Almanaque Raimundo Floriano
Fundado em 24.09.2016
(Cultural, sem fins comerciais, lucrativos ou financeiros)
Raimundo Floriano de Albuquerque e Silva, Editor deste Almanaque, também conhecido como Velho Fulô, Palhaço Seu Mundinho e Mundico Trazendowski, nascido em Balsas , Maranhão, a 3 de julho de 1936, Católico Apostólico Romano, Contador, Oficial da Reserva do Exército Brasileiro, Funcionário Público aposentado da Câmara dos Deputados, Titular da Cadeira nº 10 da Academia Passa Disco da Música Nordestina, cuja patrona é a cantora Elba Ramalho, Mestre e Fundador da Banda da Capital Federal, Pesquisador da MPB, especializado em Velha Guarda, Música Militar, Carnaval e Forró, Cardeal Fundador da Igreja Sertaneja, Pioneiro de Brasília, Xerife nos Mares do Caribe, Cordelista e Glosador, Amigo do Rio das Balsas, Inventor da Descida de Boia, em julho de 1952, Amigo da Fanfarra do 1° RCG, autor dos livros O Acordo PDS/PTB, coletânea de charges, Sinais de Revisão e Regras de Pontuação, normativo, Do Jumento ao Parlamento, com episódios da vida real, De Balsas para o Mundo, centrado na navegação fluvial Balsas/Oceano Atlântico, Pétalas do Rosa, saga da Família Albuquerque e Silva, Memorial Balsense, dedicado à história de sua terra natal, e Caindo na Gandaia, humorístico apimentado, é casado, tem quatro filhos, uma nora, dois genros e dois netos e reside em Brasília, Distrito Federal, desde dezembro de 1960.
Poemas e Poesias quinta, 08 de junho de 2023
A ALEGRIA (POEMA DO MARANHENSE FERREIRA GULLAR)
A ALEGRIA
Ferreira Gullar
O sofrimento não tem nenhum valor Não acende um halo em volta de tua cabeça, não ilumina trecho algum de tua carne escura (nem mesmo o que iluminaria a lembrança ou a ilusão de uma alegria).
Sofres tu, sofre um cachorro ferido, um inseto que o inseticida envenena. Será maior a tua dor que a daquele gato que viste a espinha quebrada a pau arrastando-se a berrar pela sarjeta sem ao menos poder morrer?
A justiça é moral, a injustiça não. A dor te iguala a ratos e baratas que também de dentro dos esgotos
espiam o sol e no seu corpo nojento de entre fezes querem estar contentes.
Poemas e Poesias quarta, 07 de junho de 2023
DÁ A SURPRESA DE SER (POEMA DO PORTUGUÊS FERNANDO PESSOA)
DÁ A SURPRESA DE SER
Fernando Pessoa
Dá a surpresa de ser
É alta, de um louro escuro.
Faz bem só pensar em ver
Seu corpo meio maduro.
Seus seios altos parecem
(Se ela estivesse deitada)
Dois montinhos que amanhecem
Sem ter que haver madrugada.
E a mão do seu braço branco
Assenta em palmo espalhado
Sobre a saliência do flanco
Do seu relevo tapado.
Apetece como um barco.
Tem qualquer coisa de gomo.
Meu Deus, quando é que eu embarco?
Ó fome, quando é que eu como?
Poemas e Poesias terça, 06 de junho de 2023
OS LÊMURES (POEMA DO FLUMINENSE EUCLIDES DA CUNHA)
OS LÊMURES
Euclides da Cunha
Ó minha musa — imaculada e santa! Deixa um momento os sonhos teus benditos Despe os teus véus de noiva do ideal Deixa-os, despe-os e canta Sobre as ruínas trágicas do mal As almas arruinadas dos malditos!…
Poemas e Poesias segunda, 05 de junho de 2023
TROVAS HUMORÍSTICAS - 20 - (POEMA DO PARANAENSE ENO TEODORO WANKE)
TROVA HUMORÍSTICA 20
Eno Teodoro Wanke
O mesmo vento que agita
As saias e expõe, trocista
Alguma perna bonita
Nos joga areia na vista
Poemas e Poesias domingo, 04 de junho de 2023
O BEATA SOLITUDO (POEMA DO PIAUIENSE DA COSTA E SILVA)
O BEATA SOLITUDO
Da Costa e Silva
Amada solidão, silêncio amigo, Vosso convívio me é tão grato e ameno Que, voluntariamente, me condeno A viver só, para vos ter comigo.
Alheio ao mundo, como um poeta antigo, Noto, isolado, que ao mais leve aceno, Me vêm, em ronda, ao espírito sereno As idéias e imagens que persigo...
Solidão! vem de ti o êxtase infindo Em que sinto, em constantes primaveras, Meu ser a natureza refletindo...
Silêncio! enchendo o espaço onde me esperas, Sonho, como Pitágoras, ouvindo A harmonia divina das esferas.
Poemas e Poesias sábado, 03 de junho de 2023
ANTÍFONA (POEMA DO CATARINENSE CRUZ E SOUSA)
ANTÍFONA
Cruz e Sousa
Ó Formas alvas, brancas, Formas claras De luares, de neves, de neblinas!... Ó Formas vagas, fluidas, cristalinas... Incensos dos turíbulos das aras...
5Formas do Amor, constelarmente puras, De Virgens e de Santas vaporosas... Brilhos errantes, mádidas frescuras E dolências de lírios e de rosas...
Indefiníveis músicas supremas, 10Harmonias da Cor e do Perfume... Horas do Ocaso, trêmulas, extremas, Réquiem do Sol que a Dor da Luz resume...
Visões, salmos e cânticos serenos, Surdinas de órgãos flébeis, soluçantes... 15Dormências de volúpicos venenos Sutis e suaves, mórbidos, radiantes...
Infinitos espíritos dispersos, Inefáveis, edênicos, aéreos, Fecundai o Mistério destes versos 20Com a chama ideal de todos os mistérios.
Do Sonho as mais azuis diafaneidades Que fuljam, que na Estrofe se levantem E as emoções, todas as castidades Da alma do Verso, pelos versos cantem.
25Que o pólen de ouro dos mais finos astros Fecunde e inflame a rima clara e ardente... Que brilhe a correção dos alabastros Sonoramente, luminosamente.
Forças originais, essência, graça 30De carnes de mulher, delicadezas... Todo esse eflúvio que por ondas passa Do Éter nas róseas e áureas correntezas...
Cristais diluídos de clarões álacres, Desejos, vibrações, ânsias, alentos, 35Fulvas vitórias, triunfamentos acres, Os mais estranhos estremecimentos...
Flores negras do tédio e flores vagas De amores vãos, tantálicos, doentios... Fundas vermelhidões de velhas chagas 40Em sangue, abertas, escorrendo em rios...
Tudo! vivo e nervoso e quente e forte, Nos turbilhões quiméricos do Sonho, Passe, cantando, ante o perfil medonho E o tropel cabalístico da Morte...
Poemas e Poesias sexta, 02 de junho de 2023
SONETO IV (POEMA DO CARIOCA CLÁUDIO MANOEL DA COSTA)
SONETO IV
Cláudio Manuel da Costa
Sou pastor; não te nego; os meus montados São esses, que aí vês; vivo contente Ao trazer entre a relva florescente A doce companhia dos meus gados;
Ali me ouvem os troncos namorados, Em que se transformou a antiga gente; Qualquer deles o seu estrago sente; Como eu sinto também os meus cuidados.
Vós, ó troncos, (lhes digo) que algum dia Firmes vos contemplastes, e seguros Nos braços de uma bela companhia;
Consolai-vos comigo, ó troncos duros; Que eu alegre algum tempo assim me via; E hoje os tratos de Amor choro perjuros.
Poemas e Poesias quinta, 01 de junho de 2023
MANIAS! (POEMA DO PORTUGUÊS CESÁRIO VERDE)
MANIAS!
Cesário Verde
O mundo é velha cena ensanguentada, Coberta de remendos, picaresca; A vida é chula farsa assobiada, Ou selvagem tragédia romanesca.
Eu sei um bom rapaz, -- hoje uma ossada, -- Que amava certa dama pedantesca, Perversíssima, esquálida e chagada, Mas cheia de jactância quixotesca.
Aos domingos a deia já rugosa, Concedia-lhe o braço, com preguiça, E o dengue, em atitude receosa,
Na sujeição canina mais submissa, Levava na tremente mão nervosa, O livro com que a amante ia ouvir missa!
Poemas e Poesias quarta, 31 de maio de 2023
PARA IR À LUA (POEMA DA CARIOCA CECÍLIA MEIRELES)
PARA IR À LUA
Cecília Meireles
Enquanto não têm foguetes para ir à Lua os meninos deslizam de patinete pelas calçadas da rua.
Vão cegos de velocidade: mesmo que quebrem o nariz, que grande felicidade! Ser veloz é ser feliz.
Ah! se pudessem ser anjos de longas asas! Mas são apenas marmanjos.
Poemas e Poesias segunda, 29 de maio de 2023
O VOO DO GÊNIO (POEMA DO BAIANO CASTRO ALVES)
O VOO DO GÊNIO
Castro Alves
À ATRIZ EUGÊNIA CÂMARA
Um dia, em que na terra a sós vagava Pela estrada sombria da existência, Sem rosas — nos vergéis da adolescência, Sem luz destrela — pelo céu do amor; Senti as asas de um arcanjo errante Roçar-me brandamente pela fronte, Como o cisne, que adeja sobre a fonte, As vezes toca a solitária flor.
E disse então: "Quem és, pálido arcanjo! Tu, que o poeta vens erguer do pego? Eras acaso tu, que Milton cego Ouvia em sua noite erma de sol? Quem és tu? Quem és tu?" — "Eu sou o gênio", Disse-me o anjo "vem seguir-me o passo, Quero contigo me arrojar no espaço, Onde tenho por croas o arrebol".
"Onde me levas, pois?.. . " — "Longe te levo Ao país do ideal, terra das flores, Onde a brisa do céu tem mais amores E a fantasia — lagos mais azuis. . . " E fui... e fui... ergui-me no infinito, Lá onde o vôo dáguia não se eleva... Abaixo — via a terra — abismo em treva! Acima — o firmamento — abismo em luz!
"Arcanjo! arcanjo! que ridente sonho!" — "Não, poeta, é o vedado paraíso, Onde os lírios mimosos do sorriso Eu abro em todo o seio, que chorou, Onde a loura comédia canta alegre, Onde eu tenho o condão de um gênio infindo, Que a sombra de Molière vem sorrindo Beijar na fronte, que o Senhor beijou. . . "
"Onde me levas mais, anjo divino?" — "Vem ouvir, sobre as harpas inspiradas, O canto das esferas namoradas, Quando eu encho de amor o azul dos céus. Quero levar-te das paixões nos mares. Quero levar-te a dédalos profundos, Onde refervem sóis... e céus... e mundos... Mais sóis... mais mundos, e onde tudo é rneu...
"Mulher! mulher! Aqui tudo é volúpia: A brisa morna, a sombra do arvoredo, A linfa clara, que murmura a medo, A luz que abraça a flor e o céu ao mar. Ó princesa, a razão já se me perde, És a sereia da encantada Sila. Anjo, que transformaste-te em Dalila, Sansão de novo te quisera amar!
"Porém não paras neste vôo errante! A que outros mundos elevar-me tentas? Já não sinto o soprar de auras sedentas, Nem bebo a taça de um fogoso amor. Sinto que rolo em báratros profundos... Já não tens asas, águia da Tessália, Maldições sobre ti... tu és Onfália, Ninguém te ergue das trevas e do horror.
"Porém silêncio! No maldito abismo, Onde caí contigo criminosa, Canta uma voz, sentida e maviosa, Que arrependida sobe a Jeová! Perdão! Perdão! Senhor, pra quem soluça, Talvez seja algum anjo peregrino... ... Mas não! inda eras tu, gênio divino, Também sabes chorar, como Eloá!
"Não mais, ó serafim! suspende as asas! Que, através das estrelas arrastado, Meu ser arqueja louco, deslumbrado, Sobre as constelações e os céus azuis. Arcanjo! Arcanjo! basta... já contigo Mergulhei das paixões nas vagas cérulas... Mas nos meus dedos — já não cabem — pérolas — Mas na minhalma — já não cabe — luz!...
Poemas e Poesias domingo, 28 de maio de 2023
SONHANDO (POEMA DO FLUMINENSE CASIMIRO DE ABREU)
SONHANDO
Casimiro de Abreu
Um dia, oh linda, embalada Ao canto do gondoleiro, Adormeceste inocente No teu delírio primeiro, - Por leito o berço das ondas, Meu colo por travesseiro!
Eu, pensativo, cismava Nalgum remoto desgosto, Avivado na tristeza Que a tarde tem, ao sol-posto, E ora mirava as nuvens, Ora fitava teu rosto.
Sonhavas então, querida, E presa de vago anseio Debaixo das roupas brancas Senti bater o teu seio, E meu nome num soluço À flor dos lábios te veio!
Tremeste como a tulipa Batida do vento frio... Suspiraste como a folha Da brisa ao doce cicio... E abriste os olhos sorrindo Às águas quietas do rio!
Depois - uma vez - sentados Sob a copa do arvoredo, Falei-te desse soluço Que os lábios abriu-te a medo... - Mas tu, fugindo, guardaste Daquele sonho o segredo!...
Poemas e Poesias sábado, 27 de maio de 2023
SONETO (POEMA DO PENRAMBUCANO CARLOS PENA FILHO)
SONETO
Carlos Pena Filho
O quanto perco em luz conquisto em sombra. E é de recusa ao sol que me sustento. Às estrelas, prefiro o que se esconde Nos crepúsculos graves dos conventos.
Humildemente envolvo-me na sombra que veste, à noite, os cegos monumentos isolados nas praças esquecidas e vazios de luz e movimento.
Não sei se entendes: em teus olhos nasce a noite côncava e profunda, enquanto clara manhã revive em tua face.
Daí amar teus olhos mais que o corpo com esse escuro e amargo desespero com que haverei de amar depois de morto.
Poemas e Poesias sexta, 26 de maio de 2023
CANÇÃO AMIGA (POEMA DO MINEIRO CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE)
CANÇÃO AMIGA
Carlos Drummond de Andrade
Eu preparo uma canção Em que minha mãe se reconheça Todas as mães se reconheçam E que fale como dois olhos
Caminho por uma rua Que passa em muitos países Se não me veem, eu vejo E saúdo velhos amigos
Eu distribuo um segredo Como quem ama ou sorri No jeito mais natural Dois carinhos se procuram
Minha vida, nossas vidas Formam um só diamante Aprendi novas palavras E tornei outras mais belas
Eu preparo uma canção Que faça acordar os homens E adormecer as crianças
Poemas e Poesias quinta, 25 de maio de 2023
SONETO 22 - DOCE CONTENTAMENTO JÁ PASSADO (POEMA DO PORTUGUÈS LUÍS DE CAMÕES)
DOCE CONTENTAMENTO JÁ PASSASO
Soneto 122
Luís de Camões
Doce contentamento já passado, em que todo o meu bem já consistia, quem vos levou de minha companhia e me deixou de vós tão apartado?
Quem cuidou que se visse neste estado naquelas breves horas de alegria, quando minha ventura consentia que de enganos vivesse meu cuidado?
Fortuna minha foi cruel e dura aquela, que causou meu perdimento, com a qual ninguém pode ter cautela.
Nem se engane nenhüa criatura, que não pode nenhum impedimento fugir do que ordena sua estrela.
Poemas e Poesias quarta, 24 de maio de 2023
SONETO DAS GLÓRIAS CARNAIS (POEMA DO PORTUGUÊS MANUEL MARIA BARBOSA DU BOCAGE)
SONETO DAS GLÓRIAS CARNAIS
Bocage
Soneto localizado em um caderno onde poemas de Bocage e de Pedro José Constâncio
estavam misturados, não tendo se chegado em nenhuma conclusão definitiva sobre a
autoria do mesmo.
Cante a guerra quem for arrenegado,
Que eu nem palavra gastarei com ele;
Minha Musa será sem par canela
Co'um felpudo coninho abraseado:
Aqui descreverei com arreitado
N'um mar de bimbas navegando à vela,
Cheguei, propício o vento, à doce, àquela
Enseada d'Amor, rei coroado:
Direi também os beijos sussurrantes,
Os intrincados nós das línguas ternas,
E o aturado fungar de dois amantes :
Estas glórias serão na fama eternas;
Às minhas cinzas me farão descantes
Fêmeos vindouros, alargando as pernas.
Poemas e Poesias terça, 23 de maio de 2023
CEM TROVAS - 010 (POEMA DO MINEIRO BELMIRO BRAGA)
TROVA 010
Belmiro Braga
Muitas vezes imagino Nos meus dias desolados Que o meu coração é um sino Dobrando sempre a finados
Poemas e Poesias segunda, 22 de maio de 2023
VENCEDOR (POEMA DO PARAIBANO AUGUSTO DOS ANJOS)
V
V
VENCEDOR
Augusto dos Anjos
Toma as espadas rútilas, guerreiro, E à rutilância das espadas, toma A adaga de aço, o gládio de aço, e doma Meu coração – estranho carniceiro!
Não podes?! Chama então presto o primeiro E o mais possante gladiador de Roma. E qual mais pronto, e qual mais presto assoma Nenhum pôde domar o prisioneiro.
Meu coração triunfava nas arenas. Veio depois um domador de hienas E outro mais, e, por fim, veio um atleta,
Vieram todos, por fim; ao todo, uns cem… E não pôde domá-lo, enfim, ninguém, Que ninguém doma um coração de poeta!
Poemas e Poesias domingo, 21 de maio de 2023
LEMBRANÇAS DE MORRER (POEMA DO PAULISTA ÁLVARES DE AZEVEDO)
LEMBRANÇAS DE MORRER
Álvares de Azevedo
No more! O never more! SHELLEY
Quando em meu peito rebentar-se a fibra, Que o espírito enlaça à dor vivente, Não derramem por mim nem uma lágrima Em pálpebra demente.
E nem desfolhem na matéria impura A flor do vale que adormece ao vento: Não quero que uma nota de alegria Se cale por meu triste passamento.
Eu deixo a vida como deixa o tédio Do deserto o poento caminheiro… Como as horas de um longo pesadelo Que se desfaz ao dobre de um sineiro…
Como o desterro de minh’alma errante, Onde fogo insensato a consumia, Só levo uma saudade — é desses tempos Que amorosa ilusão embelecia.
Só levo uma saudade — e dessas sombras Que eu sentia velar nas noites minhas… E de ti, ó minha mãe! pobre coitada Que por minhas tristezas te definhas!
De meu pai… de meus únicos amigos, Poucos, — bem poucos! e que não zombavam Quando, em noites de febre endoidecido, Minhas pálidas crenças duvidavam.
Se uma lágrima as pálpebras me inunda, Se um suspiro nos seios treme ainda, É pela virgem que sonhei!… que nunca Aos lábios me encostou a face linda!
Ó tu, que à mocidade sonhadora Do pálido poeta deste flores… Se vivi… foi por ti! e de esperança De na vida gozar de teus amores.
Beijarei a verdade santa e nua, Verei cristalizar-se o sonho amigo… Ó minha virgem dos errantes sonhos, Filha do céu! eu vou amar contigo!
Descansem o meu leito solitário Na floresta dos homens esquecida, À sombra de uma cruz! e escrevam nela: — Foi poeta, sonhou e amou na vida. —
Sombras do vale, noites da montanha, Que minh’alma cantou e amava tanto, Protejei o meu corpo abandonado, E no silêncio derramai-lhe um canto!
Mas quando preludia ave d’aurora E quando, à meia-noite, o céu repousa, Arvoredos do bosque, abri as ramas… Deixai a lua pratear-me a lousa!
Poemas e Poesias sábado, 20 de maio de 2023
NÃO TE AMO (POEMA DO PORTUGUÊS ALMEIDA GARRETT)
NÃO TE AMO
Almeida Garrett
Não te amo, quero-te: o amar vem d’alma. E eu n’alma - tenho a calma, A calma - do jazigo. Ai! não te amo, não. Não te amo, quero-te: o amor é vida. E a vida - nem sentida A trago eu já comigo. Ai, não te amo, não! Ai! não te amo, não; e só te quero De um querer bruto e fero Que o sangue me devora, Não chega ao coração. Não te amo. És bela; e eu não te amo, ó bela. Quem ama a aziaga estrela Que lhe luz na má hora Da sua perdição? E quero-te, e não te amo, que é forçado, De mau, feitiço azado Este indigno furor. Mas oh! não te amo, não. E infame sou, porque te quero; e tanto Que de mim tenho espanto, De ti medo e terror... Mas amar!... não te amo, não.
Poemas e Poesias sexta, 19 de maio de 2023
NOTURNO (POEMA DO GAÚCHO ALCEU WAMOSY)
NOTURNO
Alceu Wamosy
Tu pensarás em mim, por esta noite imensa e erma, em que tudo é um frio e um silêncio profundo? Tu pensarás em mim? Por esta noite, enfermo, tendo os olhos em febre e a voz cheia de sustos, eu penso em ti, no teu amor e na promessa muda que o teu olhar me fez e que eu espero.
(Que dor de não saber se tu pensas em mim!)
Sob a tenda da noite estrelada de outono, que eu contemplo através os cristais da janela, junto ao manso tepor da lâmpada que escuta — antiga confidente — os meus sonhos e as minhas vigílias de tormento, eu penso em ti, divina.
(E tu talvez nem te recordes deste ausente!)
Penso em ti. Penso e evoco o teu vulto adorado. Penso nas tuas mãos — um lis de cinco pétalas — que, em vez de sangue, têm luar dentro das veias; nos teus olhos, que são Noturnos de Chopin agonizando à luz de uma tarde de sonho; na tua voz, que lembra um beijo que se esfolha. Penso.
(E nem sei se tu também pensas em mim!)
Talvez não. No tranquilo altar da tua alcova, onde se extingue a luz de um velho candelabro como uma lâmpada votiva, tu adormeces sorrindo ao Anjo fiel que as tuas pálpebras fecha para que tu não tenhas sonhos maus.
E eu penso em ti, sem sono, a sós, angustiado e febril, em ti, que nem eu sei se te lembras de mim...
Poemas e Poesias quinta, 18 de maio de 2023
FLOR DE CAVERNA (POEMA DO FLUMINENSE ALBERTO DE OLIVEIRA)
FLOR DE CAVERNA
Alberto de Oliveira
Fica às vezes em nós um verso a que a ventura Não é dada jamais de ver a luz do dia; Fragmento de expressão de idéia fugidia, Do pélago interior bóia na vaga escura.
Sós o ouvimos conosco; à meia voz murmura, Vindo-nos da consciência a flux, lá da sombria Profundeza da mente, onde erra e se enfastia, Cantando, a distrair os ócios da clausura.
Da alma, qual por janela aberta par e par, Outros livre se vão, voejando cento e cento Ao sol, à vida, à glória e aplausos. Este não.
Este aí jaz entaipado, este aí jaz a esperar Morra, volvendo ao nada, — embrião de pensamento Abafado em si mesmo e em sua escuridão.
Poemas e Poesias quarta, 17 de maio de 2023
ESTÃO SE ADIANTANDO (POEMA DO MINEIRO AFFONSO ROMANO DE SANT*ANNA)
De tal ordem é e tão precioso o que devo dizer-lhes que não posso guardá-lo sem que me oprima a sensação de um roubo: cu é lindo! Fazei o que puderdes com esta dádiva. Quanto a mim dou graças pelo que agora sei e, mais que perdoo, eu amo.
Poemas e Poesias segunda, 15 de maio de 2023
POEMA SIMPLES (POEMA DA CARIOCA ADALGISA NERY)
POEMA SIMPLES
Adalgisa Nery
Deixa-me recolher as rosas que estão morrendo nos jardins da noite, Deixa-me recolher o fruto antes que este volva as raízes da terra, Deixa-me recolher a estrela úmida Antes que sua luz desapareça na madrugada, Deixa-me recolher a tristeza da alma Antes que a lágrima banhe a pálpebra Do órfão abandonado e faminto, Deixa-me recolher a ternura parada No coração da mulher que desejou ser mãe. Deixa-me recolher a esperança dos que acreditam, Recolher o que ainda não passou E mais do que tudo dá-me a recolher A palavra de amor e de doçura para que reparta Com os ouvidos que esperam como uma gota de mel Caindo na alma e no coração, Como a única luz dentro de tanta escuridão.
Poemas e Poesias domingo, 14 de maio de 2023
RENÚNCIA (POEMA DA PORTUGUESA VIRGÍNIA VICTORINO)
RENÚNCIA
Virgínia Victorino
Fui nova, mas fui triste; só eu sei como passou por mim a mocidade! Cantar era o dever da minha idade… Devia ter cantado, e não cantei!
Fui bela. Fui amada. E desprezei… Não quis beber o filtro da ansiedade. Amar era o destino, a claridade… Devia ter amado, e não amei!
Ai de mim! Nem saudades, nem desejos; nem cinzas mortas, nem calor de beijos… — Eu nada soube, nada quis prender!
E o que me resta? Uma amargura infinda: ver que é, para morrer, tão cedo ainda, e que é tão tarde já para viver!
Poemas e Poesias sábado, 13 de maio de 2023
A MORTE (POEMA DO CARIOCA VINÍCIUS DE MORAES)
A MORTE
Vinícius de Moraes
A morte vem de longe Do fundo dos céus Vem para os meus olhos Virá para os teus Desce das estrelas Das brancas estrelas As loucas estrelas Trânsfugas de Deus Chega impressentida Nunca inesperada Ela que é na vida A grande esperada! A desesperada Do amor fratricida Dos homens, ai! dos homens Que matam a morte Por medo da vida.
Poemas e Poesias sexta, 12 de maio de 2023
SAUDADE (POEMA DO PAULISTA VICENTE DE CARVALHO)
SAUDADE
Vicente de Carvalho
Belos amores perdidos, Muito fiz eu com perder-vos; Deixar-vos, sim: esquecer-vos Fora demais, não o fiz.
Tudo se arranca do seio, – Amor, desejo, esperança… Só não se arranca a lembrança De quando se foi feliz.
Roseira cheia de rosas, Roseira cheia de espinhos, Que eu deixei pelos caminhos, Aberta em flor, e parti:
Por me não perder, perdi-te: Mas mal posso assegurar-me, – Com te perder e ganhar-me, Se ganhei, ou se perdi…
Poemas e Poesias quinta, 11 de maio de 2023
PRA DIZER ADEUS (POEMA DO PIAUIENSE TORQUATO NETO)
PRA DIZER ADEUS
Torquato Neto
adeus vou pra não voltar e onde quer que eu vá sei que vou sozinho tão sozinho amor nem é bom pensar que eu não volto mais desse meu caminho
ah, pena eu não saber como te contar que o amor foi tanto e no entanto eu queria dizer vem eu só sei dizer vem nem que seja só pra dizer adeus.
Poemas e Poesias quarta, 10 de maio de 2023
OS ESTATUTOS DO HOMEM (POEMA DO AMAZONENSE THIAGO DE MELLO)
OS ESTATUTOS DO HOMEM
Thiago de Mello
Artigo I Fica decretado que agora vale a verdade. agora vale a vida, e de mãos dadas, marcharemos todos pela vida verdadeira.
Artigo II Fica decretado que todos os dias da semana, inclusive as terças-feiras mais cinzentas, têm direito a converter-se em manhãs de domingo.
Artigo III Fica decretado que, a partir deste instante, haverá girassóis em todas as janelas, que os girassóis terão direito a abrir-se dentro da sombra; e que as janelas devem permanecer, o dia inteiro, abertas para o verde onde cresce a esperança.
Artigo IV Fica decretado que o homem não precisará nunca mais duvidar do homem. Que o homem confiará no homem como a palmeira confia no vento, como o vento confia no ar, como o ar confia no campo azul do céu.
Parágrafo único: O homem, confiará no homem como um menino confia em outro menino.
Artigo V Fica decretado que os homens estão livres do jugo da mentira. Nunca mais será preciso usar a couraça do silêncio nem a armadura de palavras. O homem se sentará à mesa com seu olhar limpo porque a verdade passará a ser servida antes da sobremesa.
Artigo VI Fica estabelecida, durante dez séculos, a prática sonhada pelo profeta Isaías, e o lobo e o cordeiro pastarão juntos e a comida de ambos terá o mesmo gosto de aurora.
Artigo VII Por decreto irrevogável fica estabelecido o reinado permanente da justiça e da claridade, e a alegria será uma bandeira generosa para sempre desfraldada na alma do povo.
Artigo VIII Fica decretado que a maior dor sempre foi e será sempre não poder dar-se amor a quem se ama e saber que é a água que dá à planta o milagre da flor.
Artigo IX Fica permitido que o pão de cada dia tenha no homem o sinal de seu suor. Mas que sobretudo tenha sempre o quente sabor da ternura.
Artigo X Fica permitido a qualquer pessoa, qualquer hora da vida, uso do traje branco.
Artigo XI Fica decretado, por definição, que o homem é um animal que ama e que por isso é belo, muito mais belo que a estrela da manhã.
Artigo XII Decreta-se que nada será obrigado nem proibido, tudo será permitido, inclusive brincar com os rinocerontes e caminhar pelas tardes com uma imensa begônia na lapela.
Parágrafo único: Só uma coisa fica proibida: amar sem amor.
Artigo XIII Fica decretado que o dinheiro não poderá nunca mais comprar o sol das manhãs vindouras. Expulso do grande baú do medo, o dinheiro se transformará em uma espada fraternal para defender o direito de cantar e a festa do dia que chegou.
Artigo Final. Fica proibido o uso da palavra liberdade, a qual será suprimida dos dicionários e do pântano enganoso das bocas. A partir deste instante a liberdade será algo vivo e transparente como um fogo ou um rio, e a sua morada será sempre o coração do homem.
Poemas e Poesias terça, 09 de maio de 2023
FLORES LUXEMBURGUESAS (POEMA DO MARANHENSE SOUSÂNDRADE)
FLORES LUXEMBURGUESAS
Sousândrade
Não é, não é alegria,
Nem é tristeza sombria
Que sinto me atravessar.
Grato, grato sentimento
De um passado encantamento –
Por toda parte a lembrar!
Eram as roxas florestas,
As sagradas sombras mestas
Nossos berços da soidão:
Se deles tendes as flores, –
A saudade dos amores
Em vós reconheço estão.
Poemas e Poesias segunda, 08 de maio de 2023
AS LETRAS (POEM ADO BAIANO RICARDO LIMA)
AS LETRAS
Ricardo Lima
Juntas, poeiras.
Soltas, certezas.
Abraços, certos de palavras...
As letras...
Poemas e Poesias domingo, 07 de maio de 2023
IRONIA! (OEMA DO FLUMINENSE RAUL DE LEÔNI)
IRONIA!
Raul de Leôni
Ironia! Ironia! Minha consolação! Minha filosofia! Imponderável máscara discreta Dessa infinita dúvida secreta, Que é a tragédia recôndita do ser! Muita gente não te há de compreender E dirá que és renúncia e covardia! Ironia! Ironia! És a minha atitude comovida: O amor-próprio do Espírito, sorrindo! O pudor da Razão diante da Vida!
Poemas e Poesias sábado, 06 de maio de 2023
O QUE É FOLCLORE? (POEMA DO CEARENSE PATATIVA DO ASSARÉ)
O QUE É O FOLCLORE?
Patativa do Assaré
Posso lhe afirmá também: Folclore é superstição, O medo que você tem Do canto do corujão. Folclore é aquele instrumento Para o seu divertimento Que chamamos berimbau; E também a brincadeira Ritmada e prazenteira Chamada Maneiro-Pau.
Folclore, meu camarada, Ouvimos a toda hora, É históra de alma penada, De lobisome e caipora. Preste atenção e decore, Pois, com certeza, folclore Ainda posso dizer Que é aquele búzio de osso Que você põe no pescoço Do filho pra não morrer.
É o aboio magoado Do vaqueiro na amplidão. É o festejo animado Da debulha do feijão, Carro de boi e gaiola E desafio, à viola, Do cantador popular E também a toadinha Da Ciranda-Cirandinha Vamos todos cirandar.
Eu e você que vivemos No nosso pobre sertão Muitas coisas inda temos Da popular tradição: Além de outras, o girau E a carrocinha de pau, Em vez de bonito carro. Que prazer, satisfação, A gente comer pirão Mexido em prato de barro!
E agora, prezado irmão, Estes versos lhe dedico. Lhe dei alguma noção Do nosso folclore rico. Não posso continuar, Pois nada pude estudar, De dentro do tema saio. O resto lhe dirá tudo Romão Filgueira Sampaio, Mainá e Câmara Cascudo.
De conservar o folclore Todos têm obrigação, Para que nunca descore A popular tradição. Os homens de grande estudo, Como Mainá e Cascudo, Guardam sempre nos arquivo Populares tradições, Cantigas, superstições E costumes primitivos.
Você, caboclo, que cresce, Sem instrução nem saber, Escuta, mas não conhece Folclore o que quer dizer: O folclore é um pilão, É um bodoque, um pião, Garanto que também é Uma grosseira cangalha, Aparelhada de palha De palmeira ou catolé.
Poemas e Poesias quinta, 04 de maio de 2023
CONSELHO DE AMIGO (POEMA DO PERNAMBUCANO OLEGÁRIO MARIANO)
CONSELHO DE AMIGO
Olegário Mariano
Cigarra! Levo a ouvir-te o dia inteiro, Gosto da tua frívola cantiga, Mas vou dar-te um conselho, rapariga: Trata de abastecer o teu celeiro.
Trabalha, segue o exemplo da formiga, Aí vem o inverno, as chuvas, o nevoeiro, E tu, não tendo um pouso hospitaleiro, Pedirás… e é bem triste ser mendiga!
E ela, ouvindo os conselhos que eu lhe dava (Quem dá conselhos sempre se consome…) Continuava cantando… continuava…
Parece que no canto ela dizia: – Se eu deixar de cantar morro de fome… Que a cantiga é o meu pão de cada dia.
Poemas e Poesias quarta, 03 de maio de 2023
ALEXANDRE (POEMA DO CARIOCA OLAVO BILAC)
ALEXANDRE
Olavo Bilac
Quem te cantara um dia a ambição desmarcada,
Filho da heráclia estirpe! e o clamor infinito
Com que o povo da Emátia acorreu ao teu grito,
Voando, como um tufão, sobre a terra abrasada!
Do Adriático mar ao Índus, e do Egito
Ao Cáucaso, o fulgor do aceiro dessa espada
Prosternava, a tremer, sobre a lama da estrada,
Ídolos de ouro e bronze, e esfinges de granito.
Mar que regouga e estronda, espedaçando diques,
- Aos confins da Ásia rica as falanges corriam,
Encrespadas de fúria e erriçadas de piques.
E do sangue, do pó, dos destroços da guerra,
Aos teus pés, palpitando, as cidades nasciam,
E a Alma Grega, contigo, avassalava a Terra!
Poemas e Poesias terça, 02 de maio de 2023
O BATALHÃO DAS LETRAS (POEMA DO GAÚCHO MÁRIO QUINTANA) VÍDEO
Poemas e Poesias segunda, 01 de maio de 2023
DESESPERANÇA (POEMA DO PERNAMBUCANO MANUEL BANDEIRA)
DESESPERANÇA
Manuel Bandeira
Esta manhã tem a tristeza de um crepúsculo. Como dói um pesar em cada pensamento! Ah, que penosa lassidão em cada músculo...
O silêncio é tão largo, é tão longo, é tão lento Que dá medo... O ar, parado, incomoda, angustia... Dir-se-ia que anda no ar um mau pressentimento.
Assim deverá ser a natureza um dia, Quando a vida acabar e, astro apagado, a Terra Rodar sobre si mesma estéril e vazia.
O demônio sutil das nevroses enterra A sua agulha de aço em meu crânio doído. Ouço a morte chamar-me e esse apelo me aterra...
Minha respiração se faz como um gemido. Já não entendo a vida, e se mais a aprofundo, Mais a descompreendo e não lhe acho sentido.
Por onde alongue o meu olhar de moribundo, Tudo a meus olhos toma um doloroso aspecto: E erro assim repelido e estrangeiro no mundo.
Vejo nele a feição fria de um desafeto. Temo a monotonia e apreendo a mudança. Sinto que a minha vida é sem fim, sem objeto... — Ah, como dói viver quando falta a esperança!
Poemas e Poesias domingo, 30 de abril de 2023
O MENINO E O CÓRREGO (POEMA DO MATO-GROSSENSE MANOEL DE BARROS)
O MENINO E O CÓRREGO
Manoel de Barros
I
A água é madura.
Com penas de garça.
Na areia tem raiz
de peixes e de árvores.
Meu córrego é de sofrer
pedras Mas quem beijar seu corpo
é brisas…
II
O córrego tinha um cheiro
de estrelas
nos sarãs anoitecidos
O córrego tinha
suas frondes
distribuídas
aos pássaros
O córrego ficava à beira
de um menino…
III
No chão da água
luava um pássaro
por sobre espumas
de haver estrelas
A água escorria
por entre as pedras
um chão sabendo
a aroma de ninhos.
IV
Ai
que transparente
aos voos
está o córrego!
E usado
de murmúrios…
V
Com a boca escorrendo chão
o menino despetalava o córrego
de manhã todo no seu corpo.
A água do lábio relvou entre pedras…
Árvores com o rosto arreiado
de seus frutos
ainda cheiravam a verão
Durante borboletas com abril
esse córrego escorreu só pássaros…
Poemas e Poesias sábado, 29 de abril de 2023
VERSO MÍSSIL (POEMA DO PERNAMBUCANO LUÍS TURIBA)
VERSO MÍSSIL
Luís Turiba
Quisera fazer um verso com a sublime arritmia do amor um verso míssil neurastênico e febril ar do dia anterior à criação do universo
Um verso instantâneo e uno momento raro como em Let It Be (um órgão clássico bachiano entrelaça-se ao solo rock da guitarra de Harrison) perfeita harmonia, divino encaixe
Ficam as lembranças das perfeições carnais como notas musicais
Ah, meu grande amor! erguerei um dia tamanho verso nanico faminto camundongo e sábio como um menino de rua brasileiro
Um verso de trivela transverso e subversivo acorde de uma nuvem cor-de-rosa cheiro da cor da maçã o gosto do suor e dos raios de vida que transitam por nossos corpos
Um verso de fogo e batom histórico histérico e erudito alexandrino perfeito tão alexandrino como teu nome de solteira tão perfeito e feroz como as garras de um tigre faminto rasgando a alma de sua presa
Poemas e Poesias sexta, 28 de abril de 2023
HINO AO TABACO (POEMA DO PORTUGUÊS JÚLIO DINIS)
HINO AO TABACO
Júlio Dinis
No centro dos círculos De nuvens de fumo, Um deus me presumo, Um deus sobre o altar! Nem doutros turíbulos Me apraz tanto o incenso Como o deste imenso Cachimbo exemplar!
Em divas esplêndidos, Cruzadas as pernas, Fuma, horas eternas. O ardente sultão Subindo-lhe ao cérebro O mágico aroma, Esquece Mafoma, Houris e Alcorão.
Longe, oh! longe o ópio, Que os sonhos deleita Da mísera seita Dos Theriakis! Horror ao narcótico Que vem das papoulas! E ao que arde em caçoulas No altar de Caciz!
Que a raça gentílica Das zonas ardentes Consuma as sementes Do arábio café. Despejem-se as chávenas Da atroz beberagem Da cor do selvagem Da adusta Guiné.
E a tal folha exótica, Delícias da China, Por nossa má sina Trazida de lá, Servida em família Num morno hidro-infuso?... Anátema ao uso Das folhas do chá!
Nem tu, ó alcoólico Humor dos lagares, Terás meus cantares, Meus hinos terás, Embora das ânforas, Vazado nas taças, Aos outros tu faças, A língua loquaz.
Cerveja britânica, De furor espuma? De coisa nenhuma Me podes servir. Quando oiço do lúpulo Gabarem proezas Às boas inglesas, Desato-me a rir.
Nem venha da cânfora Pregar maravilhas O das cigarrilhas Famoso inventor. Raspail é cismático E eu sou ortodoxo O seu paradoxo Não me há-de ele impor.
Meu canto é da América, País do tabaco, Perante o qual Baco Seu ceptro partiu. A Europa, Ásia e África E a Terra hoje toda Este herói da moda De fumo cobriu.
Até na Lapónia Da gente pequena, Se fuma; e no Sena, No Tibre e no Pó, No Volga e no Vístula, No Tejo e no Douro; Que imenso tesouro Se deve a Nicot!
Meus áridos lábios Mais fumo inda aspirem; Que os parvos suspirem Por beijos aos mil. Não quero outros ósculos, Não quero outra amante.. Qual mais doudejante Que o fumo subtil?
Tornadas Vesúvios, As bocas fumegam De nuvens que cegam Vomitam montões. Fumar! Oh delícias! Prazer de nababo! E leve o Diabo Do mundo as paixões.
Poemas e Poesias quinta, 27 de abril de 2023
UM MONSTRO FLUI NESSE POEMA (POEMA DO ALAGOANO JORE DE LIMA)
UM MONSTRO FLUI DESSE POEMA
Jorge de Lima
Um monstro flui nesse poema feito de úmido sal-gema.
A abóbada estreita mana a loucura cotidiana.
Pra me salvar da loucura como sal-gema. Eis a cura.
O ar imenso amadurece, a água nasce, a pedra cresce.
Mas desde quando esse rio corre no leito vazio?
Vede que arrasta cabeças, frontes sumidas, espessas.
E são minhas as medusas, cabeças de estranhas musas.
Mas nem tristeza e alegria cindem a noite, do dia.
Se vós não tendes sal-gema, não entreis nesse poema.
Poemas e Poesias quarta, 26 de abril de 2023
RIOS SEM DISCURSO (POEMA DO PERNAMBUCANO JOÃO CABRAL DE MELO NETO)
RIOS SEM DISCURSO
João Cabral de Melo Neto
Quando um rio corta, corta-se de vez o discurso-rio de água que ele fazia; cortado, a água se quebra em pedaços, em poços de água, em água paralítica. Em situação de poço, a água equivale a uma palavra em situação dicionária: isolada, estanque no poço dela mesma, e porque assim estanque, estancada; e mais: porque assim estancada, muda, e muda porque com nenhuma comunica, porque cortou-se a sintaxe desse rio, o fio de água por que ele discorria.
Poemas e Poesias terça, 25 de abril de 2023
EXALTAÇÃO DO AMOR (POEMA DO ACRIANO J. G. DE ARAÚJO JORGE)
EXALTAÇÃO DO AMOR
J. G. de Araújo Jorge
Sofro, bem sei... Mas se preciso fôr sofrer mais, mal maior, extraordinário, sofrerei tudo o quanto necessário para a estrêla alcançar... colher a flor...
Que seja imenso o sofrimento, e vário! Que eu tenha que lutar com força e ardor! Como um louco talvez, ou um visionário hei de alcançar o amor... com o meu Amor!
Nada me impedirá que seja meu se é fogo que em meu peito se acendeu e lavra, e cresce, e me consome o Ser...
Deus o pôs... Ninguém mais há de dispor! Se esse amor não puder ser meu viver há de ser meu para eu morrer de amor!
Poemas e Poesias segunda, 24 de abril de 2023
PÁSSAROS (POEMA DA PAULISTA HILDA HILST) - VÍDEO
PÁSSAROS
Hilda Hilst
Poemas e Poesias domingo, 23 de abril de 2023
JOGOS E SOMBRAS (POEMA DO SERGIPANO HERMES FONTES)
JOGOS E SOMBRAS
Hermes Fontes
Sempre que me procuro e não me encontro em mim, pois há pedaços do meu ser que andam dispersos nas sombras do jardim, nos silêncios da noite, nas músicas do mar, e sinto os olhos, sob as pálpebras, imersos nesta serena unção crepuscular que lhes prolonga o trágico tresnoite da vigília sem fim, abro meu coração, como um jardim, e desfolho a corola dos meus versos, faz-me lembrar a alma que esteve em mim, e que, um dia, perdi e vivo a procurar nos silêncios da noite, nas sombras do jardim, na música do mar...
Poemas e Poesias sábado, 22 de abril de 2023
FLOR DO SAFALDO (POEMA DO PAULISTA GUILHERME DE ALMEIDA)
FLOR DO ASFALTO
Guilherme de Almeida
Flor do asfalto, encantada flor de seda, sugestão de um crepúsculo de outono, de uma folha que cai, tonta de sono, riscando a solidão de uma alameda...
Trazes nos olhos a melancolia das longas perspectivas paralelas, das avenidas outonais, daquelas ruas cheias de folhas amarelas sob um silêncio de tapeçaria...
Em tua voz nervosa tumultua essa voz de folhagens desbotadas, quando choram ao longo das calçadas, simétricas, iguais e abandonadas, as árvores tristíssimas da rua!
Flor da cidade, em teu perfume existe Qualquer coisa que lembra folhas mortas, sombras de pôr de sol, árvores tortas, pela rua calada em que recortas tua silhueta extravagante e triste...
Flor de volúpia, flor de mocidade, teu vulto, penetrante como um gume, passa e, passando, como que resume no olhar, na voz, no gesto e no perfume, a vida singular desta cidade!
Poemas e Poesias sexta, 21 de abril de 2023
O AMOR (POEMA DO PORTUGUÊS GUERRA JUNQUEIRO)
O AMOR
Guerra Junqueiro
I
Eu nunca naveguei, pieguíssimo argonauta Dans les fleuves du tendre, onde há naufrágios bons, Conduzindo Florian na tolda a tocar frauta, E cupidinhos d'oiro a tasquinhar bombons. Nunca ninguém me viu de capa à trovador, Às horas em que está já Menelau deitado, A tanger o arrabil sob os balcões em flor Dos castelos feudais de papelão doirado. Não canto de Anfitrite as vaporosas fraldas, (Eu não quero com isto, ó Vénus, descompor-te) Nem costumo almoçar c'roado de grinaldas, Nem nunca pastoreei enfim, vestido à corte, De bordão de cristal e punhos de Alençon, Borreguinhos de neve a tosar esmeraldas Num lameiro qualquer de qualquer Trianon. Eu não bebo ambrósia em taças cristalinas, Bebo um vinho qualquer do Douro ou de Bucelas, Nem vou interrogar as folhas das boninas, Para saber o amor, o tal amor das Elas. Não visto da poesia a túnica inconsútil, Pela simples razão, sob o pretexto fútil De ter visto passar na rua uns pés bonitos; Nem do meu coração eu fiz um paliteiro, Onde venha o amor cravar os seus palitos. Sou selvagem talvez, e sou talvez grosseiro, Mas as cousas que sinto eu digo-as francamente: Não quebro da friura a água de Castália, Nem a bebo panada assim como um doente. Detesto o lamurear dum realejo de Itália, Detesto um maçador, detesto uma maçada, Um discurso comprido, uma bota apertada, E uma unha raspando a cal duma parede; Detesto o pedantismo, a hidrofobia, e crede Que detesto também com infinita zanga As paisagens, horror! bordadas a missanga, Que a província fabrica, e que Lisboa admira; Detesto duma letra o prazo, quando expira,
Detesto intimamente a carta de conselho, Detesto o calembour, como um toiro o vermelho, E detesto da morte os pálidos umbrais; Detesto os folhetins que escrevo nos jornais, Detesto Tito Lívio e detesto os venenos, Mas detesto tudo isso ainda muito menos Do que a sensiblerie, a doce musa antiga, Que passou de ser musa a ser uma lombriga. Eu não subo, é verdade, a calçada do Combro, De bengala na mão e de madeiro ao ombro, Como um Cristo-Romeu, como um Jesus-Manfredo; Não me chamo Lindor, nem Artur, nem Alfredo, E nem recito ao piano, o que parece incrível; Mas enfim eu não sou um cofre incombustível, Eu sou um homem também, eu também sinto e vivo, Tenho o meu coração no lugar respectivo, Admiro um corpo airoso e fino e delicado, Sou como toda a gente um bacharel formado, E posso dar por isso a minha opinião Sobre o amor — essa eterna, essa imortal canção.
II
O amor feito petisco e brisa e filomela, Ao próprio coração pondo uma manivela De realejo, e passando uma existência falsa A traduzir em polca, em hino, em guincho, em valsa As guerras do alecrim e mais da manjerona, Moídas como café nessa imortal sanfona; O amor sem a paixão fremente, esplendorosa, O amor literatice, o amor licor de rosa, Lacoonte de biscuit, torcendo-se aos corcovos Nas doces espirais duma lampreia d'ovos; O amor açucarado, o amor amor-perfeito, De tristeza na fronte e de vulcão ao peito, A rouxinolizar um berimbau d'alquime; O amor de barba intensa, o velho amor sublime Dos precitos, aos quais a desventura alquebra, Mussets de botequim que vão beber genebra Sobre o cairel do abismo às horas do sol pôr; O amor que se derrete, o florianesco amor, De conceitos gentis, subtis, que eu não destrinço, — Um amor sustentado a beijos e a painço, Que suspira e soluça e chora e gargareja À noite na varanda e de manhã na igreja; O amor que passa a vida a celebrar as bodas Co'a Ela que contém em si as elas todas; O amor com a tristeza aérea dum arcanjo, Mas arrastando sempre, insípido marmanjo, Das asas de flanela a franja inocentíssima; O amor bijutaria, o amor pomada alvíssima, Enfim, o terno amor, o puro amor ideal, O amor sem sentimento — o amor sentimental,— Oh, esse amor detesto-o, e entrego-o com delícia Às bengalas dos pais e às unhas da polícia.
III
Mas quando o amor se torna em paixão verdadeira, Puro como uma hóstia erguida sobre o altar, Quando um amor domina uma existência inteira Como a Lua domina os vagalhões do mar; Quando é o amor radiante, esplêndido, que arvora Em nossos corações um pavilhão d'aurora Desdobrado no azul, quando é o amor profundo, Um amor que nos veste uma rija armadura Para se atravessar a batalha do mundo, Como um leão atravessa uma floresta escura; Então adoro o amor, de joelhos, como adora No topo da montanha um índio o Sol doirado, Porque um amor candente é uma hóstia d'aurora, E o peito que o encerra é um sacrário estrelado!
Poemas e Poesias quinta, 20 de abril de 2023
GUERRA DE CENTAURAS (POEMA DA PAULISTA FRANCISCA JÚLIA)
GUERRA DE CENTAURAS
Francisca Júlia
Patas dianteiras no ar, bocas livres dos freios,
Nuas, em grita, em ludo, entrecruzando as lanças,
Ei-las, garbosas vêm, na evolução das danças
Rudes, pompeando à luz a brancura dos seios.
A noite escuta, fulge o luar, gemem as franças;
Mil centauras a rir, em lutas e torneios,
Galopam livres, vão e vêm, os peitos cheios
De ar, o cabelo solto ao léu das auras mansas.
Empalidece o luar, a noite cai, madruga...
A dança hípica pára e logo atroa o espaço
O galope infernal das centauras em fuga:
É que, longe, ao clarão do luar que empalidece,
Enorme, aceso o olhar, bravo, do heróico braço
Pendente a clava argiva, Hércules aparece...
Poemas e Poesias quarta, 19 de abril de 2023
LÉPIDA E LEVE (POEMA DA CARIOCA GILKA MACHADO)
LÉPIDA E LEVE
Gilka Machado
Lépida e leve em teu labor que, de expressões à míngua, o verso não descreve... Lépida e leve, guardas, ó língua, em teu labor, gostos de afago e afagos de sabor.
És tão mansa e macia, que teu nome a ti mesma acaricia, que teu nome por ti roça, flexuosamente, como rítmica serpente, e se faz menos rudo, o vocábulo, ao teu contacto de veludo.
Dominadora do desejo humano, estatuária da palavra, ódio, paixão, mentira, desengano, por ti que incêndio no Universo lavra!... és o réptil que voa, o divino pecado que as asas musicais, às vezes, solta, à toa. e que a Terra povoa e despovoa, quando é de seu agrado.
Sol dos ouvidos, sabiá do tato, ó língua-idéia, ó língua-sensação, em que olvido insensato, em que tolo recato, te hão deixado o louvor, a exaltação!
– Tu que irradiar pudeste os mais formosos poemas! – Tu que orquestrar soubeste as carícias supremas! Dás corpo ao beijo, dás antera à boca, és um tateio de alucinação, és o elatério da alma... Ó minha louca língua, do meu Amor penetra a boca, passa-lhe em todo senso tua mão, enche-o de mim, deixa-me oca... – Tenho certeza, minha louca, de lhe dar a morder em ti meu coração!...
Língua do meu Amor velosa e doce, que me convences de que sou frase, que me contornas, que me vestes quase, como se o corpo meu de ti vindo me fosse. Língua que me cativas, que me enleias ou surtos de ave estranha, em linhas longas de invisíveis teias, de que és, há tanto, habilidosa aranha...
Língua-lâmina, língua-labareda, língua-linfa, coleando, em deslizes de seda... Força inferia e divina faz com que o bem e o mal resumas, língua-cáustica, língua-cocaína, língua de mel, língua de plumas?...
Amo-te as sugestões gloriosas e funestas, amo-te como todas as mulheres te amam, ó língua-lama, ó língua-resplendor, pela carne de som que à idéia emprestas e pelas frases mudas que proferes nos silêncios de Amor!...
Poemas e Poesias terça, 18 de abril de 2023
CANTIGAS LEVA-AS O VENTO (POEMA DA PORTUGUESA FLORBELA ESPANCA)
CANTIGAS LEVA-AS O VENTO
Florbela Espanca
A lembrança dos teus beijos Inda na minh’alma existe, Como um perfume perdido, Nas folhas dum livro triste.
Perfume tão esquisito E de tal suavidade, Que mesmo desapar’cido Revive numa saudade!
Poemas e Poesias segunda, 17 de abril de 2023
DOIS POEMAS CHILENOS (POEMAS DO MARANHENSE FERREIRA GULLAR)
DOIS POEMAS CHILENOS
Ferreira Gullar
I
Cuando llegué a Santiago
el otoño arrancaba por las alamedas
como un ladrón
Latifundios con nombres de personas, familias
con nombres de empresas
también arrancaban
con dólares y dolores
en el corazón
Cuando llegué a Santiago en mayo
en plena revolución
II
Allende, en tu ciudad
oigo cantar esta mañana a los pájaros
de la primavera que llega.
Pero tu, amigo, ya puedes escucharlos
En mi puerta los fascistas
pintaron una cruz de advertencia
Pero tú, amigo, ya no la puedes borrar
En el horizonte repican
esta mañana las metralletas
de la tiranía que llega
para matarnos
Y tu, amigo,
ya ni siquiera las puedes escuchar.
Poemas e Poesias domingo, 16 de abril de 2023
CONTEMPLO O QUE NÃO VEJO (POEMA DO PORTUGUÊS FERNANDO PESSOA)
CONTEMPLO O QUE NÃO VEJO
Fernando Pessoa
Contemplo o que não vejo.
É tarde, é quase escuro,
E quanto em mim desejo
Está parado ante o muro.
Por cima o céu é grande;
Sinto árvores além;
Embora o vento abrande,
Há folhas em vaivém.
Tudo é do outro lado,
No que há e no que penso.
Nem há ramo agitado
Que o céu não seja imenso.
Confunde-se o que existe
Com o que durmo e sou
Não sinto, não sou triste,
Mas triste é o que estou.
Poemas e Poesias sábado, 15 de abril de 2023
ONDAS (POEMA DO FLUMINENSE EUCLIDES DA CUNHA)
ONDAS
Euclides da Cunha
Correi, rolai, correi _ ondas sonoras
Que à luz primeira, dum futuro incerto,
Erguestes-vos assim _ trêmulas, canoras,
Sobre o meu peito, um pélago deserto!
Correi... rolai _ que, audaz, por entre a treva
Do desânimo atroz _ enorme e densa _
Minh'alma um raio arroja e altiva eleva
Uma senda de luz que diz-se _ Crença!
Ide pois _ não importa que ilusória
Seja a esp'rança que em vós vejo fulgir...
_ Escalai o penhasco ásp'ro da Glória...
Rolai, rolai _ às plagas do Porvir!
Poemas e Poesias sexta, 14 de abril de 2023
TROVAS HUMORÍSTICAS - 19 - (POEMA DO PARANAENSE ENO TEODORO WANKE)
TROVA HUMORÍSTICA 19
Eno Teodoro Wanke
Meu caro Poeta: o Universo
Espero atenda meu rogo:
Ou pões mais fogo no verso
Ou pões os versos no fogo.
Poemas e Poesias quinta, 13 de abril de 2023
NOTURNO (POEMA DO PIAUIENSE DA COSTA E SILVA)
NOTURNO
Da Costa e Silva
Estava a sonhar contigo, Mas acordo de repente... Ouço bater ao postigo Lentamente...longamente...
Penso que és tu, morta ausente, Que voltas ao teu abrigo.
Corro, impaciente, à janela. Olho a noite. Ermo profundo... O vento frio e iracundo As árvores arrepela...
E eu pergunto às sombras: — E Ela? Não voltará mais ao mundo?
O chão de folhas se junca Ao vento que as solta e leva... E ouço, em silêncio, na treva: — Quem morre não vem mais nunca.
O CORVO de Poe se ceva, Cravando-me a garra adunca.
— Ai! que saudade! — Maldigo A vida, triste e descrente: — Se eu dormisse eternamente... E volto a sonhar contigo.
Bate o vento no postigo... Cai a chuva lentamente...
Poemas e Poesias quarta, 12 de abril de 2023
ANGELUS (POEMA DO CATARINENSE CRUZ E SOUSA)
ANGELUS
Cruz e Sousa
Ah! lilazes de Ângelus harmoniosos, Neblinas vesperais, crepusculares, Guslas gementes, bandolins saudosos, Plangências magoadíssimas dos ares...
Serenidades etereais d'incensos, De salmos evangélicos, sagrados, Saltérios, harpas dos Azuis imensos, Névoas de céus espiritualizados.
Ângelus fluidos, de luar dormente, Diafaneidades e melancolias... Silêncio vago, bíblico, pungente De todas as profundas liturgias.
É nas horas dos Ângelus, nas horas Do claro-escuro emocional aéreo, Que surges, Flor do Sol, entre as sonoras Ondulações e brumas do Mistério.
Surges, talvez, do fundo de umas eras De doloroso e turvo labirinto, Quando se esgota o vinho das Quimeras E os venenos românticos do absinto.
Apareces por sonhos neblinantes Com requintes de graça e nervosismos, Fulgores flavos de festins flamantes, Como a Estrela Polar dos Simbolismos.
Num enlevo supremo eu sinto, absorto, Os teus maravilhosos e esquisitos Tons siderais de um astro rubro e morto, Apagado nos brilhos infinitos.
O teu perfil todo o meu ser esmalta Numa auréola imortal de formosuras E parece que rútilo ressalta De góticos missais de iluminuras.
Ressalta com a dolência das Imagens, Sem a forma vital, a forma viva, Com os segredos da Lua nas paisagens E a mesma palidez meditativa.
Nos êxtases dos místicos os braços Abro, tentado de carnal beleza... E cuido ver, na bruma dos espaços, De mãos postas, a orar, Santa Teresa!...
Poemas e Poesias terça, 11 de abril de 2023
SONETO III (POEMA DO CARIOCA CLÁUDIO MANOEL DA DOSTA)
SONETO III
Cláudio Manoel da Costa
Pastores, que levais ao monte o gado, Vêde lá como andais por essa serra; Que para dar contágio a toda a terra, Basta ver se o meu rosto magoado:
Eu ando (vós me vêdes) tão pesado; E a pastora infiel, que me faz guerra, É a mesma, que em seu semblante encerra A causa de um martírio tão cansado.
Se a quereis conhecer, vinde comigo, Vereis a formosura, que eu adoro; Mas não; tanto não sou vosso inimigo:
Deixai, não a vejais; eu vo-lo imploro; Que se seguir quiserdes, o que eu sigo, Chorareis, ó pastores, o que eu choro.
Poemas e Poesias segunda, 10 de abril de 2023
LÚBRICA (POEMA DO PORTUGUÊS CESÁRIO VERDE)
LÚBRICA
Cesário Verde
Mandaste-me dizer, No teu bilhete ardente, Que hás de por mim morrer, Morrer muito contente.
Lançastes, no papel As mais lascivas frases; A carta era um painel De cenas de rapazes!
Ó cálida mulher, Teus dedos delicados Traçaram do prazer Os quadros depravados!
Contudo, um teu olhar É muito mais fogoso, Que a febre epistolar Do teu bilhete ansioso:
Do teu rostinho oval Os olhos tão nefandos Traduzem menos mal Os vícios execrandos.
Teus olhos sensuais, Libidinosa Marta, Teus olhos dizem mais Que a tua própria carta.
As grandes comoções Tu neles, sempre, espelhas; São lúbricas paixões As vívidas centelhas...
Teus olhos imorais, Mulher, que me dissecas, Teus olhos dizem mais Que muitas bibliotecas!
Poemas e Poesias domingo, 09 de abril de 2023
OU ISTO OU AQUILO (POEMA DA CARIOCA CECÍLIA MEIRELES)
OU ISTO OU AQUILO
Cecília Meireles
Ou se tem chuva e não se tem sol, ou se tem sol e não se tem chuva!
Ou se calça a luva e não se põe o anel, ou se põe o anel e não se calça a luva!
Quem sobe nos ares não fica no chão, quem fica no chão não sobe nos ares.
É uma grande pena que não se possa estar ao mesmo tempo nos dois lugares!
Ou guardo o dinheiro e não compro o doce, ou compro o doce e gasto o dinheiro.
Ou isto ou aquilo: ou isto ou aquilo… e vivo escolhendo o dia inteiro!
Não sei se brinco, não sei se estudo, se saio correndo ou fico tranquilo.
Mas não consegui entender ainda qual é melhor: se é isto ou aquilo.
Poemas e Poesias sexta, 07 de abril de 2023
AS TRÊS IRMÃS DO POETA (POEMA DO BAIANO GONÇALVES DIAS)
AS TRÊS IRMÃS DO POETA
Castro Alves
É Noite! as sombras correm nebulosas. Vão três pálidas virgens silenciosas Através da procela irrequieta. Vão três pálidas virgens... vão sombrias Rindo colar num beijo as bocas frias...
Na fronte cismadora do Poeta: "Saúde, irmão! Eu sou a Indiferença. Sou eu quem te sepulta a idéia imensa, Quem no teu nome a escuridão projeta... Fui eu que te vesti do meu sudário... Que vais fazer tão triste e solitário?..."
- "Eu lutarei!" - responde-lhe o Poeta. "Saúde, meu irmão! Eu sou a Fome. Sou eu quem o teu negro pão consome... O teu mísero pão, mísero atleta! Hoje, amanhã, depois... depois (qu'importa?) Virei sempre sentar-me à tua porta..."
-"Eu sofrerei"-responde-lhe o Poeta. "Saúde, meu irmão! Eu sou a Morte. Suspende em meio o hino augusto e forte. Marquei-te a fronte, mísero profeta! Volve ao nada! Não sentes neste enleio Teu cântico gelar-se no meu seio?!" -"Eu cantarei no céu" - diz-lhe o Poeta!
Poemas e Poesias quinta, 06 de abril de 2023
ILUSÃO (POEMA DO FLUMINENSE CASIMIRO DE ABREU)
ILUSÃO
Casimiro de Abreu
Quando o astro do dia desmaia Só brilhando com pálido lume, E que a onda que brinca na praia No murmúrio soletra um queixume;
Quando a brisa da tarde respira O perfume das rosas do prado, E que a fonte do vale suspira Como o nauta da pátria afastado;
Quando o bronze da torre da aldeia Seus gemidos aos ecos envia, E que o peito que em mágoas anseia Bebe louco essa grave harmonia;
Quando a terra, da vida cansada, Adormece num leito de flores Qual donzela formosa embalada Pelos cantos dos seus trovadores;
Eu de pé sobre as rochas erguidas Sinto o pranto que manso desliza E repito essas queixas sentidas Que murmuram as ondas co'a brisa.
É então que a minha alma dormente Duma vaga tristeza se inunda, E que um rosto formoso, inocente, Me desperta saudade profunda.
Julgo ver sobre o mar sossegado Um navio nas sombras fugindo, E na popa esse rosto adorado Entre prantos p'ra mim se sorrindo!
Compreendo esse amargo sorriso, Sobre as ondas correr eu quisera... E de pé sobre a rocha, indeciso, Eu lhe brado: - não fujas, - espera!
Mas o vento já leva ligeiro Esse sonho querido dum dia, Essa virgem de rosto fagueiro, Esse rosto de tanta poesia!...
E depois... quando a lua ilumina O horizonte com luz prateada, Julgo ver essa fronte divina Sobre as vagas cismando, inclinada!
E depois... vejo uns olhos ardentes Em delírio nos meus se fitando, E uma voz em acentos plangentes Vem de longe um - adeus - soluçando!
........................
Ilusão!... que a minha alma, coitada, De ilusões hoje em dia é que vive; É chorando uma gloria passada, É carpindo uns amores que eu tive!
Poemas e Poesias quarta, 05 de abril de 2023
SEGUNDO POEMA VAZIO (POEMA DO PERNAMBUCANO CARLOS PENA FILHO)
SEGUNDO POEMA VAZIO
Carlos Pena Filho
Este vento que chegou talvez da costa irlandesa e entrando pela janela debruçou-se em minha mesa, e fez agora esse gesto da entre alegria e surpresa, é o mesmo que há muitos anos lavou teu rosto, Teresa, e te deixou sob a pele essa invisível tristeza de quem descobre o que existe de mágoa, atrás da beleza e por isso se aremessa, água solta da represa, e embora deixando os olhos nos objetos da mesa perde o pensamento e a sombra na fria costa irlandesa.
Poemas e Poesias terça, 04 de abril de 2023
CAMPO DE FLORES (POEMA DO MINEIRO CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE)
CAMPO DE FLORES
Carlos Drummond de Andrade
Deus me deu um amor no tempo de madureza Quando os frutos ou não são colhidos ou sabem a verme Deus-ou foi talvez o Diabo-deu-me este amor maduro E a um e outro agradeço, pois que tenho um amor
Pois que tenho um amor, volto aos mitos pretéritos E outros acrescento aos que amor já criou Eis que eu mesmo me torno o mito mais radioso E talhado em penumbra sou e não sou, mas sou
Mas sou cada vez mais, eu que não me sabia E cansado de mim julgava que era o mundo Um vácuo atormentado, um sistema de erros Amanhecem de novo as antigas manhãs Que não vivi jamais, pois jamais me sorriram
Mas me sorriam sempre atrás de tua sombra Imensa e contraída como letra no muro E só hoje presente Deus me deu um amor porque o mereci De tantos que já tive ou tiveram em mim O sumo se espremeu para fazer vinho Ou foi sangue, talvez, que se armou em coágulo
E o tempo que levou uma rosa indecisa A tirar sua cor dessas chamas extintas Era o tempo mais justo. Era tempo de terra Onde não há jardim, as flores nascem de um Secreto investimento em formas improváveis
Hoje tenho um amor e me faço espaçoso Para arrecadar as alfaias de muitos Amantes desgovernados, no mundo, ou triunfantes E ao vê-los amorosos e transidos em torno O sagrado terror converto em jubilação
Seu grão de angústia amor já me oferece Na mão esquerda. Enquanto a outra acaricia Os cabelos e a voz e o passo e a arquitetura E o mistério que além faz os seres preciosos À visão extasiada
Mas, porque me tocou um amor crepuscular Há que amar diferente. De uma grave paciência Ladrilhar minhas mãos. E talvez a ironia Tenha dilacerado a melhor doação Há que amar e calar Para fora do tempo arrasto meus despojos E estou vivo na luz que baixa e me confunde
Poemas e Poesias segunda, 03 de abril de 2023
SONETO 122 - DIZEI, SENHORA, DA BELEZA IDEIA (POEMA DO PORTUGUÊS LUÍS DE CAMÕES)
DIZEI-ME, SENHORA, DA BELEZA IDEIA
Soneto 122
Luís de Camões
(Grafia original)
Dizei, Senhora, da Beleza ideia: Para fazerdes esse áureo crino, Onde fostes buscar esse ouro fino? De que escondida mina ou de que veia?
Dos vossos olhos essa luz febeia, Esse respeito, de um império dino? Se o alcançastes com saber divino, Se com encantamentos de Medeia?
De que escondidas conchas escolhestes As perlas preciosas orientais Que, falando, mostrais no doce riso?
Pois vos formastes tal como quisestes, Vigiai-vos de vós, não vos vejais; Fugi das fontes: lembre-vos Narciso.
Poemas e Poesias domingo, 02 de abril de 2023
SONETO DA SUPOSTA SANTA (POEMA DO PORTUGUÊS MANUEL MARIA BARBOSA DU BOCAGE)
SONETO DA SUPOSTA SANTA
Bocage
Já Bocage não sou!... À cova escura Meu estro vai parar desfeito em vento... Eu aos Céus ultrajei! O meu tormento Leve me torne sempre a terra dura;
Conheço agora já quão vã figura, Em prosa e verso fez meu louco intento: Musa!... Tivera algum merecimento Se um raio da razão seguisse pura.
Eu me arrependo; a língua quasi fria Brade em alto pregão à mocidade, Que atrás do som fantástico corria:
Outro Aretino fui... a santidade Manchei!... Oh! Se me creste, gente ímpia, Rasga meus versos, crê na eternidade!.
Poemas e Poesias sábado, 01 de abril de 2023
CEM TROVAS - 009 (POEMA DO MINEIRO BELMIRO BRAGA)
CEM TROVAS - 009 (POEMA DO MINEIRO BELMIRO BRAGA)
TROVA 009
Belmiro Braga
Só mesmo Nossa Senhora pode dar paz e conforto à desgraçada que chora a ausência de um filho morto.
Poemas e Poesias sexta, 31 de março de 2023
VANDALISMO (POEMA DO PARAIBANO AUGUSTO DOS ANJOS)
VANDALISMO
Augusto dos Anjos
Meu coração tem catedrais imensas, Templos de priscas e longínquas datas, Onde um nume de amor, em serenatas, Canta a aleluia virginal das crenças.
Na ogiva fúlgida e nas colunatas Vertem lustrais irradiações intensas, Cintilações de lâmpadas suspensas, E as ametistas e os florões e as pratas.
Como os velhos Templários medievais, Entrei um dia nessas catedrais E nesses templos claros e risonhos...
E erguendo os gládios e brandindo as hastas, No desespero dos iconoclastas Quebrei a Imagem dos meus próprios sonhos!
Poemas e Poesias quinta, 30 de março de 2023
LÉLIA (POEMA DO PAULISTA ÁLVARES DE AZEVEDO)
LÉLIA
Álvares de Azevedo
Passou talvez ao alvejar da lua, Como incerta visão na praia fria... Mas o vento do mar não escutou-lhe Uma voz a seu Deus!...ela não cria!
Uma noite, aos murmúrios do piano Pálida misturou um canto aéreo... Parecia de amor tremer-lhe a vida Revelando nos lábios um mistério!
Porém, quando expirou a voz nos lábios, Ergueu sem pranto a fronte descorada, Pousou a fria mão no seio imóvel, Sentou-se no divã... sempre gelada!
Passou talvez do cemitério à sombra Mas nunca numa cruz deixou seu ramo, Ninguém se lembra de lhe ter ouvido Numa febre de amor dizer: "eu amo!"
Não chora por ninguém... e quando, à noite, Lhe beija o sono as pálpebras sombrias Não procura seu anjo à cabeceira E não tem orações, mas ironias!
Nunca na terra uma alma de poeta, Chorosa, palpitante e gemebunda Achou nessa mulher um hino d’alma E uma flor para a fronte moribunda.
Lira sem cordas não vibrou d’enlevo, As notas puras da paixão ignora, Não teve nunca n’alma adormecida O fogo que inebria e que devora!
Descrê. Derrama fel em cada riso, Alma estéril não sonha uma utopia... Anjo maldito salpicou veneno Nos lábios que tressuam de ironia.
É formosa contudo. Há dessa imagem No silêncio da estátua alabastrina Como um anjo perdido que ressumbra Nos olhos negros da mulher divina.
Há nesse ardente olhar que gela e vibra, Na voz que faz tremer e que apaixona O gênio de Satã que transverbera, E o langor pensativo da Madona!
É formosa, meu Deus! Desde que a vi Na minh’alma suspira a sombra dela... E sinto que podia nesta vida Num seu lânguido olhar morrer por ela.
Poemas e Poesias quarta, 29 de março de 2023
GOZO E DOR (POEMA DO PORTUGUÊS ALMEIDA GARRETT)
GOZO E DOR
Almeida Garrett
Se estou contente, querida, Com esta imensa ternura De que me enche o teu amor? - Não. Ai!, não; falta-me a vida, Sucumbe-me a alma à ventura: O excesso de gozo é dor.
Dói-me alma, sim; e a tristeza Vaga, inerte e sem motivo, No coração me poisou, Absorto em tua beleza, Não sei se morro ou se vivo, Porque a vida me parou.
É que não há ser bastante Para este gozar sem fim Que me inunda o coração. Tremo dele, e delirante Sinto que se exaure em mim Ou a vida - ou a razão.
Poemas e Poesias terça, 28 de março de 2023
IDEALIZANDO A MORTE (POEMA DO GAÚCHO ALECEU WAMOSY)
IDEALIZANDO A MORTE
Alceu Wamosy
Morrer por uma tarde assim como esta tarde, fim de dia outonal, tristonho e doloroso, quando o lago adormece e o vento está em repouso, e a lâmpada do sol no altar do céu não arde.
Morrer ouvindo a voz de minha mãe e a tua rezando a mesma prece, ao pé do mesmo santo, vós ambas tendo o olhar estrelado de pranto, e no rosto e nas mãos palidezes de lua.
Morrer com a placidez de uma flor que se corte, com a mansidão de um sol que desce no horizonte, sentindo a unção do vosso beijo ungir-me a fronte — beijo de noiva e mãe, irmanados na morte.
E morrer... e levar com a vida que se trunca, tudo que de doçura e amargor teve a vida: o sonho enfermo, a glória obscura, a fé perdida, e o segredo de amor, que não te disse, nunca!
Poemas e Poesias segunda, 27 de março de 2023
FETICHISMO (POEMA DO FLUMINENSE ALBERTO DE OLIVEIRA)
FETICHISMO
Alberto de Oiveira
Homem, da vida as sombras inclementes
Interrogas em vão: — Que céus habita
Deus? Onde essa região de luz bendita,
Paraíso dos justos e dos crentes?...
Em vão tateiam tuas mãos trementes
As entranhas da noite erma, infinita,
Onde a dúvida atroz blasfema e grita,
E onde há só queixas e ranger de dentes...
A essa abóbada escura, em vão elevas
Os braços para o Deus sonhado, e lutas
Por abarcá-lo; é tudo em torno trevas...
Somente o vácuo estreitas em teus braços;
E apenas, pávido, um ruído escutas
Que é o ruído dos teus próprios passos!...
Poemas e Poesias domingo, 26 de março de 2023
ERRANDO NO MUSEU PICASSO (POEMA DO MINEIRO AFFONSO ROMANO DE SANT*ANNA)
ERRANDO NO MUSEU PICASSO
Affonso Romano de Sant'Anna
Picasso erra quando pinta e erra quando ama.
Mas quando erra erra violenta e generosamente, erra com exuberante arrogância, erra como o touro erra seu papel de vítima, sangrando quem, por muito amar, fere e sai ovacionado com banderilhas na carne.
Pintor do excesso e exuberância, Picasso é extravagância. Ele erra, mas nele, o erro mais que erro - é errância.
Poemas e Poesias sábado, 25 de março de 2023
O VESTIDO (POEMA DA MINEIRA ADÉLIA PRADO)
O VESTIDO
Adélia Prado
No armário do meu quarto escondo de tempo e traça meu vestido estampado em fundo preto. É de seda macia desenhada em campânulas vermelhas à ponta de longas hastes delicadas. Eu o quis com paixão e o vesti como um rito, meu vestido de amante. Ficou meu cheiro nele, meu sonho, meu corpo ido. É só tocá-lo, e volatiliza-se a memória guardada: eu estou no cinema e deixo que segurem minha mão. De tempo e traça meu vestido me guarda.
Poemas e Poesias sexta, 24 de março de 2023
POEMA NATURAL (POEMA DA CARIOCA ADALGISA NERY)
POEMA NATURAL
Adalgisa Nery
(pintura de Maxfield Parrish)
Abro os olhos, não vi nada Fecho os olhos, já vi tudo. O meu mundo é muito grande E tudo que penso acontece. Aquela nuvem lá em cima? Eu estou lá, Ela sou eu. Ontem com aquele calor Eu subi, me condensei E, se o calor aumentar, choverá e cairei. Abro os olhos, vejo um mar, Fecho os olhos e já sei. Aquela alga boiando, à procura de uma pedra? Eu estou lá, Ela sou eu. Cansei do fundo do mar, subi, me desamparei. Quando a maré baixar, na areia secarei, Mais tarde em pó tomarei. Abro os olhos novamente E vejo a grande montanha, Fecho os olhos e comento: Aquela pedra dormindo, parada dentro do tempo, Recebendo sol e chuva, desmanchando-se ao vento? Eu estou lá, Ela sou eu.
Poemas e Poesias quinta, 23 de março de 2023
QUANDO TE VI (POEMA DA PORTUGUESA VIRGÍNIA VICTORINO)
QUANDO TE VI
Virgínia Victorino
A manhã era clara, refulgente.
Uma manhã dourada. Tu passaste.
Abriu mais uma flor em cada haste.
Teve mais brilho o sol, fez-se mais quente.
E eu inundei-me dessa luz ardente.
Depois não sei mais nada. Olhei... Olhaste...
E nunca mais te vi. . . - Raro contraste! –
A madrugada transformou-se em poente.
Luz que nasceu e apenas cintilou!
Deixou-me triste assim que se apagou,
às vezes fecho os olhos; vejo-a ainda...
E há tanto sol dourando esses trigais!
Olhaste, olhei, fugiste... Ai, nunca mais,
nunca mais tive outra manhã tão linda!
Poemas e Poesias quarta, 22 de março de 2023
A MIRAGEM (POEMA DO CARIOCA VINÍCIUS DE MORAES)
A MIRAGEM
Vinícius de Moraes
Não direi que a tua visão desapareceu dos meus olhos sem vida Nem que a tua presença se diluiu na névoa que veio. Busquei inutilmente acorrentar-te a um passado de dores Inutilmente. Vieste - tua sombra sem carne me acompanha Como o tédio da última volúpia. Vieste - e contigo um vago desejo de uma volta inútil E contigo uma vaga saudade… És qualquer coisa que ficará na minha vida sem termo Como uma aflição para todas as minhas alegrias. Tu és a agonia de todas as posses És o frio de toda a nudez E vã será toda a tentativa de me libertar da tua lembrança.
Mas quando cessar em mim todo o desejo de vida E quando eu não for mais que o cansaço da minha caminhada pela areia Eu sinto que me terás como me tinhas no passado - Sinto que me virás oferecer a água mentirosa Da miragem. Talvez num ímpeto eu prefira colar a boca à areia estéril Num desejo de aniquilamento. Mas não. Embora sabendo que nunca alcançarei a tua imagem Que estará suspensa e me prometerá água Embora sabendo que tu és a que foge Eu me arrastarei para os teus braços.
Poemas e Poesias terça, 21 de março de 2023
PRIMEIRA SOMBRA (POEMA DO PAULISTA VICENTE DE CARVALHO)
PRIMEIRA SOMBRA
Vicente de Carvalho
— Mal me quer... bem me quer... — Será preciso Que uma flor assegure o que digo e tu vês ? O meu olhar, poisando em teu sorriso, Mostra-te que és amada e adivinha que o crés.
— Mal me quer... bem me quer... — E, commovida, Tremes, como esperando uma sentença atroz... Suppões que espalhe a noite em nossa vida A sombra de uma flor perpassando entre nós?
— Mal me quer... Mal me quer... Desde, hontem quando Faltaste, adivinhei tudo que a flor me diz. Tenho-te junto a mim e fito-te chorando; Beijas-me ainda, e já não sou feliz.,
Sinto que és meu, aperto-te em meus braços, E, no pavor de um sonho angustiado e sem fim, Ouço como um rumor fugitivo de passos Que te afastam de mim.
Dize que estou sonhando, que estou louca! Jura que sou feliz, que os teus dias são meus, E que o beijo que ainda orvalha minha bocca Não é tua alma que me diz adeus.
A amorosa doçura do teu verso Echoou em minha alma; em teu verso aprendi A soletrar o amor, o Amor — esse universo Radioso, immenso, e resumido em ti.
A tua voz chamou-me ; eu escutei-a E segui-a, ditosa, a sorrir e a sonhar... Fala-me ainda de amor ! Não te cales, sereia Que me attrahiste para o azul do mar!
Minha alma, envolta em trapos de mendiga, Vai seguindo, no chão, do teu passo o rumor. Não me deixes! Serei a sombra que te siga, Sem indagar onde me leva o amor.
Não me abandones! Ama-me! A risonha Aurora inunda o céu todo afogado em luz... Sou formosa, sou moça, amo-te... Ama-me! Sonha, Poisada a fronte nos meus seios nús!
Que alegre madrugada cor de rosa, Ser amada por ti, claro sol que tu és! Eu dei-te a minha vida. E’ tua. Esbanja-a, gosa Toda esta primavera estendida a teus pés.
Bem amado que, como um passaro num ramo, Vieste acaso poisar o vôo no meu seio, Não me deixes! Eu quero ouvir ainda o gorgeio Em que teu beijo é que dizia: «Eu te amo!»
Poemas e Poesias segunda, 20 de março de 2023
O POETA É A MÃE DAS ARMAS (POEMA DO PIAUIENSE TORQUATO NETO)
O POETA É A MÃE DAS ARMAS
Torquato Neto
O Poeta é a mãe das armas & das Artes em geral - alô, poetas: poesia no país do carnaval;
Alô, malucos: poesia não tem nada a ver com os versos dessa estação muito fria.
O Poeta é a mãe das Artes & das armas em geral: quem não inventa as maneiras do corte no carnaval (alô, malucos), é traidor da poesia: não vale nada, lodal.
A poesia é o pai da ar timanha de sempre: quent ura no forno quente do lado de cá, no lar das coisas malditíssimas; alô poetas: poesia! O poeta não se cuida ao ponto de não se cuidar: quem for cortar meu cabelo já sabe: não está cortando nada além da MINHA bandeira ////////// = sem aura nem baúra, sem nada mais pra contar. Isso: ar.ar.ar.ar.ar.ar.ar.ar.ar.ar.ar.ar.a r: em primeiríssimo, o lugar
poetemos pois
Poemas e Poesias domingo, 19 de março de 2023
CANÇÃO DO AMOR ARMADO (POEMA DO AMAZONNNSE THIAGO DE MELLO)
CANÇÃO DO AMOR ARMADO
Thiago de Mello
Vinha a manhã no vento do verão, e de repente aconteceu. Melhor é não contar quem foi nem como foi, porque outra história vem, que vai ficar. Foi hoje e foi aqui, no chão da pátria, onde o voto, secreto como o beijo no começo do amor, e universal como o pássaro voando — sempre o voto era um direito e era um dever sagrado.
De repente deixou de ser sagrado, de repente deixou de ser direito, de repente deixou de ser, o voto. Deixou de ser completamente tudo. Deixou de ser encontro e ser caminho, deixou de ser dever e de ser cívico, deixou de ser apaixonado e belo e deixou de ser arma — de ser a arma, porque o voto deixou de ser do povo.
Deixou de ser do povo e não sucede, e não sucedeu nada, porém nada?
De repente não sucede. Ninguém sabe nunca o tempo que o povo tem de cantar. Mas canta mesmo é no fim. Só porque não tem mais voto, o povo não é por isso que vai deixar de cantar, nem vai deixar de ser povo.
Pode ter perdido o voto, que era sua arma e poder. Mas não perdeu seu dever nem seu direito de povo, que é o de ter sempre sua arma, sempre ao alcance da mão.
De canto e de paz é o povo, quando tem arma que guarda a alegria do seu pão. Se não é mais a do voto, que foi tirada à traição, outra há de ser, e qual seja não custa o povo a saber, ninguém nunca sabe o tempo que o povo tem de chegar.
O povo sabe, eu não sei. Sei somente que é um dever, somente sei que é um direito. Agora sim que é sagrado: cada qual tenha sua arma para quando a vez chegar de defender, mais que a vida, a canção dentro da vida, para defender a chama de liberdade acendida no fundo do coração.
Cada qual que tenha a sua, qualquer arma, nem que seja algo assim leve e inocente como este poema em que canta voz de povo — um simples canto de amor. Mas de amor armado.
Que é o mesmo amor. Só que agora que não tem voto, amor canta no tom que seja preciso sempre que for na defesa do seu direito de amar.
O povo, não é por isso que vai deixar de cantar.
Poemas e Poesias sábado, 18 de março de 2023
ELOGIO DO ALEXANDRINO (POEMA DO MARANHENSE SOUSÂNDRADE)
ELOGIO DO ALEXANDRINO
Sousândrade
Asclepiádeo verso: à evolução do poema Das sestas, cadenciar daltas antigüidades, já porque bipartido em fúlgidas metades Reata em conjunção opostos de um dilema, E já por ser de gala a forma do matiz Heleno na escultura e lácio na linguagem Reacesda, de Alexandre, em fogos de Paris: Paris o tom da moda, o bom gosto, a roupagem; Que desperta aos tocsins, galo às estrelas dalva, Que faz revoluções de Filadélfia às salvas E o verso-luz, fardeur das formas, de grandeza, o verso-formosura, adornos, lauta mesa Ond tokay, champanh, flor, copos cristal-diamantes Sobrelevam roast-beef e os queijos e o pudding. Porém, mens divinior, poesia é o férreo guante: Ao das delícias tempo, o fácil verso ovante, o verso cor de rosa, o de oiro, o de carmim, Dos raios que o astro veste em dia azul-celeste; E para os que têm fome e sede de justiça, O verso condor, chama, alárum, de carniça, Dharpas dÉsquilus, de Hugo, a dor, a tempestade: Que, embora contra um deus "Figaro" impiedade Vesgo olhinho a piscar diga tambour-major, Restruge alto acordando os cândidos espíritos Às glórias do oceano e percutindo os gritos Réus. Ao belo trovoar do magno Trovador Ouve-se afinação no mundo brasileiro, Acorde tão formoso, hodierno, hospitaleiro, Flamívomo social, encantador. Fulgura Luz de dia primeiro, a nota formosura, Que ao jeová-grande-abrir faz novo Éden luzir.
Poemas e Poesias sexta, 17 de março de 2023
PROFUNDIDADE (POEMA DO BAIANO RICARDO LIMA)
PROFUNDIDADE
Ricardo Lima
De dentro, emerge!
Profundas, densas, calmas, alma.
Profundidade, raza... acalma.
Ama, alma... profundidade.
Poemas e Poesias quinta, 16 de março de 2023
INGRATIDÃO (POEMA DO FLUMINENSE RAUL DE LEÔNI)
INGRATIDÃO
Raul de Leôni
Nunca mais me esqueci!… Eu era criança E em meu velho quintal, ao sol-nascente, Plantei, com a minha mão ingênua e mansa, Uma linda amendoeira adolescente.
Era a mais rútila e íntima esperança… Cresceu… cresceu… e aos poucos, suavemente, Pendeu os ramos sobre um muro em frente E foi frutificar na vizinhança…
Daí por diante, pela vida inteira, Todas as grandes árvores que em minhas Terras, num sonho esplêndido semeio,
Como aquela magnífica amendoeira, E florescem nas chácaras vizinhas E vão dar frutos no pomar alheio…
Poemas e Poesias quarta, 15 de março de 2023
FLORES MURCHAS (POEMA DO CEARENSE PATATIVA DO ASSARÉ)
FLORES MURCHAS
Patativa do Assaré
Depois do nosso desejado enlace Ela dizia, cheia de carinho, Toda ternura a segredar baixinho: — Deixa, querido, que eu te beije a face!
Ah! se esta vida nunca mais passasse! Só vejo rosas, sem um só espinho; Que bela aurora surge em nosso ninho! Que lindo sonho no meu peito nasce!
E hoje, a coitada, sem falar de amor, Em vez daquele natural vigor, Sofre do tempo o mais cruel carimbo.
E assim vivendo, de mazelas cheia, Em vez de beijo, sempre me aperreia Pedindo fumo para o seu cachimbo.
Poemas e Poesias terça, 14 de março de 2023
CONFISSÃO SILENCIOSA (POEMA DO PERNAMBUCANO OLEGÁRIO MARIANO)
CONFISSÕES SILENCIOSAS
Olegário Mariano
Amo os crepúsculos cinzentos Caindo sobre as águas estagnadas . . . Os pinheiros sonolentos Humanizando a calma das estradas . . . O infinito, as estrelas longínquas, O poema que há na dor silenciosa Dos que querem falar e que se calam : Amo os teus olhos, amor dos outros, Porque os teus olhos nunca falam!
Poemas e Poesias segunda, 13 de março de 2023
ISRAEL (POEMA DO CARIOCA OLAVO BILAC)
ISRAEL
Olavo Bilac
Caminhar! caminhar!… O deserto primeiro, O mar depois… Areia e fogo… Foragida, A tua raça corre os desastres da vida, Insultada na pátria e odiada no estrangeiro!
Onde o leite, onde o mel da Terra Prometida? – A guerra! a ira de Deus! o êxodo! o cativeiro! E, molhada de pranto, a oscilar de um salgueiro, A tua harpa, Israel, a tua harpa esquecida!
Sem templo, sem altar, vagas perpetuamente… E, em torno de Sião, do Líbano ao Mar Morto, Fulge, de monte em monte, o escárnio do Crescente:
E, impassível, Jeová te vê, do céu profundo, Náufrago amaldiçoado a errar de porto em porto, Entre as imprecações e os ultrajes do mundo!
Poemas e Poesias domingo, 12 de março de 2023
TORRE DE BABEL (PLEMA DO PAULISTA MENOTTI DEL PICCHIA)
TORRE DE BABEL
Menotti Del Picchia
Eles ergueram a torre de Babel bem na Praça Antônio Prado. O esqueleto de aço cobriu-se de carne de cimento e as vigas e guindastes eram braços agarrando estrelas para industrializá-las em anúncios comerciais.
Italianos joviais, húngaros de olhos de leopardo, caboclos de Tietê arrastando o caipira, bolchevistas da Ucrânia, polacos de Wrangel, nipões jaldes como gnomos nanicos talhados em âmbar entre as pragas dos contramestres, os rangidos das tábuas do andaime, o estridor metálico das vigas de aço e dos martelos sonoros, no céu libérrimo de S. Paulo, fizeram a confusão das línguas, sem perturbar a geometria rigorosa do ciclópico arranha-céu!
Lá do alto, o paulista, bandeirante das nuvens, mirou o prodígio da Cidade alucinada: uma casa de três andares pôs-se a crescer bruscamente como nos romances de Wells; outra apontou a cabeça arrepelada de caibros acima do viaduto do Chá; e começou a desabalada carreira do páreo do azul. O formidável arranha-céu com a cabeça nas nuvens abrigou no seu ventre de concreto o drama da nova civilização.
Onde estás meu seráfico Anchieta, erguendo com o barro de Piratininga, pelo milagre da tua persuasão, as paredes rasteiras do Colégio?
Poemas e Poesias sábado, 11 de março de 2023
AUTORRETRATO (POEMA DO GAÚCHO MÁRIO QUINTANA)
AUTORRETRATO
Mário Quintana
No retrato que me faço - traço a traço - às vezes me pinto nuvem, às vezes me pinto árvore... às vezes me pinto coisas de que nem há mais lembrança... ou coisas que não existem mas que um dia existirão... e, desta lida, em que busco - pouco a pouco - minha eterna semelhança, no final, que restará? Um desenho de criança... Terminado por um louco!
Poemas e Poesias sexta, 10 de março de 2023
DESENCANTO (POEMA DO PERNAMBUCANO MANUEL BANDEIRA)
DESENCANTO
Manuel Bandeira
Eu faço versos como quem chora De desalento… de desencanto… Fecha o meu livro, se por agora Não tens motivo nenhum de pranto.
Meu verso é sangue. Volúpia ardente… Tristeza esparsa… remorso vão… Dói-me nas veias. Amargo e quente, Cai, gota a gota, do coração.
E nestes versos de angústia rouca, Assim dos lábios a vida corre, Deixando um acre sabor na boca. — Eu faço versos como quem morre.
Poemas e Poesias quinta, 09 de março de 2023
O LIVRO SOBRE NADA (POEMA DO MATO-GROSSENSE MANOEL DE BARROS)
O LIVRO SOBRE NADA
Manoel de Barros
Com pedaços de mim eu monto um ser atônito.
Tudo que não invento é falso.
Há muitas maneiras sérias de não dizer nada, mas só a poesia é verdadeira.
Não pode haver ausência de boca nas palavras: nenhuma fique desamparada do ser que a revelou.
É mais fácil fazer da tolice um regalo do que da sensatez.
Sempre que desejo contar alguma coisa, não faço nada; mas se não desejo contar nada, faço poesia.
Melhor jeito que achei para me conhecer foi fazendo o contrário.
A inércia é o meu ato principal.
Há histórias tão verdadeiras que às vezes parece que são inventadas.
O artista é um erro da natureza. Beethoven foi um erro perfeito.
A terapia literária consiste em desarrumar a linguagem a ponto que ela expresse nossos mais fundos desejos.
Quero a palavra que sirva na boca dos passarinhos.
Por pudor sou impuro.
Não preciso do fim para chegar.
De tudo haveria de ficar para nós um sentimento longínquo de coisa esquecida na terra – Como um lápis numa península.
Do lugar onde estou já fui embora.
Poemas e Poesias quarta, 08 de março de 2023
TERRORISMO (POEMA DO PERNAMBUCANO LUÍS TURIBA)
TERRORISMO
Luís Turiba
Explosões: fim de mundo no amor há vermelho a cor do Sol: narciso como um céu: espelho
Poemas e Poesias terça, 07 de março de 2023
FALSOS AMIGOS (POEMA DO PORTUGUÊS JÚLIO DINIS)
FALSOS AMIGOS
Júlio Dinis
Como a sombra, amigos temos,
Que nos segue em claro dia;
Mas que da vista perdemos
Assim que o Sol se anuvia.
Outra versão:
Vós sois a minha sombra Se o Sol me luz brilhante.. Atrás, ao lado, adiante, Encontro-a junto a mim ! Porém se nuvem negra A luz do Sol me tira, A sombra se retira… Vós sois também assim
Poemas e Poesias segunda, 06 de março de 2023
SEI TEU GRITO PROFUNDO (POEMA DO ALAGOANO JORGE DE LIMA)
SEI TEU GRITO PROFUNDO
Jorge de Lima
Sei teu grito profundo, e não me animo a cortar a raiz que a Ti me embasa. Em mão mais primitiva não me arrimo devo-Te tudo, origem, patas e asas.
Permite que eu revele história e limo sem desobedecer a Tua casa. Nazareno dos lagos, lume primo, atende à pobre enguia de águas rasas.
Se desses versos outro lume alar-se misturado com os Teus em joio e trigo, sete vezes por sete me perdoa.
Ó Desnudado, é meu todo o disfarce em revelar os tempos que persigo - na vazante maré com inversa proa.
Poemas e Poesias domingo, 05 de março de 2023
PSICOLOGIA DA COMPOSIÇÃO (POEMA DO PERNAMBUCANO JOÃO CABRA DE MELO NETO)
PSICOLOGIA DA COMPOSIÇÃO
João Cabral de Melo Neto
1.
Saio de meu poema
como quem lava as mãos.
Algumas conchas tornaram-se,
que o sol da atenção
cristalizou; alguma palavra
que desabrochei, como a um pássaro.
Talvez alguma concha
dessas (ou pássaro) lembre,
côncava, o corpo do gesto
extinto que o ar já preencheu;
talvez, como a camisa
vazia, que despi.
2.
Esta folha branca
me proscreve o sonho,
me incita ao verso
nítido e preciso.
Eu me refugio
nesta praia pura
onde nada existe
em que a noite pouse.
Como não há noite
cessa toda fonte;
como não há fonte
cessa toda fuga;
como não há fuga
nada lembra o fluir
de meu tempo, ao vento
que nele sopra o tempo.
3.
Neste papel
pode teu sal
virar cinza;
pode o limão
virar pedra;
o sol da pele,
o trigo do corpo
virar cinza.
(Teme, por isso,
a jovem manhã
sobre as flores
da véspera.)
Neste papel
logo fenecem
as roxas, mornas
flores morais;
todas as fluidas
flores da pressa;
todas as úmidas
flores do sonho.
(Espera, por isso,
que a jovem manhã
te venha revelar
as flores da véspera.)
4.
O poema, com seus cavalos,
quer explodir
teu tempo claro; rompendo
seu branco fio, seu cimento
mudo e fresco.
(O descuido ficara aberto
de par em par;
um sonho passou, deixando
fiapos, logo árvores instantâneas
coagulando a preguiça.)
5.
Vivo com certas palavras,
abelhas domésticas.
Do dia aberto
(branco guarda-sol)
esses lúcidos fusos retiram
o fio de mel
(do dia que abriu
também como flor)
que na noite
(poço onde vai tombar
a aérea flor)
persistirá: louro
sabor, e ácido
contra o açúcar do podre.
6.
Não a forma encontrada
como uma concha, perdida
nos frouxos areais
como cabelos;
não a forma obtida
em lance santo ou raro,
tiro nas lebres de vidro
do invisível;
mas a forma atingida
como a ponta do novelo
que a atenção, lenta,
desenrola,
aranha; como o mais extremo
desse fio frágil, que se rompe
ao peso, sempre, das mãos
enormes.
7.
É mineral o papel
onde escrever
o verso; o verso
que é possível não fazer.
Poemas e Poesias sábado, 04 de março de 2023
ESTRELA CADENTE (POEMA DO ACRIANO J. G. DE ARAÚJO JORGE)
ESTRELA CADENTE
J. G. de Araújo Jorge
Ela que foi um canto de alegria a Musa do que escrevo em seu louvor, que pos um véu azul de fantasia sobre o sonho impossível desse amor…
Que foi luz, que foi som, beleza e cor no meu mundo fugaz de cada dia, que foi tudo afinal: perfume e flor numa vida monótona e vazia…
Que está presente no meu pensamento como uma onde em vai-vem na praia, ou uma estrela a luzir no firmamento…
Foi estrela-cadente… Cintilou no alto dos céus, num ráoido momento e… nas sombras da noite se apagou!
Poemas e Poesias sexta, 03 de março de 2023
ODES MAIORES DO PAI - V (POEMA DA PAULISTA HILDA HILST)
ODES MAIORES DO PAI - V
Hilda Hilst
Sobrevivi à morte sucessiva das coisas do teu quarto. Vi pela primeira vez a inútil simetria dos tapetes e o azul diluído Azul-branco das paredes. E uma fissura de um verde anoitecido Na moldura de prata. E nela o meu retrato adolescente e gasto. E as gavetas fechadas. Dentro delas aquele todo silencioso e raro Como um barco de asas. Que fome de tocar-te nos papéis antigos! Que amor se fez em mim, multiforme e calado! Que faces infinitas eu amei para guardar teu rosto primitivo!
Desce da noite um torpor singular, água sob o casco de um velho veleiro Calcinado. Em mim, o grane limbo de lamento, de dor, e o medo de esquecer-te De soltar estas âncoras e depois florir sem ao menos guardar tua ressonância. Abraça-me. Um quase nada de luz pousou na tua mesa E expandiu-se na cor, como um pequeno prisma.
Poemas e Poesias quinta, 02 de março de 2023
HUMILDADE (POEMA DO SERGIPANO HERMES FONTES)
HUMILDADE
Hermes Fontes
Rolar… girar… O Mundo rola e gira constantemente, em torno de seu eixo. Rolam astros e tempos… Eu me deixo rolar, também, sem ambição nem mira.
Cantem outros de amor ou rujam de ira. Eu não canto, nem rujo… nem me queixo… e vou, mágoas a fora, como um seixo vai, rio abaixo, na água, que suspira.
Vai, rio abaixo, na água: e a água o converte em gota, seixo líquido… E, antes isso do que ser pedra grande – bruta e inerte!
Antes ser livre seixo, à correnteza, que ser bloco de mármore… ao serviço de Sua Majestade ou Sua Alteza…
Poemas e Poesias quarta, 01 de março de 2023
E DEVIA (POEMA DO PAULISTA GUILHERME DE ALMEIDA)
EU DEVIA
Guilherme de Almeida
Não Porque não posso Porque não sei Não consigo Não devo
Respiro Penso Tento Não consigo Não devo
Paro Engulo Abro os olhos Mas eu nao consigo Nao devo
Então eu me afundo Me derramo Perco E no silêncio Eu percebo
Eu poderia Eu sabia Eu conseguiria Eu devia
Então volto a respirar Volto a ver Volto a pensar E as coisas são claras agora
A vida Nada mais é que uma grande aposta Em que um grande homem diz que você pode Mas você vive dizendo que não E acaba ganhando a aposta Por medo de estar errado.
Poemas e Poesias terça, 28 de fevereiro de 2023
MORENA (POEMA DO PORTUGUÊS GUERRA JUNQUEIRO)
MORENA
Guerra Junqueiro
Não negues, confessa Que tens certa pena Que as mais raparigas Te chamem morena.
Pois eu não gostava, Parece-me a mim, De ver o teu rosto Da cor do jasmim.
Eu não... mas enfim É fraca a razão, Pois pouco te importa Que eu goste ou que não.
Mas olha as violetas Que, sendo umas pretas, O cheiro que têm! Vê lá que seria, Se Deus as fizesse Morenas também!
Tu és a mais rara De todas as rosas; E as coisas mais raras São mais preciosas.
Há rosas dobradas E há-as singelas; Mas são todas elas Azuis, amarelas, De cor de açucenas, De muita outra cor; Mas rosas morenas, Só tu, linda flor.
E olha que foram Morenas e bem As moças mais lindas De Jerusalém. E a Virgem Maria Não sei... mas seria Morena também.
Moreno era Cristo. Vê lá depois disto Se ainda tens pena Que as mais raparigas Te chamem morena!
Poemas e Poesias segunda, 27 de fevereiro de 2023
LEMBRANÇAS (POEMA DA CARIOCA GILKA MACHADO)
LEMBRANÇAS
Gilka Machado
Teus retratos — figuras esmaecidas; mostram pouco, muito pouco do que foste. Tuas cartas — palavras em desgaste, dizem menos, muito menos do que outrora me diziam teus silêncios afagantes... Só o espelho da minha memória conserva nítida, imutável a projeção de tua formosura, só nos folhos dos meus sentidos pairam vívidas em relevo as frases que teu carinho soube nelas imprimir.
Sou a urna funerária de tua beleza que a saudade embalsamou.
Quando chegar o meu instante derradeiro só então, mais do que eu, tu morrerás em mim.
Poemas e Poesias domingo, 26 de fevereiro de 2023
CREPÚSCULO (POEMA DA PAULISTA FRANCISCA JÚLIA)
CREPÚSCULO
Francisca Júlia
Todas as cousas têm o aspecto vago e mudo
Como se as envolvesse uma bruma de incenso;
No alto, uma nuvem, só, num nastro largo e extenso,