Almanaque Raimundo Floriano
Fundado em 24.09.2016
(Cultural, sem fins comerciais, lucrativos ou financeiros)


Raimundo Floriano de Albuquerque e Silva, Editor deste Almanaque, também conhecido como Velho Fulô, Palhaço Seu Mundinho e Mundico Trazendowski, nascido em Balsas , Maranhão, a 3 de julho de 1936, Católico Apostólico Romano, Contador, Oficial da Reserva do Exército Brasileiro, Funcionário Público aposentado da Câmara dos Deputados, Titular da Cadeira nº 10 da Academia Passa Disco da Música Nordestina, cuja patrona é a cantora Elba Ramalho, Mestre e Fundador da Banda da Capital Federal, Pesquisador da MPB, especializado em Velha Guarda, Música Militar, Carnaval e Forró, Cardeal Fundador da Igreja Sertaneja, Pioneiro de Brasília, Xerife nos Mares do Caribe, Cordelista e Glosador, Amigo do Rio das Balsas, Inventor da Descida de Boia, em julho de 1952, Amigo da Fanfarra do 1° RCG, autor dos livros O Acordo PDS/PTB, coletânea de charges, Sinais de Revisão e Regras de Pontuação, normativo, Do Jumento ao Parlamento, com episódios da vida real, De Balsas para o Mundo, centrado na navegação fluvial Balsas/Oceano Atlântico, Pétalas do Rosa, saga da Família Albuquerque e Silva, Memorial Balsense, dedicado à história de sua terra natal, e Caindo na Gandaia, humorístico apimentado, é casado, tem quatro filhos, uma nora, dois genros e dois netos e reside em Brasília, Distrito Federal, desde dezembro de 1960.

Poemas e Poesias sexta, 31 de dezembro de 2021

NESTA VIDA DE ÁSPEROS CAMINHOS (POEMA DO CARIOCA LUÍS EDMUNDO)

NESTA VIDA DE ÁSPEROS CAMINHOS

Luís Edmundo

 

 

 

Nesta vida de ásperos caminhos,

A Ventura, querida, é como a rosa:

Nasce cercada de cruéis espinhos.

E é por isso que a vida é tormentosa.

 

Punhais agudos, ríspidos, daninhos,

Servem de escudo à nossa mão nervosa.

Ventura, tu que embriagas como os vinhos,

Por que és, assim, tal falsa e caprichosa?

 

Meu amor, tu que a buscas, tem cuidado;

Que o teu gesto não seja desastrado

A erguer, assim, a tua mão formosa.

 

Não imaginas como sofreria,

Se te visse chorar, descrente, um dia!

A Ventura, querida, é como rosa...


Poemas e Poesias quinta, 30 de dezembro de 2021

A NOIVA (POEMA DO PORTUGUÊS JÚLIO DINIS)

A NOIVA

Júlio Dinis

(Grafia original)

 

 

Mal as regiões do oriente
A luz da manhã tingia,
Já ao cristalino espelho
A linda noiva sorria,
E a alva flor da laranjeira
Ao véu de neve prendia.

A noite passara à vela
E que noiva a dormiria?
E ao desmaiar das estrelas,
Alvoroçada se erguia.
E a alva flor da laranjeira
Ao véu de neve prendia.

Depois, ligeira, impaciente, Chegava-se à gelosia
A ver se o sol já dourava
Os cimos da serrania,
E a alva flor da laranjeira
Ao véu de neve prendia.

De quando em quando chorava… E o que chorar a fazia?
Saudades do que passara? Terrores do que viria?
E a alva flor da laranjeira
Ao véu de neve prendia.

Mas são lágrimas de noiva, Um só beijo as secaria,
São como gotas de orvalho
Quando o Sol as alumia;
E a alva flor da laranjeira
Ao véu de neve prendia.

Que longo porvir d’amores, Que futuro de poesia,
Que palácios encantados
Lhe pintava a fantasia,
Quando a flor da laranjeira
Ao véu de neve prendia!

E ao casto leito de virgem
Dentro da alcova sombria,
A noiva, de quando em quando,
Inquieta os olhos volvia;
E a alva flor da laranjeira
Ao véu de neve prendia.

Por entre o rosai florido, Que o balcão lhe entretecia As avezinhas
cantavam
Com festiva melodia.
E ela a flor da laranjeira
Ao véu de neve prendia.

Alto ia o Sol, resplendente
Na manhã daquele dia,
Cuja noite… Esta lembrança
Da noiva as faces tingia;
E a alva flor da laranjeira
Ao véu de neve prendia

A mãe, vendo-a tão formosa, Julgava um sonho o que via, Que
o vestido de noivado
As graças lhe encarecia,
E a alva flor da laranjeira
Do véu de neve pendia.

Vêm as irmãs, que a contemplam
Com inveja, eu juraria: Ela baixa os olhos, cora,
O que mais bela a fazia,
E a alva flor da laranjeira
Do véu de neve pendia.

Junto delas, perturbada, Quase nem falar podia;
So as mães bem compreendem O que a noiva então sentia, Quando
a flor da laranjeira
Do véu de neve pendia.

As horas passam tão lentas! E o coração lhe batia,
A mãe chorava, coitada, Com saudades o fazia;
E a alva flor da laranjeira
Do véu de neve pendia.

A sala já estava cheia; A noiva achava-a vazia,
Que entre tantos convidados
Ainda o noivo se não via;
E a alva flor da laranjeira
Há muito do véu pendia!

Passa a manhã, e não chega! Não chega, e é já
meio-dia! Nas varandas, nos eirados,
Se dispersa a companhia; E a alva flor da laranjeira Há tanto do véu
pendia!

O rosto da bela noiva
Cada vez mais se anuvia,
Não sei que voz misteriosa
Desgraças lhe pressagia;
E a alva flor da laranjeira
Inda do véu pendia.

Fenece a tarde. Eis a noite, Hora de melancolia.
No rosto dos convidados
Desassossego se lia,
E a alva flor da laranjeira
No véu da noiva tremia.

Tudo é silêncio. A coitada
Uma estátua parecia…
Tão pálida como mármore,
Como ele imóvel, fria;
Só a flor da laranjeira
No véu da noiva tremia.

Abrem-se as portas. «É ele!» Disse toda a companhia:
Porém ilusória esperança! Um pajem só aparecia:
E a alva flor da laranjeira
Do véu da noiva caía.

Tristes novas traz o pajem, Que triste o rosto trazia;
Fêz-se um silêncio profundo
Entanto que ele as dizia,
E a alva flor da laranjeira
Inda por terra jazia.

Dispam-se as galas da festa, Calem-se os sons da alegria, Que morto em cruel
combate O noivo… Um grito se ouvia, Junto à flor da laranjeira,
A noiva no chão caía..

Cercam-na todos… debalde, O seio já não batia;
Aquela mimosa planta
Sem alentos sucumbia,
Como a flor da laranjeira,
Derrubada ali jazia.

Mal sabia a pobre noiva Pra que bodas se vestia! Mal sonhava a desposada
Que a morte esposar devia! Quando a flor da laranjeira Ao véu da neve
prendia.

Com as vestes do noivado Para o sepulcro ela se ia; Em vez do rubor da noiva
A palidez da agonia
E a alva flor da laranjeira
Do véu de neve pendia.

Tantos sonhos que sonhara!… Tanta esp’rança que nutria!… Por
esposo tinha a morte,
Por tálamo, a lousa fria, E a flor da laranjeira
Com ela à campa descia.


Poemas e Poesias quarta, 29 de dezembro de 2021

O RELÓGIO (POEMA DO ALAGOANO JORGE DE LIMA)

O RELÓGIO

Jorge de Lima

 

 

 

Relógio, meu amigo, és a Vida em Segundos…
Consulto-te: um segundo! E quem sabe se agora,
Como eu próprio, a pensar, pensará doutros mundos
Alma que filosofa e investiga e labora?

Há de a morte ceifar somas de moribundos.
O relógio trabalha… E um sorri e outro chora,
Nas cavernas, no mar ou nos antros profundos
Ou no abismo que assombra e que assusta e apavora…

Relógio, meu amigo, és o meu companheiro,
Que aos vencidos, aos réus, aos párias e ao morfético
Tem posturas de algoz e gestos de coveiro…

Relógio, meu amigo, as blasfêmias e a prece,
Tudo encerra o segundo, insólito – sintético:
A volúpia do beijo e a mágoa que enlouquece!


Poemas e Poesias terça, 28 de dezembro de 2021

O FIM DO MUNDO (POEMA DO PERNAMBUCANO JOÃO CABRAL DE MELO NETO)

 

O FIM DO MUNDO

João Cabral de Melo Neto

 

 

No fim de um mundo melancólico os homens leem
jornais.
Homens indiferentes a comer laranjas que ardem como o sol.
Me deram uma maça para lembrar a morte.
Sei que cidades telegrafam pedindo querosene.
O véu que olhei voar caiu no deserto. O poema final ninguém
escreverá desse mundo particular de doze horas.
Em vez de juízo final a mim
me preocupa o sonho final.


Poemas e Poesias segunda, 27 de dezembro de 2021

CANTO RESIGNADO (POEMA DO ACRIANO J. G. DE ARAÚJO JORGE)

CANTO RESIGNADO

J. G. de Araújo Jorge

 

 

 

Sou um poeta
dionisíaco,
visionário,
resignado em seu destino
sedentário.

Sonho, como os pássaros
que se vão a cada alvorada
e adormecem, à música da aragem,
com seus violinos
na folhagem.

Envelheço
diante dos mesmos horizontes,
braços estendidos a abrigar
o cansaço dos viajantes
invejando-lhes o destino
sem coragem de ver
seus passaportes.

Um poeta
cumprindo sua missão: desabrochar
versos (como flores)
e encher de sons o espaço
como as ramagens
ao arco do vento.


Poemas e Poesias domingo, 26 de dezembro de 2021

DESPEDIDA (POEMA DA PAULISTA HILDA HILST)

DESPEDIDA

Hilda Hilst

 

 

 

Isso de mim que anseia despedida
(Para perpetuar o que está sendo)
Não tem nome de amor. Nem é celeste
Ou terreno. Isso de mim é marulhoso
E tenro. Dançarino também. Isso de mim
É novo: Como quem come o que nada contém.
A impossível oquidão de um ovo.
Como se um tigre
Reversivo,
Veemente de seu avesso
Cantasse mansamente.

Não tem nome de amor. Nem se parece a mim.
Como pode ser isto? Ser tenro, marulhoso
Dançarino e novo, ter nome de ninguém
E preferir ausência e desconforto
Para guardar no eterno o coração do outro.


Poemas e Poesias sábado, 25 de dezembro de 2021

A PULGA (POEMA DO SERGIPANO HERMES FONTES)

A PULGA

Hermes Fontes

 

 

 

Um sinalzinho preto em teu colo de neve:
Examino se é próprio, ou fingido a nanquim…
Mas o pontinho escuro anima-se; e, ágil, breve,
Salta aqui, salta ali e vem pousar em mim.

Sinto-o no corpo: o inseto, a mais e mais se atreve.
Põe-me um ardor de urtiga em cada poro, e, assim,
Fervo e salto, eu também… Ao seu contacto, leve,
A epiderme é um incêndio, o sangue é um torvelim.

É uma pulga! Tirou-me o bom humor e o agrado!
– Serena perfeição em que a gente se julga,
Morre num sopro: é grão de pó, miga qualquer…

Quanto orgulho se tem despido e desmanchado,
Por um nada, um nadinha, uma pulga!? É que a pulga
Em astúcia é igual à raposa e à mulher…


Poemas e Poesias sexta, 24 de dezembro de 2021

CANÇÃO DO EXPEDICIONÁRIO (POEMA DO PAULISTA GUILHERME DE ALMEIDA)

CANÇÃO DO EXPEDICIONÁRIO

Guilherme de Almeida

 

 

 

Você sabe de onde eu venho?
Venho do morro, do engenho,
das selvas, dos cafezais,
da choupana onde um é pouco,
dois é bom, três é demais.

Venho das praias sedosas,
das montanhas alterosas,
do pampa, do seringal,
das margens crespas dos rios,
dos verdes mares bravios,
de minha terra natal.

Por mais terras que eu percorra,
não permita Deus que eu morra
sem que eu volte para lá
sem que leve por divisa
esse "V" que simboliza
a vitória que virá:

Nossa Vitória final,
que é a mira do meu fuzil,
a ração do meu bornal,
a água do meu cantil,
as asas do meu ideal,
a glória do meu Brasil!

Eu venho da minha terra,
da casa branca da serra
e do luar do sertão;
venho da minha Maria
cujo nome principia
na palma da minha mão.

Braços mornos de Moema,
lábios de mel de Iracema
estendidos para mim!
Ó minha terra querida
da Senhora Aparecida
e do Senhor do Bonfim!

Você sabe de onde eu venho?
É de uma pátria que eu tenho
no bojo do meu violão;
que de viver em meu peito
foi até tomando um jeito
de um enorme coração.

Deixei lá atrás meu terreiro
meu limão meu limoeiro,
meu pé de jacarandá,
minha casa pequenina
lá no alto da colina
onde canta o sabiá.

Venho de além desse monte
que ainda azula no horizonte,
onde o nosso amor nasceu;
do rancho que tinha ao lado
um coqueiro que, coitado,
de saudade já morreu.

Venho do verde mais belo,
do mais dourado amarelo,
do azul mais cheio de luz,
cheio de estrelas prateadas
que se ajoelham, deslumbradas,

fazendo o sinal da cruz


Poemas e Poesias quinta, 23 de dezembro de 2021

CARTA (A UM AMIGO QUE ME PEDIU VERSOS) - POEMA DO PORTUGUÊS GUERRA JUNQUEIRO

CARTA (A UM AMIGO QUE ME PEDIU VERSOS)

Guerra Junqueiro

 

 

 

Como hei-de ser um Petrarca,
Cantar como um rouxinol,
Se o meu termómetro marca
Quarenta e dois graus ao sol!

Da lira bárbara e tosca
Nem saem trovas d'Alfama.
Enxota o Pégaso a mosca,
E eu durmo a sesta na cama.

A hipocondria maciça
Conduzo-a, não há remédio,
Na jumenta da preguiça
Pelas charnecas do tédio.

Eu trago a inspiração oca,
Ando abatido, ando mono;
Meus versos abrem a boca,
Como os porteiros com sono.

Não tenho a rima imprevista,
Os guizos d'oiro ou de opala,
Que à asa da estrofe o artista
Sublime prende ao largá-la.

P'ra lapidar à vontade
Um belo verso radiante,
Falta-me a tenacidade,
Que é como o pó do diamante.

A musa foi-se-me embora;
Para onde foi nem me lembro;
Só a torno a ver agora
Lá para os fins de Setembro.

Anda talvez nas florestas
Fazendo orgias pagãs,
Entre os aromas das giestas
E os braços dos Egipãs.

Deixá-la andar lá dois meses
Colhendo imagens e flores,
Para espanto dos burgueses
E ruína dos editores.

Enfim, o calor achata-nos.
Vamos aos bosques pacíficos
Onde os guarda-sóis — os plátanos —
Têm forros novos, magníficos!


Poemas e Poesias quarta, 22 de dezembro de 2021

POIS CASEI MÁ HORA (POEMA DO PORTUGUÊS GIL VICENTE)

POIS CASEI MÁ HORA

Gil Vicente

(Grafia original)

 

 

 

Pois casei má hora, e nela,
e com tal marido, prima...
Comprarei cá üa gamela,
par'ò ter debaixo dela,
e um grão penedo em cima.
Porque vai-se-me às figueiras,
e come verde e maduro;
e quantas uvas penduro
jeita nas gorgomeleiras:
parece negro monturo.

Vai-se-me às ameixieiras,
antes que sejam maduras.
Ele quebra as cereijeiras,
ele vendima as parreiras,
e não sei que faz das uvas.
Ele não vai à lavrada,
ele todo o dia come,
ele toda a noite dorme,
ele não faz nunca nada,
e sempre me diz que há fome!

Jesu! Jesu! Posso-te dizer,
e jurar e tresjurar,
e provar e reprovar,
e andar e revolver,
que é milhor pera beber,
que não pera maridar.
O demo que o fez marido!
Que assi seco como é
beberá a torre da Sé:
então arma um arruído
assi debaixo do pé!...


Poemas e Poesias terça, 21 de dezembro de 2021

CHUVA DE CINZAS (POEMA DA CARIOCA GILKA MACHADO)

CHUVA DE CINZAS

Gilka Machado

 

 

 

Chuva de cinzas...Cai a tarde lá por fora
na estática mudez da Terra triste e viúva;
e, da tarde ao cair, sinto, minha alma, agora,
embuça-se na cisma e no torpor se enluva.

Hora crepuscular, hora de névoas, hora
em que de bem ignoto o humano ser enviúva;
e, enquanto em cinza todo o espaço se colora,
o tédio, em nós, é como uma cinérea chuva.

Hora crepuscular - concepção e agonia,
hora em que tudo sente uma incerteza imensa,
sem saber se desponta ou se fenece o dia;

hora em que a alma, a pensar na inconstância da sorte,
fica dentro de nós oscilando, suspensa
entre o ser e o não ser, entre a existência e a morte.


Poemas e Poesias segunda, 20 de dezembro de 2021

A ONDINA (POEMA DA PAULISTA FRANCISCA JÚLIA)

A ONDINA

Francisca Júlia

 

 

 

Rente ao mar que soluça e lambe a praia, a Ondina,
Solto, ás brizas da noite, o aureo cabello, núa,
Pela praia passeia. A opalica neblina
Tem reflexos de prata á refracção da lua.

Uma velha goleta encalhada, a bolina
Rôta, pompeia no ar a vela, que fluctua.
E, de onda em onda, o mar, soluçando em surdina,
Empola-se espumante, á praia vem, recúa... 

E, surdindo da treva, um monstro negro, fito
O olhar na Ondina, avança, embargando-lhe o passo...
Ella tenta fugir, suffoca o choro, o grito...

Mas o mar, que, espreitando-a, as ondas avoluma,
Roja-se aos pés da Ondina e esconde-a no regaço,
Envolvendo-lhe o corpo em turbilhões de espuma.


Poemas e Poesias domingo, 19 de dezembro de 2021

AMIGA (POEMA DA PORTUGUESA FLORBELA ESPANCA)

AMIGA

Florbela Espanca

 

 

 

Deixa-me ser a tua amiga, Amor,
A tua amiga só, já que não queres
Que pelo teu amor seja a melhor,
A mais triste de todas as mulheres.

Que só, de ti, me venha mágoa e dor
O que me importa a mim?! O que quiseres
É sempre um sonho bom! Seja o que for,
Bendito sejas tu por mo dizeres!

Beija-me as mãos, Amor, devagarinho ...
Como se os dois nascêssemos irmãos,
Aves cantando, ao sol, no mesmo ninho ...

Beija-mas bem! ... Que fantasia louca
Guardar assim, fechados, nestas mãos
Os beijos que sonhei prà minha boca! ...


Poemas e Poesias sábado, 18 de dezembro de 2021

NOTÍCIA DA MORTE DE ALBERTO SILVA (POEMA DO MARANHENSE FERREIRA GULLAR)

NOTÍCIA DA MORTE DE ALBERTO SILVA

Ferreira Gullar

 

 

 

Eis aqui o morto
chegado a bom porto

Eis aqui o morto
como um rei deposto

Eis aqui o morto
com seu terno curto

Eis aqui o morto
com seu corpo duro

Eis aqui o morto
enfim no seguro

II

De barba feita, cabelo penteado
jamais esteve tão bem arrumado

De camisa nova, gravata borboleta
parece até que vai para uma festa

No rosto calmo, um leve sorriso
nem parece aquele mais-morto-que-vivo

Imóvel e rijo assim como o vês
parece que nunca esteve tão feliz

III

Morava no Méier desde menino
Seu grande sonho era tocar violino

Fez o curso primário numa escola pública
quanto ao secundário resta muita dúvida

Aos treze anos já estava empregado
num escritório da rua do Senado

Quando o pai morreu criou os irmãos
Sempre foi um homem de bom coração

Começou contínuo e acabou funcionário
Sempre eficiente e cumpridor do horário

Gostou de Nezinha, de cabelos longos,
que um dia sumiu com um tal de Raimundo

Gostou de Esmeralda uma de olhos pretos
Ela nunca soube desse amor secreto

Endoidou de fato por Laura Marlene
que dormiu com todos menos com ele

Casou com Luísa, que morava longe,
não tinha olhos pretos nem cabelos longos

Apesar de tudo, foi bom pai de família
sua casa tinha uma boa mobília

Conversava pouco mas foi bom marido
Comprou televisão e um rádio transístor

Não foi carinhoso com a mulher e a filha
mas deixou para elas um seguro de vida

Morreu de repente ao chegar em casa
ainda com o terno puído que usava

Não saiu notícia em jornal algum
Foi apenas a morte de um homem comum

E porque ninguém noticiou o fato
Fazemos aqui este breve relato

IV

Não foi nada de mais, claro, o que aconteceu:
apenas um homem, igual aos outros, que morreu

Que nos importa agora se quando menino
O seu grande sonho foi tocar violino?

Que nos importa agora quando o vamos enterrar
se ele não teve sequer tempo de namorar?

Que nos importa agora quando tudo está findo
se um dia ele achou que o mar estava lindo?

Que nos importa agora se algum dia ele quis
Conhecer Nova York, Londres ou Paris?

Que nos importa agora se na mente confusa
ele às vezes pensava que a vida era injusta?

Agora está completo, já nada lhe falta:
nem Paris nem Londres nem os olhos de Esmeralda

V

Mas é preciso dizer que ele foi como um fio
d’água que não chegou a ser rio

Refletiu no seu curso o laranjal dourado
sem que nada desse ouro lhe fosse dado

Refletiu na sua pele o céu azul de outubro
e as esplendentes ruínas do crepúsculo

E agora, quando se vai perder no mar imenso,
tudo isso, nele, virou rigidez e silêncio:

toda palavra dita, toda palavra ouvida
todo riso adiado ou esperança escondida

toda fúria guardada, todo gesto detido
o orgulho humilhado, o carinho contido

o violino sonhado, as nuvens, a espuma
das nebulosas, a bomba nuclear
agora nele são coisa alguma

VI

Mas no fim do relato é preciso dizer
que esse morto não teve tempo de viver

Na verdade vendeu-se, não como Fausto, ao Cão:
vendeu sua vida aos seus irmãos

Na verdade vendeu-a, não como Fausto, a prazo:
vendeu-a à vista, ou melhor, deu-a adiantado

Na verdade vendeu-a, não como Fausto, caro:
vendeu-a barato e, mais, não lhe pagaram

VII

Enfim este é o morto
agora homem completo:
só carne e esqueleto

Enfim este é o morto
totalmente presente:
unha, cabelo, dente

Enfim este é o morto:
um anônimo brasileiro
do Rio de Janeiro
de quem nesta oportunidade
damos notícia à cidade.


Poemas e Poesias sexta, 17 de dezembro de 2021

CHOVE. HÁ SILÊNCIO, PORQUE A MESMA CHUVA (POEMA DO PORTUGUÊS FERNANDO PESSOA)

CHOVE. HÁ SILÊNCIO, PORQUE A MESMA CHUVA

Fernando Pessoa

 

 

Chove. Há silêncio, porque a mesma chuva
Não faz ruído senão com sossego.
Chove. O céu dorme. Quando a alma é viúva
Do que não sabe, o sentimento é cego.
Chove. Meu ser (quem sou) renego...

Tão calma é a chuva que se solta no ar
(Nem parece de nuvens) que parece
Que não é chuva, mas um sussurrar
Que de si mesmo, ao sussurrar, se esquece.
Chove. Nada apetece...

Não paira vento, não há céu que eu sinta.
Chove longínqua e indistintamente,
Como uma coisa certa que nos minta,
Como um grande desejo que nos mente.
Chove. Nada em mim sente...


Poemas e Poesias quinta, 16 de dezembro de 2021

O MUNDO APARECE POR DEMAIS EXPLICADO (POEMA DO GAÚCHO FABRÍCIO CARPINEJAR)

O MUNDO APARECE DEMASIADO EXPLICADO

Fabrício Carpinejar

 

 

 

O mundo aparece demasiado explicado.

Teu jeito calado indica esperança,

mas quem diz que não é remorso?

 

Sou fiel aos hábitos; tu, aos mistérios.

Não coincidimos nossa lealdade.

Suporto, sobrevives.

 

O que adianta transbordar

se não dás conta do mínimo?

O que adianta me retrair

se não percebo o invisível?

 

 

 

             *   *   *

 

Não ter sido compreendido

condenou-me a assumir verdades

que desconhecia, filhos que

não eram de minha boca,

compromissos que não quis ir.

 

Ao longo da fala,

abri correspondências alheias.

A ausência de clareza

me perturbou a viver de favor

em meu corpo.

 

 

        *   *   *

 

 

Não me inquieto

quando não recebo as respostas

das perguntas que não fiz.

Eu me conformei

em reservar alguma coisa

de ti para saber depois.

Um pouco de nosso amor

será póstumo.

É recomendável

não descobrir todos os segredos.

 

 

          *   *   *

 

 

Para a morte, sofre de um problema.

Não estou todo em um único lugar.

 

 

      *   *   *

 

Os dias no verão

são cadeiras

para fora da casa.

Armar o ar,

desempalhar

a luz e deslizar

na esponja noturna da grama.

 

Ponha esse sol de janeiro

em minha conta.

 

 

       *   *   *

 

Alguém dentro de mim

mente para me proteger.

Não sei quem tem razão

sobre meus desastres.

Se permaneci em excesso

e não varei a outra margem.

Se me deixei fora por muito tempo

e esqueci o endereço.

 

Quando estamos próximos de dizer

é que não estamos mais aqui.

 

 

         *   *   *

 

Não conto meus pesadelos ao acordar.

Não termino mais uma frase inteira.

 

O começo de uma conversa é difícil

Depois mais difícil se toma

quando ela aconteceu

sem começar.  


Poemas e Poesias quarta, 15 de dezembro de 2021

DOM QUIXOTE (POEMA DO FLUMINENSE EUCLIDES DA CUNHA)

DOM QUIXOTE

Euclides da Cunha

 

 

 

Assim à aldeia volta o da triste figura
Ao tardo caminhar do Rocinante lento;
No arcabouço dobrado um grande desalento,
No entristecido olhar uns laivos de loucura.
Sonhos, a glória, o amor, a alcantilada altura,
Do ideal e da fé, tudo isto num momento,
A rolar, a rolar, num desmoronamento,
Entre risos boçais do bacharel e o cura.

Mas certo, ó D. Quixote, ainda foi clemente,
Contigo a sorte ao pôr neste teu cérebro oco,
O brilho da ilusão do espírito doente;

Porque há cousa pior: é o ir-se pouco a pouco
Perdendo qual perdeste um ideal ardente
E ardentes ilusões e não se ficar louco.


Poemas e Poesias terça, 14 de dezembro de 2021

TROVAS HUMORÍSTICAS - 11 - (POEMA DO PARANAENSE ENO TEODORO WANKE)

TROVA HUMORÍSTICA 11

Eno Teodoro Wanke

 

A dívida é aborrecida

Pois, seja pequena ou grande

Quando mais é contraída

Tanto mais ela se expande

 


Poemas e Poesias segunda, 13 de dezembro de 2021

ASPIRAÇÃO (POEMA DO CARIOCA DOM PEDRO II)

ASPIRAÇÃO

Dom Pedro II

 

 

 

       Deus, que os orbes regulas, esplendentes,
       Em número e medida poderados,
       Neles abrigo dás aos desterrados
       Que se vão suspirosos e plangentes.

       Assim, dos céus às vastidões silentes
       Ergo os meus pobre olhos fatigados,
       Indagando em que mundos apartados
       Lenitivo à saudade nos consentes.

       Breve, Senhor, do cárcere da argila
       Hei de evolar-me, murmurando ansioso
       Tímida prece; digna-te a ouví-la!

       Põe-me ao pé do Cruzeiro majestoso
       Que ao antártico céu vivo cintila,
       Fitando sempre o meu Brasil saudoso!


Poemas e Poesias domingo, 12 de dezembro de 2021

EU SOU TAL QUAL O PARNAÍBA: EXISTE... (POEMA DO PIAUIENSE DA COSTA E SILVA)

EU SOU TAL QUAL O PARNAÍBA: EXISTE...

Da Costa e Silva

 

 

 

Eu sou tal qual o Parnaíba: existe
Dentro em meu ser uma tristeza inata,
Igual, talvez, à que no rio assiste
Ao refletir as árvores, na mata…

O seu destino em retratar consiste;
Porém o ri todo que retrata,
Alegre que era, vai tornando triste
No fluído espelho móvel de ouro e prata…

Parece até que o rio tem saudade
Como eu, que também sou dessa maneira,
Saudoso e triste em plena mocidade.
Dá-se em mim o fenômeno sombrio
Da refração das árvores da beira
Na superfície trêmula do rio…


Poemas e Poesias sábado, 11 de dezembro de 2021

ABELHAS (POEMA DO CATARINENSE CRUZ E SOUSA)

ABELHAS

Cruz e Sousa

 

 

 

Gotas de luz e perfume,
Leves, tênues, delicadas,
Acesas no doce lume
De purpúreas alvoradas.

Pingos de ouro cristalinos
Alados na esfera, ondeando,
Dispersos por entre os hinos,
Da natureza vibrando.

Sorrisos aéreos, soltos,
Flavas asas radiantes,
Que levam consigo envoltos
Da aurora os sóis fecundantes.

Da aurora que a primavera
Faz cantar, brota no peito
E floresce em folhas de hera
O coração satisfeito.

Essa aurora produtiva
Do amor soberano e eterno,
Que é nas almas força viva
E nas abelhas falerno.

Nas doudejantes abelhas
Que dentre flores volitam
E do sol entre as centelhas
Resplendem, fulgem, palpitam.

Zumbem, fervem nas colméias
E rumorejam no enxame
Pelas flóridas aléias
Onde um prado se derrame.

Assim mesmo pequeninas
E quase invisíveis, quase,
Com as suas asitas finas,
De etérea de fluida gaze.

Ah! quanto são adoráveis
Os favos que elas fabricam!
Com que graças inefáveis
Se geram, se multiplicam.

Nos afãs industriosos
Que enlevo, que encanto vê-las
Com seus corpos luminosos
D'iriante brilho d'estrelas.

E nas ondas murmurosas
Dos peregrinos adejos
Vão dar ao lábio das rosas
O mel doirado dos beijos.


Poemas e Poesias sexta, 10 de dezembro de 2021

MULHER DA VIDA (POEMA DA GOIANA CORA CORALINA)

MULHHER DA VIDA

Cora Coralina

 

 

 

Mulher
da Vida, minha Irmã.
De todos os tempos.
De todos os povos.
De todas as latitudes.
Ela vem do fundo imemorial das idades e
carrega a carga pesada dos mais
torpes sinônimos,
apelidos e apodos:
Mulher da zona,
Mulher da rua,
Mulher perdida,
Mulher à-toa.
Mulher da Vida, minha irmã.
Pisadas, espezinhadas, ameaçadas.
Desprotegidas e exploradas.
Ignoradas da Lei, da Justiça e do Direito.
Necessárias fisiologicamente.
Indestrutíveis.
Sobreviventes.
Possuídas e infamadas sempre por
aqueles que um dia as lançaram na vida.
Marcadas. Contaminadas,
Escorchadas. Discriminadas.
Nenhum direito lhes assiste.
Nenhum estatuto ou norma as protege.
Sobrevivem como erva cativa dos caminhos,
pisadas, maltratadas e renascidas.
Flor sombria, sementeira espinhal
gerada nos viveiros da miséria, da
pobreza e do abandono,
enraizada em todos os quadrantes da Terra.
Um dia, numa cidade longínqua, essa
mulher corria perseguida pelos homens que
a tinham maculado. Aflita, ouvindo o
tropel dos perseguidores e o sibilo das pedras,
ela encontrou-se com a Justiça.
A Justiça estendeu sua destra poderosa e
lançou o repto milenar:
Aquele que estiver sem pecado
atire a primeira pedra.
As pedras caíram
e os cobradores deram s costas.
O Justo falou então a palavra de eqüidade:
Ninguém te condenou, mulher...
nem eu te condeno.
A Justiça pesou a falta pelo peso
do sacrifício e este excedeu àquela.
Vilipendiada, esmagada.
Possuída e enxovalhada,
ela é a muralha que há milênios detém
as urgências brutais do homem para que
na sociedade possam coexistir a inocência,
a castidade e a virtude.
Na fragilidade de sua carne maculada
esbarra a exigência impiedosa do macho.
Sem cobertura de leis
e sem proteção legal,
ela atravessa a vida ultrajada
e imprescindível, pisoteada, explorada,
nem a sociedade a dispensa
nem lhe reconhece direitos
nem lhe dá proteção.
E quem já alcançou o ideal dessa mulher,
que um homem a tome pela mão,
a levante, e diga: minha companheira.
Mulher da Vida, minha irmã.
No fim dos tempos.
No dia da Grande Justiça
do Grande Juiz.
Serás remida e lavada
de toda condenação.
E o juiz da Grande Justiça
a vestirá de branco em
novo batismo de purificação.
Limpará as máculas de sua vida
humilhada e sacrificada
para que a Família Humana
possa subsistir sempre,
estrutura sólida e indestrurível
da sociedade,
de todos os povos,
de todos os tempos.
Mulher da Vida, minha irmã.
Declarou-lhe Jesus: Em verdade vos digo que publicanos e meretrizes vos precedem
no Reino de Deus.
Evangelho de São Mateus 21, ver.31.


Poemas e Poesias quinta, 09 de dezembro de 2021

I (SONETOS) PARA CANTAR DE AMOR TENROS CUIDADOS (POEMA DO CARIOCA CLÁUDIO MANUEL DA COSTA)

I (SONETOS) PRA CANTAR DE AMOR TENROS CUIDADOS

Cláudio Manuel da Costa

 

 

 

Para cantar de amor tenros cuidados,
Tomo entre vós, ó montes, o instrumento;
Ouvi pois o meu fúnebre lamento;
Se é, que de compaixão sois animados:

Já vós vistes, que aos ecos magoados
Do trácio Orfeu parava o mesmo vento;
Da lira de Anfião ao doce acento
Se viram os rochedos abalados.

Bem sei, que de outros gênios o Destino,
Para cingir de Apolo a verde rama,
Lhes influiu na lira estro divino;

O canto, pois, que a minha voz derrama,
Porque ao menos o entoa um peregrino,
Se faz digno entre vós também de fama.


Poemas e Poesias quarta, 08 de dezembro de 2021

SONHE (POEMA DA UCRANIANA-BRASILEIRA CLARICE LISPECTOR)

SONHE

Clarice Lispector

 

 

Seja o que você quer ser,
porque você possui apenas uma vida
e nela só se tem uma chance de fazer aquilo que quer.

Tenha felicidade bastante para fazê-la doce.
Dificuldades para fazê-la forte.
Tristeza para fazê-la humana.
E esperança suficiente para fazê-la feliz.

As pessoas mais felizes não têm as melhores coisas.
Elas sabem fazer o melhor das oportunidades que aparecem em seus caminhos.

A felicidade aparece para aqueles que choram.
Para aqueles que se machucam.
Para aqueles que buscam e tentam sempre.
E para aqueles que reconhecem a importância das pessoas que passam por suas vidas.


Poemas e Poesias terça, 07 de dezembro de 2021

DESLUMBRAMENTOS (POEMA DO PORTUGUÊS CESÁRIO VERDE)

DESLUMBRAMENTOS

Cesário Verde

 

 

Milady, é perigoso contemplá-la
Quando passa aromática e normal,
Com seu tipo tão nobre e tão de sala,
Com seus gestos de neve e de metal.

Sem que nisso a desgoste ou desenfade,
Quantas vezes, senguindo-lhes as passadas,
Eu vejo-a, com real solenidade,
Ir impondo toilettes complicadas!…

Em si tudo me atrai como um tesoiro:
O seu ar pensativo e senhoril,
A sua voz que tem um timbre de oiro
E o seu nevado e lúcido perfil!

Ah! Como me estonteia e me fascina…
E é, na graça distinta do seu porte,
Como a Moda supérflua e feminina,
E tão alta e serena como a Morte!…

Eu ontem encontrei-a, quando vinha,
Britânica, e fazendo-me assombrar;
Grande dama fatal, sempre sozinha,
E com firmeza e música no andar!

O seu olhar possui, num jogo ardente,
Um arcanjo e um demónio a iluminá-lo;
Como um florete, fere agudamente,
E afaga como o pêlo dum regalo!

Pois bem. Conserve o gelo por esposo,
E mostre, se eu beijar-lhe as brancas mãos,
O modo diplomático e orgulhoso
Que Ana de Áustria mostrava aos cortesãos.

E enfim prossiga altiva como a Fama,
Sem sorrisos, dramática, cortante;
Que eu procuro fundir na minha chama
Seu ermo coração, como a um brilhante.

Mas cuidado, milady, não se afoite,
Que hão-de acabar os bárbaros reais;
E os povos humilhados, pela noite,
Para a vingança aguçam os punhais.

E um dia, ó flor do Luxo, nas estradas,
Sob o cetim do Azul e as andorinhas,
Eu hei-de ver errar, alucinadas,
E arrastando farrapos - as rainhas!


Poemas e Poesias segunda, 06 de dezembro de 2021

MÁQUINA BREVE (POEMA DA CARIOCA CECÍLIA MEIRELES)

MÁQUINA BREVE

Cecília Meireles

 

 

 

O pequeno vaga-lume
com sua verde lanterna,
que passava pela sombra
inquietando a flor e a treva
— meteoro da noite, humilde,
dos horizontes da relva;
o pequeno vaga-lume,
queimada a sua lanterna,
jaz carbonizado e triste
e qualquer brisa o carrega:
mortalha de exíguas franjas
que foi seu corpo de festa.

Parecia uma esmeralda
e é um ponto negro na pedra.
Foi luz alada, pequena
estrela em rápida seta.
Quebrou-se a máquina breve
na precipitada queda.
E o maior sábio do mundo
sabe que não a conserta.


Poemas e Poesias sábado, 04 de dezembro de 2021

O LAÇO DE FITA (POEMA DO BAIANO CASTRO ALVES)
                                                  
O LAÇO DE FITA
Casto Alves





 

Não sabes, criança? ′stou louco de amores...
Prendi meus affectos, formosa Pepita.
Mas onde? No templo, no espaço, nas nevoas?!
Não rias, prendi-me
                  N′um laço de fita.

Na selva sombria de tuas madeixas,
Nos negros cabellos da moça bonita,
Fingindo a serpente qu′enlaça a folhagem,
Formoso enroscava-se
                  O laço de fita.

Meu ser que voava nas luzes da festa,
Qual passaro bravo, que os ares agita,

Eu vi de repente captivo, submisso
Rolar prisioneiro
                  N′um laço de fita.

E agora enleiada na tenue cadêa
Debalde minh′alma se embate, se irrita...
O braço que rompe cadêas de ferro,
Não quebra teus élos,
                  Ó laço de fita!

Meu Deus! As phalenas têm azas de opala,
Os astros se libram na plaga infinita.
Os anjos repousam nas pennas brilhantes...
Mas tu... tens por azas
                  Um laço de fita!

Ha pouco voaras na célere walsa,
Na walsa que anceia, que estúa e palpita.
Por que é que tremeste? Não eram meus labios...
Beijava-te apenas...
                  Teu laço de fita.

Mas ai! findo o baile, despindo os adornos
N′alcova onde a vela ciosa... crepita,
Talvez da cadêa libertes as tranças,
Mas eu... fico preso
                  No laço de fita.

 

Pois bem! Quando um dia, na sombra do valle
Abrirem-me a cova... formosa Pepita!
Ao menos arranca meus louros da fronte,
E dá-me por c′ròa...
                  Teu laço de fita.

 


Poemas e Poesias sexta, 03 de dezembro de 2021

VISÃO (POEMA DO FLUMINENSE CASIMIRO DE ABREU

VISÃO

Casimiro de Abreu

 

 

 

Uma noite, meu Deus, que noite aquela!
Por entre as galas, no fervor da dança,
Vi passar, qual num sonho vaporoso,
O rosto virginal duma criança.

Sorri-me - era o sonho de minh'alma
Esse riso infantil que o lábio tinha:
- Talvez que essa alma dos amores puros
Pudesse um dia conversar co'a minha!

Eu olhei, ela olhou... doce mistério!
Minh'alma despertou-se à luz da vida,
E as vozes duma lira e dum piano
Juntas se uniram na canção querida.

Depois eu indolente descuidei-me
Da planta nova dos gentis amores,
E a criança, correndo pela vida,
Foi colher nos jardins mais lindas flores.

Não voltou; - talvez ela adormecesse
Junto à fonte, deitada na verdura,
E - sonhando - a criança se recorde
Do moço que ela viu e que a procura!

Corri pelas campinas noite e dia
Atrás do berço d'ouro dessa fada;
Rasguei-me nos espinhos do caminho...
Cansei-me a procurar e não vi nada!

Agora como um louco eu fito as turbas
Sempre a ver se descubro a face linda...
- Os outros a sorrir passam cantando,
Só eu a suspirar procuro ainda!...

Onde foste, visão dos meus amores!
Minh'alma sem te ver louca suspira!
- Nunca mais unirás, sombra encantada,
O som do teu piano à voz da lira?!...


Poemas e Poesias quinta, 02 de dezembro de 2021

OLINDA (POEMA DO PERNAMBUCANO CARLOS PENA FILHO)

OLINDA

Carlos Pena Filho

 

 

 

De limpeza e claridade
é a paisagem defronte.
Tão limpa que se dissolve
a linha do horizonte.

As paisagens muito claras
não são paisagens, são lentes.
São íris, sol, aguaverde
ou claridade somente.

Olinda é só para os olhos,
não se apalpa, é só desejo.
Ninguém diz: é lá que eu moro.
Diz somente: é lá que eu vejo.

Tem verdágua e não se sabe,
a não ser quando se sai.
Não porque antes se visse,
mas porque não se vê mais.

As claras paisagens dormem
no olhar, quando em existência.
Diluídas, evaporadas,
só se reúnem na ausência.

Limpeza tal só imagino
que possa haver nas vivendas
das aves, nas áreas altas,
muito além do além das lendas.

Os acidentes, na luz,
não são, existem por ela.
Não há nem pontos ao menos,
nem há mar, nem céu, nem velas.

Quando a luz é muito intensa
é quando mais frágil é:
planície, que de tão plana
parecesse em pé.

 

 

 


Poemas e Poesias quarta, 01 de dezembro de 2021

AMOR É BICHO INSTRUÍDO (POEMA DO MINEIRO CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE)

 

AMOR É BICHO INSTRUÍDO

Carlos Drummond de Andrade

 

 

Olha: o amor pulou o muro
o amor subiu na árvore
em tempo de se estrepar.
Pronto, o amor se estrepou.
Daqui estou vendo o sangue
que escorre do corpo andrógino.
Essa ferida, meu bem
às vezes não sara nunca
às vezes sara amanhã.


Poemas e Poesias terça, 30 de novembro de 2021

SONETO 150 - DEPOIS QUE QUIS AMOR QUE EU SÓ PASSASSE (POEMA DO PORTUGUÊS LUÍS DE CAMÕES)

DEPOIS QUE QUIS AMOR QUE QUE EU SÓ PASSASE

Soneto 150

Luís de Camões

 

 

 

Despois que quiz Amor que eu só passasse
Quanto mal ja por muitos repartio,
Entregou-me á Fortuna, porque vio
Que não tinha mais mal que em mi mostrasse.

Ella, porque do Amor se avantajasse
Na pena a que elle só me reduzio,
O que para ninguem se consentio,
Para mim consentio que se inventasse.

Eis-me aqui vou com vário som gritando.
Copioso exemplario para a gente
Que destes dous tyrannos he sujeita;

Desvarios em versos concertando.
Triste quem seu descanso tanto estreita,
Que deste tão pequeno está contente!


Poemas e Poesias segunda, 29 de novembro de 2021

SONETO DA ESMOLA DESVIRTUADA (POEMA DO PORTUGUÊS MANUEL MARIA DU BOCAGE)

SONETO DA ESMOLA DESVIRTUADA

Bocage

 

 

Padre Frei Cosme, vossa reverencia
Se enganna, ou engannar-nos talvez tenta:
Quem as riquezas dá, quem nos sustenta,
Não é de Deus a summa providencia?

Pois logo com que cara ou consciencia
Esmola pede, e arrepanhar intenta
Para o Senhor da Paz, ou da Tormenta?
Tem Deus do homem acaso dependencia?

Tire a mascara pois, largue a saccola,
E deixe o povo, a quem impunemente
Em nome do Senhor escorcha, e exfolla:

À viuva deixe a esmola, e ao indigente;
E não queira, hypocrita farsola
Foder à custa da devota gente.

Poemas e Poesias domingo, 28 de novembro de 2021

CEM TROVAS - 001 (POEMA DE BELMIRO BRAGA)

CEM TROVAS

Belmiro Braga

 

TROVA 001

 

 

 

As almas de muita gente                     
são como o rio profundo:                          
-a face tão transparente,   
e quanto lodo no fundo!.


Poemas e Poesias sábado, 27 de novembro de 2021

VERSOS DE AMOR (POEMA DO CAPIXABA AUGUSTO DOS ANJOS)

VERSOS DE AMOR

Augusto dos Anjos

 

 

 

A um poeta erótico

Parece muito doce aquela cana.
Descasco-a, provo-a, chupo-a . . ilusão treda!
O amor, poeta, é como a cana azeda,
A toda a boca que o não prova engana.

Quis saber que era o amor, por experiência,
E hoje que, enfim, conheço o seu conteúdo,
Pudera eu ter, eu que idolatro o estudo,
Todas as ciências menos esta ciência!

Certo, este o amor não é que, em ânsias, amo
Mas certo, o egoísta amor este é que acinte
Amas, oposto a mim. Por conseguinte
Chamas amor aquilo que eu não chamo.

Oposto ideal ao meu ideal conservas.
Diverso é, pois, o ponto outro de vista
Consoante o qual, observo o amor, do egoísta
Modo de ver, consoante o qual, o observas.

Porque o amor, tal como eu o estou amando,
E Espírito, é éter, é substância fluida,
É assim como o ar que a gente pega e cuida,
Cuida, entretanto, não o estar pegando!

É a transubstanciação de instintos rudes,
Imponderabilíssima, e impalpável,
Que anda acima da carne miserável
Como anda a garça acima dos açudes!

Para reproduzir tal sentimento
Daqui por diante, atenta a orelha cauta,
Como Marsias — o inventor da flauta —
Vou inventar também outro instrumento!

Mas de tal arte e espécie tal faze-lo
Ambiciono, que o idioma em que te eu falo
Possam todas as línguas decliná-lo
Possam todos os homens compreendê-lo!

Para que, enfim, chegando à última calma
Meu podre coração roto não role,
Integralmente desfibrado e mole,
Como um saco vazio dentro d’alma!

 


Poemas e Poesias quinta, 25 de novembro de 2021

O SOL DE DEUS (POEMA DO PARAIBANO ARIANO SUASSUNA)

O SOL DE DEUS

Ariano Suassuna

 

 

 

 

Mas eu enfrentarei o Sol divino,

o Olhar sagrado em que a Pantera arde.

Saberei porque a teia do Destino

não houve quem cortasse ou desatasse.

 

Não serei orgulhoso nem covarde,

que o sangue se rebela ao som do Sino.

Verei o Jaguapardo e a luz da Tarde,

Pedra do Sonho e cetro do Divino.

 

Ela virá-Mulher- aflando as asas,

com o mosto da Romã, o sono, a Casa,

e há de sagrar-me a vista o Gavião.

 

Mas sei, também, que só assim verei

a coroa da Chama e Deus, meu Rei,

assentado em seu trono do Sertão.


Poemas e Poesias quarta, 24 de novembro de 2021

EPITÁFIO (POEMA DO PAULISTA ÁLVARES DE AZEVEDO)

EPITÁFIO

Álvares de Azevedo

 

 

 

Perdão, meu Deus, se a túnica da vida...
Insano profanei-a nos amores!
Se da c'roa dos sonhos perfumados
Eu próprio desfolhei as róseas flores!
 
No vaso impuro corrompeu-se o néctar,
A argila da existência desbotou-me...
O sol de tua gloria abriu-me as pálpebras,
Da nódoa das paixões purificou-me!


E quantos sonhos na ilusão da vida!
Quanta esperança no futuro ainda!
Tudo calou-se pela noite eterna...
E eu vago errante e só na treva infinda...
 
Alma em fogo, sedenta de infinito,
Num mundo de visões o vôo abrindo,
Como o vento do mar no céu noturno
Entre as nuvens de Deus passei dormindo!
 
A vida é noite! o sol tem véu de sangue...
Tateia a sombra a geração descrida!...
Acorda-te, mortal! é no sepulcro
Que a larva humana se desperta à vida!
 
Quando as harpas do peito a morte estala,
Um treno de pavor soluça e voa...
E a nota divinal que rompe as fibras
Nas dulias angélicas ecoa!


Poemas e Poesias terça, 23 de novembro de 2021

LIRAS (POEMA DO CARIOCA ALVARENGA PEIXOTO)

LIRAS

Alvarenga Peixoto

 

 

(A Bárbara Heleodora, sua esposa, remetidas
do cárcere da Ilha das Cobras)

Bárbara bela,
Do norte estrela,
Que o meu destino
Sabes guiar,
De ti ausente,
Triste, somente
As horas passo
A suspirar.

Por entre as penhas
De incultas brenhas,
Cansa-me a vista
De te buscar;
Porém não vejo
Mais que o desejo
Sem esperança
De te encontrar.

Eu bem queria
A noite e o dia
Sempre contigo
Poder passar;
Mas orgulhosa
Sorte invejosa
Desta fortuna
Me quer privar.

Tu, entre os braços,
Ternos abraços
Da filha amada
Podes gozar;
Priva-me a estrela
De ti e dela,
Busca dois modos
De me matar!


Poemas e Poesias segunda, 22 de novembro de 2021

CANTEM OUTROS A CLARA COR VIRENTE (POEMA DO MINEIRO ALPHONSUS GUIMARAENS)

CANTEM OUTROS A CLARA COR VIRENTE

Alphonsus Guimaraens 

 

 

 

Cantem outros a clara cor virente
Do bosque em flor e a luz do dia eterno...
Envoltos nos clarões fulvos do oriente,
Cantem a primavera: eu canto o inverno.

Para muitos o imoto céu clemente
É um manto de carinho suave e terno:
Cantam a vida, e nenhum deles sente
Que decantando vai o próprio inferno.

Cantem esta mansão, onde entre prantos
Cada um espera o sepulcral punhado
De úmido pó que há de abafar-lhe os cantos...

Cada um de nós é a bússola sem norte.
Sempre o presente pior do que o passado.
Cantem outros a vida: eu canto a morte..


Poemas e Poesias domingo, 21 de novembro de 2021

AS MINHAS ASAS (POEMA DO PORTUGUÊS ALMEIDA GARRETT)

AS MINHAS ASAS

Almeida Garrett

 

 

Eu tinha umas asas brancas,
Asas que um anjo me deu,
Que, em me eu cansando da terra,
Batia-as, voava ao céu.

— Eram brancas, brancas, brancas,
Como as do anjo que mas deu:
Eu inocente como elas,
Por isso voava ao céu.
Veio a cobiça da terra,
Vinha para me tentar;
Por seus montes de tesouros
Minhas asas não quis dar.
— Veio a ambição, coas grandezas,
Vinham para mas cortar,
Davam-me poder e glória;
Por nenhum preço as quis dar.

Porque as minhas asas brancas,
Asas que um anjo me deu,
Em me eu cansando da terra,
Batia-as, voava ao céu.

Mas uma noite sem lua
Que eu contemplava as estrelas,
E já suspenso da terra,
Ia voar para elas,
— Deixei descair os olhos
Do céu alto e das estrelas...
Vi entre a névoa da terra,
Outra luz mais bela que elas.

E as minhas asas brancas,
Asas que um anjo me deu,
Para a terra me pesavam,
Já não se erguiam ao céu.

Cegou-me essas luz funesta
De enfeitiçados amores...
Fatal amor, negra hora
Foi aquela hora de dores!

— Tudo perdi nessa hora
Que provei nos seus amores
O doce fel do deleite,
O acre prazer das dores.

E as minhas asas brancas,
Asas que um anjo me deu,
Pena a pena me caíram...
Nunca mais voei ao céu.


Poemas e Poesias sábado, 20 de novembro de 2021

CARNES (POEMA DO GAÚCHO ALCEU WAMOSY)

CARNES

Alceu Wamosy

 

 

 

Pulcras liriais, bizarramente claras,
Carnes divinas, virginais e puras,
Na ostentação de correções preclaras
E de preclaras pompas e brancuras...

 

 

Carnes que sois as sacrossantas aras,
De vagas e de ignotas formosuras...
Ó carnes esquisitas carnes, carnes raras,
De esquisitas e raras contexturas!...

 

Carnes dadas, sem mancha, em holocausto
Ao amor, e do amor florindo ao fausto,
Virgens da tentação, salvas do vício!

 

Carnes extraordinárias e perfeitas,
Eleitas para um alto gozo — eleitas
Para o prazer e para o sacrifício!...


Poemas e Poesias sexta, 19 de novembro de 2021

BEIJA-FLORES (POEMA DO FLUMINENSE ALBERTO DE OLIVEIRA)

BEIJA-FLORES

Alberto de Oliveira

 

 

 

Os beija-flores, em festa,
Com o sol, com a luz, com os rumores,
Saem da verde floresta,
Como um punhado de flores.

E abrindo as asas formosas,
As asas aurifulgentes,
Feitas de opalas ardentes
Com coloridos de rosas,

Os beija-flores, em bando,
Boêmios enfeitiçados,
Vão como beijos voando
Por sobre os virentes prados;

Sobem às altas colinas,
Descem aos vales formosos,
E espraiam-se após ruidosos
Pela extensão das campinas.

Depois, sussurrando a flux
Dos cactos ensanguentados,
Bailam nos prismas da luz,
De solto pólen dourados.

Ah! como a orquídea estremece
Ao ver que um deles, mais vivo,
Até seu gérmen lascivo
Mergulha, interna-se, desce...

E não haver uma rosa
De tantas, uma açucena,
Uma violeta piedosa,
Que quando a morte sem pena

Um destes seres fulmina,
Abra-se em férvido enleio,
Como a alma de uma menina,
Para guardá-lo no seio!


Poemas e Poesias quinta, 18 de novembro de 2021

CHEGANDO EM CASA (POEMA DO MINEIRO AFFONSO ROMANO DE SANT,ANNA)

CHEGANDO EM CASA

Affonso Romano de Sant'Anna

 

 

 

Chegando em casa
com a alma amarfanhada
e escura
das refregas burocráticas
leio sobre a mesa
um bilhete que dizia :

-hoje, 22 de agosto de 1994
Meu marido perdeu, deste terraço :

Mais um pôr do sol no Dois Irmãos
o canto de um bem-te-vi
e uma orquídea que entardecia
sobre o mar.


Poemas e Poesias quarta, 17 de novembro de 2021

EXAUSTO (POEMA DA MINEIRA ADÉLIA PRADO

EXAUSTO

Adélai Prado

 

 

 

Eu quero uma licença de dormir,
perdão pra descansar horas a fio,
sem ao menos sonhar
a leve palha de um pequeno sonho.
Quero o que antes da vida
foi o sono profundo das espécies,
a graça de um estado.
Semente.
Muito mais que raízes.


Poemas e Poesias terça, 16 de novembro de 2021

INSTANTE (POEMA DA CARIOCA ADALGISA NERY)

INSTANTE

Adalgisa Nery

 

 

 

O espanto abriu meu pensamento
Com idioma vindo do delírio,
Dos receios indefesos, dos louvores sem raízes,
No perdão oferecido sem razão.
O espanto abriu meu pensamento
Na noite carregada de lamentos
Em linguagem universal
Fluindo do eco perdido
Com passos de presságio amanhecendo.
Corpos florindo na pele da terra
Acendendo vida nas rosas e nos vermes,
Aumentando a potência do limo,
Preparando a primavera nos campos,
Ventres irrigando secas raízes,
Cogumelos róseos crescendo
Na umidade das faces.
Coagulação de prantos na semente
Das constelações adivinhadas.
E no faminto inconsciente, o tempo
Sorvendo com fúria o seu sustento
No insondável silêncio de mim mesma.

 


Poemas e Poesias segunda, 15 de novembro de 2021

ETERNO AMOR (POEMA DA PORTUGUESA VIRGÍNIA VICTORINO)

ETERNO AMOR

Virgínia Victorino

 

 

 

Pedro, o grande amoroso, o eterno amante,

Aos pés d’ Inês, sozinho e triste diz:

Fez-me Cruel o muito que te quis,

e acho ainda que não te quis bastante.

 

Não me viste morrer. Partiste adiante

nem me viste chorar; foste feliz.

Subiste ao céu – formosa flor de liz,

sempre tão perto, embora tão distante!

 

O leito que te dei não te merece.

Devia tê-lo feito de uma prece,

De saudades, de rendas, ou luar...

 

Vai-me esperando. – A expiação redime. –

tenho na vida a expiação dum crime.

– O Santíssimo crime de te amar.


Poemas e Poesias domingo, 14 de novembro de 2021

A GRANDE VOZ (POEMA DO CARIOCA VINÍCIUS DE MORAES)

A GRANDE VOZ

Vinícius de Moraes

 

 

 

É terrível, Senhor! Só a voz do prazer cresce nos ares.
Nem mais um gemido de dor, nem mais um clamor de heroísmo
Só a miséria da carne, e o mundo se desfazendo na lama da carne.

É terrível, Senhor. Desce teus olhos.
As almas sãs clamam a tua misericórdia.
Elas creem em ti. Creem na redenção do sacrifício.
Dize-lhes, Senhor, que és o Deus da Justiça e não da covardia
Dize-lhes que o espírito é da luta e não do crime.

Dize-lhes, Senhor, que não é tarde!

Senhor! Tudo é blasfêmia e tudo é lodo.
Se um lembra que amanhã é o dia da miséria
Mil gritam que hoje é o dia da carne.
Olha, Senhor, antes que seja tarde
Abandona um momento os puros e os bem-aventurados
Desvia um segundo o teu olhar de Roma
Dá remédio a esta infelicidade sem remédio
Antes que ela corrompa os bem-aventurados e os puros.

Não, meu Deus. Não pode prevalecer o prazer e a mentira.
A Verdade é o Espírito. Tu és o Espírito supremo
E tu exigiste de Abraão o sacrifício de um filho.
Na verdade o que é forte é o que mata se o Espírito exige.
É o que sacrifica à causa do bem seu ouro e seu filho.
A alma do prazer é da terra. A alma da luta e do espaço.
E a alma do espaço aniquilará a alma da terra
Para que a Verdade subsista.

Talvez, Senhor meu Deus, fora melhor
Findar a humanidade esfacelada
Com o fogo sagrado de Sodoma.
Melhor fora, talvez, lançar teu raio
E terminar eternamente tudo.
Mas não, Senhor. A morte aniquila — ao fraco a morte inglória.
A luta redime — ao forte a luta e a vida.
Mais vale, Senhor, a tua piedade
Mais vale o teu amor concitando ao combate último.

Senhor, eu não compreendo os teus sagrados desígnios.
Jeová — tu chamaste à luta os homens fortes
Tua mão lançou pragas contra os ímpios
Tua voz incitou ao sacrifício da vida as multidões.
Jesus — tu pregaste a parábola suave
Tu apanhaste na face humildemente
E carregaste ao Gólgota o madeiro.
Senhor, eu não os compreendo, teus desígnios.

Senhor, antes de seres Jesus a humanidade era forte
Os homens bons ouviam a doçura da tua voz
Os maus sentiam a dureza da tua cólera.
E depois, depois que passaste pelo mundo
Teu doce ensinamento foi esquecido
Tua existência foi negada
Veio a treva, veio o horror, veio o pecado
Ressuscitou Sodoma.

Senhor, a humanidade precisa ouvir a voz de Jeová
Os fortes precisam se erguer de armas em punho
Contra o mal — contra o fraco que não luta.
A guerra, Senhor, é em verdade a lei da vida
O homem precisa lutar, porque está escrito
Que o Espírito há de permanecer na face da Terra.

Senhor! Concita os fortes ao combate
Sopra nas multidões inquietas o sopro da luta
Precipita-nos no horror da avalancha suprema.
Dá ao homem que sofre a paz da guerra
Dá à terra cadáveres heroicos
Dá sangue quente ao chão!

Senhor! Tu que criaste a humanidade.
Dize-lhe que o sacrifício será a redenção do mundo
E que os fracos hão de perecer nas mãos dos fortes.
Dá-lhe a morte no campo de batalha
Dá-lhe as grandes avançadas furiosas
Dá-lhe a guerra, Senhor!


Poemas e Poesias sábado, 13 de novembro de 2021

FUGINDO AO CATIVEIRO (POEMA DO PAULISTA VICENTE DE CARVALHO)

FUGINDO AO CATIVEIRO

Vicente de Carvalho

 

 

 

Horas mortas. Inverno. Em plena mata. Em plena
Serra do Mar.

Em cima, ao longe, alta e serena,
A ampla curva do céu das noites de geada:
Como a palpitação vagamente azulada
De uma poeira de estrelas...

Negra, imensa, disforme,
Enegrecendo a noite, a desdobrar-se pelas
Amplidões do horizonte, a cordilheira dorme.

Como um sonho febril no seu sono ofegante,
Na sombra em confusão do mato farfalhante,
Tumultuando, o chão corre às soltas, sem rumo;
Trepa agora alcantis por escarpas a prumo,
Eriça-se em calhaus, bruscos como arrepios;
Mais repousado, além levemente se enruga
Na crespa ondulação de cômoros macios:
Resvala num declive; e logo, como em fuga
Precípite, através da escuridão noturna,
Despenha-se de chôfre ao vácuo de uma furna.

Do fundo dos grotões outra vez se subleva,
Surge, recai, ressurge... E, assim, como em torrente
Furiosa, em convulsões, vai rolando na treva
Despedaçadamente e indefinidamente...

Muge na sombra a voz rouca das cachoeiras.

Rajadas sorrateiras
De um vento preguiçoso arfam de quando em quando
Como um vasto motim que passa sussurrando:
E em cada árvore altiva, e em cada humilde arbusto,
Há contorções de raiva ou frêmitos de susto.

A mata é tropical: basta, quase maciça
De tão cerrada. Ao pé do tronco dominante,
Que, imperturbavelmente imóvel, inteiriça
Sob a rija galhada o torso de gigante.
- Uma vegetação turbulenta e bravia
Rasteja, alastra, fura, enrosca-se, porfia:
Moitas de craguatás agressivos; rasteiras
Trapoeirabas tramando o chão todo; touceiras
De brejaúva,em riste as flechas oriçadas
De espinhos; e por tudo, e em tudo emaranhadas,
As trepadeiras, em redouças balouçando
Hastes vergadas, galho a galho acorrentando
Árvores, afogando arbustos, brutalmente
Enlaçando à jissara o talhe adolescente. . .
Cem espécies formando a trama de uma sebe,
Atulhando o desvão de dois troncos; a plebe
Da floresta, oprimida e em perpétuo levante.

Acesa num furor de seiva transbordante,
Toda essa multidão desgrenhada - fundida
Como a conflagração de cem tribos selvagens
Em batalha - a agitar cem formas de folhagens
Disputa-se o ar, o chão, o orvalho, o espaço, a vida.

Na confusão da noite, a confusão do mato
Gera alucinações de um pavor insensato,
Aguça o ouvido ansioso e a visão quase extinta:
Lembra - e talvez abafe - urros de onça faminta
A mal ouvida voz da trêmula cascata
Que salta e foge e vai rolando águas de prata.
Rugem sinistramente as moitas sussurrantes.
Acoitam-se traições de abismo numa alfombra.
Penedos traçam no ar figuras de gigantes.
Cada ruído ameaça, e cada vulto assombra.

Uns tardos caminhantes
Sinistros, meio nus, esboçados na sombra,
Passam, como visões vagas de um pesadelo. . .

São cativos fugindo ao cativeiro. O bando
É numeroso. Vêm de longe, no atropelo
Da fuga perseguida e cansada. Hesitando,
Em recuos de susto e avançadas afoitas,
Rompendo o mato e a noite, investindo as ladeiras,
Improvisam o rumo ao acaso das moitas.

Vão arrastando os pés chaga dos de frieiras...
De furna em furna a Serra, imensa, se desdobra,
De sombra em sombra a noite, infinda, se prolonga;
E flexuosa, em vaivéns, como de dobra em dobra,
A longa fila ondula e serpenteia, e a longa
Marcha através da noite e das furnas avança. . .

Vão andrajosos, vão famintos, vão morrendo.
Incita-os o terror, alenta-os a esperança:
Fica-lhes para trás, para longe, o tremendo
Cativeiro... E através desses grotões por onde
Se arrastam, do sertão que os esmaga e os esconde.
Da vasta escuridão que os cega e que os ampara,
Do mato que obsta e apaga os seus passos furtivos,
Seguem, almas de hebreus, rumo do Jabaquara
 - A Canaã dos cativos.

Vão calados, poupando o fôlego. De quando
Em quando - fio d'água humilde murmurando
As tristezas de um lago imenso - algum gemido,
Um grito de mulher, um choro de criança,
Conta uma nova dor em peito já dorido,
Um bruxoleio mais mortiço da esperança,
A rajada mais fria arrepiando a floresta
E a pele nua; o espinho entrando a carne; a aresta
De um seixo apunhalando o pé já todo em sangue:
Uma exacerbação nova da fome velha,

A tortura da marcha imposta ao corpo exangue;
O joelho exausto que, contra a vontade, ajoelha...

E a longa fila segue: a passo, vagarosa,
Galga de fraga em fraga a montanha fragosa,
Bem mais fragosa, bem mais alta que o Calvário...
Um, tropeçando, arrima o pai octogenário:
Os mais valentes dão apoio aos mais franzinos;
E Mães, a agonizar de fome e de cansaço,
Levam com o coração mais do que com o braço
Os filhos pequeninos.

II

Ei-lo, por fim, o termo desejado
Da subida: a montanha avulta e cresce
De um vale escuro ao céu todo estrelado;
E o seu cume de súbito aparece
De um resplendor de estrelas aureolado.

Mas ai! Tão longe ainda! . .. E de permeio
A vastidão da sombra sem caminhos,
Um fundo vale, tenebroso e feio,
E o mato, o mato das barrocas, cheio
De fantasmas, de estrépitos, de espinhos.

Tão longe ainda!...E os peitos arquejantes,
E as fôrças e a coragem sucumbindo...
Estacando, aterrados, por instantes
Pensam que a morte hão de encontrar bem antes
Do termo desse itinerário infindo...

Tiritando, a chorar, uma criança
Diz com voz débil: "Mãe, faz tanto frio! . . ."
E a mãe os olhos desvairados lança
Em torno, e vê apenas o sombrio
Manto de folhas que o tufão balança...

"Mãe, tenho fome!" a criancinha geme,
E ela, dos trapos arrancando o seio,
Põe-lho na boca ansiosa, aperta e espreme...
Árido e seco!...E do caminho em meio
Ela, aterrada e muda, estaca e treme.

Vai-lhe morrer, morrer nos próprios braços,
Morrer de fome, o filho bem-querido;
E ela, arrastando para longe os passos,
O amado corpo deixará, perdido
Para os seus beijos, para os seus abraços...

Esse cadáver pequenino, e o riso
Murcho no lábio, e os olhos apagados,
Toda essa vida morta de improviso,
Hão de ficar no chão, abandonados
À inclemência dos sóis e do granizo;

Esse entezinho débil e medroso,
Que ao mais leve rumor se assusta e busca
O asilo do seu seio carinhoso,
Há de ficar sozinho; e, em tôrno, a brusca
Voz do vento ululante e cavernoso. . .

E, em tôrno, a vasta noite solitária
Cheia de sombra, cheia de pavores,
Onde passa a visão errante e vária
Dos lobisomens ameaçadores
Em desfilada solta e tumultuária...

Desde a cabeça aos pés, tôda estremece;
Falta-lhe a fôrça, a vista se lhe turva,
Tôda a coragem na alma lhe esmorece,
E, afastando-se, ao longe, numa curva
O bando esgueira-se, e desaparece...

Ficam sós, ela e o filho, agonizando,
Ele a morrer de fome, ela de medo.
Ulula o furacão de quando em quando,
E sacudindo os ramos e o folhedo
Movem-se as árvores gesticulando.

Ela ergue os olhos para o céu distante
E pede ao céu que descortine a aurora:
Dorme embuçado em sombras o levante,
Mal bruxuleia pela noite fora
Das estrelas o brilho palpitante...

Tenta erguer-se, e recaí; soluça e brada,
E apenas o eco lhe responde ao grito;
Os olhos fecha para não ver nada,
E tudo vê com o coração aflito,
E tudo vê com a alma alucinada.

Dentro se lhe revolta a carne; explode
O instinto bruto, e quebra-lhe a vontade:
Mães, vosso grande amor, que tanto pode,
Pode menos que a indômita ansiedade
Em que o terror os músculos sacode!

Ela, apertando o filho estreitamente,
Beija-lhe os olhos úmidos, a boca...
E desvairada, em pranto, ébria e tremente,
Arrancando-o do seio, de repente
Larga-o no chão e foge como louca.

III

Aponta a madrugada:
Da turva noite esgarça o úmido véu,
E espraia-se risonha, alvoroçada,
Rosando os morros e dourando o céu.

A caravana trôpega e ansiosa
Chega ao tope da Serra...
O olhar dos fugitivos
Descansa enfim na terra milagrosa
Na abençoada terra
Onde não há cativos.

Em baixo da montanha, logo adiante,
Quase a seus pés, uma planície imensa,
Clara, risonha, aberta, verdejante:

E ao fundo do horizonte, ao fim da extensa
Macia várzea que se lhes depara
Ali, próxima, em frente,
Esfumadas na luz do sol nascente,
As colinas azuis do Jabaquara...

O dia de ser livre, tão sonhado
Lá do fundo do escuro cativeiro,
Amanhece por fim, leve e dourado,
Enchendo o céu inteiro.

Uma explosão de júbilo rebenta
Desses peitos que arquejam, dessas bocas
Famintas, dessa turba macilenta:

Um borborinho de palavras loucas,
De frases soltas que ninguém escuta
Na vasta solidão se ergue e se espalha,
E em pleno seio da floresta bruta
Canta vitória a meio da batalha.

Seguindo a turba gárrula e travessa
Que se alvoroça e canta e salta e ri-se,
Um coitado, com a trêmula cabeça
Toda a alvejar das neves da velhice,
Tardo, trôpego, só, desamparado,
Chega afinal, exsurge à superfície
Do alto cimo; repousa, consolado,
Longamente, nos longes da planície
O olhar quase apagado;
Distingue-a mal, duvida; resmungando,
Fita-a; compreende-a pouco a pouco; vê-a
Anunciando próxima, esboçando
- No chão que brilha de um fulgor de areia,
Num verde-claro de ervaçal que ondeia-
A aparição da Terra Prometida...

Todo trêmulo, ajoelha; e ajoelhado,
De mãos postas, nos olhos a alma e a vida,
Ele, o mesquinho e o bem-aventurado,
Adora o Céu nessa visão terrena...

E de mãos postas sempre, extasiado,
Murmura, reza esta oração serena
Como um tôsco resumo do Evangelho:

"Foi Deus Nosso Senhor que teve pena
De um pobre negro velho..."

Seguem. Começa a íngreme descida.
     Descem. E recomeça
A peregrinação entontecida
No labirinto da floresta espêssa.
Sob o orvalho das fôlhas gotejantes,
Entre as moitas cerradas de espinheiros,
Andrajosos, famintos, triunfantes,
Descem barrancos e despenhadeiros.

Descem rindo, a cantar... Seguem, felizes,
Sem reparar que os pés lhes vão sangrando
Pelos espinhos e pelas raízes;
Sem reparar que atrás, pelo caminho
Por onde fogem como alegre bando
De passarinhos da gaiola escapo
- Fica um pouco de trapo em cada espinho
E uma gôta de sangue em cada trapo.

Descem rindo e cantando, em vozeria
E em confusão. Tôda a floresta, cheia
Do murmúrio das fontes, da alegria
Deles, da voz dos pássaros, gorjeia.
Tudo é festa. Severos e calados,
Os velhos troncos, plácidos ermitas,
Os próprios troncos velhos, remoçados,
Riem no riso em flor das parasitas.

Varando acaso às árvores a sombra
Da folhagem que à brisa arfa e revoa,
Na verde ondulação da úmida alfombra
O ouro leve do sol bubuia à toa;
A água das cachoeiras, clara e pura,
Salta de pedra em pedra, aos solavancos;
E a flor de S. João se dependura
Festivamente à beira dos barrancos...

Vão alegres, ruidosos... Mas no meio
Dessa alegria palpitante e louca,
Que transborda do seio
E transbordada canta e ri na bôca,
Uma mulher, absorta, acabrunhada,
Segue parando a cada passo, e a cada
Instante os olhos para trás volvendo:
De além, do fundo dessas selvas brutas
Chama-a, seu nome em lágrimas gemendo,
Uma vozinha ansiosa e suplicante...

Mãe, onde geme que tão bem o escutas
Teu filho agonizante?

IV

De repente, como um agouro e uma ameaça,
Um alarido de vozes estranhas passa
Na rajada do vento...

 Estacam.

Como um bando
De ariscos caitetus farejando a matilha,
Imóveis, alongado o pescoço, arquejando,
Presa a respiração, o olhar em fogo, em rilha
Os dentes, dilatada a narina, cheirando
A aragem, escutando o silêncio, espreitando
A solidão; assim, num alarma instintivo,
Estaca e põe-se alerta o bando fugitivo.
Nova rajada vem, nôvo alarido passa...

Como, topando o rastro inda fresco da caça,
Uiva a matilha enquanto inquire o chão agreste,
E de repente, em fúria, alvoçada investe
E vai correndo e vai latindo de mistura;
Rosna ao dar-lhes na pista a escolta que os procura,
E morro abaixo vem ladrando-lhes no encalço.

Grita e avança em triunfo a soldadesca ufana.

E os frangalhos ao vento, em sangue o pé descalço,
Alcatéia usurpando a forma e a face humana,
Almas em desespero arfando em corpos gastos,
Mães aflitas levando os filhinhos de rastos,
Homens com o duro rosto em lágrimas, velhinhos
Esfarrapando as mãos a tatear nos espinhos;
Tôda essa aluvião de caça perseguida
Por um clamor de fúria e um tropel de batida,
Foge... Rompendo o mato e rolando a montanha,
Foge... E, moitas, a dentro e barrocais a fora,
Arrasta-se, tropeça, esbarra, se emaranha,
Arqueja, hesita, afrouxa, e desanima, e chora...

Param.

Perto, bramindo, a escolta o passo estuga.

Os fugitivos, nesse aproximar da escolta
Sentem que vai chegando o epílogo da fuga:
A gargalheira, a algema, as angústias da volta...

Além, fulge na luz da manhã leve e clara,
O contôrno ondulante e azul do Jabaquara.
Adeus, terra bendita! Adeus, sonho apagado
De ser livre! É preciso acordar, e acordado
Ver-te ainda, e dizer-te um adeus derradeiro,
E voltar, para longe e para o cativeiro.

Sôbre eles, novamente, uma funéria noite
Cai, para sempre...

Como a trôpega boiada,
Que, abrasada de sede e tangida do açoite,
Se arrasta pela areia adusta de uma estrada:
Volverão a arrastar-se, humildes e tristonhos,
Tangidos do azorrague e abrasados de sonhos,
Pelo deserto areal desse caminho estreito:
A vida partilhada entre a senzala e o eito...

Agrupam-se, vencidos,
A tremer, escutando o tropel e os rugidos
Da escolta cada vez mais em fúria e mais perto.
Nesse magote vil de negros maltrapilhos
Mais de um olhar, fitando o vasto céu deserto,
Ingenuamente exprobra o Pai que enjeita os filhos...

Destaca-se do grupo um fugitivo. Lança
Em tôrno um longo olhar tranqüilo, de esperança,
E diz aos companheiros:

"Fugi, correi, saltai pelos despenhadeiros;
A várzea está lá em baixo, o Jabaquara é perto...
Deixai-me aqui sozinho.
Eu vou morrer, decerto...
Vou morrer combatendo e trancando o caminho.

A morte assim me agrada:
Eu tinha de voltar p´ra conservar-me vivo...
E é melhor acabar na ponta de uma espada
Do que viver cativo".

E enquanto a caravana
Desanda pelo morro atropeladamente,
Ele, torvo, figura humilde e soberana,
Fica, e a pé firme espera o inimigo iminente.

Hércules negro! Corre, abrasa-lhe nas veias
Sangue de algum heróico africano selvagem,
Acostumado à guerra, a devastar aldeias,
A cantar e a sorrir no meio da carnagem
A desprezar a morte espalhando-a às mãos cheias...

Não pode a escravidão domar-lhe a índole forte,
E vergar-lhe a altivez, e ajoelhá-lo diante
Do carrasco e da algema:
Sorri para o suplício e a fito encara a morte
Sem que lhe o braço trema,
Sem que lhe ensombre o olhar o medo suplicante.

Erguendo o braço, ele ergue a foice: a foice volta,
E rola sobre a terra uma cabeça solta.
Sobre ele vem cruzar-se o gume das espadas...
"Ah, prendê-lo, jamais!" respondem as foiçadas
Turbilhonando no ar, e ferindo, e matando.

De lado a lado o sangue espirra a jorros... Ele,
Ágil, possante, ousado, heróico, formidando,
Faz frente: um contra dez, defende-se e repele.
E não se entrega, e não recua, e não fraqueja.
Tudo nele, alma e corpo ajustados, peleja:
O braço luta, o olhar ameaça e desafia,
A coragem resiste, a agilidade vence.

E, coriscando no ar, a foice rodopia.

Afinal um soldado, ébrio de covardia,
Recua; vai fugir... Recua mais; detém-se:
Fora da luta, sente o gosto da chacina;
E vagarosamente alçando a carabina,
Visa, desfecha.

O negro abrira um passo à frente,
Erguera a foice, armava um golpe...

De repente
Estremece-lhe todo o corpo fulminado.

Cai-lhe das mãos a foice, inerte, para um lado,
Pende-lhe, inerte, o braço. Impotente, indefeso
Ilumina-lhe ainda a face decomposta
Um derradeiro olhar de afronta e de desprezo.

Como enxame em furor de vespas assanhadas,
Assanham-se-lhe em cima os golpes sem resposta,
E retalham-no à solta os gumes das espadas...

E retalhado, exausto, o lutador vencido
Todo flameja em sangue e expira num rugido.

 


Poemas e Poesias sexta, 12 de novembro de 2021

AOS HERÓIS DO FUTEBOL BRASILEIRO (POEMA DA CARIOCA GILKA MACHADO)

AOS HERÓIS DO FUTEBOL BRASILEIRO

Gilka Machado

 

 

 

Eu vos saúdo
heróis do dia
que vos fizestes compreender
numa linguagem muda,
escrevendo com os pés
magnéticos e alados
uma epopéia internacional!

As almas dos brasileiros
distantes
vencem os espaços,
misturam-se com as vossas,
caminham nos vossos passos
para o arremesso da pelota
para o chute decisivo
da glória da Pátria.

Que obra de arte ou de ciência,
de sentimento ou de imaginação
teve a penetração
dos gols de Leônidas
que, transpondo balizas
e antipatias,
souberam se insinuar
no coração
do Mundo!

Que obra de arte ou de ciência
conteve a idéia e a emotividade
de vossos improvisos
em vôos e saltos,
ó bailarinos espontâneos
ó poetas repentistas
que sorrindo oferecestes vosso sangue
à sede de glória
de um povo
novo?

Ha milhões de pensamentos
impulsionando vossos movimentos.

Na esportiva expressão
que qualquer raça entende
longe de nossa decantada natureza
os Leônidas e os Domingos
fixaram na retina do estrangeiro
a milagrosa realidade
que é o homem do Brasil.

Eia
atletas franzinos
gigantes débeis
que com astúcia e audácia,
tenacidade e energia
transfigurai-vos,
traçando aos olhos surpresos
da Europa
um debuxo maravilhoso
do nosso desconhecido país.


Publicado no livro Sublimação (1938).


Poemas e Poesias quinta, 11 de novembro de 2021

GELEIA GERAL (POEMA DO PIAUIENSE TORQUATO NETO)

GELEIA GERAL

Torquato Neto

 

 

Um poeta desfolha a bandeira e a manhã tropical se inicia
Resplandente, cadente, fagueira num calor girassol com alegria
Na geléia geral brasileira que o Jornal do Brasil anuncia
Ê, bumba-yê-yê-boi ano que vem, mês que foi
Ê, bumba-yê-yê-yê é a mesma dança, meu boi

A alegria é a prova dos nove e a tristeza é teu porto seguro
Minha terra é onde o sol é mais limpo e Mangueira é onde o samba é mais puro
Tumbadora na selva-selvagem, Pindorama, país do futuro
Ê, bumba-yê-yê-boi ano que vem, mês que foi
Ê, bumba-yê-yê-yê é a mesma dança, meu boi

É a mesma dança na sala, no Canecão, na TV
E quem não dança não fala, assiste a tudo e se cala
Não vê no meio da sala as relíquias do Brasil:
Doce mulata malvada, um LP de Sinatra, maracujá, mês de abril
Santo barroco baiano, superpoder de paisano, formiplac e céu de anil
Três destaques da Portela, carne-seca na janela, alguém que chora por mim
Um carnaval de verdade, hospitaleira amizade, brutalidade jardim
Ê, bumba-yê-yê-boi ano que vem, mês que foi
Ê, bumba-yê-yê-yê é a mesma dança, meu boi

Plurialva, contente e brejeira miss linda Brasil diz "bom dia"
E outra moça também, Carolina, da janela examina a folia
Salve o lindo pendão dos seus olhos e a saúde que o olhar irradia
Ê, bumba-yê-yê-boi ano que vem, mês que foi
Ê, bumba-yê-yê-yê é a mesma dança, meu boi

Um poeta desfolha a bandeira e eu me sinto melhor colorido
Pego um jato, viajo, arrebento com o roteiro do sexto sentido
Voz do morro, pilão de concreto tropicália, bananas ao vento
Ê, bumba-yê-yê-boi ano que vem, mês que foi
Ê, bumba-yê-yê-yê é a mesma dança, meu boi

 


Poemas e Poesias quarta, 10 de novembro de 2021

O SER, O VER (POEMA DO BAIANO RICARDO LIMA)

O SER E O VER

Ricardo Lima

 

 

 

 

O ver é o ser!

O ser? Sou eu.

Interno e evidente.

O ser é o ver!

Ver o que está dentro, é ser!

Então, o ser é o ver.


Poemas e Poesias terça, 09 de novembro de 2021

CANÇÃO DE TODOS (POEMA DO FLUMINENSE RAUL DE LEÔNI)

CANÇÃO DE TODOS

Raul de Leôni

 

 

 

Duas almas deves ter...
É um conselho dos mais sábios;
Uma, no fundo do Ser,
Outra, boiando nos lábios!

Uma, para os circunstantes,
Solta nas palavras nuas
Que inutilmente proferes,
Entre sorrisos e acenos:
A alma volúvel da ruas,
Que a gente mostra aos passantes,
Larga nas mãos das mulheres,
Agita nos torvelinhos,
Distribui pelos caminhos
E gasta sem mais nem menos,
Nas estradas erradias,
Pelas horas, pelos dias...

Alma anônima e usual,
Longe do Bem e do Mal,
Que não é má nem é boa,
Mas, simplesmente, ilusória,

Ágil, sutil, diluída,
Moeda falsa da Vida,
Que vale só porque soa,
Que compra os homens e a glória
E a vaidade que reboa
Alma que se enche e transborda,
Que não tem porquê nem quando,
Que não pensa e não recorda,
Não ama, não crê, não sente,
Mas vai vivendo e passando
No turbilhão da torrente,
Través intrincadas teias,
Sem prazeres e sem mágoas.
Fugitiva como as águas,
Ingrata como as areias.

Alma que passa entre apodos
Ou entre abraços, sorrindo,
Que vem e vai, vai e vem,
Que tu emprestas a todos,
Mas não pertence a ninguém.
Salamandra furta-cor,
Que muda ao menor rumor
Das folhas pelas devesas;
Alma que nunca se exprime,
Que é uma caixa de surpresas
Nas mãos dos homens prudentes;
Alma que é talvez um crime,
Mas que é uma grande defesa.

A outra alma, pérola rara,
Dentro da concha tranqüila,
Profunda, eterna e tão cara
Que poucos podem possuí-la,
É alma que nas entranhas
Da tua vida murmura
Quando paras e repousas.
A que assiste das Montanhas
As livres desenvolturas
Do panorama das cousas

Para melhor conhecê-las
E jamais comprometê-las,
Entre perdões e doçuras,
Num pudor silencioso,
Com o mesmo olhar generoso,
Com que contempla as estrelas
E assiste o sonho das flores...

Alma que é apenas tua,
Que não te trai nem te engana,
Que nunca se desvirtua,
Que é voz do mundo em surdina.
Que é a semente divina

Da tua têmpera humana,
Alma que só se descobre
Para uma lágrima nobre,
Para um heroísmo afetivo,
Nas íntimas confidências
De verdade e de beleza:

Milagre da natureza
Transcorrendo em reticências
Num sonho límpido e honesto,
De idealidade suprema,
Ora, aflorando num gesto,
Ora, subindo num poema.

Fonte do Sonho, jazida
Que se esconde aos garimpeiros,
Guardando, em fundos esteiros,
O ouro da tua Vida.

Alma de santo e pastor,
De herói, de mártir e de homem;
A redenção interior
Das forças que te consomem,
A legenda e o pedestal
Que se aprofunda e se agita
Da aspiração infinita
No teu ser universal.

Alma profunda e sombria,
Que ao fechar-se cada dia,
Sob o silêncio fecundo
Das horas graves e calmas,
Te ensina a filosofia
Que descobriu pelo mundo,
Que aprendeu nas outras almas

Duas almas tão diversas
Como o poente das auroras:
Uma, que passa nas horas;
Outra, que fica no tempo.


Poemas e Poesias segunda, 08 de novembro de 2021

O TEMPO (POEMA DO MINEIRO PAULO MENDES CAMPOS)

O TEMPO

Paulo Mendes Campos

 

 

 

Só no passado a solidão é inexplicável.
Tufo de plantas misteriosas o presente
Mas o passado é como a noite escura
Sôbre o mar escuro

Embora irreal o abutre
É incômodo meu sonho de ser real
Ou somos nós aparições fantasiosas
E forte e verdadeiro o abutre do rochedo

Os que se lembram trazem no rosto
A melancolia do defunto

Ontem o mundo existe

O agora é a hora da nossa morte


Poemas e Poesias domingo, 07 de novembro de 2021

DESILUSÃO (POEMA DO CEARENSE PATATIVA DO ASSARÉ)

DESILUSÃO

Patativa do Assaré

 

 

 

Como a folha no vento pelo espaço
Eu sinto o coração aqui no peito,
De ilusão e de sonho já desfeito,
A bater e a pulsar com embaraço.

Se é de dia, vou indo passo a passo
Se é de noite, me estendo sobre o leito,
Para o mal incurável não há jeito,
É sem cura que eu vejo o meu fracasso.

Do parnaso não vejo o belo monte,
Minha estrela brilhante no horizonte
Me negou o seu raio de esperança,

Tudo triste em meu ser se manifesta,
Nesta vida cansada só me resta
As saudades do tempo de criança.


Poemas e Poesias sábado, 06 de novembro de 2021

A MANIA DO ANTIQUÁRIO (POEMA DO PERNAMBUCANO OLEGÁRIO MARIANO)

A MANIA DO ANTIQUÁRIO

Olegário Mariano

 

 

 

Gosta de trastes velhos o antiquário.

Tem um museu em. casa. A vida toda

Ficou sendo o feliz depositário

De tudo aquilo que passou de moda.

 

Enquanto gira o tempo e a vida roda,

Ele, a quem chamam de retardatário,

Vê na mania que a outros incomoda

A alegria de um gozo extraordinário.

 

Casou-se. Foi seu ultimo castigo.

Apezar da mulher ser bem bonita,

Ele contou sorrindo a certo amigo

 

O fim da derradeira transação:

—Procurei uma viuva... Era da escrita:

Gosto dos moveis de segunda mão...


Poemas e Poesias sexta, 05 de novembro de 2021

AS VELHAS ÁRVORES (POEMA DO CARIOCA OLAVO BILAC)

AS VELHAS ÁRVORES

Olavo Bilac

 

 

 

Olha estas velhas árvores, — mais belas,
Do que as árvores mais moças, mais amigas,
Tanto mais belas quanto mais antigas,
Vencedoras da idade e das procelas . . .

O homem, a fera e o inseto à sombra delas
Vivem livres de fomes e fadigas;
E em seus galhos abrigam-se as cantigas
E alegria das aves tagarelas . . .

Não choremos jamais a mocidade!
Envelheçamos rindo! envelheçamos
Como as árvores fortes envelhecem,

Na glória da alegria e da bondade
Agasalhando os pássaros nos ramos,
Dando sombra e consolo aos que padecem!


Poemas e Poesias quinta, 04 de novembro de 2021

NOITE (POEM DO PAULISTA MENOTTI DEL PICCHIA)

NOITE

Menotti Del Picchia

 

 

 

As casas fecham as pálpebras das janelas e dormem.
Todos os rumores são postos em surdina,
todas as luzes se apagam.

Há um grande aparato de câmara funerária
na paisagem do mundo.

Os homens ficam rígidos,
tomam a posição horizontal
e ensaiam o próprio cadáver.

Cada leito é a maquete de um túmulo.
Cada sono em ensaio de morte.

No cemitério da treva
tudo morre provisoriamente.


Poemas e Poesias quarta, 03 de novembro de 2021

VERSOS DIFÍCEIS (POEMA DO PERNAMBUCANO MEDEIROS E ALBUQUERQUE)

VERSOS DIFÍCEIS

Medeiros e Albuquerque 

 

 

Faço e desfaço... A Ideia mal domada
o cárcere da Forma foge e evita.
Breve, na folha tanta vez riscada
palavra alguma caberá escrita...

E terás tu, ó minha doce amada,
o decisivo nome da bendita
companheira formosa e delicada
a quem minh’alma tanto busca, aflita?

Não sei... Há muito a febre me consome
de achar a Forma e conhecer o nome
da que a meus dias reservou o fado.

E hei de ver, quando saiba, triunfante,
o verso bom, a verdadeira amante,
- a folha: cheia, - o coração: cansado!

 


Poemas e Poesias terça, 02 de novembro de 2021

ENVELHECER (POEMA DO GAÚCHO MÁRIO QUINTANA)

ENVELHECER

Mário Quintana

 

 

 

Antes, todos os caminhos iam.

Agora todos os caminhos vêm.

A casa é acolhedora, os livros poucos.

E eu mesmo preparo o chá para os fantasmas.


Poemas e Poesias segunda, 01 de novembro de 2021

O MEU DESEJO, POEMA DA MARANHENSE MARIA FIRMINA DO SREIS, VÍDEO COM SOCORRO LIRA

Maria Firmina dos Reis

 


Poemas e Poesias domingo, 31 de outubro de 2021

CÂNTICO DOS CÂNTICOS (POEM A DO PERNAMBUCANO MANUEL BANDEIRA)

CÂNTICO DOS CÂNTICOS

Manuel Bandeira

 

 

 

– Quem me busca a esta hora tardia?
– Alguém que trenas de desejo.
– Sou teu vale, zéfiro, e aguardo
Teu hálito... A noite é tão fria!
– Meu hálito não, meu bafejo,
Meu calor, meu túrgido dardo.

– Quando por mais assegurada
Contra os golpes de Amor me tinha,
Eis que irrompes por mim deiscente...
– Cântico! Púrpura! Alvorada!
– Eis que me entras profundamente
Como um deus em sua morada!
– Como a espada em sua bainha.


Poemas e Poesias sábado, 30 de outubro de 2021

MANSIDÃO (POEMA DO MATO-GROSSENSE MANOEL DE BARROS)

MANOEL DE BARROS

Mansidão

 

 

 

As casas dormiam na hora surda do meio-dia.
O corpo do homem penetrou sob árvores
Na longa quietude estendida da rua.
Tudo permaneceu sem um grito,
Um pedido de socorro sequer.
Ninguém soube se o coração vibrou.
Que sonho o acalenta ninguém adivinhou.
Ninguém sabe nada.
Não traz um lamento,
Nem marca dos pés no chão vai ficar.
Tão triste é a vida sem marca dos pés!
Tudo permaneceu sem um grito,
Um pedido de socorro sequer.
Ele passou sem calúnias
E é possível que sem corpos que o chamassem.
Ninguém soube se o coração vibrou
Porque tudo permaneceu sem fundo suspiro
No estranho momento das coisas paradas.


Poemas e Poesias sexta, 29 de outubro de 2021

EPITÁFIO DO MÉXICO (POEMA DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

EPITÁFIO DO MÉXICO

Machado de Assis

 

 

Dobra o joelho: — é um túmulo.
Embaixo amortalhado
Jaz o cadáver tépido
De um povo aniquilado;
A prece melancólica
Reza-lhe em torno à cruz.

Ante o universo atônito
Abriu-se a estranha liça,
Travou-se a luta férvida
Da força e da justiça;
Contra a justiça, ó século,
Venceu a espada e o obus.

Venceu a força indômita;
Mas a infeliz vencida
A mágoa, a dor, o ódio,
Na face envilecida
Cuspiu-lhe. E a eterna mácula
Seus louros murchará.

E quando a voz fatídica
Da santa liberdade
Vier em dias prósperos
Clamar à humanidade,
Então revivo o México
Da campa surgirá.


Poemas e Poesias quinta, 28 de outubro de 2021

GAROTA DO PARQUE (POEMA DO PERNAMBUCANO LUÍS TURIBA)

GAROTA DO PARQUE

Luís Turiba

 

 

 

Toda vez que estou

No parque

E você passa

No seu compasso

De garça

Todo o parque

Se disfarça

Em farta passarela

Tudo pira

Tudo paira

A tua espera

Do pedalar

Da sandália

Ao coração

Da donzela

Sopra o verde

Sopra o parque

Sopra o tempo

Sopra e late

Só pra ela

Toda vez que

Você parte

...já era...


Poemas e Poesias quarta, 27 de outubro de 2021

NATAL (POEMA DO CARIOCA LUÍS EDMUNDO)

NATAL

Luís Edmundo

 

 

 

Cala-se o mundo, há um luar de místicos palores;
O vento lembra uma harpa a tocar em surdina;
Brilha pela extensão do céu da Palestina
Num prenuncia feliz a estrela dos pastores.

A vida acorda e vem do cálice das flores
À alma do homem que sente um fulgor que o fascina;
A ovelha bala, o boi muge, o pastor se inclina...
Há um bálsamo por tudo a amenizar as dores.

Jesus nasceu, a fé que os corações ampara
Desce às almas buscando os íntimos refolhos,
Como os raios do sol numa lagoa clara.

Maria, porque vê Jesus pequeno e langue,
Põe um riso feliz na doçura dos olhos,
Que hão de chorar depois as lágrimas de sangue.

 


Poemas e Poesias terça, 26 de outubro de 2021

A MORTE DO POETA POEMA DO PORTUGUÊS JULIO DINIS)

A MORTE DO POETA

Júlio Dinis

 

 

 

(À memória de A. A. Soares de Passos)

Calou-se a lira! E a criação nos coros
De menos uma voz aos céus revoa!
Na imensa harpa, em que o universo entoa
Seus cânticos, de menos uma corda!
Que foi? que nota falta às harmonias?
Que foi? que mão deixou quebrar a lira?
O poeta morreu, o canto expira,
Cessam seus hinos do sepulcro à borda !

Morreu o teu cantor, ó Armamento! Teu sacerdote ardente, ó poesia!
Ó Deus, ó Pátria, a última agonia
Gelou a voz que hosanas vos sagrara!
Crente inspirado, os brados do entusiasmo
Não lhe esfriou dos homens a indiferença,
E a venenosa taça da descrença
Dos generosos lábios arrojara!

O poeta morreu! E o Sol e os astros Que ele cantou, e a abóbada celeste De lutuosas trevas se não veste;
E tu, ó Pátria, que ele amava tanto, Tu dormes inda esse gelado sono ?! Não te acorda o seu último gemido? Sente-lhe a morte, se não hás sentido De animação e glória o eterno canto

Mas não; os homens vêem pasmar o féretro, Vêem do sepulcro alevantar-se a lousa,
E, olhando a nobre fronte que repousa,
— Quem é ? perguntam com cruel frieza.
— É um poeta, lhes respondem poucos. Um poeta! palavra incompreensível!
Por ele a multidão passa insensível,
E a campa desampara com presteza.

E um poeta morreu! listas palavras
Nada vos dizem, povos, que as ouvistes?
Não as há mais solenes nem mais tristes.
Oh! nelas reflecti um só momento!
Não sabeis o que diz a morte do homem
Que se encaminha à campa que lhe ergueram
Seguido apenas dos que ainda veneram
O culto da poesia e pensamento?

Não ouvis esse dobre, que o lamenta? É como a voz do século, que brada :
— «Chorai, ó multidões, que na cruzada
Da civilização vos alistastes,
Chorai, um dos soldados que hà caído,
Deus lhe dera a bandeira que vos guia,
O estandarte da idéia, a poesia;
Mas vós na heróica empresa o abandonastes !

«Lamenta, ó liberdade, o teu apóstolo! Amor, o coração que te entendia!
Tu, Pátria, o filho que melhor podia
Entre as nações da terra engrandecer-te!
Religião, ai! chora o sacerdote,
Que, entoando no templo os sacros hinos,
Chamara os povos aos altares divinos
E cultos sem iguais pudera erguer-te!»

E tu, 0 mundo, o vês quase indiferente! Curva a cabeça ante essa campa aberta, Ajoelha-te, e a fronte descoberta,
Venera as cinzas que deixou na Terra; Os restos são da mais violenta chama, Que o fogo do Céu no mundo ateia;
A chama ardente de inspirada idéia, Fogo que a mente do poeta encerra I

Verte, oh! verte uma lágrima na tumba; Uma lágrima só. Outros desejam
Soberbos mausoléus onde se vejam Fulgir os nomes seus em letras d’ouro; Ele não. Flores e lágrimas, eis tudo!
Eis o diadema a que o poeta aspira; Porque lho negas? Que paixão te inspirar Delas fizeste, ó mundo, o teu tesouro?

Ai, não ; umas e outras as desprezas: As flores procuram as campinas,
Porque a turba, ao passar, calca as boninas, E o sopro das cidades as murchava.
As lágrimas, as flores do sentimento, Não as diviso já nos olhos do homem, Ou das paixões as lavas as consomem,
Ou morto é o sentimento que as gerava.

Fazes bem em passar, mundo, se ignoras
Desta cena a solene majestade,
Impassível ficar era impiedade.
Parte, vai; a indiferença era um insulto.
Oh! mil vezes mais grato o isolamento…
Mas não, o isolamento não existe:
Junto da campa se reúne triste
Longo cortejo de lutuoso vulto.

Ei-los; do vasto templo se avizinham, Trazem no rosto a dor, que os consome. Esses veneram do poeta o nome,
Do féretro ao passar, curvam a fronte, Respeitai esse pranto, que é sentido; Longe, indiferentes, que o lugar é santo! Os que entenderam seu sublime canto, Saúdam-no ao sumir-se no horizonte I

Silêncio! A Pátria do seu sono acorda! Sono talvez, que precursor da morte, Do filho só lamenta a triste sorte,
3eme saudosa com magoado acento! Ai, nos seus dias de passada glória,
De mãe o desespero a voz lhe erguera, E, em seu clamor, às praias estendera
Das nações mais longínquas o alto alento.

Mas hoje, já de forças exaurida,
É fraca a sua voz ante essa tumba;
Do peito vem, porém já não retumba
Nos ecos das nações mais poderosas.
Apenas sua irmã, a mais vizinha,
Que quase a mesma linguagem fala,
Compassiva parece lamentá-la,
Ouvindo suas queixas dolorosas.

Poeta, dorme pois: a tua campa
Não ficará sem lágrimas nem flores,
As liras soltam fúnebres clamores
E os ventos reproduzem suas queixas.
Dorme, dorme, poeta, que teu sono
A turba inquietaria com seus passos;
Mas qual o infante nos maternos braços,
Dorme ao som dessas lânguidas endeixas.

Dorme, dorme em sossego… mas, silêncio! Para que solto a voz? Cala-te ó lira!
Se o gênio da poesia não te inspira, Para que o seu cultor lamentas triste? Diante da mudez deste sepulcro
Teus ais de dor, ó coração, suspende;
Vê em silêncio o Sol, que ao ocaso pende
Como em silêncio no zénite o viste.


Poemas e Poesias segunda, 25 de outubro de 2021

O CAVALO EM CHAMAS (POEMA DO ALAGOANO JORGE DE LIMA)

O CAVALO EM CHAMAS

Jorge de Lima

 

 

 

I

Era um cavalo todo feito em chamas
alastrado de insânias esbraseadas;
pelas tardes sem tempo ele surgia
e lia a mesma página que eu lia.

Depois lambia os signos e assoprava
a luz intermitente, destronada,
então a escuridão cobria o rei
Nabucodonosor que eu ressonhei.

Bem se sabia que ele não sabia
a lembrança do sonho subsistido
e transformado em musas sublevadas.

Bem se sabia: a noite que o cobria
era a insânia do rei já transformado
no cavalo de fogo que o seguia.


(p. 82)






II

Era um cavalo todo feito em lavas
recoberto de brasas e de espinhos.
Pelas tardes amenas ele vinha
e lia o mesmo livro que eu folheava.

Depois lambia a página, e apagava
a memória dos versos mais doridos;
então a escuridão cobria o livro,
e o cavalo de fogo se encantava.

Bem se sabia que ele ainda ardia
na salsugem do livro subsistido
e transformado em vagas sublevadas.

Bem se sabia: o livro que ele lia
era a loucura do homem agoniado
em que o íncubo cavalo se nutria.


(p. 83)





III

Não a vaga palavra, corrutela
vã, corrompida folha degradada,
de raiz deformada, abaixo dela,
e de vermes, além, sobre a ramada;

mas, a que é a própria flor arrrebatada
pela fúria dos ventos: mas aquela
cujo pólen procura a chama iriada,
— flor de fogo a queimar-se como vela:

mas aquela dos sopros afligida,
mas ardente, mas lava, mas inferno,
mas céu, mas sempre extremos. Esta sim,

esta é que é a flor das flores mais ardida,
esta veio do início para o eterno,
para a árvore da vida que há em mim.


Poemas e Poesias domingo, 24 de outubro de 2021

O ENGENHEIRO (POEMA DO PERNAMBUCANO JOÃO CABRAL DE MELO NETO)

O ENGENHEIRO

João Cabral de Melo Neto

 

 

 

A Antônio B. Baltar

A luz, o sol, o ar livre
envolvem o sonho do engenheiro.
O engenheiro sonha coisas claras:
superfícies, tênis, um copo de água.

O lápis, o esquadro, o papel;
o desenho, o projeto, o número:
o engenheiro pensa o mundo justo,
mundo que nenhum véu encobre.

(Em certas tardes nós subíamos
ao edifício. A cidade diária,
como um jornal que todos liam,
ganhava um pulmão de cimento e vidro).

A água, o vento, a claridade
de um lado o rio, no alto as nuvens,
situavam na natureza o edifício
crescendo de suas forças simples.


Poemas e Poesias sábado, 23 de outubro de 2021

CANTO INTEGRAL DE AMOR (POEMA DO ACRIANO J. G. DE ARAÚJO JORGE)

CANTO INTEGRAL DE AMOR

J. G. de Araújo Jorge

 

 

 

Cegos os olhos, continuarias de qualquer forma,. presente,

surdos os ouvidos, e tua voz seria ainda a minha música,

e eu mudo, ainda assim, seriam tuas as minhas palavras.

 

Sem pés, te alcançaria a arrastar-me como as águas,

sem braços, te envolveria invisível, como a aragem,

sem sentidos, te sentiria recolhida ao coração como

o rumor do oceano nas grutas e nas conchas.

 

Sem coração, circularias como a cor em meu sangue,

e sem corpo, estarias nas formas do pensamento

como o perfume no ar.

 

E eu morto, ainda assim por certo te encontrarias

no arbusto que tivesse suas raizes em meu ser,

- e a flor que desabrochasse murmuraria teu nome.


Poemas e Poesias sexta, 22 de outubro de 2021

DO DESEJO - 7 - XVI (DEVO VIVER ENTRE OS HOMENS) AMAVISSE (POEMA DA PAULISTA HILDA HILST)

DO DESEJO - 7 - XVI (DEVO VIVER ENTRE OS HOMENS) AMAVISSE

Hilda Hilst

 

 

Devo viver entre os homens
Se sou mais pelo, mais dor
Menos garra e menos carne humana?
E não tendo armadura
E tendo quase muito de cordeiro
E quase nada de mão que empunha a faca
Devo continuar a caminhada?

Devo continuar a te dizer palavras
Se a poesia apodrece
Entre as ruínas da Casa que é a tua alma?
Ai, Luz que permanece no meu corpo e cara:
Como foi que desaprendi de ser humana?


Poemas e Poesias quinta, 21 de outubro de 2021

A ODISSEIA DO VERSO (POEMA DO SERGIPANO HERMES FONTES)

A ODISSEIA DO VERSO

Hermes Fontes

 

 

 

Vieram da fonte sensitiva e casta
do Coração: filtraram-se em requinte,
nos centros cerebrais: são versos… basta.
É estrofá-los em luz, por conseguinte.

É escrevê-los em fogo, em tom que os pinte,
voz que os declame… E a língua mal se arrasta!
E a pena extrai-lhes a expressão seguinte
que os fixa nos papéis da minha pasta…

Leva-mos o impressor, a publicá-los.
Lá se vão os meus versos… E eu sucumbo,
ao despedir-me da alma, entre ais e abalos…

E, ante a máquina, agora, o olhar descerro:
— vejo o meu Sonho transformado em chumbo!…
— vejo a minha Arte reduzida a ferro!…


Poemas e Poesias quarta, 20 de outubro de 2021

BRANCA DE NEVE (POEMA DO PAULISTA GUILHERME DE ALMEIDA)

BRANCA DE NEVE

Guilherme de Almeida 

 

 

 

Eu te guardo no fundo da memória,
como guardo, num livro, aquela flor
que marca a tua delicada história,
Branca de Neve, meu primeiro amor.

Amei-te... E amei-te, figurinha aluada,
porque nunca exististe e porque sei
que o sonho é tudo — e tudo mais é nada...
E és o primeiro sonho que sonhei.

Hoje ainda beijo, comovido e tonto,
a velha mão que um dia me mostrou
aquela estampa do teu lindo conto,
princesinha encantada de Perrault!

Que fui eu afinal? — Um pobre louco
que andou, na vida, procurando em vão
sua Branca de Neve que era um pouco
do sonho e um pouco de recordação...

Procurei-a. Meus olhos esperaram
vê-la passar com flores e galões,
tal qual passaste quando te levaram,
no ataúde de vidro, os sete anões.

E encontrei a Saudade: ia alva e leve
na urna do passado que, afinal,
é como o teu caixão, Branca de Neve:
é um ataúde todo de cristal.

E parecia morta: mas vivia.
Corado do meu beijo que a roçou,
despertei-a do sono em que dormia,
como o Príncipe Azul te despertou.

Sinto-me agora mais criança ainda
do que naqueles tempos em que li
a tua história mentirosa e linda;
pois quase chego a acreditar em ti.

É que o meu caso (estranha extravagância!)
é a tua história sem tirar nem pôr...
E esta velhice é uma segunda infância,
Branca de Neve, meu primeiro amor.

 


Poemas e Poesias terça, 19 de outubro de 2021

CANÇÃO DE BATALHA (POEMA DO PORTUGUÊS GUERRA JUNQUEIRO)

CANÇÃO DE BATALHA

Guerra Junqueiro

 

 

Que durmam, muito embora, os pálidos amantes,
Que andaram contemplando a Lua branca e fria...
Levantai-vos, heróis, e despertai, gigantes!
Já canta pelo azul sereno a cotovia
E já rasga o arado as terras fumegantes...

Entra-nos pelo peito em borbotões joviais
Este sangue de luz que a madrugada entorna!
Poetas, que somos nós? Ferreiros d'arsenais;
E bater, é bater com alma na bigorna
As estrofes de bronze, as lanças e os punhais.

Acendei a fornalha enorme — a Inspiração.
Dai-lhe lenha — A Verdade, a Justiça, o Direito —
E harmonia e pureza, e febre, e indignação;
E p'ra que a labareda irrompa, abri o peito
E atirai ao braseiro, ardendo, o coração!

Há-de-nos devorar, talvez, o incêndio; embora!
O poeta é como o Sol: o fogo que ele encerra
É quem espalha a luz nessa amplidão sonora...
Queimemo-nos a nós, iluminando a Terra!
Somos lava, e a lava é quem produz a aurora!


Poemas e Poesias segunda, 18 de outubro de 2021

POIS AMOR ME QUER MATAR (POEMA DO PORTUGUÊS GIL VICENTE)

POIS AMOR ME QUER MATAR

Gil Vicente

 

 

 

Pois amor me quer matar
com dor, tristura e cuidado,
eu me conto por finado,
e quero-me soterrar.

Fui tomar üa pendença
com üa cruel senhora,
e agora
acho que foi pestelença.
Chore quem quiser chorar;
saibam já que sou finado
sem finar,
e quero ser soterrado.


Poemas e Poesias domingo, 17 de outubro de 2021

À NOITE (POEMA DA PAULISTA FRANCISCA JÚLIA)

À NOITE

Francisca Júlia

 

 

 

Eis-me a pensar, enquanto a noite envolve a terra,
Olhos fitos no vácuo, a amiga pena em pouso,
Eis-me, pois a pensar... De antro em antro, de serra
Em serra, ecoa, longo, um requiem doloroso.

No alto uma estrela triste as pálpebra descerra,
Lançando, noite dentro, o claro olhar piedoso.
A alma das sombras dorme; e pelos ares erra
Um mórbido langor de calma e de repouso...

Em noite assim, de repouso e de calma,
É que a alma vive e a dor exulta, ambas unidas,
A alma cheia de dor, a dor cheia de alma...

É que a alma se abandona ao sabor dos enganos,
Antegozando já quimeras pressentidas
Que mais tarde hão de vir com o decorrer dos anos.


Poemas e Poesias sábado, 16 de outubro de 2021

AMBICIOSA (POEMA DA PORTUGUESA FLORBELA ESPANCA)

AMBICIOSA

Florbela Espanca

 

 

 

Para aqueles fantasmas que passaram,
Vagabundos a quem jurei amar,
Nunca os meus braços lânguidos traçaram
O voo dum gesto para os alcançar...

Se as minhas mãos em garra se cravaram
Sobre um amor em sangue a palpitar...
- Quantas panteras bárbaras mataram
Só pelo raro gosto de matar!

Minha alma é como a pedra funerária
Erguida na montanha solitária
Interrogando a vibração dos céus!

O amor dum homem? - Terra tão pisada,
Gota de chuva ao vento baloiçada...
Um homem? - Quando eu sonho o amor de um Deus!...


Poemas e Poesias sexta, 15 de outubro de 2021

O PRISIONEIRO (POEMA DO MARANHENSE FERREIRA GULLAR)

O PRISIONEIRO

Ferreira Gullar

 

 

 

Ouço as árvores
lá fora
sob as nuvens

Ouço vozes
risos
uma porta que bate
É de tarde
(com seus claros barulhos)
como há vinte anos em São Luís
como há vinte dias em Ipanema

Como amanhã
um homem livre em sua casa


Poemas e Poesias quinta, 14 de outubro de 2021

CHOVE. É DIA DE NATAL. (POEMA DO PORTUGUÊS FERNANDO PESSOA

CHOVE. É DIA DE NATAL.

Fernando Pessoa

 

 

 

Chove. É dia de Natal.

Lá para o Norte é melhor:

Há a neve que faz mal.

E o frio que ainda é pior.

 

E toda a gente é contente

Porque é dia de o ficar.

Chove no Natal presente.

Antes isso que nevar.

 

Pois apesar de ser esse

O Natal da convenção,

Quando o corpo me arrefece

Tenho o frio e Natal não.

 

Deixo sentir a quem quadra

E o Natal a quem o fez,

Pois se escrevo ainda outra quadra

Fico gelado dos pés.


Poemas e Poesias quarta, 13 de outubro de 2021

O AMOR NO COLO (POEMA DO GAÚCHO FABRÍCIO CARPINEJAR)

O AMOR NO COLO

Fabrício Carpinejar

 

 

A dor não pede compreensão, pede respeito. Não abandonar a cadeira, ficar sentado na posição em que ela é mais aguda.

Vejo homens que não têm coragem de terminar o relacionamento. Que não esclarecem que acabou. Que deixam que os outros entendam o que desejam entender. Que preferem fugir do barraco e do abraço esmurrado. Saem de mansinho, explicando que é melhor assim: não falar nada, não explicar, acontece com todo mundo.

Encostam a porta de sua casa (não trancam) e partem para outra vida.

Não é melhor assim. Não tem como abafar os ruídos do choro. O corpo não é um travesseiro. Seca com os soluços.

Não é melhor assim. Haverá gritos, disputa, danos. É como beber um remédio, sem empurrar a colher para longe ou moldar cara feia. É engolir o gosto ruim da boca, agüentar o desgosto da falta do beijo.

Será idiota recitar Vinicius de Moraes: "que seja infinito enquanto dure". A despedida não é lugar para poesia.

Haverá uma estranha compaixão pelo passado, a língua recolhendo as lágrimas, o rosto pelo avesso. Haverá sua mulher batendo em seu peito, perguntando: "Por que fez isso comigo?"

Haverá a indignação como última esperança.

Haverá a hesitação entre consolar e brigar, entre devolver o corte e amparar.

Vejo homens que somente encontram força para seduzir uma mulher, não para se distanciar dela.

Para iniciar uma história, não têm medo, não têm receio de falar.

Para encerrar, são evasivos, oblíquos, falsos. Mandam mensageiros.

Não recolhem seus pertences na hora. Voltarão um novo dia para buscar suas coisas.

Não toleram resolver o desespero e datar as lembranças. Guardam a risada histérica para o domingo longe dali.

Mas estar ali é o que o homem precisa. Não virar as costas. Fechar uma história é manter a dignidade de um rosto levantado, ouvindo o que não se quer escutar. Espantado com o que se tornou para aquela mulher que amava. Porque aquilo que ela diz também é verdade. Mesmo que seja desonesto.

Desgraçadamente, há mais desertores do que homens no mundo.

Deveriam olhar fora de si. Observar, por exemplo, a dor de uma mãe que perde seu filho no parto.

O médico colocará o filho morto no colo materno. É cruel e - ao mesmo tempo - necessário. Para que compreenda que ele morreu. Para que ela o veja e desista de procurá-lo. Para que ela perceba que os nove meses não foram invenção, que a gestação não foi loucura. Que o pequeno realmente existiu, que as contrações realmente existiram, que ela tentou trazê-lo à tona. Que possa se afastar da promessa de uma vida, imaginar seu cheiro e batizar seu rosto por um instante.

Descobrir a insuportável e delicada memória que teve um fim, não um final feliz. Ainda que a dor arrebente, ainda é melhor assim.


Poemas e Poesias terça, 12 de outubro de 2021

CRISTO (POEMA DO FLUMINENSE EUCLIDES DA CUNHA)

CRISTO

Euclides da Cunha

 

 

 

A Filinto d'Almeida

 

Era uma idade atroz... forte e grandiosa.

Levantando altivíssima a alterosa

E fulgurante coma

Nas ruínas das nações se erguia Roma...

Trágica e má – das raças quebradas,

Das velhas raças de remota história,

Afogando a existência, a força e a glória

– Num dilúvio flamívomo de espadas! –

Não havia aplacá-la, nem dos perros

A queixa vil, nem dos heróis nos ferros;

Embalde o pranto acerbo

Sufocando, Mitríades, soberbo,

Se erguera na Ásia aos rígidos embates

De férvidas paixões para, possante,

Lançar um trono no bulcão troante

Do torvelinho horrível dos combates!

Tombara Filopoeme _ altivo o aspeito,

Concentrando no velho e frio peito

Todo o vigor guerreiro,

Todo o heroísmo de um país inteiro...

– E o que passou então foi sublimado –

A Grécia, que era morta, morta e escrava,

Transmudou-se num túmulo – heróica e brava –

Para guardar seu último soldado...

No Egito, o horror dos dramas lutuosos...

Rotos, sombrios, pávidos, raivosos,

Os últimos heróis

Sofriam pela pátria... oh! dor atroz –

Oh! dor fatal que o coração adstringes!

E passavam, cingindo as velhas clâmides,

– Entre a sombra funérea das pirâmides

E o olhar petrificado das esfinges!

A Ibéria exangue – nem sequer o insano

Louco gemer do eterno amante – o Oceano

Ouvia, lhe atirando às plantas frias

Grandes canções – vestidas de ardentias...

Amante imenso, de um amor profundo,

Que mais tarde, grandioso, para erguê-la,

– Não podendo engastá-la numa estrela –

Lançou-lhe aos pés – um mundo!

Nos corações as recalcadas penas

Doíam sem um só gemido... apenas

Numa loucura brava.

O Parta palmo a palmo recuava;

No terreno sagrado de seus pais;

Caía – como o raio – fulminando,

E morria – as espadas agitando

Como sabem morrer os imortais!

Mas de onde vinha esse fatal domínio?

Lançai à história o olhar. Vede:

Um triclínio.

Das taças arrebenta

Formidolosa a embriaguez sangrenta...

Um truão se ergue: em seu olhar cintila

A febre, às vozes doces de um saltério,

Ébrio e trôpego dança... Ei-lo Tibério...

–Tibério cambaleia – e o mundo oscila!

Foi nessa idade atroz e má, repleta

De crimes, que Jesus, incruento atleta –

Ergueu como uma aurora,

Por entre a multidão, a fronte loura...

E nova vida palpitou na terra;

Vacilaram os ferros sanguinários

Nas manoplas dos rudes legionários;

– Em frente à paz estremeceu – a guerra...

Dissolveram-se em prantos os ressábios

Das concentradas dores, e nos lábios

Sublime, pairou esse

Bafejo ardente da nossa alma... a prece...

E livre dessas noites que se somem

Ante os fulgores da razão de um justo,

O mundo inteiro se soerguendo a custo,

Respirava p'la boca de um só homem!

Da antiga idade, os deuses combalidos

Oscilaram, quebrados, derruídos,

Ante o clarão brilhante

Daquela consciência rutilante...

E, cobardes, num círculo de lanças,

Cheios de um grande espanto, vacilaram

Os déspotas, torvados... e recuaram

Ante um homem cercado de crianças...

E quando ele caiu... o mundo antigo,

O seu ingrato e trágico inimigo,

– Alucinado e insano _

Deslumbrou-se ante um quadro sobre-humano:

Aureolava-o ignota claridade...

E aquele morto... frio, macerado,

Tendo no lábio um riso ensanguentado,

Na espádua roxa – erguia a Humanidade...

 


Poemas e Poesias segunda, 11 de outubro de 2021

ROVAS HUMORÍSTICAS - 11 - (POEMA DO PARANAENSE ENO TEODORO WANKE)

TROVA HUMORÍSICA - 11

Eno Teodoro Wanke

 

A dívida é aborrecida

Pois, seja pequena ou grande

Quanto mais é contraída

Tanto mais ela se expande

 


Poemas e Poesias domingo, 10 de outubro de 2021

A VIDA DE O BARCO (POEMA DO CARIOCA DOM PEDRO II)

A VIDA E O BARCO

Dom Pedro II

 

 

 

Andar e mais andar é a vida a bordo;
Mal estudo, e apenas eu vou lendo;
A noite com a música entretendo;
Deito-me cedo, e mais cedo acordo.

Saudosíssimo a pátria eu recordo,
E, pra consolo versos lhe fazendo,
Desenho terras só aquela vendo,
E para não chorar os lábios mordo.

Enfim há de chegar, eu bem o sei,
Que o Brasil eu reveja jubiloso;
E, se outrora eu servi-lo só pensei,

Muito mais forte e muito mais zeloso,
Para ainda mais servi-lo, voltarei
Té que nele encontre o último repouso.

Bordo do Gironde, 14 de Julho de 1887.

 


Poemas e Poesias sábado, 09 de outubro de 2021

ENTRE O CÉU E O ABISMO (POEMA DO PIAUIENSE DA COSTA E SILVA)

ENTRE O CÉU E O ABISMO

Da Costa e Silva

 

 

 

A minha vida é um abismo
De dúvida e pessimismo,
Quando ouço o meu coração.

Mas se ouço o meu pensamento,
É também um firmamento
De fé e resignação.

Por isso, entre o céu e o abismo, 
Com as nuvens do Cepticismo, 
Meus dias correndo vão...


Poemas e Poesias sexta, 08 de outubro de 2021

RENASCIMENTO (POEMA DO CATARINENSE CRUZ E SOUSA)

RENASCIMENTO

Cruz e Sousa

 

 

 

A Alma não fica inteiramente morta!
Vagas Resurreições do sentimento
Abrem já, de vagar, porta por porta,
Os palacios reaes do Encantamento!

5Morrer! Findar! Desfallecer! que importa
Para o secréto e fundo movimento
Que a alma transporta, sublimisa e exhórta
Ao grande Bem do grande Pensamento!


Chammas novas e bellas vão raiando,
10Vão se accendendo os limpidos altares
E as almas vão sorrindo e vão orando...

E pela curva dos longinquos ares
Eil-as que vem, como o imprevisto bando
Dos albatrózes dos estranhos mares...


Poemas e Poesias quinta, 07 de outubro de 2021

MINHA INFÂNCIA (POEMA DA GOIANA CORA CORALINA) VÍDEO


Poemas e Poesias quarta, 06 de outubro de 2021

SONETO VIII - ESTE É O RIO, A MONTANHA É ESTA (POEMA DO CARIOCA CLÁUDIO MANUEL DA COSTA)

SONETO VIII 

ESTE É O RIO, ESTA É A MONTANHA

Cláudio Manuel da Costa

 

 

 



Este é o rio, a montanha é esta, 
Estes os troncos, estes os rochedos; 
São estes inda os mesmos arvoredos; 
Esta é a mesma rústica floresta.

Tudo cheio de horror se manifesta, 
Rio, montanha, troncos, e penedos; 
Que de amor nos suavíssimos enredos 
Foi cena alegre, e urna é já funesta.

Oh quão lembrado estou de haver subido 
Aquele monte, e as vezes, que baixando 
Deixei do pranto o vale umedecido!

Tudo me está a memória retratando;
Que da mesma saudade o infame ruído
Vem as mortas espécies despertando.


Poemas e Poesias terça, 05 de outubro de 2021

RIFA-SE UM CORAÇÃO (POEMA DA UCRANIANA-BRASILEIRA CLARICE LISPECTOR)

RIFA-SE UM CORAÇÃO

Clarice Lispector

 

 

 

Rifa-se um coração
Rifa-se um coração quase novo.
Um coração idealista.
Um coração como poucos.
Um coração à moda antiga.
Um coração moleque que insiste
em pregar peças no seu usuário.
Rifa-se um coração que na realidade está um
pouco usado, meio calejado, muito machucado
e que teima em alimentar sonhos e, cultivar ilusões.
Um pouco inconseqüente que nunca desiste
de acreditar nas pessoas.
Um leviano e precipitado coração
que acha que Tim Maia
estava certo quando escreveu...
"...não quero dinheiro, eu quero amor sincero,
é isso que eu espero...".
Um idealista... Um verdadeiro sonhador...
Rifa-se um coração que nunca aprende.
Que não endurece, e mantém sempre viva a
esperança de ser feliz, sendo simples e natural.
Um coração insensato que comanda o racional
sendo louco o suficiente para se apaixonar.
Um furioso suicida que vive procurando
relações e emoções verdadeiras.
Rifa-se um coração que insiste em cometer
sempre os mesmos erros.
Esse coração que erra, briga, se expõe.
Perde o juízo por completo em nome
de causas e paixões.
Sai do sério e, às vezes revê suas posições
arrependido de palavras e gestos.
Este coração tantas vezes incompreendido.
Tantas vezes provocado.
Tantas vezes impulsivo.
Rifa-se este desequilibrado emocional
que abre sorrisos tão largos que quase dá
pra engolir as orelhas, mas que
também arranca lágrimas
e faz murchar o rosto.
Um coração para ser alugado,
ou mesmo utilizado
por quem gosta de emoções fortes.
Um órgão abestado indicado apenas para
quem quer viver intensamente
contra indicado para os que apenas pretendem
passar pela vida matando o tempo,
defendendo-se das emoções.
Rifa-se um coração tão inocente
que se mostra sem armaduras
e deixa louco o seu usuário.
Um coração que quando parar de bater
ouvirá o seu usuário dizer
para São Pedro na hora da prestação de contas:
"O Senhor pode conferir. Eu fiz tudo certo,
só errei quando coloquei sentimento.
Só fiz bobagens e me dei mal
quando ouvi este louco coração de criança
que insiste em não endurecer e,
se recusa a envelhecer"
Rifa-se um coração, ou mesmo troca-se por
outro que tenha um pouco mais de juízo.
Um órgão mais fiel ao seu usuário.
Um amigo do peito que não maltrate
tanto o ser que o abriga.
Um coração que não seja tão inconseqüente.
Rifa-se um coração cego, surdo e mudo,
mas que incomoda um bocado.
Um verdadeiro caçador de aventuras que ainda
não foi adotado, provavelmente, por se recusar
a cultivar ares selvagens ou racionais,
por não querer perder o estilo.
Oferece-se um coração vadio,
sem raça, sem pedigree.
Um simples coração humano.
Um impulsivo membro de comportamento
até meio ultrapassado.
Um modelo cheio de defeitos que,
mesmo estando fora do mercado,
faz questão de não se modernizar,
mas vez por outra,
constrange o corpo que o domina.
Um velho coração que convence
seu usuário a publicar seus segredos
e a ter a petulância de se aventurar como poeta.


Poemas e Poesias segunda, 04 de outubro de 2021

DE TARDE (POEMA DO PORTUGUÊS CESÁRIO VERDE)

DE TARDE

Cesário Verde

 

 

 

Naquele «pic-nic» de burguesas,
Houve uma coisa simplesmente bela,
E que, sem ter história nem grandezas,
Em todo o caso dava uma aguarela.

Foi quando tu, descendo do burrico,
Foste colher, sem imposturas tolas,
A um granzoal azul de grão-de-bico
Um ramalhete rubro de papoulas.

Pouco depois, em cima duns penhascos,
Nós acampámos, inda o sol se via;
E houve talhadas de melão, damascos,
E pão de ló molhado em malvasia.

Mas, todo púrpuro, a sair da renda
Dos teus dois seios como duas rolas,
Era o supremo encanto da merenda
O ramalhete rubro das papoulas.


Poemas e Poesias domingo, 03 de outubro de 2021

LUA ADVERSA (POEMA DA CARIOCA CECÍLIA MEIRELES)

LUA ADVERSA

Cecília Meireles

 

 

 

Tenho fases, como a lua,
Fases de andar escondida,
fases de vir para a rua…
Perdição da minha vida!
Perdição da vida minha!
Tenho fases de ser tua,
tenho outras de ser sozinha.

Fases que vão e que vêm,
no secreto calendário
que um astrólogo arbitrário
inventou para meu uso.
E roda a melancolia
seu interminável fuso!

Não me encontro com ninguém
(tenho fases, como a lua…).
No dia de alguém ser meu
não é dia de eu ser sua…
E, quando chega esse dia,
o outro desapareceu…


Poemas e Poesias sexta, 01 de outubro de 2021

QUEM DÁ AOS POBRES, EMPRESTA A DEUS (POEMA DO BAIANO CASRO ALVES)

QUEM DÁ AOS POBRES, EMPRESTA A DEUS

Castro Alves

 

 

 

 

Eu, que a pobreza de meus pobres cantos
Dei aos heróes — aos miseraveis grandes, —
Eu, que sou cégo, — mas só peço luzes...
Que sou pequeno, — mas só fito os Andes...
Canto nest′hora, como o bardo antigo
Das priscas éras, que bem longe vão,
O grande nada dos heróes que dormem,
Do vasto pampa no funereo chão...

 

Duas grandezas neste instante cruzam-se!
Duas realezas hoje aqui se abraçam!...
Uma — é um livro laureado em luzes...
Outra — uma espada, onde os laureis se enlaçam.
Nem córa o livro de hombrear co′o sabre...
Nem córa o sabre de chamal-o irmão...
Quando em loureiros se biparte o gladio,
Do vasto pampa no funereo chão.

E foram grandes teus heróes, ó patria,
— Mulher fecunda, que não crêa escravos, —
Que ao trom de guerra soluçaste aos filhos:
«Partí — soldados, mas voltai-me — bravos!»
E qual Moema desgrenhada, altiva,
Eis tua prole, que se arroja então,
De um mar de glorias apartando as vagas,
Do vasto pampa no funereo chão.

E esses Leandros do Hellesponto novo
Se resvalaram — foi no chão da historia..
Se tropeçaram — foi na eternidade...
Se naufragaram — foi no mar da gloria...
E hoje o que resta dos heróes gigantes?..
Aqui — os filhos que vos pedem pão...
Além — a ossada, que branquêa a lua,
Do vasto pampa no funereo chão.

Ai! quantas vezes a criança loura
Seu pae procura, pequenina e núa,

E vai brincando co′o vetusto sabre,
Sentar-se á espera no portal da rua...
Misera mãe, sobre teu peito aquece
Esta avesinha que não tem mais pão!...
Seu pae descansa — fulminado cedro —
Do vasto pampa no funereo chão.

Mas já que as aguias lá no sul tombaram
E os filhos d′aguias o Poder esquece...
É grande, é nobre, é gigantesco, é santo!...
Lançai — a esmola, e colhereis — a prece!..
Oh! dai a esmola... que do infante lindo
Por entre os dedos da pequena mão,
Ella transborda... e vai cahir nas tumbas,
Do vasto pampa no funereo chão.

Ha duas cousas neste mundo santas:
— O rir do infante, — o descansar do morto...
O berço — é a barca, que encalhou na vida,
A cova — é a barca do sidereo porto...
E vós dissestes para o berço — Avante! —
Emquanto os nautas que ao Eterno vão,
Os ossos deixam, qual na praia as ancoras,
Do vasto pampa no funereo chão.

É santo o laço em qu′hoje aqui s′estreitam
De heroicos troncos — os rebentos novos! —
É que são gemeos dos heróes os filhos
Inda que filhos de diversos povos!

Sim! me parece que n′est′hora augusta
Os mortos saltam da feral mansão...
E um «bravo!» altivo de além-mar partindo,
Rola do pampa no funereo chão!...


Poemas e Poesias quinta, 30 de setembro de 2021

PALAVRAS AO MAR (POEMA DO FLUMINENSE CASIMIRO DE ABREU)

PALAVRAS AO MAR

Casimiro de Abreu

 

 

 

Se eu fosse amado!…
Se um rosto virgem
Doce vertigem
Me desse n’alma
Turbando a calma
Que me enlanguece!…
Oh! se eu pudesse
Hoje – sequer –
Fartar desejos
Nos longos beijos
Duma mulher!…

Se o peito morto
Doce conforto
Sentisse agora
Na sua dor;
Talvez nest’hora
Viver quisera
Na primavera
De casto amor!
Então minh’alma,
Turbada a calma,
– Harpa vibrada
Por mão de fada –
Como a calhandra
Saúda o dia,
Em meigos cantos
Se exalaria
Na melodia
Dos sonhos meus;
E louca e terna
Nessa vertigem
Amara a virgem
Cantando a Deus!

 


Poemas e Poesias quarta, 29 de setembro de 2021

O NAVEGADOR HOLANDÊS (POEMA DO PERNAMBUCANO CARLOS PENA FILHO)

O NAVEGAOR HOLANDÊS

Carlos Pena Filho

 

 

 

Outrora o tempo era intacto
em seus braços prolongados
e às suas línguas de areia,
virgens de pés e barcaças,
virgens de olhos e lunetas
(até de imaginação)
chegou, tranquilo e exato,
o argonauta do improviso,
trazendo o sol na cabeça
e o mar do fundo dos olhos,
um gosto de azul na boca
sob a audácia dos bigodes
flamengos e retorcidos.
Mas, depois de algumas bulhas
com o português cristão
e alguns segredos de amor
com as donzelas de então,
escorraçado voltou,
deixando-nos essas coisas
que a sua presença atestam:
algumas mulheres prenhas
destes Wanderleys que restam.

 

Esse tempo, há muito gasto,
resiste apenas, agora,
em feriados de escola
e em frias e sonolentas
ordens do dia, em quartéis
onde fofos capitães,
esverdeados por fora,
ganham a vida e as estrelas,
o dia, o mês e o ano
à custa do amarelinho
e alegre ‘porque me ufano’.

 

 


Poemas e Poesias terça, 28 de setembro de 2021

AMOR (POEMA DO MINEIRO CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE)

AMOR

Carlos Drummond de Andrade

 

 

 

O ser busca o outro ser, e ao conhecê-lo
acha a razão de ser, já dividido.
São dois em um: amor, sublime selo
que à vida imprime cor, graça e sentido.

"Amor" - eu disse - e floriu uma rosa
embalsamando a tarde melodiosa
no canto mais oculto do jardim,
mas seu perfume não chegou a mim.


Poemas e Poesias segunda, 27 de setembro de 2021

SONETO 150 - DEBAIXO DESTA PEDRA ESTÁ METIDO (POEMA DO PORTUGUÊS LUÍS DE CAMÕES)

DEBAIXO DESTA PEDRA ESTÁ METIDO

Soneto 150

Luís de Camões

 

 

 

Debaixo desta pedra está metido,
Das sanguinosas armas descansado,
O Capitão illustre e assinalado
Dom Fernando de Castro esclarecido.

Este por todo o Oriente tão temido,
Este da propria inveja tão cantado,
Este, em fim, raio de Mavorte irado,
Aqui está agora em terra convertido.

Alegra-te, ó guerreira Lusitania,
Por est'outro Viriato que criaste,
E chora a perda sua eternamente.

Exemplo toma nisto de Dardania;
Que se a Roma com elle anniquilaste,
Nem por isso Carthago está contente.


Poemas e Poesias domingo, 26 de setembro de 2021

SONETO DO S DONATIVOS (POEMA DO PORTUGUÊS MANUEL MARIA Du BOCAGE)

SONETO DOS DONATIVOS

Bocage

 

 

 

Cristo morreu há mil e tantos anos;

Foi descido da cruz, depois enterrado;

Ainda assim, a pedir não tem cessado

Para o sepulcro dele os franciscanos!

 

Tornou a ressurgir dentre os humanos;

Subiu da terra ao céu, lá está sentado;

E à saúde dele sepultado

Comem à nossa custa estes maganos;

 

Pensam os que lhes dão a sua esmola

Que ela se gasta na função mais pia...

Quanto vos enganais, oh gente tola!

 

O altar mor com dois cotos se alumia;

E o fradinho com a puta, que o consola,

Gasta de noite o que lhe dais de dia.


Poemas e Poesias sábado, 25 de setembro de 2021

DE PARNY (POEMA DO MINEIRO BELMIRO BRAGA)

DE PARNY

Belmiro Braga

 

 

 

Amar... Aos olhos da gente,
a propria escarpa é florida:
— De sonhos tece-se a vida,
que a vida é um sonho innocente...

Depois de amar...  Quem resiste
á magua dos nossos olhos,
vendo em tudo urzes e abrolhos?...
Se a propria alegria é triste...


Poemas e Poesias sexta, 24 de setembro de 2021

GEMIDOS DA ARTE (POEMA DE AUGUSTO DO CAPIXABA AUGUSTO DOS ANJOS)

GEMIDOS DA ARTE

Augusto dos Anjos

 

 

 I

Esta desillusão que me acabrunha
É mais traidora do que o foi Pilatos!...
Por causa disto, eu vivo pelos mattos,
Magro, roendo a substancia córnea da unha.

Tenho estremecimentos indecisos
E sinto, haurindo o tépido ar sereno,
O mesmo assombro que sentio Parphéno
Quando arrancou os olhos de Dyonisos!

Em gyro e em redemoinho em mim caminham
Rispidas maguas estranguladoras,
Taes quaes, nos fortes fulcros, as tesouras
Bronzeas, tambem gyram e redemoinham.

Os pães — filhos legitimos dos trigos —
Nutrem a geração do Odio e da Guerra...
Os cachorros anonymos da terra
São talvez os meus unicos amigos!

 

Ah! Porque desgraçada contingencia
Á hispida aresta saxea aspera e abrupta
Da rocha brava, numa ininterrupta
Adhesão, não prendi minha existencia?!

Porque Jehovah, maior do que Laplace
Não fez cahir o tumulo de Plinio
Por sobre todo o meu raciocinio
Para que eu nunca mais raciocinasse?!

Pois minha Mãe tão cheia assim daquelles
Carinhos, com que guarda meus sapatos,
Porque me deu consciencia dos meus actos
Para eu me arrepender de todos elles?!

Quizera antes, mordendo glabros talos,
Nabuchodonosor ser no Pau d’Arco,
Beber a acre e estagnada agua do charco,
Dormir na mangedoura com os cavallos!

Mas a carne é que é humana! A alma é divina.
Dorme num leito de feridas, goza
O lodo, apalpa a úlcera cancerosa,
Beija a peçonha, e não se contamina!

Ser homem! escapar de ser abôrto!
Sahir de um ventre inchado que se anoja,
Comprar vestidos pretos numa loja
E andar de luto pelo pae que é morto!

E por trezentos e sessenta dias
Trabalhar e comer! Martyrios juntos!
Alimentar-se dos irmãos defuntos,
Chupar os ossos das alimarías!

 

Barulho de mandibulas e abdomens!
E vem-me com um despreso por tudo isto
Uma vontade absurda de ser Christo
Para sacrificar-me pelos homens!

Soberano desejo! Soberana
Ambição de construir para o homem uma
Região, onde não cuspa lingua alguma
O oleo rançoso da saliva humana!

Uma região sem nodoas e sem lixos,
Subtrahida á hediondez de infimo casco,
Onde a forca feroz coma o carrasco
E o olho do estuprador se encha de bichos!

Outras constellações e outros espaços
Em que, no agúdo gráu da ultima crise,
O braço do ladrão se paralyse
E a mão da meretriz caia aos pedaços!

 

II

 

O sol agora é de um fulgor compacto,
E eu vou andando, cheio de chamusco,
Com a flexibilidade de um mollusco,
Humido, pegajoso e unctuoso ao tacto!

Reunam-se em rebellião ardente e accesa
Todas as minhas forças emotivas
E armem ciladas como cobras vivas
Para despedaçar minha tristeza!

 

O sol de cima espiando a flora moça
Arda, fustigue, queime, corte, morda!
Deleito a vista na verdura gorda
Que nas hastes delgadas se balouça!

Avisto o vulto das sombrias granjas
Perdidas no alto... Nos terrenos baixos,
Das laranjeiras eu admiro os cachos
E a ampla circumferencia das laranjas.

Ladra furiosa a tribu dos podengos.
Olhando para as pútridas charnécas
Grita o exercito avulso das marrécas
Na humida cópa dos bambús verdoengos.

Um passaro alvo artifice da teia
De um ninho, salta, no árdego trabalho,
De arvore em arvore e de galho em galho,
Com a rapidez duma semi-colcheia.

Em grandes semi-circulos aduncos,
Entrançados, pelo ar, largando pellos,
Vôam á similhança de cabellos
Os chicotes finissimos dos juncos.

Os ventos vagabundos batem, bolem
Nas arvores. O ar cheira. A terra cheira
E a alma dos vegetaes rebenta inteira
De todos os corpusculos do pollen.

A camara nupcial de cada ovario
Se abre. No chão collêa a lagartixa.
Por toda a parte a seiva bruta esguicha
Num extravasamento involuntario,

 

Eu, depois de morrer, depois de tanta
Tristeza, quero, em vez do nome — Augusto,
Possuir ahi o nome dum arbusto
Qualquer ou de qualquer obscura planta!

 

III

 

Pelo accidentadissimo caminho
Faisca o sol. Nédios, batendo a cauda,
Urram os bois. O céo lembra uma lauda
Do mais incorruptivel pergaminho.

Uma atmosphera má de incommoda hulha
Abafa o ambiente. O aziago ar morto a morte
Féde. O ardente calor da areia forte
Racha-me os pés como se fosse agulha.

Não sei que subterranea e atra voz rouca,
Por saibros e por cem concavos valles,
Como pela avenida das Mappales,
Me arrasta á casa do finado Tôca!

Todas as tardes a esta casa venho.
Aqui, outr’ora, sem conchego nobre,
Viveu, sentiu e amou este homem pobre
Que carregava cannas para o engenho!

Nos outros tempos e nas outras eras,
Quantas flôres! Agora, em vez de flôres,
Os musgos, como exoticos pintores,
Pintam caretas verdes nas tapéras.

 

Na bruta dispersão de vitreos cacos,
A dura luz do sol resplandecente,
Tropega e antiga, uma parede doente
Mostra a cara medonha dos buracos.

O cupim negro bróca o ámago fino
Do tecto. E traça trombas de elephantes
Com as circumvoluções extravagantes
Do seu complicadissimo intestino.

O lodo obscuro trepa-se nas portas.
Amortoadas em grossos feixes rijos,
As lagartixas dos esconderijos
Estão olhando aquellas coisas mortas!

Fico a pensar no Espirito disperso
Que unindo a pedra ao gneiss e a arvore á creança,
Como um annel enorme de alliança,
Une todas as coisas do Universo!

E assim pensando, com a cabeça em brazas
Ante a fatalidade que me opprime,
Julgo ver este Espirito sublime,
Chamando-me do sol com as suas azas!

Gosto do sol ignivomo e iracundo
Como o reptil gosta quando se molha
E na atra escuridão do ares, olha
Melancolicamente para o mundo!

Essa alegria immaterialisada,
Que por vezes me absorve, é o obolo obscuro,
É o pedaço já pôdre de pão duro
Que o miseravel recebeu na estrada!

 

Não são os cinco mil milhões de francos
Que a Allemanha pediu a Jules Favre.
É o dinheiro coberto de azinhavre
Que o escravo ganha, trabalhando aos brancos!

Seja este sol meu ultimo consolo;
E o espirito infeliz que em mim se encarna
Se alegre ao sol, como quem raspa a sarna,
Só, com a misericordia de um tijolo!...

Tudo emfim a mesma órbita percorre
E as boccas vão beber o mesmo leite
A lamparina quando falta o azeite
Morre, da mesma fórma que o homem morre.

Subito, arrebentando a horrenda calma,
Grito, e se grito é para que meu grito
Seja a revelação deste Infinito
Que eu trago encarcerado na minh’alma!

Sol brazileiro! Queima-me os destroços!
Quero assistir, aqui, sem pae que me ame,
De pé, á luz da consciencia infame,
A carbonisação dos proprios ossos!

 


Poemas e Poesias quarta, 22 de setembro de 2021

O MUNDO DO SERTÃO (POEMA DO PARAIBANO ARIANO ASSUGRIN)

O MUNDO DO SERTÃO

Ariano Suassuna

 

 

 

 

Diante de mim, as malhas amarelas
do mundo, Onça castanha e destemida.
No campo rubro, a Asma azul da vida
à cruz do Azul, o Mal se desmantela.

Mas a Prata sem sol destas moedas
perturba a Cruz e as Rosas mal perdidas;
e a Marca negra esquerda inesquecida
corta a Prata das folhas e fivelas.

E enquanto o Fogo clama a Pedra rija,
que até o fim, serei desnorteado,
que até no Pardo o cego desespera,

o Cavalo castanho, na cornija,
tenha alçar-se, nas asas, ao Sagrado,
ladrando entre as Esfinges e a Pantera.


Poemas e Poesias terça, 21 de setembro de 2021

É ELA! É ELA! (POEMA DO PAULISTA ÁLVARES DE AZEVEDO

É ELA! É ELA!
Álvares de Azevedo

 

 

 

É ela! é ela! - murmurei tremendo,
E o eco ao longe murmurou - é ela!...
Eu a vi... minha fada aérea e pura,
A minha lavadeira na janela!

Dessas águas-furtadas onde eu moro
Eu a vejo estendendo no telhado
Os vestidos de chita, as saias brancas...
Eu a vejo e suspiro enamorado!

Esta noite eu ousei mais atrevido
Nas telhas que estalavam nos meus passos
Ir espiar seu venturoso sono,
Vê-la mais bela de Morfeu nos braços!

Como dormia! que profundo sono!...
Tinha na mão o ferro do engomado...
Como roncava maviosa e pura!
Quase caí na rua desmaiado!

Afastei a janela, entrei medroso:
Palpitava-lhe o seio adormecido...
Fui beijá-la... roubei do seio dela
Um bilhete que estava ali metido...

Oh! De certo ... (pensei) é doce página
Onde a alma derramou gentis amores!...
São versos dela... que amanhã decerto
Ela me enviará cheios de flores...

Trem de febre! Venturosa folha!
Quem pousasse contigo neste seio!
Como Otelo beijando a sua esposa,
Eu beijei-a a tremer de devaneio...

É ela! é ela! - repeti tremendo,
Mas cantou nesse instante uma coruja...
Abri cioso a página secreta...
Oh! meu Deus! era um rol de roupa suja!

Mas se Werther morreu por ver Carlota
Dando pão com manteiga às criancinhas,
Se achou-a assim mais bela... eu mais te adoro
Sonhando-te a lavar as camisinhas!

É ela! é ela! meu amor, minh'alma,
A Laura, a Beatriz que o céu revela...
É ela! é ela! - murmurei tremendo,
E o eco ao longe suspirou - é ela!


Poemas e Poesias segunda, 20 de setembro de 2021

EU VI A LINDA JÔNIA (POEMA DO CARIOCA ALVARENGA PEIXOTO)

EU VI A LINDA JÔNIA

Alvarenga Peixoto

 

 

 

Eu vi a linda Jônia e, namorado
fiz logo eterno voto de querê-la;
mas vi depois a Nise, e é tão bela
que merece igualmente o meu cuidado.

A qual escolherei, se nesse estado
eu não sei distinguir esta daquela?
Se Nise vir, morro por ela,
se Jônia vir aqui, morro abrasado.

Mas, ah! que esta me despreza, amante,
pois sabe que estou preso em outros braços,
e aquela não me quer, por inconstante.

Vem, Cupido, soltar-me desses laços:
ou faze desses dois um só semblante,
ou divide o meu peito em dois pedaços!
 


Poemas e Poesias domingo, 19 de setembro de 2021

COMO SE MOÇO E NÃO BEM VELHO EU FOSSE (POEMA DO MINEIRO ALPHONSUS GUIMARAENS)
COMO SE MOÇO E NÃO BEM VELHO EU FOSSE

Alphonsus Guimaraens

 

 

Como se moço e não bem velho eu fosse,
Uma nova ilusão veio animar-me,
Na minh’alma floriu um novo carme,
O meu ser para o céu alcandorou-se.

Ouvi gritos em mim como um alarme.
E o meu olhar, outrora suave e doce,
Nas ânsias de escalar o azul, tornou-se
Todo em raios, que vinham desolar-me.

Vi-me no cimo eterno da montanha
Tentando unir ao peito a luz dos círios
Que brilhavam na paz da noite estranha.

Acordei do áureo sonho em sobressalto;
Do céu tombei ao caos dos meus martírios,
Sem saber para que subi tão alto…


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