TERÇA-FEIRA (POEMA DO PORTUGUÊS JÚLIO DINIS)

TERÇA-FEIRA
Júlio Dinis
Fonte: Google
I
Rompera a manhã sombria,
Destas que fazem tristeza;
Em perfeita calmaria
Repousava a natureza.
Repousava. As ondas mansas Vinham quebrar-se na areia. Que mar tanto de esperanças!
Que enganadora sereia!
O arrais, correndo os palheiros,
«Ao mar!» grita. «ao mar, aos remos !»
«Para as lanchas, companheiros;
Grande safra hoje teremos.»
E a pobre gente da costa, Essa raça destemida,
Que a morte sem medo arrosta, Num momento é toda erguida.
Ei-los na praia. Cantando
Se dão à tarefa santa,
Que nesse arrojado bando
Quem mais trabalha, mais canta.
Sao todos? Todos não. Falta Da companha o mais valente! Esta nova sobressalta
O peito daquela gente.
«Partir sem ele ! Por Cristo, Que a primeira vez seria.
Em qualquer lance imprevisto
Quem tanto nos valeria?»
Tudo pára, tudo hesita,
Mãos nos remos, mão no leme;
Que o seio a muitos palpita,
Que a muitos a mão já treme
II
Ora, no pobre palheiro
Do pescador que tardava,
Eis que ao alvor primeiro
Desta manhã se passava:
Ele acordara, e na esposa, Que ao lado dorme tranqüila, Repousa a vista
amorosa,
E ao despertá-la, vacila.
Vacila — se é tão suave Aquele dormir ! tão brando!
Mas não sei que idéia grave Lhe está na mente pesando.
Ternamente ao seio a aperta, E lhe diz com gesto ameno:
— «Mulher, teu filho desperta, Acorda-me esse pequeno.»
A jovem mãe estremece
— «Que acorde meu filho, dizes !
Deixa-o dormir. Deus lhe desse
Sempre assim sonos felizes.»
— «Acorda teu filho, acorda, Tal dormir não é para
ele ;
Tempo é que da lancha à borda
Como os outros também vele.»
—«As lanchas! ao mar!… pois queres?… » E a mãe
empalidecia.
— «Nesta vida de mulheres
Não é que um homem se cria.»
— «Mas tão novo!…» — «Inda mais novo
Meu pai me levou consigo.»
— «Mas… —já se fala entre o povo
«Do rapaz». — Mas ouve, amigo…»
E a voz trêmula e chorosa Quase em pranto se afogava. Curvara-se ao mar
a esposa, Mas a mãe, essa, hesitava.
Hesitava, que se lhe ia
A alma toda, dando aos mares
O filho, a sua alegria,
O lume dos seus olhares.
— «Ouve», murmura, chorando
«Por Deus te vou pedir isto!»
E depois, em tom mais brando,
•<Em nome de Jesus Cristo!
«Deixa-mo ficar, marido,
Hoje só, ai! hoje ao menos!…
Fraco auxílio o recebido
Dos braços desses pequenos!
«Bem sabes que tudo os cansa… Sempre sois tão desumanos!
E depois… essa criança
Inda não fez os dez anos.»
— «Agoura-me bem o dia
Para lhe abrir a carreira.»
— «Porém, ó Virgem Maria,
E hoje então que é terça-feira!»
— «Mulher, deixa essas idéias, Iguais são todos os
dias;
Em maus agouros não creias, Se é que no Senhor confias.
«Apronta teu filho, apronta,
Que hoje há-de entrar na partilha,
E olha que o Sol já desponta;
Anda, acorda-o, minha filha.»
III
— «Filho, filho, ergue-te, acorda… Para quê, só
Deus o sabe…»
E em lágrimas lhe trasborda
A dor que n’alma nao cabe.
— «Sonhavas talvez brinquedos, Pois que sorrias dormindo; Verás
brincar nos rochedos
Esse mar que está bramindo.
«Vai inda quente do berço, Inda quente dos meus beijos, Para
um mundo bem diverso Do sonhado em meus desejos.
«Vai, tu que sempre dormiste Ao som de minhas cantigas, Dormitar à
canção triste
Dessas ondas inimigas.
«E sorris, anjo querido,
Ao passo que eu choro tanto,
Pois não sabes o sentido
Deste doloroso pranto?
«Não sabes que se me parte
O meu coração no peito
Ao vir assim acordar-te
Do teu sossegado leito?
«Não sabes que minha vida, Pobre filho, vai contigo,
E que nesta despedida
Trocas pra sempre este abrigo.
«Este abrigo de meu seio, Por perigos e cansaços?! Não sei,
não sei que receio Ao tirar-te de meus braços.
«Choras, filho? Ai, não, não chores, Que me tiras todo o
alento;
Já me bastam minhas dores, Basta-me o meu pensamento.
«Deus é bom. Nem sempre os mares
Se alevantam com tormentas.
Não chores, que se chorares,
O meu pesar acrescentas.
«Sossega. Esta cruz benzida
Leva contigo, e descansa,
Pois quem é tão bom na vida,
Deve em Deus ter confiança.
«Vai, que eu à nossa Senhora, Àquela Virgem das Dores,
Que é a tua protectora, Rezarei logo que fores.
«Limpa essas lágrimas, vamos, Que teu pai tas não conheça.
E a oração que te ensinamos, Ai, vê lá! nunca te
esqueça.»
IV
E viu-os partir. E o pranto
Lhe inunda as faces. Desmaia.
Dos pescadores o canto
Se escuta ao longe na praia.
Oh! que tristeza tamanha! Que pressentimento amargo,
Quando as lanchas da companha
Se fazem, remando, ao largo!
Junto à imagem de Maria Esta outra mãe dolorosa De joelhos todo
o dia
Lhe ergue preces, fervorosa.
«Ó Mãe de Deus, luz divina, Que alumias nossas almas!
Ó estrela matutina,
Que as tempestades acalmas!
«Baixa à Terra esses olhares, Nossa única esperança,
E, voltando-os sobre os mares, Protege aquela criança.
«Compadece-te, Senhora, Destas lágrimas sentidas; Estende a mão
protectora Sobre aquelas pobres vidas.
«Vê que me andam sobre as águas
Todos quantos estremeço.
Mãe, que entendes minhas mágoas,
Diz se essas vidas têm preço !
«Pela angústia que sentiste
Junto da cruz, ó Maria,
Vale-me nesta hora triste,
Vale-me nesta agonia.»
No meio de ardente prec e Ergue-se inquieta, palpita, Fitando o céu,
que escurece, Ouvindo o mar, que se agita.
V
Era ao tempo das Trindades: As aves, que pressagiam
O chegar das tempestades, Amedrontadas gemiam.
A mãe segue na carreira
Uma vaga e outra vaga.
« Terça-feira! terça-feira!»
Lhe diz uma voz pressaga.
Já treme. Os olhos velados, Onde a angústia se revela, Pelos
mares agitados
Não descobrem uma vela.
E as nuvens correm velozes, E o vento revolve a areia.
Já se ouvem confusas vozes
Na praia de gente cheia.
Velhos, mães, tristes esposas, Crianças nuas, em choro,
Altas vozes, lastimosas, Erguem num sinistro coro.
Que cena! e redobra o vento, E condensa-se a neblina,
E o mar rebrame violento, E a noite a cena domina.
E à luz de algumas fogueiras
Escassa, tênue, funesta,
Movem-se sombras ligeiras
Como se em diabólica festa.
E ela, a mãe em desatino, Corre, pára, escuta, chora, Maldiz o
poder divino… Depois seu perdão implora.
Os olhos na sombra fitos, Dessa noite escura, escura, Eleva-os ao Céu
aflitos,
E em vão um astro procura.
E o raio, que as trevas densas
De quando em quando devassa,
Mostra-lhes vagas imensas,
Negros abismos, e passa
VI
Só à luz da madrugada
Se acalma a brava tormenta.
Que noite em ânsias passada,
Tão pavorosa! tão lenta!
O céu reflecte nas águas
A cor azul de bonança.
E vai sanando as mágoas
A branda luz da esperança,
— «Barcas ao longe! nao vedes ! Oh! que alegria tamanha!
Deus abençoou as redes,
São as lanchas da companha.»
Crianças, mulheres, velhos, Ao ouvirem este grito, Todos, todos de joelhos
Cantam piedoso Bendito.
Ei-las vêm! Braços valentes Afeitos àquela guerra, Cortando
os mares frementes As impelem para a terra.
Na turba dos pescadores
A mãe com turbado aspecto,
Inda escuro de terrores,
Procura o filho dilecto.
Tudo exulta de alegria;
Cada qual os seus conhece…
E ela só, muda, sombria,
Sobre a praia permanece.
Ei-los enfim! Que transportes, Que lágrimas os esperam! Vêem-se
chorar os mais fortes
Dos que no mar não tremeram.
Por entre os grupos vagueia
A mãe, trêmula, calada,
De negros agouros cheia,
De vago pavor tomada.
Quase em delírio vê tudo, Como se através dum sonho; De
repente um grito agudo Soa na praia medonho.
É que pálido, abatido,
Junto ao mar o esposo vira;
E que terrível sentido
Naquela dor descobrira.
— «Que negro presságio é este
Que leio nos teus olhares?
Do meu filho o que fizeste?»
— «Pergunta-o a esses mares.»
No grito que a triste solta
Vai-lhe a razão, mais que a vida!
Depois para o mar se volta,
Turba, pálida, perdida…
— «Não! não hás-de assim roubar-me
O filho destas entranhas,
Não podem intimidar-me
As tuas iras tamanhas.
«Não vês que tenho no seio Este amor? Espera, espera, Ruge
! não tenho receio; Ruge, amaldiçoada fera!
«Ruge!» e sem tino, movida Da alucinação que a
agita, Rompendo em veloz corrida, Nas ondas se precipita.
Em vão lhe açodem, que forte
O filho às vagas disputa.
Era um combate de morte!
Era uma tremenda luta!
E na manhã do outro dia Viu-se na praia arrojada A mãe, que,
morta, sorria
Do filho ao corpo abraçada.