com pretensão de joia.
HORA QUE PASSA
Florbela Espanca
Vejo-me triste, abandonada e só
Bem como um cão sem dono e que o procura
Mais pobre e desprezada do que Job
A caminhar na via da amargura!
Judeu Errante que a ninguém faz dó!
Minh'alma triste, dolorida, escura,
Minh'alma sem amor é cinza, é pó,
Vaga roubada ao Mar da Desventura!
Que tragédia tão funda no meu peito!...
Quanta ilusão morrendo que esvoaça!
Quanto sonho a nascer e já desfeito!
Deus! Como é triste a hora quando morre...
O instante que foge, voa, e passa...
Fiozinho d'água triste... a vida corre...
OVNI
Ferreira Gullar
Sou uma coisa entre coisas
O espelho me reflete
Eu (meus
olhos)
reflito o espelho
Se me afasto um passo
o espelho me esquece:
– reflete a parede
a janela aberta
Eu guardo o espelho
o espelho não me guarda
(eu guardo o espelho
a janela a parede
rosa
eu guardo a mim mesmo
refletido nele):
sou possivelmente
uma coisa onde o tempo
deu defeito
O bom-humor e a poesia que sintetizam a complexidade da vida
Os contos, poemas e carta de "O Grito do Trovão" convidam os leitores a adentrarem um universo insólito acompanhados de personagens clownescos
Os personagens clownescos e imprevisíveis de O Grito do Trovão surpreendem por suas ações e, por isso, se aproximam de uma realidade onde ninguém tem o controle dos acontecimentos. Escrito pelo ator e pedagogo Henrique Cesarino Pessoa os 10 contos, 21 poemas e uma carta presentes na obra constroem um mosaico complexo e bem-humorado da sociedade.
Entre as histórias, um menino não compreende a professora quando ela insiste que coloque o número "ao quadrado" durante uma atividade sobre potência. Ao descer do ônibus, um homem se coloca em uma série de interações que beiram o absurdo após perguntar onde fica a praça Ramos. Um jovem decide abrir uma frutaria para ajudar o Brasil contanto que o empreendimento tenha dois tipos de tomates.
Com linguagem leve e singular, o escritor reflete sobre temas do cotidiano ao apresentar uma nova possibilidade de compreender a contemporaneidade a partir das lentes do humor. O lançamento convida ainda os leitores a perceber os desafios dos artistas no país, além de percorrer questões como a inadequação, o excesso de racionalidade, o papel da cultura e a força da liberdade.
Acredito que por ser diferente Rodolpho era mal compreendido. Um “outsider” justamente por pertencer à categoria dos que vão mais fundo nas questões do espírito e talvez por isso não se adaptasse ao cotidiano, como quem luta diariamente com um demônio interno para perseverar seus propósitos em um diálogo com a realidade. (O Grito do Trovão, p. 52)
Prefaciado pelo professor de português Francisco Marto de Moura, o livro começa leve e vai gradativamente se tornando mais denso na intenção de levar o público a percorrer um universo insólito com percepções agudas sobre a alma humana. Este caminho é trilhado até chegar aos contos “Amigo secreto budista” e “Prima Melancolia e avó Sabedoria”, que têm influência de escritores clássicos como Edgar Allan Poe e Machado de Assis.
Dividida como um disco de vinil, composto por lado A e lado B, a obra encerra a primeira parte com uma carta à classe teatral, onde há um olhar crítico acerca das artes cênicas. Já o segundo momento da narrativa apresenta poemas sensíveis e concisos, inspirados em Manuel Bandeira, Oswald de Andrade e no movimento concretista brasileiro. Entre versos e prosa, a obra defende uma sensibilidade e autoexpressão que valorizam o aspecto humano da escrita.
FICHA TÉCNICA
Título: O Grito do Trovão
Autora: Henrique Cesarino Pessoa
Editora: Artêra Editorial
ISBN: 978-6525050003
Páginas: 93 | Livraria da Vila
Preço: R$ 42
Onde comprar: Amazon | Livraria da Vila | Appris
Sobre o autor: Henrique Cesarino Pessoa é ator e pedagogo formado pela Universidade de São Paulo (USP). Com especialização em Clown, trabalhou em diversas peças e ganhou prêmios de atuação em diferentes festivais nacionais. Foi professor convidado na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) por oito anos e lecionou no Teatro do Gracinha por quinze anos. Atualmente dirige, leciona e atua no Esporte Clube Pinheiros e no Espaço Rasa, onde é coordenador do núcleo de humor “Arrasa no Riso”.
É BRANDO O DIA, BRANCO O VENTO
Fernando Pessoa
É brando o dia, brando o vento.
É brando o sol e brando o céu.
Assim fosse meu pensamento!
Assim fosse eu, assim fosse eu!
Mas entre mim e as brandas glórias
Deste céu limpo e este ar sem mim
Intervêm sonhos e memórias...
Ser eu assim, ser eu assim!
Ah, o mundo é quanto nós trazemos.
Existe tudo quanto existo.
Há porque vemos.
E tudo é isto, tudo é isto!
TROVA HUMORÍSTICA 32
Eno Teodoro Wanke
Este psiquiatra é perfeito
E garante mesmo a cura
Não ficando satisfeito
Ele devolve a loucura
SUPREMO ENIGMA
Da Costa e Silva
Quando os meus olhos aos teus olhos volvo,
O almo candor das lágrimas cintila
No teu olhar e ensombra-te pupila
A névoa ideal do sonho em que me envolvo.
Um mistério de Amor que eu não resolvo
Possui teu ser e em teu olhar se asila,
– Mistério ideal que enleva e que aniquila
Num doce abraço enérgico de polvo.
Quem me decifrará todo esse enigma
Que eu sinto e não compreendo e que me mostras
Através desse olhar, como um estigma?…
Quem há que o teu segredo me desvende
– Pérola que a Alma oculta como as ostras
E que no olhar em pérolas esplende?
EM SONHOS
Cruz e Sousa
(Grafia original)
Nos santos oleos do luar, floria
Teu corpo ideal, com o resplendôr da Hellade...
E em toda a ethérea, brauda claridade
Como que erravam fluidos de harmonia...
As Aguias immortaes da Phantasia
Déram-te as azas e a serenidade
Para galgar, subir á Immensidade
Onde o clarão de tantos sóes radia.
Do espaço pelos limpidos velinos
Os Astros viéram claros, crystalinos,
Com chammas, vibrações, do alto, cantando...
Dos santos oleos no luar envôlto
Teu corpo éra O Astro nas esphéras sôlto,
Mais Sóes e mais Estrellas fecundando!
TIMIDEZ
Cecília Meireles
Basta-me um pequeno gesto,
feito de longe e de leve,
para que venhas comigo
e eu para sempre te leve...
- mas só esse eu não farei.
Uma palavra caída
das montanhas dos instantes
desmancha todos os mares
e une as terras mais distantes...
- palavra que não direi.
Para que tu me adivinhes,
entre os ventos taciturnos,
apago meus pensamentos,
ponho vestidos noturnos,
- que amargamente inventei.
E, enquanto não me descobres,
os mundos vão navegando
nos ares certos do tempo,
até não se sabe quando...
- e um dia me acabarei.
ONDE ESTÁS?
Castro Alves
É meia-noite… e rugindo
Passa triste a ventania,
Como um verbo de desgraça,
Como um grito de agonia.
E eu digo ao vento, que passa
Por meus cabelos fugaz:
“Vento frio do deserto,
Onde ela está? Longe ou perto?”
Mas, como um hálito incerto,
Responde-me o eco ao longe:
“Oh! minh’amante, onde estás?. . .
Vem! É tarde! Por que tardas?
São horas de brando sono,
Vem reclinar-te em meu peito
Com teu lânguido abandono! …
‘Stá vazio nosso leito…
‘Stá vazio o mundo inteiro;
E tu não queres qu’eu fique
Solitário nesta vida…
Mas por que tardas, querida?…
Já tenho esperado assaz…
Vem depressa, que eu deliro
Oh! minh’amante, onde estás? …
Estrela — na tempestade,
Rosa — nos ermos da vida;
lris — do náufrago errante,
Ilusão — d’alma descrida!
Tu foste, mulher formosa!
Tu foste, ó filha do céu! …
… E hoje que o meu passado
Para sempre morto jaz…
Vendo finda a minha sorte,
Pergunto aos ventos do Norte…
“Oh! minh’amante, onde estás?…”
A VOZ DO RIO
Casimiro de Abreu
Nosso sol é de fogo, o campo é verde,
O mar é manso, nosso céu azul!
- Ai! porque deixas este pátrio ninho
Pelas friezas dos vergéis do sul?
Lá nessa terra onde o Guaíba chora
Não são as noites, como aqui, formosas
E as duras asas do Pampeiro iroso
Quebra as tulipas e desfolha as rosas.
A lua é doce, nosso mar tranqüilo,
Mais leve a brisa, nosso céu azul!...
- Tupá! Quem troca pelo pátrio ninho
As ventanias dos vergéis do sul?
Lá novos campos outros campos ligam
E a vista fraca na extensão se perde!
E tu sozinha viverás no exílio
- Garça perdida nesse mar que é verde! -
Nossas campinas como doces noivas
Vivem c’os montes sob o céu azul!
- Há vida e amores neste pátrio ninho
Mais rico e belo que os vergéis do sul!
Essas palmeiras não têm tantos leques,
O sol dos Pampas mareou seu brilho,
Nem cresce o tronco que susteve um dia
O berço lindo em que dormiu teu filho!
Nossas florestas sacudindo os galhos
Tocam c’os braços este céu azul!...
- Se tudo é grande neste pátrio ninho
Porque deixá-lo p’ra viver no sul?!
Embora digas: - essa terra fria
Merece amores, é irmã da minha -
quem dar-te pode este calor do ninho,
A luz suave que o teu berço tinha?!
Eu - Guanabara - no meu longo espelho
Reflito as nuvens deste céu azul;
- Ó minha filha! acalentei-te o sono,
Porque me deixas p’ra viver no sul?!...
Lá, quando a terra s’embuçar nas sombras
E o medroso sol s’esconder nas águas,
Teu pensamento, como o sol que morre,
Há de cismando mergulhar-se em mágoas!
Mas se forçoso t’é deixar a pátria
Pelas friezas dos vergéis do sul,
Ó minha filha! não t’esqueças nunca
Destas montanhas, deste céu azul.
Tupá bondoso te derrame graças,
Doce ventura te bafeje e siga,
E nos meus braços - ao voltar do exílio -
Saudando o berço que teu lábio diga:
“Volvo contente para o pátrio ninho,
“Deixei sorrindo esses vergéis do sul;
“Tinha saudades deste sol de fogo...
“Não deixo mais este meu céu azul!...”
HINO NACIONAL
Carlos Drumond de Andrade
Precisamos descobrir o Brasil!
Escondido atrás das florestas,
com a água dos rios no meio,
o Brasil está dormindo, coitado.
Precisamos colonizar o Brasil.
O que faremos importando francesas
muito louras, de pele macia,
alemãs gordas, russas nostálgicas para
garçonnettes dos restaurantes noturnos.
E virão sírias fidelíssimas.
Não convém desprezar as japonesas.
Precisamos educar o Brasil.
Compraremos professores e livros,
assimilaremos finas culturas,
abriremos dancings e subvencionaremos as elites.
Cada brasileiro terá sua casa
com fogão e aquecedor elétricos, piscina,
salão para conferências científicas.
E cuidaremos do Estado Técnico.
Precisamos louvar o Brasil.
Não é só um país sem igual.
Nossas revoluções são bem maiores
do que quaisquer outras; nossos erros também.
E nossas virtudes? A terra das sublimes paixões…
os Amazonas inenarráveis… os incríveis João-Pessoas…
Precisamos adorar o Brasil.
Se bem que seja difícil caber tanto oceano e tanta solidão
no pobre coração já cheio de compromissos…
se bem que seja difícil compreender o que querem esses homens,
por que motivo eles se ajuntaram e qual a razão de seus sofrimentos.
Precisamos, precisamos esquecer o Brasil!
Tão majestoso, tão sem limites, tão despropositado,
ele quer repousar de nossos terríveis carinhos.
O Brasil não nos quer! Está farto de nós!
Nosso Brasil é no outro mundo. Este não é o Brasil.
Nenhum Brasil existe. E acaso existirão os brasileiros?
Esfôrço grande, igual ao pensamento,
Pensamentos em obras divulgados,
E não em peito timido encerrados,
E desfeitos despois em chuva e vento;
Ánimo da cobiça baixa isento,
Digno por isto só de altos estados,
Fero açoute dos nunca bem domados
Povos do Malabar sanguinolento;
Gentileza de membros corporaes
Ornados de pudica continencia,
Obra por certo da celeste altura:
Estas virtudes raras e outras mais,
Dignas todas da Homerica eloquencia,
Jazem debaixo desta sepultura.
TROVA 023
Belmiro Braga
Desilusões, desenganos
Tudo a velhice nos traz
Mas existe, além dos anos
A eterna bênção da paz
POR MIM?
Álvares de Azevedo
Lira dos Vinte Anos
Segunda Parte
Teus negros olhos uma vez fitando
Senti que luz mais branda os acendia,
Pálida de langor, eu vi, te olhando,
Mulher do meu amor, meu serafim,
Esse amor que em teus olhos refletia...
Talvez! - era por mim?
Pendeste, suspirando, a face pura,
Morreu nos lábios teus um ai perdido...
Tão ébrio de paixão e de ventura!
Mulher de meu amor, meu serafim,
Por quem era o suspiro amortecido?
Suspiravas por mim?...
Mas... eu sei!... ai de mim? Eu vi na dança
Um olhar que em teus olhos se fitava...
Ouvi outro suspiro... d'esperança!
Mulher do meu amor, meu serafim,
Teu olhar, teu suspiro que matava...
Oh! não eram por mim.
SOLIDÃO ESTRELADA
Alberto de Oliveira
Eu sou da plaga infinita
A solidão estrelada.
Homem, cuja alma se agita
Sempre inquieta e atribulada,
Que tens? que dores consomem
O teu coração que, assim,
Estacas os olhos, homem,
Prendendo-os, atento, em mim?
Invejas-me acaso? ouviste
Que posso, alma desditosa,
Tornar-me feliz, eu, triste!
Eu, solidão misteriosa!
Vem até mim! vem comigo
Estupidamente olhar
Este quadro gasto e antigo
De nuvens, de estrelas, de ar...
Vem compartir o cansaço
Que ab aeterno, sem remédio
Me faz no enfadonho espaço
Bocejar todo o meu tédio.
Como enfara o comprimento
Desta extensão que produz
Os astros no firmamento,
Nos astros a mesma luz!
E hei de até quando estender-me,
Triste, monótona e vasta,
Sem que em mim se agite o verme
Do tempo, que tudo gasta?
Solidão, silêncio enorme,
Eis tudo o que sou. Porém,
Se amas a dor que não dorme,
A dor sem limites, - vem!
POEMAS PARA A AMIGA - FRAGMENTO 1
Affonso Romano de Sant'Anna
“O amor com seus contrários se acrescenta”
Camões
Tu sempre foste una
e sempre foste minha,
ainda quando a cor e a forma tua se fundiam
com outra forma e cor que tu não tinhas.
Por isto é que te falo de umas coisas
que não lembras
nem nunca lembrarias
de tais coisas entre mim e ti
ainda quando tu não me sabias
e dividida em outras te mostravas
e assim dispersa me ouvias.
Tu sempre foste uma
ainda quando o corpo teu
com outro corpo a sós se punha,
pois o que me tinhas a dar
a outro nunca o deste
e nunca o doarias.
Por isto é que te sinto
com tanta intimidade
e te possuo com tanta singeleza
desde quando recém vinda
ostentavas nos teus olhos grande espanto
de quem não compreendia
a antiguidade desse amor que em mim fluía.
A PAIXÃO DA CARNE
Vinícius de Moraes
Envolto em toalhas
Frias, pego ao colo
O corpo escaldante.
Tem apenas dois anos
E embora não fale
Sorri com doçura.
É Pedro, meu filho
Sêmen feito carne
Minha criatura
Minha poesia.
É Pedro, meu filho
Sobre cujo sono
Como sobre o abismo
Em noites de insônia
Um pai se debruça.
Olho no termômetro:
Quarenta e oito décimos
E através do pano
A febre do corpo
Bafeja-me o rosto
Penetra-me os ossos
Desce-me às entranhas
Úmida e voraz
Angina pultácea
Estreptocócica?
Quem sabe... quem sabe...
Aperto meu filho
Com força entre os braços
Enquanto crisálidas
Em mim se desfazem
Óvulos se rompem
Crostas se bipartem
E de cada poro
Da minha epiderme
Lutam lepidópteros
Por se libertar.
Ah, que eu já sentisse
Os êxtases máximos
Da carne nos rasgos
Da paixão espúria!
Ah, que eu já bradasse
Nas horas de exalta-
São os mais lancinantes
Gritos de loucura!
Ah, que eu já queimasse
Da febre mais quente
Que jamais queimasse
A humana criatura!
Mas nunca como antes
Nunca! nunca! nunca!
Nem paixão tão alta
Nem febre tão pura.
QUANDO A VERDADE FOR FLAMA
Thiago de Mello
As colunas da injustiça
sei que só vão desabar
quando o meu povo, sabendo
que existe, souber achar
dentro da vida o caminho
que leva à libertação.
Vai tardar, mas saberá
que esse caminho começa
na dor que acende uma estrela
no centro da servidão.
De quem já sabe, o dever
(luz repartida) é dizer.
Quando a verdade for flama
nos olhos da multidão,
o que em nós hoje é palavra
no povo vai ser ação.
A FESTA DA MARICOTA
Patativa do Assaré
O ENAMORADO DAS ROSAS
Olegário Mariano
Toda manhã, ao sol, cabelo ao vento,
Ouvindo a água da fonte que murmura,
Rego as minhas roseiras com ternura,
Que água lhes dando, dou-lhes força e alento.
Cada um tem um suave movimento
Quando a chamar minha atenção procura
E mal desabrochada na espessura,
Manda-me um gesto de agradecimento.
Se cultivei amores às mancheias,
Culpa não cabe às minhas mãos piedosas
Que eles passassem para mãos alheias.
Hoje, esquecendo ingratidões mesquinhas,
Alimento a ilusão de que essas rosas,
Ao menos essas rosas, sejam minhas.
PARA A RAINHA DONA AMÉLIA DE PORTUGAL
Olavo Bilac
Um rude resplendor, de rude brilho, touca
E nimba o teu escudo, em que as quinas e a esfera
Guardam, ó Portugal! a tua glória austera,
Feita de louco heroísmo e de aventura louca.
Ver esse escudo é ver a Terra toda, pouca
Para a tua ambição; é ver Afonso, à espera
Dos mouros, em Ourique; e, em redor da galera
Do Gama, ouvir do mar a voz bramante e rouca...
Mas no vosso brasão, Borgonha! Avis! Bragança!
De ouro e ferro, encerrando o orgulho da conquista,
Faltava a suavidade e o encanto de uma flor;
E eis sobre ele pairando o alvo lírio de França,
Que lhe deu, flor humana, alma gentil de artista,
Um sorriso de graça e um perfume de amor...
SE EU FOSSE UM PADRE
Mário Quintana
Se eu fosse um padre, eu, nos meus sermões,
não falaria em Deus nem no Pecado
— muito menos no Anjo Rebelado
e os encantos das suas seduções,
não citaria santos e profetas:
nada das suas celestiais promessas
ou das suas terríveis maldições...
Se eu fosse um padre eu citaria os poetas,
Rezaria seus versos, os mais belos,
desses que desde a infância me embalaram
e quem me dera que alguns fossem meus!
Porque a poesia purifica a alma
...e um belo poema — ainda que de Deus se aparte —
um belo poema sempre leva a Deus!
MASCARADA
Manuel Bandeira
- Você me conhece?
- Não conheço não.
- Ah, como fui bela!
Tive grandes olhos,
que a paixão dos homens
(estranha paixão!)
Fazia maiores…
Fazia infinitos.
Diz: não me conheces?
- Não conheço não.
- Se eu falava, um mundo
Irreal se abria
à tua visão!
Tu não me escutavas:
Perdido ficavas
Na noite sem fundo
Do que eu te dizia…
Era a minha fala
Canto e persuasão…
Pois não me conheces?
- Não conheço não.
- Choraste em meus braços
- Não me lembro não.
- Por mim quantas vezes
O sono perdeste
E ciúmes atrozes
Te despedaçaram!
.
Por mim quantas vezes
Quase tu mataste,
Quase te mataste,
Quase te mataram!
Agora me fitas
E não me conheces?
.
- Não conheço não.
Conheço que a vida
É sonho, ilusão.
Conheço que a vida,
A vida é traição."
O CORAÇÃO QUE BATE NESTE PEITO
Luís Guimarães Júnior
O coração que bate neste peito
E que bate por ti unicamente,
O coração, outrora independente,
Hoje humilde, cativo e satisfeito;
Quando eu cair, enfim, morto e desfeito,
Quando a hora soar lugubremente
Do repouso final — tranquilo e crente
Irá sonhar no derradeiro leito.
E quando um dia fores comovida
— Branca visão que entre os sepulcros erra —
Visitar minha fúnebre guarida,
O coração, que toda em si te encerra,
Sentindo-te chegar, mulher querida,
Palpitará de amor dentro da terra.
PENETRAS NAS ESPESSURAS - 1863
Júlio Dinis
1863
«Penetra nas espessuras,
Nesses retiros aonde
A flor silvestre se esconde
Para sozinha florir.
Dá-lhe o calor dos teus raios,
Desperta-a do fatal sono
Em que as nebrinas do Outono
Já a faziam dormir…»
«Dai-me do campo as mais festivas flores,
Não as quero saudosas;
Quero-as alegres, de risonhas cores,
Como os cravos e as rosas.
«Deixemos a violeta, essa morena
Habitante das relvas.
A delicada, a pálida açucena,
Deixemo-la nas selvas.
«Uma é negra, traz vestes de tristeza, Vem de luto trajada;
Outra, lembra nas cores da pureza, Virgem inanimada.
«Não as quero, que podem essas flores
Renovar na memória,
As mal curadas, as pungentes dores,
Duma recente história.
«O caminho da existência
É então grato e florido.
Ai ! Bem fácil é o olvido
De tudo o que a alma sofreu !
Como à roseira da várzea
Que todo o ano floresce,
A cada flor que fenece
Uma outra flor sucedeu.
«Uma outra flor, e mais bela
E cada vez mais viçosa.
Uma outra flor, outra rosa,
Ou antes, outra ilusão.
Nunca, nunca o desalento
Extingue o fogo sagrado
Que arde no altar consagrado
Que se chama o coração.»
«A saudade, a irmã bem-vinda, À noite, às horas
quietas,
Em que amantes e poetas Livre curso à mente dão ; A virgem pálida
e triste, De branda melancolia,
Que as penas nos alivia, Que nos mitiga a paixão!
«Tens ao teu lado a saudade Falando-te em voz dolente. Duma memória
recente,
Duma luz que se apagou… Luz que tomaste por guia Para termo da viagem;
Mas que o sopro duma aragem, Brandas, apenas, apagou.»
«Veste-se a planta de flores Quando a Primavera assoma; E a espessura
de verdores
• Perfuma com seu aroma.
«Mas nem sempre a mesma vida
Transluz nas flores abertas;
Uma seiva empobrecida
Só lhes dá cores incertas.
«Todos os anos floresce, Ao despertar este dia,
A planta que, ignota, cresce, Da minha pobre poesia.
«Porém, desta vez, roçada Do mal, pela mão funesta,
Uma flor só, desmaiada, Abriu para a tua festa.
«Mas seja o tributo pago, Embora com pobre oferta; Essa mesma aí
a trago, Desbotada e mal aberta.»
NOTURNO Nº 2
J. G. de Araújo Jorge
Estás no pensamento,
fixa, presa,
como a estrela no céu,
como a nudez da beleza
sob um véu...
...
...
...
...
...
Estás no meu pensamento
como o som
na corda distendida
como, na bússola, o norte,
como a esperança, na vida,
como na vida,
a Morte...
O IDÍLIO SUAVE
Guilherme de Almeida
Chegas. Vens tão ligeira
e és tão ansiosamente esperada, que enfim,
nem te sentindo o passo e já te tendo inteira,
completamente em mim,
quando, toda Watteau, silenciosa, apareces,
é como se não viesses.
Vens... E ficas tão perto
de mim, e tão diluída em minha solidão,
que eu me sinto sozinho e acho imenso e deserto
e vazio o salão...
E, sem te ouvir nem ver, arde-me em febre a face,
como se eu te esperasse!
Partes. Mas é tão pouco
o que de ti se vai que ainda te vejo o arfar
do seio, e o teu cabelo, e o teu vestido louco,
e a carícia do olhar,
e a tua boca em flor a dizer-me doidices,
como se não partisses!
RAINHA DAS ÁGUAS
Francisca Júlia
Mar fóra, a rir, da bocca o fulgido thesouro
Mostrando, e sacudindo a farta cabelleira,
Corta a planura ao mar, que se desdobra inteira,
Numa varina azul orladurada de ouro.
Rema, á pôpa, um tritão de escarneo dorso louro;
Vão á frente os delfins; e, marchando em fileira,
Das ondas a seguir a luminosa esteira,
Vão cantando, a compasso, as piérides em coro.
Crespas, cantando em torno, as vagas, em surdina,
Lambem de pôpa á prôa o casco da varina
Que prosegue, mar fóra, a infinda róta, ufana...
E, no alto, o louro sol que assoma, entre desmaios,
Saúda esse outro sol de coruscantes raios
Que orna a cabeça real da bella soberana.
FUMO
Florbela Espanca
Longe de ti são ermos os caminhos.
Longe de ti não há luar nem rosas,
Longe de ti há noites silenciosas,
Há dias sem calor, beirais sem ninhos!
Meus olhos são dois velhos pobrezinhos
Perdidos pelas noites invernosas...
Abertos, sonham mãos cariciosas,
Tuas mãos doces, plenas de carinhos!
Os dias são outonos: choram... choram...
Há crisantemos roxos que descoram...
Há murmúrios dolentes de segredos...
Invoco o nosso sonho! Estendo os braços!
E ele é, ó meu Amor, pelos espaços,
Fumo leve que foge entre os meus dedos!...
BICHO URBANO
Ferreira Gullar
Se disser que prefiro morar em Pirapemas
ou em outra qualquer pequena cidade
do país
estou mentindo
ainda que lá se possa de manhã
lavar o rosto no orvalho
e o pão preserve aquele branco
sabor de alvorada
Não não quero viver em Pirapemas.
Já me perdi.
Como tantos outros brasileiros
me perdi, necessito
deste rebuliço de gete pelas ruas
e meu coração queima gasolina (da
comum)
como qualquer outro motor urbano
A natureza me assusta.
Com seus matos sombrios suas águas
suas aves que são como aparições
me assusta quase tanto quanto
este abimo
de gases e de estrelas
aberto sob minha cabeça.
DURMO. SE SONHO, AO DESPERTAR NÃO SEI
Fernando Pessoa
Durmo. Se sonho, ao despertar não sei
Que coisas eu sonhei.
Durmo. Se durmo sem sonhar, desperto
Para um espaço aberto
Que não conheço, pois que despertei
Para o que inda não sei.
Melhor é nem sonhar nem não sonhar
E nunca despertar.
TROVA HUMORÍSTICA 31
Eno Teodoro Wanke
Nasci: foi sem contratempo
Cresci: namorei às tontas
Casei: passo agora o tempo
Tentando pagar as contas
SOU COMO UM RIO MISTERIOSO
Da Costa e Silva
Sou como um rio que, de tanto Refletir sombras, se tornou sombrio... Rio de dor, rio de pranto, Ninguém sabe o mistério deste rio. Rio de dor, rio de mágoas, |
DILACERAÇÕES
Cruz e Sousa
(Grafia original)
Ó carnes que eu amei sangrentamente,
Ó volupias lethaes e dolorosas,
Essencias de heliotrópos e de rosas
De essencia mórna, tropical, dolente...
Carnes virgens e tépidas do Oriente
Do Sonho e das Estrellas fabulosas,
Carnes acérbas e maravilhosas,
Tentadôras do sol intensamente...
Passai, dilaceradas pelos zêlos,
Atravez dos profundos pezadellos
Que me apunhalam de mortaes horrôres...
Passai, passai, desfeitas em tormentos,
Em lagrimas, em prantos, em lamentos,
Em ais, em luto, em convulsões, em dôres...
SONETO ANTIGO
Cecília Meireles
VERSOS DE UM VIAJANTE
Castro Alves
Tenho saudades das cidades vastas,
Dos ínvios cerros, do ambiente azul...
Tenho saudades dos cerúleos mares
Das belas filhas do país do sull
Tenho saudades de meus dias idos
Pét'las perdidas em fatal paul
Pét'las, que outrora desfolhamos juntos,
Morenas filhas do país do sul!
Lá onde as vagas nas areias rolam,
Bem como aos pés da Oriental 'Stambul...
E da Tijuca na nitente espuma
Banham-se as filhas do país do sul.
Onde ao sereno a magnólia esconde
Os pirilampos "de lanterna azul",
Os pirilampos, que trazeis nas coifas,
Morenas filhas do pais do sul.
Tenho saudades... ai! de ti, São Paulo,
— Rosa de Espanha no hibernal Friul —
Quando o estudante e a serenata acordam
As belas filhas do país do sul.
Das várzeas longas, das manhãs brumosas
Noites de névoas, ao rugitar do sul,
Quando eu sonhava nos morenos seios
Das belas filhas do país do sul.
A VALSA
Casimiro de Abreu
Tu, ontem,
Na dança
Que cansa,
Voavas
Co’as faces
Em rosas
Formosas
De vivo,
Lascivo
Carmim;
Na valsa
Tão falsa,
Corrias,
Fugias,
Ardente,
Contente,
Tranqüila,
Serena,
Sem pena
De mim!
Quem dera
Que sintas
As dores
De amores
Que louco
Senti!
Quem dera
Que sintas!…
— Não negues,
Não mintas…
— Eu vi!…
Valsavas:
— Teus belos
Cabelos,
Já soltos,
Revoltos,
Saltavam,
Voavam,
Brincavam
No colo
Que é meu;
E os olhos
Escuros
Tão puros,
Os olhos
Perjuros
Volvias,
Tremias,
Sorrias,
P’ra outro
Não eu!
Quem dera
Que sintas
As dores
De amores
Que louco
Senti!
Quem dera
Que sintas!…
— Não negues,
Não mintas…
— Eu vi!…
Meu Deus!
Eras bela
Donzela,
Valsando,
Sorrindo,
Fugindo,
Qual silfo
Risonho
Que em sonho
Nos vem!
Mas esse
Sorriso
Tão liso
Que tinhas
Nos lábios
De rosa,
Formosa,
Tu davas,
Mandavas
A quem ?!
Quem dera
Que sintas
As dores
De amores
Que louco
Senti!
Quem dera
Que sintas!…
— Não negues,
Não mintas,..
— Eu vi!…
Calado,
Sózinho,
Mesquinho,
Em zelos
Ardendo,
Eu vi-te
Correndo
Tão falsa
Na valsa
Veloz!
Eu triste
Vi tudo!
Mas mudo
Não tive
Nas galas
Das salas,
Nem falas,
Nem cantos,
Nem prantos,
Nem voz!
Quem dera
Que sintas
As dores
De amores
Que louco
Senti!
Quem dera
Que sintas!…
— Não negues
Não mintas…
— Eu vi!
Na valsa
Cansaste;
Ficaste
Prostrada,
Turbada!
Pensavas,
Cismavas,
E estavas
Tão pálida
Então;
Qual pálida
Rosa
Mimosa
No vale
Do vento
Cruento
Batida,
Caída
Sem vida.
No chão!
Quem dera
Que sintas
As dores
De amores
Que louco
Senti!
Quem dera
Que sintas!…
— Não negues,
Não mintas…
Eu vi!
TESTAMENTO DO HOMEM SENSATO
Carlos Pena Filho
Quando eu morrer, não faças disparates
nem fiques a pensar: Ele era assim...
Mas senta-te num banco de jardim,
calmamente comendo chocolates.
Aceita o que te deixo, o quase nada
destas palavras que te digo aqui:
Foi mais que longa a vida que eu vivi,
para ser em lembranças prolongada.
Porém, se um dia, só, na tarde em queda,
surgir uma lembrança desgarrada,
ave que nasce e em vôo se arremeda,
deixa-a pousar em teu silêncio, leve
como se apenas fosse imaginada,
como uma luz, mais que distante, breve.
EM TEU CRESPO JARDIM, ANÊMONAS CASTANHAS
Carlos Drummond de Andrade
Em teu crespo jardim, anêmonas castanhas
detêm a mão ansiosa: Devagar.
Cada pétala ou sépala seja lentamente
acariciada, céu; e a vista pouse,
beijo abstrato, antes do beijo ritual,
na flora pubescente, amor; e tudo é sagrado.
Erros meus, má Fortuna, Amor ardente
Em minha perdição se conjuraram;
Os erros e a Fortuna sobejaram,
Que para mim bastava Amor somente.
Tudo passei; mas tenho tão presente
A grande dor das cousas que passaram,
Que as magoadas iras me ensinaram
A não querer já nunca ser contente.
Errei todo o discurso de meus anos;
Dei causa (a) que a Fortuna castigasse
As minhas mal fundadas esperanças.
De amor não vi senão breves enganos.
Oh! Que tanto pudesse que fartasse
Este meu duro Gênio de vinganças!
TROVA 022
Belmiro Braga
Num tronco seco, sem vida
Minha mão teu nome abriu
E o tronco seco, em seguida
Reverdeceu e floriu
PÁLIDA À LUZ
Álvares de Azevedo
Pálida à luz da lâmpada sombria,
Sobre o leito de flores reclinada,
Como a lua por noite embalsamada,
Entre as nuvens do amor ela dormia!
Era a virgem do mar, na escuma fria
Pela maré das águas embalada!
Era um anjo entre nuvens d'alvorada
Que em sonhos se banhava e se esquecia!
Era a mais bela! Seio palpitando...
Negros olhos as pálpebras abrindo...
Formas nuas no leito resvalando...
Não te rias de mim, meu anjo lindo!
Por ti - as noites eu velei chorando,
Por ti - nos sonhos morrerei sorrindo!
OS AMORES DA ESTRELA
Alberto de Oliveira
A Capistrano de Abreu
Fragmento do
Sábio inglês
Magoada, Musa, o olhar desconsolado,
Vens d’esse canto estéril de poesia,
Por mim forçosamente perpetrado.
N’ele a fímbria do céu não viste; a fria
Ciência, o frio estudo, o amado aspecto
D’alva acendendo as púrpuras do dia,
Roubou-te! E enquanto em peregrino afeto,
A ave cantava, o mar, o espaço, a terra,
Tu forjavas científico terceto.
Magoada Musa, as pálpebras descerra
Um pouco e a luz do sol sedenta bebe,
Longe do Sábio, longe da Inglaterra.
Meiga, em teu colo agora me recebe,
E, da áurea lira as cordas afinando,
Trava-a e suspende-a nos teus braços de Hebe:
Pois que o leitor, piedoso, descansando
Aqui, de já prostrado, te consente
Diversa cantes, e, a cantar, o bando
Ora das aves sigas, molemente,
Ora das soltas borboletas, ora
Das flechas de ouro do carcás do Oriente.
E enquanto, Musa, a vista se demora
N’esta manhã e em feria estás, enquanto
Punge os frisões, no etéreo carro, a Aurora,
Conta, o metro escandindo à voz do canto,
Como a estrela de prata, a imaculada
Estrela d’alva, a perola do manto
Celeste, à rósea luz da madrugada,
Na imensa altura estremeceu nervosa,
Como cândida noiva despertada.
Já, sob o palio azul, a tenebrosa
Noite as estrelas nítidas e belas
Prendera ao seio, como mãe piedosa.
De umas as brancas lúcidas capelas,
De outras o manto, as clâmides de linho,
Viam-se à luz da lua. Estas e aquelas,
Todas no lácteo sideral caminho
Dormiam, como um bando alvinitente
De aves, à sombra, entre os frouxeis de um ninho.
Vésper, porém, chorava: ela somente
De pé, cismando, o níveo olhar, mais níveo
Que a prata, abria na amplidão dormente.
Mirava todo o célico declívio,
Como buscando alguém que desejava,
Qual se deseja alguém que é doce alívio.
Só, no espaço desperta, como a escrava
Romana, ao pé do leito da senhora
Velando à noite, a mísera velava.
Um deus de formas válidas adora:
São seus cabelos ouro puro, o peito
Veste a armadura de cristal da aurora.
Quando ele sai das púrpuras do leito,
O arco na mão, parece de diamantes
E rosados rubins seu rosto feito.
Dera por vê-lo agora as cintilantes
Lágrimas todas, límpido tesouro,
Que tem nas longas pálpebras brilhantes...
Mas soa de repente um grande coro
Pelas cavas abobadas. . . e logo
Assoma ao longe um capacete de ouro.
O deus ouviu-lhe o suplicante rogo,
Ei-lo que vem! seu plaustro os ares corta...
Ouve o relincho aos seus corcéis de fogo...
Já do roxo Levante abriu-se a porta...
E ao ver-lhe o vulto e as chamas da armadura,
Fria, trêmula, muda, e quase morta,
Vésper desmaia na infinita altura.
OS DESAPARECIDOS
Affonso Romano de Sant'Anna
De repente, naqueles dias, começaram
a desaparecer pessoas, estranhamente.
Desaparecia-se. Desaparecia-se muito
naqueles dias.
Ia-se colher a flor oferta
e se esvanecia.
Eclipsava-se entre um endereço e outro
ou no táxi que se ia.
Culpado ou não, sumia-se
ao regressar do escritório ou da orgia.
Entre um trago de conhaque
e um aceno de mão, o bebedor sumia.
Evaporava o pai
ao encontro da filha que não via.
Mães segurando filhos e compras,
gestantes com tricots ou grupos de estudantes
desapareciam.
Desapareciam amantes em pleno beijo
e médicos em meio à cirurgia.
Mecânicos se diluíam
— mal ligavam o torno do dia.
Desaparecia-se. Desaparecia-se muito
naqueles dias.
Desaparecia-se a olhos vistos
e não era miopia. Desaparecia-se
até à primeira vista. Bastava
que alguém visse um desaparecido
e o desaparecido desaparecia.
Desaparecia o mais conspícuo
e o mais obscuro sumia.
Até deputados e presidentes evanesciam.
Sacerdotes, igualmente, levitando
iam, aerefeitos, constatar no além
como os pecadores partiam.
Desaparecia-se. Desaparecia-se muito
naqueles dias.
Os atores no palco
entre um gesto e outro, e os da platiea
enquanto riam.
Não, não era fácil
ser poeta naqueles dias.
Porque os poetas, sobretudo
— desapareciam.
A PERDIDA ESPERANÇA
Vinícius de Moraes
Paris
De posse deste amor que é, no entanto, impossível
Este amor esperado e antigo como as pedras
Eu encouraçarei o meu corpo impassível
E à minha volta erguerei um alto muro de pedras.
E enquanto perdurar tua ausência, que é eterna
Por isso que és mulher, mesmo sendo só minha
Eu viverei trancado em mim como no inferno
Queimando minha carne até sua própria cinza.
Mas permanecerei imutável e austero
Certo de que, de amor, sei o que ninguém soube
Como uma estátua prisioneira de um castelo
A mirar sempre além do tempo que lhe coube.
E isento ficarei das antigas amadas
Que, pela Lua cheia, em rápidas sortidas
Ainda vêm me atirar flechas envenenadas
Para depois beber-me o sangue das feridas.
E assim serei intacto, e assim serei tranqüilo
E assim não sofrerei da angústia de revê-las
Quando, tristes e fiéis como lobas no cio
Se puserem a rondar meu castelo de estrelas.
E muito crescerei em alta melancolia
Todo o canto meu, como o de Orfeu pregresso
Será tão claro, de uma tão simples poesia
Que há de pacificar as feras do deserto.
Farto de saber ler, saberei ver nos astros
A brilharem no azul da abóbada no Oriente
E beijarei a terra, a caminhar de rastros
Quando a Lua no céu contar teu rosto ausente.
Eu te protegerei contra o Íncubo
Que te espreita por trás da Aurora acorrentada
E contra a legião dos monstros do Poente
Que te querem matar, ó impossível amada!
POEMA PERTO DO FIM
Thiago de Mello
A morte é indolor.
O que dói nela é o nada
que a vida faz do amor.
Sopro a flauta encantada
e não dá nenhum som.
Levo uma pena leve
de não ter sido bom.
E no coração, neve.
SINHÔ DOTÔ
Patativa do Assaré
“Seu dotô, só me parece
Que o sinhô não me conhece
Nunca sôbe quem sou eu
Nunca viu minha paioça,
Minha muié, minha roça,
E os fio que Deus me deu.
Se não sabe, escute agora,
Que eu vô contá minha história,
Tenha a bondade de ouvi:
Eu sou da crasse matuta,
Da crasse que não desfruta
Das riqueza do Brasil.
Sou aquele que conhece
As privação que padece
O mais pobre camponês;
Tenho passado na vida
De quatro mês em seguida
Sem comê carne uma vez.
Sou o que durante a semana,
Cumprindo a sina tirana,
Na grande labutação
Mode sustentá a famia
Só tem direito a dois dia
O resto para o patrão.
Sou o sertanejo que cansa
De votá, com esperança
Do Brasil ficá mió;
Mas o Brasil continua
Na cantiga da perua
Que é: pió, pió, pió…
Sou o que no tempo da guerra
Contra o gosto se desterra
Para nunca mais vortá
E vai morrê no estrangêro
Como pobre brasilêro
Longe do torrão natá.
Sou o mendigo sem sossego
Que por não achá emprego
Se vê forçado a seguí
Sem direção e sem norte,
Envergonhado da sorte,
De porta em porta a pedí.
Sou aquele desgraçado,
Que nos ano atravessado
Vai batê no Maranhão,
Sujeito a todo o matrato,
Bicho de pé, carrapato,
E os ataques de sezão.
Senhô dotô , não se enfade
Vá guardando essa verdade
Na memória e pode crê
Que sou aquele operário
Que ganha um pobre salário
Que não dá não para comê
Sou ele todo, em carne e osso,
Muitas vez, não tem armoço
Nem também o que jantá;
Eu sou aquele rocêro,
Sem camisa e sem dinhêro,
Cantado por Juvená.
Sim, por Juvená Galeno,
O poeta, aquele genio,
O maió dos trovadô,
Aquele coração nobre
Que a minha vida de pobre
Muito sentido cantou.
Há mais de cem ano eu vivo
Nesta vida de cativo
E a potreção não chegou;
Sofro muito e corro estreito,
Inda tou do mermo jeito
Que Juvená me deixou.
Sofrendo a mesma sentença
Eu já tô perdendo a crença,
E pra ninguém se enganá
Vou deixá o meu nome aqui:
Eu sou fio do Brasil,
O meu nome é Ceará.”
O ELOGIO DA ESPERANÇA
Olegário Mariano
Forasteira de Alem!.. . Tu que as azas espalmas
Pelo céo tropical como o Arco-da-Alliança,
Guardas todo o consolo e o carinho das Almas,
E és sempre a mesma, sempre! Esperança! Esperança!
Triste embora, no olhar tens expressões tão calmas,
Tão cheias de languôr e és tão boa e tão mansa,
Que mal vens a cantar, piedosamente acalmas
A Dor do Mundo, a Dor sem bemaventurança.
Alta noite te espero e ouço um rumor em torno;
E's tu; na procissão das nevoas que te enlutam
Chegas; brilha na sombra o teu leve contorno.
Cantas; ouço-te a voz diabólica e bizarra,
Com a mesma adoração com que as folhas escutam
Nas arvores títans a Canção da Cigarra.
GUERREIRA
Olavo Bilac
É a encarnação do mal. Pulsa-lhe o peito
Ermo de amor, deserto de piedade…
Tem o olhar de uma deusa e o altivo aspeito
Das cruentas guerreiras de outra idade.
O lábio ao ríctus do sarcasmo afeito
Crispa-se-lhe num riso de maldade,
Quando, talvez, as pompas, com despeito,
Recorda da perdida majestade.
E assim, com o seio ansioso, o porte erguido,
Corada a face, a ruiva cabeleira
Sobre as amplas espáduas derramada,
Faltam-lhe apenas a sangrenta espada
Inda rubra da guerra derradeira,
E o capacete de metal polido…
RELÓGIO
Mário Quintana
O mais feroz dos animais domésticos
é o relógio de parede:
conheço um que já devorou
três gerações da minha família.
MADRIGAL MELANCÓLICO
Manuel Bandeira
O que eu adoro em ti
Não é a tua beleza
A beleza é em nós que existe
A beleza é um conceito
E a beleza é triste
Não é triste em si
Mas pelo que há nela
De fragilidade e incerteza
O que eu adoro em ti
Não é a tua inteligência
Não é o teu espírito sutil
Tão ágil e tão luminoso
Ave solta no céu matinal da montanha
Nem é a tua ciência
Do coração dos homens e das coisas.
O que eu adoro em ti
Não é a tua graça musical
Sucessiva e renovada a cada momento
Graça aérea como teu próprio momento
Graça que perturba e que satisfaz
O que eu adoro em ti
Não é a mãe que já perdi
E nem meu pai
O que eu adoro em tua natureza
Não é o profundo instinto matinal
Em teu flanco aberto como uma ferida
Nem a tua pureza. Nem a tua impureza.
O que adoro em ti lastima-me e consola-me:
O que eu adoro em ti é a vida!
RETRATO QUASE APAGADO EM QUE SE PODE VER PERFEITAMENTE NADA - I
Manoel de Barros
Não tenho bens de acontecimentos.
O que não sei fazer desconto nas palavras.
Entesouro frases. Por exemplo:
– Imagens são palavras que nos faltaram.
– Poesia é a ocupação da palavra pela Imagem.
– Poesia é a ocupação da Imagem pelo Ser.
Ai frases de pensar!
Pensar é uma pedreira. Estou sendo.
Me acho em petição de lata (frase encontrada no lixo).
Concluindo: há pessoas que se compõem de atos, ruídos, retratos.
Outras de palavras.
Poetas e tontos se compõem com palavras.
NOITE TROPICAL
Luís Guimarães Júnior
Desceu a calma noite irradiante
Sobre a floresta e os vales semeados:
Já ninguém ouve os cantos prolongados
Do negro escravo, estúpido e arquejante.
Dorme a fazenda:—apenas hesitante
A voz do cão, em uivos assustados,
Corta o silêncio, e vai nos descampados
Perder-se como um grito agonizante.
Rompe o luar, ensanguentado e informe,
Brotam fantasmas da savana nua...
E, de repente, um berro desconforme
Parte da mata em que o luar flutua,
E a onça, abrindo a rubra fauce enorme,
Geme na sombra, contemplando a lua.
ORAÇÃO DO REITOR
Júlio Dinis
A noite era de Inverno, húmida, escura e fria. Soprava nos pinhais
furiosa a ventania,
Imitando o bramir dum tormentoso mar. Os sinos do mosteiro ouviam-se vibrar.
E, contudo, ninguém subira ao campanário.
A alameda do adro e o morro do Calvário,
Onde se ergue imponente o sacro emblema — a Cruz —
Rasgando o negro véu, enchiam-se de luz
Quando do céu pesado o raio fuzilava:
Luz sinistra, fatal, como de ardente lava. A aldeia repousava em plácido
dormir;
Sono que não perturba esta ânsia do porvir
Que à vida nos consome, aos filhos das cidades;
Este sonhar sem fim, estas vagas saudades
Sempre, sempre a fugir dum fantasiado bem
Que à nossa cabeceira acalentar-nos vem.
A aldeia repousava. As cinzas da lareira
Onde há pouco inda ardia a paternal fogueira
Cujo grato calor as horas do serão
Ajudara a passar, frias, extintas são.
Porém na residência um homem inda vela,
Pois que uma frouxa luz, através da janela, Parece estar dizendo ao
povo que adormece :
— «Dorme, que o teu pastor de velar não se esquece !»
O pároco velava. As venerandas cãs Pendentes sobre um livro. Em
orações cristãs Iam-se, muita vez, assim, noites inteiras…
As contas do rosário eram-lhe companheiras.
Julgava-se ele então, o bondoso reitor,
Mais próximo do Céu, mais junto do Senhor !
E, Moisés do seu povo, ouvindo mais de perto
A palavra da lei que, no árido deserto,
O devia guiar por grandes provações,
Sentia então mais fé nas suas orações !
A estância humilde e nua do velho cenobita
Parece recebe r misteriosa visita
Sempre que, como agora, embevecido e só, Lê, de David, um salmo,
um lamento de Job. Páginas imortais dos Santos Evangelhos !
Pois houve quem o viu, caindo de joelhos, Erguer, cheio de ardor, os olhos
para o Céu, Como se, descerrando o impenetrável véu,
Que, aos olhos dos mortais, cobre o mistério augusto,
Lho deixasse encarar sem turbação nem custo. Vivera a fazer
bem. Envelhecera assim.
Eram-lhe distracções as flores do jardim,
O ensino da infância, a esmola aos indigentes
E o salutar conselho aos jovens e imprudentes.
Logo pela manhã, mal sentia o arrebol,
Ia-se para o monte, a ver nascer o Sol,
E voltava a almoçar mais leve do que fora,
Que a esmola o acompanhava e é grande gastadora.
Não sabia, o bom velho, há muito resistir… Cedia-lhe sorrindo…
Abençoado sorrir !
Sempre sóbrio e frugal. o santo sacerdote, Quisera, muita vez, entesourar
um dote
Para as filhas de Deus, órfãs de pai e mãe ! Socorria
a chorar! Pois chorava também,
Sempre que chorar via, ou de prazer ou pena. Em tudo reflectia aquela alma
serena,
Como lago tranqüilo, ao tombar do escarcéu,
As nuvens reproduz que perpassam no céu…
Com que amor acolhia alguma alma perdida
Que o vinha procurar, um dia, arrependida I
Com que sentida fé lhe falava da Cruz,
Prometendo o perdão em nome de Jesus !
Quando à missa do dia, ao povo que o escutava, Com voz trêmula
já, da religião falava,
Na prática singela havia tal unção
Que vinham gravar-se fundas, no coração,
As palavras de amor, de paz, de tolerância.
E o povo procurava ouvi-lo com instância.
NOTURNO Nº 1
J. G. de Araújo Jorge
Pela madrugada o rádio põe em surdina
um fundo musical de filme
em meu desespero.
E a serenidade da noite, impassível,
com sua felicidade de luar e estrelas
me faz mal,
parece afrontar meu desejo impossível
e ainda me torna mais triste, mais sentimental...
Você está em todas as formas do pensamento
E no pensamento que conforma todas as coisas...
Em vão tento fugir com a música, tento evadir-me com a noite,
em vão!
Você é a música, a noite, você é tudo!
É a própria forma e o conteúdo
Da minha solidão...
XXXII
Hilda Hilst
Por que me fiz poeta?
Porque tu, morte, minha irmã,
No instante, no centro
De tudo o que vejo.
No mais que perfeito
No veio, no gozo
Colada entre eu e o outro.
No fosso
No nó de um íntimo laço
No hausto
No fogo, na minha hora fria.
Me fiz poeta
Porque à minha volta
Na humana ideia de um deus que não conheço
A ti, morte, minha irmã,
Te vejo.
TODOS TÊM SUA GLÓRIA
Hermes Fontes
(Grafia original)
Ó glória, glória triste, excelsa glória,
irmã do amor e da felicidade!
Visão miraginal da trajectória
curta de nossa curta Mocidade!
Só se logra alcançar-te, à merencória
luz, quando a alma de ti se dissuade
e não és mais o que és, pois a memória
do que foste, é que é gloria, de verdade.
O glória que eu julgava inatingível,
se és apenas a fama, e o amor é apenas
a posse corporal de urna mulher…
Que vos valeu penar as grandes penas
de sonhar que eras quase um impossível,
se és um sonho ao alcance de qualquer?!
HAIKAI
Guilherme de Almeida
Um gosto de amora
comida com sol. A vida
chamava-se “Agora”
PERFÍDIA
Francisca Júlia
Disse-lhe o poeta: "Aqui, sob estes ramos, Sob estas verdes laçarias bravas, Ah! quantos beijos, trêmula, me davas! Ah! quantas horas de prazer passamos! Foi aqui mesmo, — como tu me amavas! Foi aqui, sob os úmidos recamos Desta aragem, que uma rede alçamos Em que teu corpo, mole, repousavas. Horas passava junto a ti, bem perto De ti. Que gozo então! Mas, pouco a pouco, Todo esse amor calcaste sob os pés". "Mas, disse-lhe ela, quem és tu? De certo, Essa mulher de quem tu falas, louco, Não, não sou eu, porque não sei quem és..."
FOLHAS DE ROSA
Florbela Espanca
Todas as prendas que me deste, um dia,
Guardei-as, meu encanto, quase a medo,
E quando a noite espreita o pôr do sol,
Eu vou falar com elas em segredo...
E falo-lhes d’amores e de ilusões,
Choro e rio com elas, mansamente...
Pouco a pouco o perfume de outrora
Flutua em volta delas, docemente...
Pelo copinho de cristal e prata
Bebo uma saudade estranha e vaga,
Uma saudade imensa e infinita
Que, triste, me deslumbra e m’embriaga
O espelho de prata cinzelada,
A doce oferta que eu amava tanto,
Que refletia outrora tantos risos,
E agora reflete apenas pranto,
E o colar de pedras preciosas,
De lágrimas e estrelas constelado,
Resumem em seus brilhos o que tenho
De vago e de feliz no meu passado...
Mas de todas as prendas, a mais rara,
Aquela que mais fala à fantasia,
São as folhas daquela rosa branca
Que a meus pés desfolhaste, aquele dia...
O ESPELHO NO GUARDA-ROUPA
Ferreira Gullar
Um homem
com um espelho (feito
um segundo esqueleto)
embutido no corpo
não pode
bruscamente voltar-se para trás
não pode
juntar nada do chão
e quando dorme
é como um acrobata
estendido sobre um relâmpago
Um homem com um espelho
enterrado no corpo
na verdade não dorme: reflete
um voo
Enfim, esse homem
não pode falar alto demais
porque os espelhos só guardam
(em seu abismo)
imagens sem barulho
DO VALE À MONTANHA
Fernando Pessoa
Do vale à montanha,
Da montanha ao monte, cavalo de sombra,
Cavaleiro monge,
Por casas, por prados,
Por Quinta e por fonte,
Caminhais aliados.
Do vale à montanha,
Da montanha ao monte,
Cavalo de sombra,
Cavaleiro monge,
Por penhascos pretos,
Atrás e defronte,
Caminhais secretos.
Do vale à montanha,
Da montanha ao monte,
Cavalo de sombra,
Cavaleiro monge,
Por quanto é sem fim,
Sem ninguém que o conte,
Caminhais em mim.
TROVA HUMORÍSTICA 30
Eno Teodoro Wanke
O "Tempo é dinheiro" tem
Um valor fundamental
Por isso, perdoai meus senh...
Se eu não terminar as pal...
SOMBRA E NÉVOA
Da Costa e Silva
Sombra e Névoa , Cai o crepúsculo. Chove.
Sobe a névoa... A sombra desce...
Como a tarde me entristece!
Como a chuva me comove!
Cai a tarde, muda e calma...
Cai a chuva, fina e fria...
Anda no ar a nostalgia,
Que é névoa e sombra em minh’alma.
Há não sei que afinidade
Entre mim e a natureza:
Cai a tarde... Que tristeza!
Cai a chuva... Que saudade!
DEUSA SERENA
Cruz e Sousa
Espiritualizante Formosura
Gerada nas Estrelas impassíveis,
Deusa de formas bíblicas, flexíveis,
Dos eflúvios da graça e da ternura.
Açucena dos vales da Escritura,
Da alvura das magnólias marcessíveis,
Branca Via-Láctea das indefiníveis
Brancuras, fonte da imortal brancura.
Não veio, é certo, dos pauis da terra
Tanta beleza que o teu corpo encerra,
Tanta luz de luar e paz saudosa...
Vem das constelações, do Azul do Oriente,
Para triunfar maravilhosamente
Da beleza mortal e dolorosa!
SERENATA
Cecília Meireles
Permita que eu feche os meus olhos,
pois é muito longe e tão tarde!
Pensei que era apenas demora,
e cantando pus-me a esperar-te.
Permite que agora emudeça:
que me conforme em ser sozinha.
Há uma doce luz no silencio,
e a dor é de origem divina.
Permite que eu volte o meu rosto
para um céu maior que este mundo,
e aprenda a ser dócil no sonho
como as estrelas no seu rumo.
NO ÁLBUM DO ARTISTA LUÍS C. AMOÊDO
Castro Alves
(Grtafia original)
Nos tempos idos... O alabastro, o mármore
Reveste as formas desnuadas, mádidas
De Vênus ou Friné.
Nem um véu p’ra ocultar o seio trêmulo,
Nem um tirso a velar a coxa pálida...
O olhar não sonha... vê!
Um dia o artista, num momento lúcido,
Entre gazas de pedra a loura Aspásia
Amoroso envolveu.
Depois, surpreso!... viu-a inda mais lânguida...
Sonhou mais doudo aquelas formas lúbricas...
Mais nuas sob um véu.
É o mistério do espírito... A modéstia
É dos talentos reis a santa púrpura...
Artista, és belo assim...
Este santo pudor é só dos gênios! —
Também o espaço esconde-se entre névoas...
E no entanto é... sem fim!
São Paulo, abril de 1868
A UMA PLATEIA
Casimiro de Abreu
O cedro foi planta um dia,
Viço e força o arbusto cria,
Da vergôntea nasce o galho;
E a flor p’ra ter mais vida,
Para ser – rosa querida –
Carece as gotas de orvalho.
Com o talento é o mesmo
Quando tímido ele adeja
– Qual ave que se espaneja –
Como a flor, também precisa
Em vez do sopro da brisa
O sopro da simpatia
Que lhe adoce os amargores,
Para em horas de cansaço
Na estrada que vai trilhando
Encontrar de quando em quando
Por entre os espinhos – flores.
E vós que acabais de ouvi-lo
A suspirar nesse trilo
No seu gorjeio primeiro;
Vós, que viste o seu começo.
Dai-lhe essas palmas de apreço
Que é artista e… brasileiro!
SUBÚRBIOS
GUIA PRÁTICO DA CIDADE DO RECIFE
Carlos Pena Filho
Nos subúrbios coloridos
em que a cidade se estende,
em seus longos arredores,
onde, a cada instante nasce
uma rosa de papel,
caminham as tecelãs.
Restos de amor nos cabelos
que ocultam por ocultar,
levam a noite no ventre
e a madrugada no olhar
e em esqueletos da sombra,
onde a luz chega filtrada,
as tecelãs vão parar.
Adeus lembrança de amores,
adeus leve caminhar.
Agora resta somente
um desencanto sereno:
o gerente e as botinas,
magoando o silêncio pleno.
Mas, nos domingos mais claros,
as tecelãs se transformam
em puras rosas de sal
e oferecem os seus braços
à curva do litoral.
Nem se lembram mais do mangue,
podre, virgem, vegetal,
onde os homens são sem sonhos,
como qualquer mineral.
DIANTE DE UMA CRIANÇA
Carlos Drummond de Andrade
Como fazer feliz meu filho?
Não há receitas para tal.
Todo o saber, todo o meu brilho
de vaidoso intelectual
vacila ante a interrogação
gravada em mim, impressa no ar.
Bola, bombons, patinação
talvez bastem para encantar?
Imprevistas, fartas mesadas,
louvores, prêmios, complacências,
milhões de coisas desejadas,
concedidas sem reticências?
Liberdade alheia a limites,
perdão de erros, sem julgamento,
e dizer-lhe que estamos quites,
conforme a lei do esquecimento?
Submeter-me à sua vontade
sem ponderar, sem discutir?
Dar-lhe tudo aquilo que há
de entontecer um grão-vizir?
E, se depois de tanto mimo
que o atraia, ele se sente
pobre, sem paz e sem arrimo,
alma vazia, amargamente?
Não é feliz. Mas que fazer
para consolo desta criança?
Como em seu íntimo acender
uma fagulha de confiança?
Eis que acode meu coração
e oferece, como uma flor,
a doçura desta lição:
dar a meu filho meu amor.
Pois o amor resgata a pobreza,
vence o tédio, ilumina o dia
e instaura em nossa natureza
a imperecível alegria.
Enquanto quis Fortuna que tivesse
Esperança de algum contentamento,
O gosto de um suave pensamento
Me fez que seus efeitos escrevesse.
Porém, temendo Amor que aviso desse
Minha escritura a algum juízo isento,
Escureceu-me o engenho co'o tormento,
Para que seus enganos não disesse
Ó vós que Amor obriga a ser sujeitos
A diversas vontades! Quando lerdes
Num breve livro casos tão diversos,
Verdades puras são e não defeitos;
E sabei que, segundo o amor tiverdes,
Tereis o entendimento de meus versos.
TROVA 021
Belmiro Braga
Os beijos, segundo os sábios
Dados com muita afeição
Não deixam sinal nos lábios
Mas deixam no coração
PÁLIDA INOCÊNCIA
Álvares de Azevedo
Por que, pálida inocência,
Os olhos teus em dormência
A medo lanças em mim?
No aperto de minha mão
Que sonho do coração
Tremeu-te os seios assim?
E tuas falas divinas
Em que amor lânguida afinas
Em que lânguido sonhar?
E dormindo sem receio
Por que geme no teu seio
Ansioso suspirar?
Inocência! quem dissera
De tua azul primavera
As tuas brisas de amor!
Oh! quem teus lábios sentira
E que trêmulo te abrira
Dos sonhos a tua flor!
Quem te dera a esperança
De tua alma de criança,
Que perfuma teu dormir!
Quem dos sonhos te acordasse,
Que num beijo t’embalasse
Desmaiada no sentir!
Quem te amasse! e um momento
Respirando o teu alento
Recendesse os lábios seus!
Quem lera, divina e bela,
Teu romance de donzela
Cheio de amor e de Deus!
O PIOR DOS MALES
Alberto de Oliveira
Baixando à Terra, o cofre em que guardados
Vinham os Males, indiscreta abria
Pandora. E eis deles desencadeados
À luz, o negro bando aparecia.
O Ódio, a Inveja, a Vingança, a Hipocrisia,
Todos os Vícios, todos os Pecados
Dali voaram. E desde aquele dia
Os homens se fizeram desgraçados.
Mas a Esperança, do maldito cofre
Deixara-se ficar presa no fundo,
Que é última a ficar na angústia humana…
Por que não voou também? Para quem sofre
Ela é o pior dos males que há no mundo,
Pois dentre os males é o que mais engana.
OS DESAPARECIDOS
Affonso Romano de Sant'Anna
De repente, naqueles dias, começaram
a desaparecer pessoas, estranhamente.
Desaparecia-se. Desaparecia-se muito
naqueles dias.
Ia-se colher a flor oferta
e se esvanecia.
Eclipsava-se entre um endereço e outro
ou no táxi que se ia.
Culpado ou não, sumia-se
ao regressar do escritório ou da orgia.
Entre um trago de conhaque
e um aceno de mão, o bebedor sumia.
Evaporava o pai
ao encontro da filha que não via.
Mães segurando filhos e compras,
gestantes com tricots ou grupos de estudantes
desapareciam.
Desapareciam amantes em pleno beijo
e médicos em meio à cirurgia.
Mecânicos se diluíam
— mal ligavam o torno do dia.
Desaparecia-se. Desaparecia-se muito
naqueles dias.
Desaparecia-se a olhos vistos
e não era miopia. Desaparecia-se
até à primeira vista. Bastava
que alguém visse um desaparecido
e o desaparecido desaparecia.
Desaparecia o mais conspícuo
e o mais obscuro sumia.
Até deputados e presidentes evanesciam.
Sacerdotes, igualmente, levitando
iam, aerefeitos, constatar no além
como os pecadores partiam.
Desaparecia-se. Desaparecia-se muito
naqueles dias.
Os atores no palco
entre um gesto e outro, e os da platéia
enquanto riam.
Não, não era fácil
ser poeta naqueles dias.
Porque os poetas, sobretudo
— desapareciam.
A PERA
Vinícius de Moraes
Como de cera
E por acaso
Fria no vaso
A entardecer
A pera é um pomo
Em holocausto
À vida, como
Um seio exausto
Entre bananas
Supervenientes
E maçãs lhanas
Rubras, contentes
A pobre pera:
Quem manda ser a?
PARA OS QUE VIRÃO
Thiago de Mello
Como sei pouco, e sou pouco,
faço o pouco que me cabe
me dando inteiro.
Sabendo que não vou ver
o homem que quero ser.
Já sofri o suficiente
para não enganar a ninguém:
principalmente aos que sofrem
na própria vida, a garra
da opressão, e nem sabem.
Não tenho o sol escondido
no meu bolso de palavras.
Sou simplesmente um homem
para quem já a primeira
e desolada pessoa
do singular - foi deixando,
devagar, sofridamente
de ser, para transformar-se
- muito mais sofridamente -
na primeira e profunda pessoa
do plural.
Não importa que doa: é tempo
de avançar de mão dada
com quem vai no mesmo rumo,
mesmo que longe ainda esteja
de aprender a conjugar
o verbo amar.
É tempo sobretudo
de deixar de ser apenas
a solitária vanguarda
de nós mesmos.
Se trata de ir ao encontro.
(Dura no peito, arde a límpida
verdade dos nossos erros.)
Se trata de abrir o rumo.
Os que virão, serão povo,
e saber serão, lutando.