Almanaque Raimundo Floriano
Fundado em 24.09.2016
(Cultural, sem fins comerciais, lucrativos ou financeiros)


Raimundo Floriano de Albuquerque e Silva, Editor deste Almanaque, também conhecido como Velho Fulô, Palhaço Seu Mundinho e Mundico Trazendowski, nascido em Balsas , Maranhão, a 3 de julho de 1936, Católico Apostólico Romano, Contador, Oficial da Reserva do Exército Brasileiro, Funcionário Público aposentado da Câmara dos Deputados, Titular da Cadeira nº 10 da Academia Passa Disco da Música Nordestina, cuja patrona é a cantora Elba Ramalho, Mestre e Fundador da Banda da Capital Federal, Pesquisador da MPB, especializado em Velha Guarda, Música Militar, Carnaval e Forró, Cardeal Fundador da Igreja Sertaneja, Pioneiro de Brasília, Xerife nos Mares do Caribe, Cordelista e Glosador, Amigo do Rio das Balsas, Inventor da Descida de Boia, em julho de 1952, Amigo da Fanfarra do 1° RCG, autor dos livros O Acordo PDS/PTB, coletânea de charges, Sinais de Revisão e Regras de Pontuação, normativo, Do Jumento ao Parlamento, com episódios da vida real, De Balsas para o Mundo, centrado na navegação fluvial Balsas/Oceano Atlântico, Pétalas do Rosa, saga da Família Albuquerque e Silva, Memorial Balsense, dedicado à história de sua terra natal, e Caindo na Gandaia, humorístico apimentado, é casado, tem quatro filhos, uma nora, dois genros e dois netos e reside em Brasília, Distrito Federal, desde dezembro de 1960.

Poemas e Poesias quinta, 02 de julho de 2020

ELEGIA PARA A ADOLESCÊNCIA (POEMA DO PERNAMBUCANO CARLOS PENA FILHO_

ELEGIA PARA A ADOLESCÊNCIA

Carlos Pena Filho

 

E enfim descansaremos sob a verde
resistência dos campos escondidos.
Nem pensaremos mais no que há-de ser de
nós que então seremos definidos.

No mar que nos chamou, no mar ausente,
simples e prolongado que supomos
seremos atirados de repente,
puros e inúteis como sempre fomos.

Veremos que as vogais e as consoantes
não são mais que ornamentos coloridos,
fruto de nossas bocas inconstantes.

E em silêncio seremos transformados,
quando formos, serenos e perdidos,
além das coisas vãs precipitados.


Poemas e Poesias quarta, 01 de julho de 2020

A UM AUSENTE (POEMA DO MINEIRO CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE)

A UM AUSENTE

Carlos Drummond de Andrade

 

Tenho razão de sentir saudade,
tenho razão de te acusar.
Houve um pacto implícito que rompeste
e sem te despedires foste embora.
Detonaste o pacto.
Detonaste a vida geral, a comum aquiescência
de viver e explorar os rumos de obscuridade
sem prazo sem consulta sem provocação
até o limite das folhas caídas na hora de cair.

Antecipaste a hora.
Teu ponteiro enlouqueceu, enlouquecendo nossas horas.
Que poderias ter feito de mais grave
do que o ato sem continuação, o ato em si,
o ato que não ousamos nem sabemos ousar
porque depois dele não há nada?

Tenho razão para sentir saudade de ti,
de nossa convivência em falas camaradas,
simples apertar de mãos, nem isso, voz
modulando sílabas conhecidas e banais
que eram sempre certeza e segurança.

Sim, tenho saudades.
Sim, acuso-te porque fizeste
o não previsto nas leis da amizade e da natureza
nem nos deixaste sequer o direito de indagar
porque o fizeste, porque te foste.


Poemas e Poesias terça, 30 de junho de 2020

SONETO 086 - CARA MINHA INIMIGA, EM CUJA MÃO (POEMA DO PORTUGUÊS LUÍS DE CAMPÕES)

CARA MINHA INIMIGA, EM CUJA MÃO

Soneto 086

Luís de Camões

 

Cara minha inimiga, em cuja mão
Pôs meus contentamentos a ventura,
Faltou-te a ti na terra sepultura,
Porque me falte a mim consolação.

Eternamente as águas lograrão
A tua peregrina fermosura;
Mas, enquanto me a mim a vida dura,
Sempre viva em minha alma te acharão.

E se meus rudos versos podem tanto
Que possam prometer-te longa história
Daquele amor tão puro e verdadeiro,

Celebrada serás sempre em meu canto;
Porque, enquanto no mundo houver memória,
Será a minha escritura o teu letreiro.


Poemas e Poesias segunda, 29 de junho de 2020

SONETO MAÇÔNICO (POEMA DO PORTUGUÊS MANUEL MARIA BARBOSA DU BOCAGE)

SONETO MAÇÔNICO

Bocage

 

 

(Grafia original)

Turba esfaimada, multidão canina,
Corja, que tem por deus ou Momo, ou Baccho,
Reina, e decreta nos covis de Caco
Ignorancia daqui, dalli rapina:

Colhe de alto systema e lei divina
Imaginario jus, com que encha o sacco;
Textos gagueja em vão Doutor macaco
Por ouro, que promette alma sovina:

Circulo umbroso de venaes pedantes,
Com torpe astucia de maligna zorra
Usurpa nome excelso, e graus flammantes:

Ora mijei na sucia, inda que eu morra
Corno, arrocho, bambu nos elephantes,
Cujo vulto é de anões, a tromba é porra!

Poemas e Poesias domingo, 28 de junho de 2020

AMADA HIJA (POEMA DA MINEIRA BÁRBARA HELIODORA)

AMADA HIJA

Bárbara Heliodora

 

Amada hija, ya es llegado el dia

En que la luz de la razón, como antorcha encendida,

Viene a conducir a la simple naturaleza;

Es hoy cuando tu mundo da principio.

 

La mano, que te ha formado, guía tus pasos,

Desprecia ofertas de belleza vana

Y sacrifica honras y riquezas

A las santas leyes del Hijo de María.

 

Imprime caridad en tu alma,

Que a amar a Dios y a nuestros semejantes

Son eternos preceptos de verdad.

 

Lo demás son ideas delirantes;

Procura ser feliz en lo eerno,

Que el mundo son brevísimos instantes.

 


Poemas e Poesias sábado, 27 de junho de 2020

DUAS ESTROFES (POEMA DO CAPIXABA AUGUSTO DOS ANJOS)

DUAS ESTROFES

Augusto dos Anjos

 

 

A queda do teu lírico arrabil
De um sentimento português ignoto
Lembra Lisboa, bela como um brinco,
Que um dia no ano trágico de mil
E setecentos e cincoenta e cinco,
Foi abalada por um terremoto!

A água quieta do Tejo te abençoa.
Tu representas toda essa Lisboa
De glórias quase sobrenaturais,
Apenas com uma diferença triste,
Com a diferença que Lisboa existe
E tu, amigo, não existes mais!


Poemas e Poesias sexta, 26 de junho de 2020

NANA, NANANA (POEMA DO PERNAMBUCANO ASCENSO FERREIRA)

NANA, NANANA

Ascenso Ferreira

 

Sentes que a minha vida é um rio caudaloso,
tomado do delírio das enchentes,
correndo alucinado para o mar!
E te assombras, com medo dos abismos,
onde as águas nos seus loucos paroxismos
te possam arrastar...

 

No entanto, sobre a flor dessas águas tempestuosas,
leve com as espumas vaporosas,
hás de sempre boiar...

 

Sentindo a sensação deliciosa
de que as águas arrogantes, tumultuosas,
estão cantando para te ninar.

 


Poemas e Poesias quinta, 25 de junho de 2020

MISERÁVEL (POEMA DO MARANHENSE ARTHUR AZEVEDO)

MISERÁVEL

Arthur Azevedo

 

A Carvalho Junior.

O noivo, como noivo, é repugnante:
Materialão, estúpido, chorudo,
Arrotando, a propósito de tudo,
O ser comendador e negociante.

Tem a viuvinha, a noiva interessante,
Todo o arsenal de um poeta guedelhudo:
Alabastro, marfim, coral, veludo,
Azeviche, safira e tutti quanti.

Da misteriosa alcova a porta geme,
O noivo dorme n'um lençol envolto...
Entra a viuvinha, a noiva... Oh, céu, contém-me!

Ela deita-se... espera... Qual! Revolto,
O leito estala... Ela suspira... freme...,
E o miserável dorme a sono solto!..


Poemas e Poesias quarta, 24 de junho de 2020

ABERTURA SOB PEDE DE OVELHA (POEMA DO PARAIBANO ARIANO SUASSUNA)

ABERTURA SOB PELE DE OVELHA

Ariano Suassuna

 

Falso Profeta, insone, Extraviado,
vivo, Cego, a sondar o Indecifrável:
e, jaguar da Sibila — inevitável,
meu Sangue traça a rota deste Fado.

Eu, forçado a ascender, eu, Mutilado,
busco a Estrela que chama, inapelável.
E a Pulsação do Ser, Fera indomável,
arde ao sol do meu Pasto — incendiado.

Por sobre a Dor, a Sarça do Espinheiro
que acende o estranho Sol, sangue do Ser,
transforma o sangue em Candelabro e Veiro.

Por isso, não vou nunca envelhecer:
com meu Cantar, supero o Desespero,
sou contra a Morte e nunca hei de morrer.


Poemas e Poesias terça, 23 de junho de 2020

CANTO PRIMEIRO (POEMA DO PAULISTA ÁLVARES DE AZEVEDO)

CANTO PRIMEIRO

Álvares de Azevedo

 

XIV
 


Escutai-me, leitor, a minha história,
E'fantasia sim, porém amei-a.
Sonhei-a em sua palidez marmórea
Como a ninfa que volve-se na areia
Co'os lindos seios nus... Não sonho glória;
Escrevi porque a alma tinha cheia
— Numa insônia que o spleen entristecia —
De vibrações convulsas de ironia!
 

 


XV
 


Mas não vos pedirei perdão contudo
Se não gostais desta canção sombria
Não penseis que me enterre longo estudo
Por vossa alma fartar de outra harmonia!
Se vario no verso e idéias mudo
E'que assim me desliza a fantasia...
Mas a crítica, não ... eu rio dela...
Prefiro a inspiração de noite bela!
 

 


XVI
 


A crítica é uma bela desgraçada
Que nada cria nem jamais criara;
Tem entranhas de areia regelada:
E'a esposa de Abrão, a pobre Sara
Que nunca foi por Anjo fecundada:
Qual a mãe que por ela assassinara
Por sua inveja e vil desesperança
Dos mais santos amores a criança!
 


(...)
 

 


XXIV
 


Meu herói é um moço preguiçoso
Que viveu e bebia porventura
Como vós, meu leitor... se era formoso
Ao certo não o sei. Em mesa impura
Esgotara com lábio fervoroso
Como vós e como eu a taça escura.
Era pálido sim... mas não d'estudo:
No mais... era um devasso e disse tudo!
 

 


XXV
 


Dizer que era poeta — é cousa velha:
No século da luz assim é todo.
O que herói de novelas assemelha.
Vemos agora a poesia a rodo!
Nem há nos botequins face vermelha,
Amarelo caixeiro, alma de lodo,
Nem Bocage d'esquina, vate imundo,
Que não se creia um Dante vagabundo!
 

 


XXVI
 


O meu não era assim: não se imprimia,
Nem versos no teatro declamava!
Só quando o fogo do licor corria
Da fronte no palor que avermelhava,
Com as convulsas mãos a taça enchia.
Então a inspiração lhe afervorava
E do vinho no eflúvio e nos ressábios
Vinha o fogo do gênio à flor dos lábios!
 


(...)
 

 


XXXII
 


Olvidei a canção: só lembro dela
Que d'alma a languidez a estremecia:
Como um anjo num sonho de donzela
Sobre o peito a guitarra lhe gemia!
E quando à frouxa lua, da janela,
Cheia a face de lágrimas erguia,
Como as brisas do amor lhe palpitavam
Os lábios no palor que bafejavam!
 

 


XXXIII
 


Amar, beber, dormir, eis o que amava:
Perfumava de amor a vida inteira,
Como o cantor de Don Juan pensava
Que é da vida o melhor a bebedeira...
E a sua filosofia executava...
Com Alfredo Musset, a tanta asneira
Acrescento porém... juro o que digo!
Não se parece Jônatas comigo.
 

 


XXXIV
 


Prometi um poema, e nesse dia
Em que a tanto obriguei a minha idéia
Não prometi por certo a biografia
Do sublime cantor desta Epopéia
Consagro a outro fim minha harmonia...
Por favor cantarei nesta Odisséia
De Jônatas a glória não sabida...
Mas não quero contar a minha vida.
 

 


XXXV
 


Basta! foi longo o prólogo! confesso!
Mas é preciso à casa uma fachada,
À fronte da mulher um adereço,
No muro um lampião à torta escada!
E agora desse canto me despeço
Com a face de lágrimas banhada,
Qual o moço Don Juan no enjôo rola
Chorando sobre a carta da Espanhola.
 


Poemas e Poesias segunda, 22 de junho de 2020

A MARIA IFIGÊNIA (POEMA DO CARIOCA ALVARENGA PEIXOTO)

A MARIA IFIGÊNIA

Alvarenga Peixoto

 

 

A MARIA IFIGÊNIA


Em 1786, quando completava sete anos.

Amada filha, é já chegado o dia,
Em que a luz da razão, qual tocha acesa,
Vem conduzir a simples natureza:
— É hoje que teu mundo principia.

A mão que te gerou, teus passos guia;
Despreza ofertas de uma vã beleza,
E sacrifica as honras e a riqueza
Às santas leis do Filho de Maria.

Estampa na tu alma a Caridade,
Que amar a Deus, amar aos semelhantes,
São eternos preceitos de verdade;

Tudo o mais são idéias delirantes;
Procura ser feliz na Eternidade,
Que o mundo são brevíssimos instantes.

Poemas e Poesias domingo, 21 de junho de 2020

SALDOS DA NOITE (POEMA DO MINEIRO ALPHONSUS GUIMARAENS)

SALDOS DA NOITE

Alphonsus Guimaraens

 

Ó minha amante, eu quero a volúpia vermelha
Nos teus braços febris receber sobre a boca;
Minh'alma, que ao calor dos teus lábios se engelha
E morre, há de cantar perdidamente louca.

O peito, que a uma furna escura se assemelha,
De mágicos florões o teu olhar me touca;
Ao teu lábio que morde e tem mel como a abelha,
Dei toda a vida... e eterna ela seria pouca.

Ao teu olhar, oceano ora em calma ora em fúria,
Canta a minha paixão um salmo fundo e terno,
Como o ganido ao luar de uma cadela espúria...

— Salmo de tédio e dor, hausteante, negro e eterno,
E no entanto eu te sigo, ó verme da luxúria,
E no entanto eu te adoro, ó céu do meu inferno!


Poemas e Poesias sábado, 20 de junho de 2020

A CANCELA DA ESTRADA (POEMA DO FLUMINENSE ALBERTO DE OLIVEIRA)

A CANCELA DA ESTRADA

Alberto de Oliveira

 

 

Bate a cancela da estrada
Constantemente.

Cavaleiro, à disparada,
Lá vai no cavalo ardente.
Cavaleiro em descuidada
Marcha, lá vem indolente.

Passa, ondeia levantada
A poeira, toldando o ambiente.

Bate a cancela da estrada
Constantemente.

Bate, e exaspera-se e brada
Ou chora contra o batente:
(Ninguém lhe ouve na arrastada,
Roufenha voz o que sente)

— "Minha vida desgraçada
Repouso não me consente;
Vivo a bater nesta estrada
Constantemente."

Moços, moças, de tornada
De alguma festa, em ridente
Chusma inquieta e alvoroçada,
Passaram ruidosamente.

Desta inda se ouve a risada,
Daquele o beijo... Plangente

Bate a cancela da estrada
Constantemente.

Agora, é noiva coroada
De capela alvinitente;
Segue o noivo a sua amada,
Um carro atrás, outro à frente.

Agora, é uma cruz alçada...
Um enterro. Quanta gente!

Bate a cancela da estrada
Constantemente.

Bate ao vir a madrugada,
Bate, ao ir-se o sol no poente;
(Das sombras pela calada
Seu bater é mais dolente)

Bate, se é noite enluarada,
Se escura é a noite e silente;

Bate a cancela da estrada
Constantemente.

Nossa vida é aquela estrada,
Com os que passam diariamente
E após si da caminhada
A poeira deixam somente.

Coração, como a cansada
Cancela de som gemente,

Bates a tua pancada
Constantemente.


Poemas e Poesias sexta, 19 de junho de 2020

A PRIMEIRA VEZ QUE ENTENDI (POEMA DO MINEIRO AFFONSO ROMANO DE SANT,ANNA

A PRIMEIRA VEZ QUE ENTENDI

Affonso Romano de Sant'Anna

 

 

A primeira vez que entendi do mundo
alguma coisa
foi quando na infância
cortei o rabo de uma lagartixa
e ele continuou se mexendo.

De lá pra cá
fui percebendo que as coisas permanecem
vivas e tortas
que o amor não acaba assim
que é difícil extirpar o mal pela raiz.

A segunda vez que entendi do mundo
alguma coisa
foi quando na adolescência me arrancaram
do lado esquerdo três certezas
e eu tive que seguir em frente.

De lá pra cá
aprendi a achar no escuro o rumo
e sou capaz de decifrar mensagens
seja nas nuvens
ou no grafite de qualquer muro.


Poemas e Poesias quinta, 18 de junho de 2020

CASAMENTO (POEMA D AMINEIRA ADÉLIA PRADO)

CASAMENTO

Adélia Prado

 

Há mulheres que dizem:
Meu marido, se quiser pescar, pesque,
mas que limpe os peixes.
Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,
ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.
É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,
de vez em quando os cotovelos se esbarram,
ele fala coisas como “este foi difícil”
“prateou no ar dando rabanadas”
e faz o gesto com a mão.
O silencio de quando nos vimos a primeira vez
atravessa a cozinha como um rio profundo.
Por fim, os peixes na travessa,
vamos dormir.
Coisas prateadas espocam:
somos noivo e noiva.


Poemas e Poesias quarta, 17 de junho de 2020

ABANDONO (POEMA DA CARIOCA ADALGISA NERY)

ABANDONO

Adalgisa Nery

 

A exaustão faminta
Procura elementos ainda vivos no meu ser
Talvez guardados em escuros vácuos
Que carrego sem saber.
Alimenta-se do sopro das imagens
Desenhadas pela minha imaginação
Pelo tato dos meus sentimentos,
Pelo pânico do desconhecido.
Aparece como febre constante dilatando as minhas carnes
Descoloridas e sem sabor de vida.
A exaustão sobre pelos meus pés,
Cobre os meus gestos incipientes,
Prende a minha língua,
Suga o meu cérebro, ninho de aranhas em fogo,
Pousa no meu cabelo como morcego.
Exaustão que funga o ar, que saqueia o meu silêncio,
Último repouso nos meus vácuos devassados.


Poemas e Poesias terça, 16 de junho de 2020

A CIDADE EM PROGRESSO (POEMA DO CARIOCA VINÍCIUS DE MORAES)

A CIDADE EM PROGRESSO

Vinícius de Moraes

 

A cidade mudou. Partiu para o futuro
Entre semoventes abstratos
Transpondo na manhã o imarcescível muro
Da manhã na asa dos DC-4s

Comeu colinas, comeu templos, comeu mar
Fez-se empreiteira de pombais
De onde se vêem partir e para onde se vêem voltar
Pombas paraestatais.

Alargou os quadris na gravidez urbana
Teve desejos de cúmulos

A cidade mudou. Partiu para o futuro
Entre semoventes abstratos
Transpondo na manhã o imarcescível muro
Da manhã na asa dos DC-4s

Comeu colinas, comeu templos, comeu mar
Fez-se empreiteira de pombais
De onde se vêem partir e para onde se vêem voltar
Pombas paraestatais.

Alargou os quadris na gravidez urbana
Teve desejos de cúmulos


Poemas e Poesias segunda, 15 de junho de 2020

CAIR DAS FOLHAS (POEMA DO PAULISTA VICENTE DE CARVALHO)

CAIR DAS FOLHAS

Vicente de Carvalho

 

“Deixa-me, fonte”! Dizia
A flôr, tonta de terror.
E a fonte, sonora e fria,
Cantava, levando a flor.

“Deixa-me, deixa-me, fonte!””
Dizia a flor a chorar:
“Eu fui nascida no monte...
“Não me leves para o mar”.

E a fonte, rapida e fria,
Com um sussurro zombador,
Por sobre a areia corria,
Corria levando a flôr.

“Ai, balanços do meu galho,
“Balanços do berço meu;
“Ai, claras gotas de orvalho
“Caídas do azul do céu!...”

Chorava a flor, e gemia,
Branca, branca de terror,
E a fonte sonora e fria,
Rolava, levando a flor.

“Adeus, sombra das ramadas,
“Cantigas do rouxinol;
“Ai, festa das madrugadas,
“Doçuras do pôr do sol;

“Caricia das brizas leves
“Que abrem rasgões de luar...
“Fonte, fonte, não me leves,
“Não me leves para o mar!...”

                 *
As correntezas da vida
E os restos do meu amor
Resvalam numa descida
Como a da fonte e da flor...


Poemas e Poesias domingo, 14 de junho de 2020

AMOR CONDUSSE NOI AD NADA (POEMA DO MINEIRO PAULO MENDES CAMPOS)

AMOR CONDUSSE NOI AD NADA

Paulo Mendes Campos

 

 

Quando o olhar adivinhando a vida
Prende-se a outro olhar de criatura
O espaço se converte na moldura
O tempo incide incerto sem medida

As mãos que se procuram ficam presas
Os dedos estreitados lembram garras
Da ave de rapina quando agarra
A carne de outras aves indefesas

A pele encontra a pele e se arrepia
Oprime o peito o peito que estremece
O rosto a outro rosto desafia

A carne entrando a carne se consome
Suspira o corpo todo e desfalece
E triste volta a si com sede e fome.

 


Poemas e Poesias sábado, 13 de junho de 2020

SACRIFÍCIO (POEMA DO CEARENSE QUINTINO CUNHA)

SACRIFÍCIO

Quintino Cunha

 

 

Do alto andar de um arranha-céu fraqueja

E rui um andaime que se despedaça

Todo infortúnio por maior que ele seja

Não será pior que essa desgraça

 

E vê-se então: Oh, santa maravilha!

Dois operários presos deste modo:

Ambos seguros por um cabo de manilha

Fraco, ameaçando rebentar-se todo.

 

Um pelo menos salvar-se-ia à vinda

De um socorro qualquer nesse transporte

Mas o heroísmo não esqueceu ainda

Quem com amor e coragem enfrenta a morte.

 

E assim nesse dilema derradeiro

Onde só um podia salvar-se extraordinário...

João – pergunta, resoluto o companheiro

- Qual de nós dois será mais necessário?

 

Eu tenho quatro filhos é o que João murmura.

- Oh, camarada, então eu te consolo!

E deixou-se cair da imensa altura

Na aspereza sepulcral do solo.


Poemas e Poesias sexta, 12 de junho de 2020

O PAU D,ARCO (POEMA DO CEARENSE PATATIVA DO ASSARÉ) VÍDEO


Poemas e Poesias quarta, 10 de junho de 2020

SÓ (POEMA DO CARIOCA OLAVO BILAC)

 

Olavo Bilac

 

Este, que um deus cruel arremessou à vida,
Marcando-o com o sinal da sua maldição,
- Este desabrochou como a erva má, nascida
Apenas para aos pés ser calcada no chão.

De motejo em motejo arrasta a alma ferida...
Sem constância no amor, dentro do coração
Sente, crespa, crescer a selva retorcida
Dos pensamentos maus, filhos da solidão.

Longos dias sem sol! noites de eterno luto!
Alma cega, perdida à toa no caminho!
Roto casco de nau, desprezado no mar!

E, árvore, acabará sem nunca dar um fruto;
E, homem, há de morrer como viveu: sozinho!
Sem ar! sem luz! sem Deus! sem fé! sem pão! sem lar!


Poemas e Poesias terça, 09 de junho de 2020

CHUVA DE PEDRA (POEMA DO PAULISTA MENOTTI DEL PICCHIA)

CHUVA DE PEDRA

Menotti Del Picchia

 

O granizo salpica o chão como se as mãos das nuvens
quebrassem com estrondo um pedaço de gelo
para a salada de frutas do pomares…

O cafezal, numa carreira alucinada,
grimpa as lombas de ocre
apedrejada matilha de cães verdes…
fremem, gotejam eriçadas suas copas
como pelos de um animal todo molhado.

O céu é uma pedreira cor de zinco
onde estoura dinamite dos coriscos.
Rola de fraga em fraga a lasca retumbante
de um trovão.

Os riachos correm com seus pés invisíveis e líquidos
para o abrigo das furnas. No terreiro,
as roupas penduradas nos varais
dançam, funambulescas, com as pedradas,
numa fila macabra de enforcados!


Poemas e Poesias segunda, 08 de junho de 2020

ARTISTAS (POEMA DO PERNAMBUCANO MEDEIROS E ALBUQUERQUE)

ARTISTAS

Medeiros e Albuquerque

 

Senhora, eu não conheço a frase almiscarada
dos formosos galãs que vão aos teus salões
nem conheço também a trama complicada
que envolve, que seduz e prende os corações...

Sei que Talma dizia aos juvenis atores
que o Sentimento é mau, se é verdadeiro e são...
e quem menos sentir os ódios e os rancores
mais pode simular das almas a paixão.

E, por isto talvez, eu, que não sou artista,
nem nestes versos meus posso infundir calor,
desvio-me de ti, fujo de tua vista,
porque não sei dizer-te o meu imenso amor.


Poemas e Poesias domingo, 07 de junho de 2020

DA FELICIDADE (POEMA DO GAÚCHO MÁRIO QUINTANA)

DA FELICIDADE

Mário Quintana

 

Quantas vezes a gente, em busca da ventura,
Procede tal e qual o avozinho infeliz:
Em vão, por toda parte, os óculos procura
Tendo-os na ponta do nariz!


Poemas e Poesias sábado, 06 de junho de 2020

CISMAR (POEMA DA MARANHENSE MARIA FIRMINA DOS REIS)

CISMAR

Maria Firmina dos Reis

 

À MINHA QUERIDA PRIMA ― BALDUÍNA N. B.

 

Quando meus olhos lanço sobre o mar,

Augusto ─ o seu império contemplando;

Quer tranquilo murmure ─ ou rebramando,

Expande-se meu peito extasiado.

Corre minh’alma pelo céu vagando,

Sobre seres criados ─ Deus buscando…

E fundo, e deleitoso é meu cismar.

Se ronca a tempestade enegrecida,

Pavoroso trovão rouqueja incerto;

As nuvens se constrangem, o céu aberto

Elétrico clarão vomita escuro:

Ao Deus da criação, ao rei da vida

Elevo o pensamento, e o coração…

Cresce, avulta, e aumenta a cerração

E em meu vago cismar só Deus procuro;

Se plácida no céu correndo vejo

─ A lua ─ o mar, as serras prateando,

Qual áureo diadema cintilando

Em casta fronte de pudica virgem,

Em meu grato cismar só Deus almejo…

Bendiz minh’alma seu poder imenso!

Bendiz o Criador do Orbe extenso,

Que os outros rege ─ que seu trono cingem.

E bendigo depois a minha dor,

Meu duro sofrimento, ─ o meu viver…

Porque pode apagar, fundo sofrer

As feias culpas do existir da terra.

Oh! sim minh’alma te bendiz Senhor.

Quando cismando se recolher triste…

Bendiz o eterno amor, que em ti existe,

O imenso poder que em ti se encerra!!…


Poemas e Poesias sexta, 05 de junho de 2020

AUTORRETRATO (POEMA DO PERNAMBUCANO MANUEL BANDEIRA)

AUTORRETRATO

Manuel Bandeira

 

 

Provinciano que nunca soube
Escolher bem uma gravata;
Pernambucano a quem repugna
A faca do pernambucano;
Poeta ruim que na arte da prosa
Envelheceu na infância da arte,
E até mesmo escrevendo crônicas
Ficou cronista de província;
Arquiteto falhado, músico
Falhado (engoliu um dia
Um piano, mas o teclado
Ficou de fora); sem família,
Religião ou filosofia;
Mal tendo a inquietação de espírito
Que vem do sobrenatural,
E em matéria de profissão
Um tísico profissional.

 


Poemas e Poesias quinta, 04 de junho de 2020

DIFÍCIL FOTOGRAFAR O SILÊNCIO (POEMA DO MATO-GROSSENSE MANOEL DE BARROS)

DIFÍCIL FOTOGRAFAR O SILÊNCIO

MANOEL DE BARROS

 

Difícil fotografar o silêncio.
Entretanto tentei. Eu conto:
Madrugada, a minha aldeia estava morta.
Não se via ou ouvia um barulho, ninguém passava entre as casas.
Eu estava saindo de uma festa,.
Eram quase quatro da manhã.
Ia o silêncio pela rua carregando um bêbado.
Preparei minha máquina.
O silêncio era um carregador?
Estava carregando o bêbado.
Fotografei esse carregador.
Tive outras visões naquela madrugada.
Preparei minha máquina de novo.
Tinha um perfume de jasmim no beiral do sobrado.
Fotografei o perfume.
Vi uma lesma pregada na existência mais do que na pedra.
Fotografei a existência dela.
Vi ainda um azul-perdão no olho de um mendigo.
Fotografei o perdão.
Olhei uma paisagem velha a desabar sobre uma casa.
Fotografei o sobre.
Foi difícil fotografar o sobre.
Por fim eu enxerguei a nuvem de calça.
Representou pra mim que ela andava na aldeia de braços com Maiakoviski – seu criador.
Fotografei a nuvem de calça e o poeta.Ninguém outro poeta no mundo faria uma roupa
Mais justa para cobrir sua noiva.
A foto saiu legal.


Poemas e Poesias quarta, 03 de junho de 2020

REFLEXO (POEMA DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

REFLEXO

Machado de Assis

Olha: vem sobre os olhos
Tua imagem contemplar,
Como as madonas do céu
Vão refletir-se no mar
Pelas noites de verão
Ao transparente luar!
 
Olha e crê que a mesma imagem
Com mais ardente expressão
Como as madonas no mar
Pelas noites de verão,
Vão refletir-se bem fundo,
Bem fundo — no coração!


Poemas e Poesias terça, 02 de junho de 2020

BORBOLETRAS, BORBOLETREM (POEMA DO PERNAMBUCANO LUÍS TURIBA)

BORBOLETRAS, BORBOLETREM

Luís Turiba

 

Quando você borboleta
Eu te aero o porto
Quando você bicicleta
Eu me arco e flecha
Quando você me poeta
Eu te arreio rimas
Quando você se planeta
Eu te arejo o cosmos
Quando você me soletra
Eu te armo pousos
Quando você se escopeta
Eu te arte em balas
Quando você biblioteca
Eu te aço as bíblias
Quando você m’encapeta
Eu te a eros gozos


Poemas e Poesias segunda, 01 de junho de 2020

AUTORRETRATO (POEMA DO MARANHENSE JOSÉ SARNEY)

AUTORRETRATO

José Sarney

 

Bigode,
indevassável,
eterno,
ausente,
habita
intocável
o latifúndio de minha solidão.
Menino, moço e velho
superpostos,
me olho e não me vejo.


Poemas e Poesias domingo, 31 de maio de 2020

ESTE POEMA DE AMOR NÃO É LAMENTO (POEMA DO ALAGOANO JORGE DE LIMA)

ESTE POEMA DE  AMOR NÃO É LAMENTO

Jorge de Lima

 

Este poema de amor não é lamento
nem tristeza distante, nem saudade,
nem queixume traído nem o lento
perpassar da paixão ou pranto que há-de

transformar-se em dorido pensamento,
em tortura querida ou em piedade
ou simplesmente em mito, doce invento,
e exaltada visão da adversidade.

É a memória ondulante da mais pura
e doce face (intérmina e tranquila)
da eterna bem-amada que eu procuro;

mas tão real, tão presente criatura
que é preciso não vê-la nem possuí-la
mas procurá-la nesse vale obscuro.


Poemas e Poesias sábado, 30 de maio de 2020

DISCURSO DO CAPIBARIBE (POEMA DO PERNAMBUCANO JOÃO CABRAL DE MELO NETO)

DISCURSO DO CAPIBARIBE

Jõão Cabral de Melo Neto

Aquele rio
está na memória
como um cão vivo
dentro de uma sala.
Como um cão vivo
dentro de um bolso.
Como um cão vivo
debaixo dos lençóis,
debaixo da camisa,
da pele.

Um cão, porque vive,
é agudo.
O que vive
não entorpece.
O que vive fere.
O homem,
porque vive,
choca com o que vive.
Viver
é ir entre o que vive.

O que vive
incomoda de vida
o silêncio, o sono, o corpo
que sonhou cortar-se
roupas de nuvens.
O que vive choca,
tem dentes, arestas, é espesso.
O que vive é espesso
como um cão, um homem,
como aquele rio.

Como todo o real
é espesso.
Aquele rio
é espesso e real.
Como uma maçã
é espessa.
Como um cachorro
é mais espesso do que uma maçã.
Como é mais espesso
o sangue do cachorro
do que o próprio cachorro.
Como é mais espesso
um homem
do que o sangue de um cachorro.
Como é muito mais espesso
o sangue de um homem
do que o sonho de um homem.

Espesso
como uma maçã é espessa.
Como uma maçã
é muito mais espessa
se um homem a come
do que se um homem a vê.
Como é ainda mais espessa
se a fome a come.
Como é ainda muito mais espessa
se não a pode comer
a fome que a vê.

Aquele rio
é espesso
como o real mais espesso.
Espesso
por sua paisagem espessa,
onde a fome
estende seus batalhões de secretas
e íntimas formigas.

E espesso
por sua fábula espessa;
pelo fluir
de suas geleias de terra;
ao parir
suas ilhas negras de terra.

Porque é muito mais espessa
a vida que se desdobra
em mais vida,
como uma fruta
é mais espessa
que sua flor;
como a árvore
é mais espessa
que sua semente;
como a flor
é mais espessa
que sua árvore,
etc. etc.

Espesso,
porque é mais espessa
a vida que se luta
cada dia,
o dia que se adquire
cada dia
(como uma ave
que vai cada segundo
conquistando seu voo).


Poemas e Poesias sexta, 29 de maio de 2020

AMO! (POEMA DO ACRIANO J. G. DE ARAÚJO JORGE) - DECLAMAÇÃO


Poemas e Poesias quinta, 28 de maio de 2020

DE TANTO TE PENSAR, SEM NOME, ME VEIO A ILUSÃO. A MESMA ILUSÃO (POEMA DA PAULISTA HILDA HILST)

DE TANTO TE PENSAR, SEM NOME, ME VEIO A ILUSÃO. A MESMA ILUSÃO.

Hilda Hilst

 


Da égua que sorve a água pensando sorver a lua.
De te pensar me deito nas aguadas
E acredito luzir e estar atada
Ao fulgor do costado de um negro cavalo de cem luas.
De te sonhar, Sem Nome, tenho nada
Mas acredito em mim o ouro e o mundo.
De te amar, possuída de ossos e de abismos
Acredito ter carne e vadiar 
Ao redor dos teus cimos. De nunca te tocar
Tocando os outros
Acredito ter mãos, acredito ter boca
Quando só tenho patas e focinho.
Do muito desejar altura e eternidade

Me vem a fantasia de que Existo e Sou.
Quando sou nada: égua fantasmagórica
Sorvendo a lua n’água”.


Poemas e Poesias quarta, 27 de maio de 2020

A MULHER - I (POEMA DA PORTUGUESA FLORBELA ESPANCA)

A MULHER - I

Florbela Espanca

 

 

Um ente de paixão e sacrifício,
De sofrimento cheio, eis a mulher!
Esmaga o coração dentro do peito,
E nem te doas coração, sequer!

Sê forte, corajoso, não fraquejes
Na luta: sê em Vénus sempre Marte;
Sempre o mundo é vil e infame e os homens
Se te sentem gemer hão-de pisar-te!

Se à vezes tu fraquejas, pobrezinho,
Essa brancura ideal de puro arminho
Eles deixam pra sempre maculada;

E gritam então vis: “Olhem, vejam
É aquela a infame!” e apedrejam
a pobrezita, a triste, a desgraçada!


Poemas e Poesias terça, 26 de maio de 2020

COISAS DA TERRA (POEMA DO MARANHENSE FERREIRA GULLAR) VÍDEO


Poemas e Poesias segunda, 25 de maio de 2020

BATE A LUZ NO CIMO (POEMA DO PORTUGUÊS FERNANDO PESSOA)

BATE A LUZ NO CIMO

Fernando Pessoa

 

 

Bate a luz no cimo

Da montanha, vê...

Sem querer, eu cismo

Mas não sei em quê...

 

Não sei que perdi

Ou que não achei...

Vida que vivi,

Que mal eu a amei!...

 

Hoje quero tanto

Que o não posso ter.

De manhã há o pranto

E ao anoitecer.

 

Tomara eu ter jeito

Para ser feliz...

Como o mundo é estreito,

E o pouco que eu quis!

 

Vai morrendo a luz

No alto da montanha...

Como um rio a flux

A minha alma banha.

 

Mas não me acarinha,

Não me acalma nada...

Pobre criancinha

Perdida na estrada!...


Poemas e Poesias domingo, 24 de maio de 2020

A CHUVA É A ÚNICA CHAMA (POEMA DO GAÚCHO FABRÍCIO CARPINEJAR)

A CHUVA É A ÚNICA CHAMA

Fabrício Carpineja

 

 

A chuva é a única chama
que caminha contra o vento.
Refaço seu lastro
com a insônia dos sapatos.

Enlouqueço de ternura,
indeciso entre o furor e o fulgor.
Desperto amarrado em alguma estrela,
servindo de referência
para o alinhamento das esferas.


Poemas e Poesias sábado, 23 de maio de 2020

TROVAS HUMORÍSTICAS - 03 - (POEMA DO PARANAENSE ENO TEODORO WANKE)

TROVA HUMORÍSTICA - 03

Eno Teodoro Wanke

Para o cliente perplexo

Declara, enfim, o doutor:

"O senhor não tem compexo

Pois e mesmo inferior!"


Poemas e Poesias sexta, 22 de maio de 2020

ADEUS À VIDA (POEMA DO PIAUIENSE DA COSTA E SILVA)

ADEUS À VIDA

Da Costa e Silva

 

É, então, isso a vida: a nau perdida,
Sem bússola e sem leme, aos temporais?
A flórea escarpa, de íngreme subida, 
Da montanha dos risos e dos ais?

 

É, então, isso a vida: a flor colhida
Sobre abismos ocultos e fatais?
A quimera da Terra Prometida,
No êxodo eterno para o Nunca-Mais?

 

É, então, isso a vida: o sonho obscuro
Dos Ícaros, Jasões e Prometeus,
Perdido na celagem do futuro?

 

É, então, isso a vida? — Vida, adeus!
Não é esse o caminho que procuro...
Mas seja tudo pelo amor de Deus.

 

 


Poemas e Poesias quinta, 21 de maio de 2020

Ó ALZIRA, ALZIRA, ALZIRA (POEMA DO CATARINENSE CRUZ E SOUZA)

Ó ALZIRA, ALZIRA, ALZIRA

Cruz e Sousa

 

Ó Alzira, Alzira, Alzira,
Estrela resplandecente,
Resplandecente safira,
Ó Alzira, Alzira, Alzira,
As vibrações desta lira,
Acorda do sono ardente,
Ó Alzira, Alzira, Alzira,
Estrela resplandecente.


Poemas e Poesias quarta, 20 de maio de 2020

MAS HÁ VIDA (POEMA DA UCRANIANA-BRASILEIRA CLARICE LISPECTOR)

MAS HÁ VIDA

Clarice Lispector

 

 

Mas há a vida
que é para ser
intensamente vivida, há o amor.

Que tem que ser vivido
até a última gota.
Sem nenhum medo.
Não mata.


Poemas e Poesias terça, 19 de maio de 2020

DESPEDIDA (POEMA DA CARIOCA CECÍLIA MEIRELES)

DESPEDIDA

Cecília Meireles

 

Por mim, e por vós, e por mais aquilo
que está onde as outras coisas nunca estão
deixo o mar bravo e o céu tranqüilo:
quero solidão.

Meu caminho é sem marcos nem paisagens.
E como o conheces ? – me perguntarão.
– Por não Ter palavras, por não ter imagens.
Nenhum inimigo e nenhum irmão.

Que procuras ? Tudo. Que desejas ? – Nada.
Viajo sozinha com o meu coração.
Não ando perdida, mas desencontrada.
Levo o meu rumo na minha mão.

A memória voou da minha fronte.
Voou meu amor, minha imaginação…
Talvez eu morra antes do horizonte.
Memória, amor e o resto onde estarão?

Deixo aqui meu corpo, entre o sol e a terra.
(Beijo-te, corpo meu, todo desilusão !
Estandarte triste de uma estranha guerra…)
Quero solidão.

 

Poemas e Poesias domingo, 17 de maio de 2020

A CANOA FANTÁSTICA (27ª PARTE DO POEMA A CACHOEIRA DE PAULO AFONSO, DO BAIANO CASTRO ALVES)

A CANOA FANTÁSTICA

Castro Alves

(Do poema A Cachoeira de Paulo Afonso)

 

Pelas sombras temerosas
Onde vai esta canoa?
Vai tripulada ou perdida?
Vai ao certo ou vai à toa?

Semelha um tronco gigante
De palmeira, que sescoa...
No dorso da correnteza,
Como bóia esta canoa! ...

Mas não branqueja-lhe a velar
Nágua o remo não ressoa!
Serão fantasmas que descem
Na solitária canoa?

Que vulto é este sombrio
Gelado, imóvel, na proa?
Dir-se-ia o gênio das sombras
Do inferno sobre a canoa! ...

Foi visão? Pobre criança!
À luz, que dos astros coa,
É teu, Maria, o cadáver,
Que desce nesta canoa?

Caída, pálida, branca!...
Não há quem dela se doa?!...
Vão-lhe os cabelos a rastos
Pela esteira da canoa!...

E as flores róseas dos golfos,
— Pobres flores da lagoa,
Enrolam-se em seus cabelos
E vão seguindo a canoa! ...

"


Poemas e Poesias sábado, 16 de maio de 2020

CANTO DE AMOR (POEMA DO FLUMINENSE CASIMIRO DE ABREU)

CANTO DE AMOR

Casimiro de Abreu

 

A M.***

I
Eu vi-a e minha alma antes de vê-la
Sonhara-a linda como agora a vi;
Nos puros olhos e na face bela,
Dos meus sonhos a virgem conheci.

Era a mesma expressão, o mesmo rosto,
Os mesmos olhos só nadando em luz,
E uns doces longes, como dum desgosto.
Toldando a fronte que de amor seduz!

E seu talhe era o mesmo, esbelto, airoso
Como a palmeira que se ergue ao ar,
Como a tulipa ao pôr-do-sol saudoso,
Mole vergando à viração do mar.

Era a mesma visão que eu dantes via,
Quando a minha alma transbordava em fé;
E nesta eu creio como na outra eu cria,
Porque é a mesma visão, bem sei que é!

No silêncio da noite a virgem vinha
Soltas as tranças junto a mim dormir;
E era bela, meu Deus, assim sozinha
No seu sono d'infante inda a sorrir!...

........................
.


II
Vi-a e não vi-a! Foi num só segundo,
Tal como a brisa ao perpassar na flor,
Mas nesse instante resumi um mundo
De sonhos de ouro e de encantado amor.

O seu olhar não me cobriu d'afago,
E minha imagem nem sequer guardou,
Qual se reflete sobre a flor dum lago
A branca nuvem que no céu passou.

A sua vista espairecendo vaga,
Quase indolente, não me viu, ai, não!
Mas eu que sinto tão profunda a chaga
Ainda a vejo como a vi então.

Que rosto d'anjo, qual estátua antiga
No altar erguida, já cabido o véu!
Que olhar de fogo, que a paixão instiga?
Que níveo colo prometendo um céu.

Vi-a e amei-a, que a minha alma ardente
Em longos sonhos a sonhara assim;
O ideal sublime, que eu criei na mente,
Que em vão buscava e que encontrei por fim!

III
P'ra ti, formosa, o meu sonhar de louco
E o dom fatal, que desde o berço é meu;
Mas se os cantos da lira achares pouco,
Pede-me a vida, porque tudo é teu.

Se queres culto - como um crente adoro,
Se preito queres - eu te caio aos pés,
Se rires - rio, se chorares - choro,
E bebo o pranto que banhar-te a tez.

Dá-me em teus lábios um sorrir fagueiro,
E desses olhos um volver, um só;
E verás que meu estro, hoje rasteiro,
Cantando amores s'erguerá do pó!

Vem reclinar-te, como a flor pendida,
Sobre este peito cuja voz calei:
Pede-me um beijo... e tu terás, querida,
Toda a paixão que para ti guardei.

Do morto peito vem turbar a calma,
Virgem, terás o que ninguém te dá;
Em delírios d'amor dou-te a minha alma,
Na terra, a vida, a eternidade - lá!

IV
Se tu, oh linda, em chama igual te abrasas,
Oh! não me tardes, não me tardes, - vem!
Da fantasia nas douradas asas
Nós viveremos noutro mundo - além!

De belos sonhos nosso amor povôo,
Vida bebendo nos olhares teus;
E como a garça que levanta o vôo,
Minha alma em hinos falará com Deus!

Juntas, unidas num estreito abraço,
As nossas almas uma só serão;
E a fronte enferma sobre o teu regaço
Criará poemas d'imortal paixão!

Oh! vem, formosa, meu amor é santo,
É grande e belo como é grande o mar,
E doce e triste como d'harpa um canto
Na corda extrema que já vai quebrar!

Oh! vem depressa, minha vida foge...
Sou como o lírio que já murcho cai!
Ampara o lírio que inda é tempo hoje!
Orvalha o lírio que morrendo vai!...


Poemas e Poesias sexta, 15 de maio de 2020

A ALMA DOS VINTE ANOS (POEMA DO FLUMINENSE ALBERTO DE OLIVEIRA)

A ALMA DOS VINTE ANOS 

Alberto de Oliveira

 

 
 

 

A alma dos meus vinte anos noutro dia
Senti volver-me ao peito, e pondo fora
A outra, a enferma, que lá dentro mora,
Ria em meus lábios, em meus olhos ria.

Achava-me ao teu lado então, Luzia,
E da idade que tens na mesma aurora;
A tudo o que já fui, tornava agora,
Tudo o que ora não sou, me renascia.

Ressenti da paixão primeira e ardente
A febre, ressurgiu-me o amor antigo
Com os seus desvarios e com os seus enganos…

Mas ah! quando te foste, novamente
A alma de hoje tornou a ser comigo,
E foi contigo a alma dos meus vinte anos.


Poemas e Poesias quinta, 14 de maio de 2020

O DESMANTELO AZUL (POEMA DO PERNAMBUCANO CARLOS PENA FILHO)

SONETO DO DESMANTELO AZUL

Carlos Pena Filho

 

Então, pintei de azul os meus sapatos
por não poder de azul pintar as ruas,
depois, vesti meus gestos insensatos
e colori as minhas mãos e as tuas,

Para extinguir em nós o azul ausente
e aprisionar no azul as coisas gratas,
enfim, nós derramamos simplesmente
azul sobre os vestidos e as gravatas.

E afogados em nós, nem nos lembramos
que no excesso que havia em nosso espaço
pudesse haver de azul também cansaço.

E perdidos de azul nos contemplamos
e vimos que entre nós nascia um sul
vertiginosamente azul. Azul.


Poemas e Poesias quarta, 13 de maio de 2020

A RUA DIFERENTE (POEMA DO MINEIRO CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE )

A RUA DIFERENTE

Carlos Drummond de Andrade

 

 

Na minha rua estão cortando árvores
Botando trilhos
Construindo casas.
Minha rua acordou mudada.

Os vizinhos não se conformam.
Eles não sabem que a vida
tem dessas exigências brutas.

Só minha filha goza o espetáculo
e se diverte com os andaimes,
a luz da solda autógena
e o cimento escorrendo nas formas


Poemas e Poesias terça, 12 de maio de 2020

SONETO 103 - CANTANDO ESTAVA UM DIA BEM SEGURO (POEMA DO PORTUGUÊS LUÍS DE CAMÕES)

CANTANDO ESTAVA UM UM DIA BEM SEGURO

Soneto 103

 

Luís de Camões

Cantando estava hum dia bem seguro,
Quando passava Sylvio, e me dizia:
(Sylvio, pastor antiguo que sabia
Por o canto das aves o futuro)

Liso, quando quizer o fado escuro,
A opprimir-te virão em hum só dia
Dous lobos; logo a voz e a melodia
Te fugirão, e o som suave e puro.

Bem foi assi; porque hum me degolou
Quanto gado vacum pastava e tinha,
De que grandes soldadas esperava.

E por mais damno o outro me matou
A cordeira gentil, qu'eu tanto amava,
Perpétua saudade da alma minha.


Poemas e Poesias segunda, 11 de maio de 2020

SONETO DO RETRATO MAL FALADO (POEMA DO PORTUGUÊS MANUEL MARIA DU BOCAGE)

SONETO DO RETRATO MAL FALADO

Bocage

 

Esqueleto animal, cara de fome,
De Timão, e chapéu à holandesa,
Olhos espantadiços, boca acesa,
D'onde o fumo, que sai, a todos some:

Milagre do Parnaso em fama e nome,
Em corpo galicado alma francesa,
Com voz medonha, língua portuguesa,
Que aos bocados a honra e brio come:

Toda a moça, que dele se confia,
É virgem no serralho do seu peito;
Janela, que se fecha, putaria!

Neste esboço o retrato tenho feito;
Eis o grande e fatal Manoel Maria,
Que até pintado perde o bom conceito.


Poemas e Poesias domingo, 10 de maio de 2020

O MARTÍRIO DO ARTISTA (POEMA DO CAPIXABA AUGUSTO DOS ANJOS)

O MARTÍRIO DO ARTISTA

Augusto dos Anjos

 


Arte ingrata! E conquanto, em desalento,
A órbita elipsoidal dos olhos lhe arda,
Busca exteriorizar o pensamento
Que em suas fronetais células guarda!

Tarda-lhe a Idéia! A inspiração lhe tarda!
E ei-lo a tremer, rasga o papel, violento,
Como o soldado que rasgou a farda
No desespero do último momento!

Tenta chorar e os olhos sente enxutos!...
É como o paralítico que, à míngua
Da própria voz e na que ardente o lavra

Febre de em vão falar, com os dedos brutos
Para falar, puxa e repuxa a língua,
E não lhe vem à boca uma palavra!


Poemas e Poesias sábado, 09 de maio de 2020

MISTICISMO Nº 2 (POEMA DO PERNAMBUCANO ASCENSO FERREIRA)

MISTICISMO N° 2

Ascenso Ferreira

 

O espirito-mau entrou no meu couro!
Entrou no meu couro algum mangangá
E eu quero mulheres…
Mulheres…
Mulheres…

Curibocas!
Mamelucas!
Cafussus…

Caboclas viçosas de bocas pitangas!
Mulatas dengosas caju e cajá!

Mulheres brancas como assucar de primeira!
Mulheres macias como a penugem do ingá!
Mas sempre mulheres…
Mulheres…
Mulheres…

(Ou lêlê)
Todas formosas,
todas belas,
todas novas…

(Ou lala)

Deitadas molengas em folhas macias!
Na sombra rajada das bananeiras lentas
Iluminadas por um sol-das-almas!

Só para eu,
devagarinho,
fazer com elas!

“Pinicainho
da barra do 25
mingorra mingorra
tire esta mão
que já está forra…”


Poemas e Poesias sexta, 08 de maio de 2020

MILAGRE (POEMA DO MARANHENSE ARTHUR AZEVEDO)

MILAGRE

Arthur Azevedo

 

Com cinco pães o Cristo
Deu de comer a cinco mil pessoas!
Eu não me assombro disto,
Pois tu, que o meu espírito magoas,
Tens um só coração,
E amas, contudo, uma população!


Poemas e Poesias quinta, 07 de maio de 2020

A VIAGEM (POEMA DO PARAIBANO ARIANO SUASSUNA)

A VIAGEM

Ariano Suassuna

 

Meu sangue, do pragal das Altas Beiras,
boiou no Mar vermelhas Caravelas:
À Nau Catarineta e à Barca Bela
late o Potro castanho de asas Negras.
 
 

E aportou. Rosas de ouro, azul Chaveira,
Onça malhada a violar Cadelas,
Depôs sextantes, Astrolábios, velas,
No planalto da Pedra sertaneja.

 

Hoje, jogral Cigano e tresmalhado,
Vaqueiro de seu couro cravejado.
Com Medalhas de prata, a faiscar,

 

bebendo o Sol de fogo e o Mundo oco,
meu coração é um Almirante louco
Que abandonou a profissão do Mar.

 


Poemas e Poesias quarta, 06 de maio de 2020

NA MÃO DE DEUS (POEMA DO PORTUGUÊS ANTERO DE QUENTAL)

NA MÃO DE DEUS

Antero de Quental

 

Na mão de Deus, na sua mão direita,
Descansou afinal meu coração.
Do palácio encantado da Ilusão
Desci a passo e passo a escada estreita.

Como as flores mortais, com que se enfeita
A ignorância infantil, despojo vão,
Depois do Ideal e da Paixão
A forma transitória e imperfeita.

Como criança, em lôbrega jornada,
Que a mãe leva ao colo agasalhada
E atravessa, sorrindo vagamente,

Selvas, mares, areias do deserto...
Dorme o teu sono, coração liberto,
Dorme na mão de Deus eternamente!


Poemas e Poesias terça, 05 de maio de 2020

CANTIGA DE VIOLA (POEMA DO PAULISTA ÁLVARES DE AZEVEDO)

CANTIGA DE VIOLA

Álvares Azevedo

 

A existência dolorida
Cansa em meu peito: eu bem sei
Que morrerei...
Contudo da minha vida
Podia alentar-se a flor
No teu amor!

Do coração nos refolhos
Solta um ai! num teu suspiro
Eu respiro...
Mas fita ao menos teus olhos
Sobre os meus... eu quero-os ver
Para morrer!

Guarda contigo a viola
onde teus olhos cantei...
E suspirei!
Só a idéia me consola
Que morro como vivi...
Morro por ti!

Se um dia tu'alma pura
Tiver saudades de mim,
Meu serafim!
Talvez notas de ternura
Inspirem o doudo amor
Do trovador!


Poemas e Poesias segunda, 04 de maio de 2020

CISNES BRANCOS (POEMA DO MINEIRO ALPHONSUS GUIMARAENS)

CISNES BRANCOS

Alphonsus Guimaraens

 

 

Ó cisnes brancos, cisnes brancos,
Porque viestes, se era tão tarde?
O sol não beija mais os flancos
Da Montanha onde mora a tarde.

Ó cisnes brancos, dolorida
Minh’alma sente dores novas.
Cheguei à terra prometida:
É um deserto cheio de covas.

Voai para outras risonhas plagas,
Cisnes brancos! Sede felizes...
Deixai-me só com as minhas chagas,
E só com as minhas cicatrizes.

Venham as aves agoireiras,
De risada que esfria os ossos...
Minh’alma, cheia de caveiras,
Está branca de padre-nossos.

Queimando a carne como brasas,
Venham as tentações daninhas,
Que eu lhes porei, bem sob asas,
A alma cheia de ladainhas.

Ó cisnes brancos, cisnes brancos,
Doce afago da alva plumagem!
Minh’alma morre aos solavancos
Nesta medonha carruagem...

Quando chegaste, os violoncelos
Que andam no ar cantaram no hinos.
Estrelaram-se todos os castelos,
E até nas nuvens repicaram sinos.

Foram-se as brancas horas sem rumo,
Tanto sonhadas! Ainda, ainda
Hoje os meus pobres versos perfumo
Com os beijos santos da tua vinda.

Quando te foste, estalaram cordas
Nos violoncelos e nas harpas...
E anjos disseram: — Não mais acordas,
Lírio nascido nas escarpas!

Sinos dobraram no céu e escuto
Dobres eternos na minha ermida.
E os pobres versos ainda hoje enluto
Com os beijos santos da despedida.


Poemas e Poesias domingo, 03 de maio de 2020

A IMPLOSÃO DA MENTIRA, OU O EPISÓDIO DO RIOCENTRO (POEM DO MINEIRO AFFONSO ROMANO DE SANT,ANNA)

 A IMPLOSÃO DA MENTIRA, OU O EPISÓDIO DO RIOCENTRO

Affonso Romano de Sant'Anna

 



Mentiram-me. Mentiram-me ontem
e hoje mentem novamente. Mentem
de corpo e alma, completamente.
E mentem de maneira tão pungente
que acho que mentem sinceramente.

Mentem, sobretudo, impune/mente.
Não mentem tristes. Alegremente
mentem. Mentem tão nacional/mente
que acham que mentindo história afora
vão enganar a morte eterna/mente.

Mentem. Mentem e calam. Mas suas frases
falam. E desfilam de tal modo nuas
que mesmo um cego pode ver
a verdade em trapos pelas ruas.

Sei que a verdade é difícil
e para alguns é cara e escura.
Mas não se chega à verdade
pela mentira, nem à democracia
pela ditadura.

 


Poemas e Poesias sexta, 01 de maio de 2020

BILHETE EM PAPEL ROSA (POEMA DA MINEIRA ADÉLIA PRADO)

BILHETE EM PAPEL ROSA

Adélia Prado

 

Quantas loucuras fiz por teu amor, Antônio.
Vê estas olheiras dramáticas,
este poema roubado:
"o cinamomo floresce
em frente ao teu postigo.
Cada flor murcha que desce,
morro de sonhar contigo".
Ó bardo, eu estou tão fraca
e teu cabelo tão é negro,
eu vivo tão perturbada, pensando com tanta força
meu pensamento de amor,
que já nem sinto mais fome,
o sono fugiu de mim. Me dão mingaus,
caldos quentes, me dão prudentes conselhos,
eu quero é a ponta sedosa do teu bigode atrevido,
a tua boca de brasa, Antônio, as nossas vias ligadas.
Antônio lindo, meu bem,
ó meu amor adorado,
Antônio, Antônio.
Para sempre tua.


Poemas e Poesias quinta, 30 de abril de 2020

A UM HOMEM (POEMA DA CARIOCA ADALGISA NERY)

A UM HOMEM

Adalgisa Nery

 

Quando numa rocha porosa
Cansado te encostares
E dela vires surgir a umidade e depois a gota,
Pensa, amado meu, com carinho,
Que aí está a minha boca.

Se teus olhos ficarem nas praias

E vires o mar ensalivando a areia
Com alegria pensa, amado meu, 
Num corpo feliz
Porque é só teu.

Se descansares sob uma árvore frondosa


E além da sombra ela te envolver de ar resinoso
Lembra-te com entorpecência, amado meu,
Da delícia do meu ventre amoroso.

Quando olhares o céu

E vires a andorinha tonta na amplidão
Pensa, amado meu, que assim sou eu
Perdida na infindável solidão.

A noite quando as trevas chegarem

E vires do firmamento
Uma estrela cair e se afundar
É sinal, amado meu,
Que o teu amor vai me abandonar.

Na morte, quando perderes o último sentido

E a tua própria voz
Em forma de pensamento
Te subir ao ouvido
Deixa escorrer a derradeira lágrima pelo teu rosto
Nascida do extremo alento do coração
E pensa então, amado meu,
Que ainda é um suave carinho da minha mão!


Poemas e Poesias quarta, 29 de abril de 2020

A CIDADE ANTIGA (POEMA DO CARIOCA VINÍCIUS DE MORAES)

A CIDADE ANTIGA

Vinícius de Moraes

 

Houve tempo em que a cidade tinha pêlo na axila 
E em que os parques usavam cinto de castidade 
As gaivotas do Pharoux não contavam em absoluto 
Com a posterior invenção dos kamikazes 
De resto, a metrópole era inexpugnável 
Com Joãozinho da Lapa e Ataliba de Lara. 

Houve tempo em que se dizia: LU-GO-LI-NA 
U, loura; O, morena; I, ruiva; A, mulata! 
Vogais! tônico para o cabelo da poesia 
Já escrevi, certa vez, vossa triste balada 
Entre os minuetos sutis do comércio imediato 
As portadoras de êxtase e de permanganato! 

Houve um tempo em que um morro era apenas um morro 
E não um camelô de colete brilhante 
Piscando intermitente o grito de socorro 
Da livre concorrência: um pequeno gigante 
Que nunca se curvava, ou somente nos dias 
Em que o Melo Maluco praticava acrobacias. 

Houve tempo em que se exclamava: Asfalto! 
Em que se comentava: Verso livre! com receio... 
Em que, para se mostrar, alguém dizia alto: 
"Então às seis, sob a marquise do Passeio..." 
Em que se ia ver a bem-amada sepulcral 
Decompor o espectro de um sorvete na Paschoal 

Houve tempo em que o amor era melancolia 
E a tuberculose se chamava consumpção 
De geométrico na cidade só existia 
A palamenta dos ioles, de manhã... 
Mas em compensação, que abundância de tudo! 
Água, sonhos, marfim, nádegas, pão, veludo! 

Houve tempo em que apareceu diante do espelho 
A flapper cheia de it, a esfuziante miss 
A boca em coração, a saia acima do joelho 
Sempre a tremelicar os ombros e os quadris 
Nos shimmies: a mulher moderna... Ó Nancy! Ó Nita! 
Que vos transformastes em dízima infinita... 

Houve tempo... e em verdade eu vos digo: havia tempo 
Tempo para a peteca e tempo para o soneto 
Tempo para trabalhar e para dar tempo ao tempo 
Tempo para envelhecer sem ficar obsoleto... 
Eis por que, para que volte o tempo, e o sonho, e a rima 
Eu fiz, de humor irônico, esta poesia acima.


Poemas e Poesias terça, 28 de abril de 2020

ADORMECIDA (POEMA DO PAULISTA VICENTE DE CARVALHO)

ADORMECIDA 

Vicente de Carvalho

 

Ela dormia... Sobre o alvor do leito
Desenhava-se, esplêndida miragem,
Seu lindo corpo, escultural, perfeito.

Encrespado das rendas da roupagem,
Seu seio brandamente palpitava
Como a lagoa no tremor da aragem.

Solto, o cabelo se desenrolava
Sobre os lençóis, em plena rebeldia,
Como um revolto mar que os alagava.

Como no céu, quando desponta o dia,
A aurora raia, de um sorriso a aurora
Pelo seu meigo rosto se expandia.

E ela dormia descuidada... Fora,
O mar gemia um cântico plangente
Como uma alma perdida que erra e chora.

Um raio de luar, branco e tremente,
Pela janela mal cerrada veio
Entrando, surda, sorrateiramente...

Ia beijá-la em voluptuoso anseio;
Mas, ao vê-la dormindo entre as serenas
Ondas daquele sono sem receio,

Hesitou em beijar-lhe as mãos pequenas,
E humildemente, e como ajoelhando,
Beijou-lhe a fímbria do vestido apenas...

E o lindo quadro, estático, fitando,
Senti não sei que mística ternura
Por toda a alma se me derramando

Porque acima daquela formosura
Do corpo, os seus quinze anos virginais
Envolviam-lhe a angélica figura
Na sombra de umas asas ideais.


Poemas e Poesias segunda, 27 de abril de 2020

RUI MORTO (POEMA DO CEARENSE QUINTINO CUNHA)

RUI MORTO

Quintino Cunha

 

 

Cerebração complexa e o primeiro
dos grandes homens nacionais em tudo.
Continente a viver do conteúdo
de si mesmo, na Pátria e no estrangeiro.

De virtudes, um másculo pioneiro;
da nossa Liberdade, eterno escudo;
deram-lhe tudo, menos sobretudo,
a direção do povo brasileiro!

Vivo, não fora a tanto necessário...
Morto, é tão grande, é tão extraordinário,
que encontra, em cada Estrela, um cemitério!

De onde passo a ilagir, um tanto aflito:
ou o Rui foi menos do que se tem dito,
ou este nosso Brasil é um caso sério...


Poemas e Poesias domingo, 26 de abril de 2020

A UMA BAILARINA (POEMA DO MINEIRO PAULO MENDES CAMPOS)

A UMA BAILARINA

Paulo Mendes Campos

Quero escrever meu verso no momento
Em que o limite extremo da ribalta
Silencia teus pés, e um deus se exalta
Como se o corpo fosse um pensamento.

Além do palco, existe o pavimento
Que nunca imaginamos em voz alta,
Onde teu passo puro sobressalta
Os pássaros sutis do movimento.

Amo-te de um amor que tudo pede
No sensual momento em que se explica
O desejo infinito da tristeza,

Sem que jamais se explique ou desenrede,
Mariposa que pousa mas não fica,
A tentação alegre da pureza.


Poemas e Poesias sábado, 25 de abril de 2020

MINHA SERRA (POEMA DO CEARENSE PATATIVA DO ASSARÉ)

MINHA SERRA

Patativa do Assaré

 

Quando o sol nascente se levanta
Espalhando os seus raios sobre a terra,
Entre a mata gentil da minha serra
Em cada galho um passarinho canta.
 
Que bela festa! Que alegria tanta!
E que poesia o verde campo encerra!
O novilho gaiteia a cabra berra
Tudo saudando a natureza santa.
 
Ante o concerto desta orquestra infinda
Que o Deus dos pobres ao serrano brinda,
Acompanhada da suave aragem.
 
Beijando a choça do feliz caipira,
Sinto brotar da minha rude lira
O tosco verso do cantor selvagem.

 


Poemas e Poesias sexta, 24 de abril de 2020

DESENGANOS (POEMA DO CEARENSE PADRA ANTÔNIO TOMÁS)

DESENGANOS

Padre Antônio Tomás

 

Muitas vezes sonhei nos tempos idos  
Acalentando sonhos de ventura,  
Então a voz da lira suave e pura  
Era-me um gozo d'alma e dos sentidos. 
 
Hoje, vejo meus sonhos convertidos  
Num acervo de dores e de amargura  
E percorro da vida a estrada escura 
Recalcando no peito os meus gemidos
 
E se tento cantar como remédio  
Minhas mágoas ao sombrio tédio  
Que lentamente as forças me quebranta  
 
Os sons de lira que arranco agora  
Mais parecem soluços de quem chora  
Do que a doce toada de quem canta.


Poemas e Poesias quinta, 23 de abril de 2020

REI DESTRONADO (POEMA DO CARIOCA OLAVO BILAC)

REI DESTRONADO

Olavo Bilac

 

O teu lugar vazão!... E esteve cheio,
Cheio de mocidade e de ternura!
Como brilhava a tua formosura!
Que luz divina te doirava o seio!

Quando a camisa tépida despias,
- Sob o reflexo do cabelo louro,
De pé, na alcova, ardias e fulgias
Como um ídolo de ouro.

Que fundo o fogo do primeiro beijo,
Que eu te arrancava ao lábio recendente!
Morria o meu desejo... outro desejo
Nascia mais ardente.

Domada a febre, lânguida, em meus braços
Dormias, sobre os linhos revolvidos,
Inda cheios dos últimos gemidos,
Inda quentes dos últimos abraços...

Tudo quanto eu pedira e ambicionara,
Tudo meus dedos e meus olhos calmos
Gozavam satisfeitos nos seis palmos
De tua carne saborosa e clara:

Reino perdido! glória dissipada
Tão loucamente! A alcova está deserta,
Mas inda com o teu cheiro perfumada,
Do teu fulgor coberta...


Poemas e Poesias quarta, 22 de abril de 2020

BELEZA (POEMA DO PAULISTA MENOTTI DEL PICCHIA)

BELEZA 

Menotti Del Picchia

 

 

A beleza das coisas te devasta
como o sol que fascina mas te cega.
Delas contundo a luminosa entrega
nunca se dá, melhor, nunca te basta.

E a imensa paz que para além te arrasta
quanto mais se te esquiva ou te renega...
Paz tão do alto e paz dessa macega
que nos campos esplende à luz mais casta.

A beleza te fere e todavia
afaga, uma emoção (sempre a primeira e nunca
repetida) que conduz

o teu deslumbramento para um dia
à noite misturado, na clareira
em que te sentes noite em plena luz.


Poemas e Poesias terça, 21 de abril de 2020

DA FELICIDADE (POEMA DO GAÚCHO MÁRIO QUINTANA)

DA FELICIDADE

Mário Quintana

 

Quantas vezes a gente, em busca da ventura,
Procede tal e qual o avozinho infeliz:
Em vão, por toda parte, os óculos procura
Tendo-os na ponta do nariz!


Poemas e Poesias segunda, 20 de abril de 2020

AMOR (POEMA DA MARANHENSE MARIA FIRMINA DOS REIS), NA VOZ DE SOCORRO LIRA


Poemas e Poesias domingo, 19 de abril de 2020

ARTE DE AMAR (POEMA DO PERNAMBUCANO MANUEL BANDEIRA)

ARTE DE AMAR

Manuel Bandeira

 

Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua alma.
A alma é que estraga o amor.
Só em Deus ela pode encontrar satisfação.
Não noutra alma.
Só em Deus — ou fora do mundo.
As almas são incomunicáveis.

Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo.

Porque os corpos se entendem, mas as almas não.


Poemas e Poesias sábado, 18 de abril de 2020

DESEJAR SER (POEMAS DO MATO-GROSSENSE MANOEL DE BARROS)

DESEJAR SER

Manoel de Barros

Nasci para administrar o à-toa
                                  o em vão
                                  o inútil.

Pertenço de fazer imagens.
Opero por semelhanças.
Retiro semelhanças de pessoas com árvores
                              de pessoas com rãs
                              de pessoas com pedras
                              etc etc.

Retiro semelhanças de árvores comigo.
Não tenho habilidade pra clarezas.
Preciso de obter sabedoria vegetal.
(Sabedoria vegetal é receber com naturalidade uma rã no talo.)
E quando esteja apropriado para pedra, terei também sabedoria mineral.


Poemas e Poesias sexta, 17 de abril de 2020

PERGUNTAS SEM RESPOSTA (POEMA DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

PERGUNTAS SEM RESPOSTA

Machado de Assis

 

Vênus Formosa, Vênus fulgurava
No azul do céu da tarde que morria,
Quando à janela os braços encostava
Pálida Maria.

Ao ver o noivo pela rua umbrosa,
Os longos olhos ávidos enfia,
E fica de repente cor-de-rosa
Pálida Maria.

Correndo vinha no cavalo baio,
Que ela de longe apenas distinguia,
Correndo vinha o noivo, como um raio...
Pálida Maria!

Três dias são, três dias são apenas,
Antes que chegue o suspirado dia,
Em que eles porão termo às longas penas...
Pálida Maria!

De confusa, naquele sobressalto,
Que a presença do amado lhe trazia,
Olhos acesos levantou ao alto
Pálida Maria.

E foi subindo, foi subindo acima
No azul do céu da tarde que morria,
A ver se achava uma sonora rima...
Pálida Maria!

Rima de amor, ou rima de ventura,
As mesmas são na escala da harmonia.
Pousa os olhos em Vênus que fulgura
Pálida Maria.

E o coração, que de prazer lhe bate,
Acha no astro a fraterna melodia
Que à natureza inteira dá rebate...
Pálida Maria!

Maria pensa: "Também tu, decerto,
Esperas ver, neste final do dia,
Um noivo amado que cavalga perto.
Pálida Maria?"

Isto dizendo, súbito escutava
Um estrépito, um grito e vozeria,
E logo a frente em ânsias inclinava
Pálida Maria.

Era o cavalo, rábido, arrastando
Pelas pedras o noivo que morria;
Maria o viu e desmaiou gritando...
Pálida Maria !

Sobem o corpo, vestem-lhe a mortalha,
E a mesma noiva, semimorta e fria,
Sobre ele as folhas do noivado espalha.
Pálida Maria!

Cruzam-se as mãos, na derradeira prece
Muda que o homem para cima envia,
Antes que desça à terra em que apodrece.
Pálida Maria!

Seis homens tomam do caixão fechado
E vão levá-lo à cova que se abria;
Terra e cal e um responso recitado...
Pálida Maria!

Quando, três sóis passados, rutilava
A mesma Vênus, no morrer do dia,
Tristes olhos ao alto levantava
Pálida Maria.

E murmurou: "Tens a expressão do goivo,
Tens a mesma roaz melancolia;
Certamente perdeste o amor e o noivo,
Pálida Maria?"

Vênus, porém, Vênus brilhante e bela,
Que nada ouvia, nada respondia,
Deixa rir ou chorar numa janela
Pálida Maria.


Poemas e Poesias quinta, 16 de abril de 2020

BICO DA TORRE (POEM ADO PERNAMBUCANO LUÍS TURIBA)

BICO DA TORRE

Luís Turiba

 

A sombra do bico da Torre na terra
faz o ponteio
que marca o preciso momento e o destino
da gente se amar
São flocos de nuvens que pairam
no céu de Brasília
dão na vista textura arquitetura obra de artista
São blocos caiados de branco
banhados de chuva e de luz
necessidade nessa cidade
de afeto é o que conduz
Me induzo a ficar a pensar
que sou o céu
e o bico da torre é a antena
que marca o momento apenas


Poemas e Poesias quarta, 15 de abril de 2020

ESTÃO AQUI AS POBRES COISAS (POEMA DO ALAGOANO JORGE DE LIMA)

ESTÃO AQUI AS POBRES COISAS

Jorge de Lima

 

Estão aqui as pobres coisas: cestas
esfiapadas, botas carcomidas, bilhas
arrebentadas, abas corroídas,
com seus olhos virados para os que

as deixaram sozinhas, desprezadas,
esquecidas com outras coisas, sejam:
búzios, conchas, madeiras de naufrágio,
penas de ave e penas de caneta,

e as outras pobres coisas, pobres sons,
coitos findos, engulhos, dramas tristes,
repetidos, monótonos, exaustos,

visitados tão só pelo abandono,
tão só pela fadiga em que essas ditas
coisas goradas e órfãs se desgastam.


Poemas e Poesias terça, 14 de abril de 2020

DIFÍCIL SER FUNCIONÁRIO (POEMA DO PERNAMBUCANO JOÃO CABRAL DE MELO NETO)

DIFÍCIL SER FUNCIONÁRIO

João Cabral de Melo Neto

 

Difícil ser funcionário
Nesta segunda-feira.
Eu te telefono, Carlos
Pedindo conselho.

Não é lá fora o dia
Que me deixa assim,
Cinemas, avenidas,
E outros não-fazeres.

É a dor das coisas,
O luto desta mesa;
É o regimento proibindo
Assovios, versos, flores.

Eu nunca suspeitara
Tanta roupa preta;
Tão pouco essas palavras —
Funcionárias, sem amor.

Carlos, há uma máquina
Que nunca escreve cartas;
Há uma garrafa de tinta
Que nunca bebeu álcool.

E os arquivos, Carlos,
As caixas de papéis:
Túmulos para todos
Os tamanhos de meu corpo.

Não me sinto correto
De gravata de cor,
E na cabeça uma moça
Em forma de lembrança

Não encontro a palavra
Que diga a esses móveis.
Se os pudesse encarar…
Fazer seu nojo meu…

Carlos, dessa náusea
Como colher a flor?
Eu te telefono, Carlos,
Pedindo conselho.


Poemas e Poesias segunda, 13 de abril de 2020

ALVORADA ETERNA (POEMA DO ACRIANO J. G. DE ARAÚJO JORGE)

ALVORADA ETERNA

J. G. de Araújo Jorge

 



Quando formos os dois já bem velhinhos,
já bem cansados, trôpegos, vencidos,
um ao outro apoiados, nos caminhos,
depois de tantos sonhos percorridos...

Quando formos os dois já bem velhinhos
a lembrar tempos idos e vividos,
sem mais nada colher, nem mesmo espinhos
nos gestos desfolhados e pendidos...

Quando formos só os dois, já bem velhinhos,
lá onde findam todos os caminhos
e onde a saudade, o chão, de folhas junca...

Olha amor, os meus olhos, bem no fundo,
e hás de ver que este amor em que me inundo
é uma alvorada que não morre nunca!


Poemas e Poesias domingo, 12 de abril de 2020

CINCO ELEGIAS - QUARTA (POEMA DA PAULISTA HILDA HILST)

CINCO ELEGIAS - QUARTA

Hilda Hilst

 

Não te espantes da vontade
Do poeta
Em transmudar-se:
Quero e queria ser boi
Ser flor
Ser paisagem.
Sentir a brisa da tarde
Olhar os céus, ver às tardes
Meus irmãos, bezerros, hastes,
Amar o verde, pascer,
Nascer
Junto à terra
(À noite amar as estrelas)
Ter olhos claros, ausentes,
Sem o saber ser contente
De ser boi, ser flor, paisagem.
Não te espantes. E reserva
Teu sorriso para ops homens
Que a todo custo hão de ser
Oradores, eruditos,
Doutos doutores
Fronte e cerne endurecido.
Quero e queria ser boi
Antes de querer ser flor.
E na planície, no monte,
Movendo com igual compasso
A carcaça e os leves cascos
(Olhando além do horizonte)
Um pensamento eu teria:
Mais vale a mente vazia.

E sendo boi, sou ternura.
Aunque pueda parecer
Que del poeta
Es locura.


Poemas e Poesias sábado, 11 de abril de 2020

À MORTE (POEM DA PORTUGUESA FLORBELA ESPANCA)

À MORTE

Florbela Espanca

 

Morte, minha Senhora Dona Morte,
Tão bom que deve ser o teu abraço!
Lânguido e doce como um doce laço
E como uma raiz, sereno e forte.
Não há mal que não sare ou não conforte
Tua mão que nos guia passo a passo,
Em ti, dentro de ti, no teu regaço
Não há triste destino nem má sorte.
Dona Morte dos dedos de veludo,
Fecha-me os olhos que já viram tudo!
Prende-me as asas que voaram tanto!
Vim da Moirama, sou filha de rei,
Má fada me encantou e aqui fiquei
À tua espera... quebra-me o encanto!


Poemas e Poesias sexta, 10 de abril de 2020

CANTADA (POEMA DO MARANHENSE FERREIRA GULLAR)

CANTADA

Ferreira Gullar

 

Você é mais bonita que uma bola prateada
de papel de cigarro
Você é mais bonita que uma poça d’água
límpida
num lugar escondido
Você é mais bonita que uma zebra
que um filhote de onça
que um Boeing 707 em pleno ar
Você é mais bonita que uma refinaria da Petrobras
de noite
mais bonita que Ursula Andress
que o Palácio da Alvorada
mais bonita que a alvorada
que o mar azul-safira da República Dominicana

Olha
você é tão bonita que o Rio de Janeiro
em maio
e quase tão bonita
quanto a Revolução Cubana


Poemas e Poesias quarta, 08 de abril de 2020

TROVAS HUMORÍSTICAS - 02 - (POEMA DO PARANAENSE ENO TEODORO WANKE)

TROVA HUMORÍSTICA - 02

Eno Teodoro Wanke

 

Eu li tando sobre o mal

Resultante de beber

Meus amigos, que afinal

Decidi parar de ler

 

 


Poemas e Poesias terça, 07 de abril de 2020

AD ME IPSUM (POEMA DO PIAUIENSE DA COSTA E SILVA)

 

AD ME IPSUM

Da Costa e Silva

 

Homem fraco, de espírito covarde,
Não busques outro bem que te conforte,
Nem evites a dor, antes sê forte
Para sofrer sem grita, sem alarde...

Se, acalentando as cinzas frias, arde
Ainda a chama do amor vencendo a morte,
Não te aventures à mercê da sorte
Na ilusão de outro afeto, porque é tarde.

Conserva resignado o que tiveste,
E em teu ser, vivo e eterno, continua,
Pois, sendo humano, se tornou celeste.

E nunca outra mulher a substitua,
Que, se tua alma em vida tu lha deste,
A que vive contigo não é tua.

 


Poemas e Poesias segunda, 06 de abril de 2020

MORENA DOS OLHOS PRETOS (POEMA DO CATARINENSE CRUZ E SOUSA)

MORENA DOS OLHOS PRETOS

Cruz e Sousa

 

Morena dos olhos pretos
Dos olhos pretos, morena,
Escuta os vagos duetos
Morena dos olhos pretos,
Faremos ambos, tercetos,
Com esta esfera serena,
Morena dos olhos pretos,
Dos olhos pretos, morena.


Poemas e Poesias domingo, 05 de abril de 2020

DAS PEDRAS (POEMA DA GOIANA CORA CORALINA)

DAS PEDRAS

Cora Coralina

 

Ajuntei todas as pedras
que vieram sobre mim.
Levantei uma escada muito alta
e no alto subi.
Teci um tapete floreado
e no sonho me perdi.

Uma estrada,
um leito,
uma casa,
um companheiro.
Tudo de pedra.

Entre pedras
cresceu a minha poesia.
Minha vida…
Quebrando pedras
e plantando flores.

Entre pedras que me esmagavam
Levantei a pedra rude
dos meus versos.


Poemas e Poesias sábado, 04 de abril de 2020

HÁ MOMENTOS (POEMA DA UCRANIANA-BRASILEIRA CLARICE LISPECTOR)

HÁ MOMENTOS

Clarice Lispector

 

Há momentos na vida em que sentimos tanto
a falta de alguém que o que mais queremos
é tirar esta pessoa de nossos sonhos
e abraçá-la.

Sonhe com aquilo que você quiser.
Seja o que você quer ser,
porque você possui apenas uma vida
e nela só se tem uma chance
de fazer aquilo que se quer.

Tenha felicidade bastante para fazê-la doce.
Dificuldades para fazê-la forte.
Tristeza para fazê-la humana.
E esperança suficiente para fazê-la feliz.

As pessoas mais felizes
não têm as melhores coisas.
Elas sabem fazer o melhor
das oportunidades que aparecem
em seus caminhos.

A felicidade aparece para aqueles que choram.
Para aqueles que se machucam.
Para aqueles que buscam e tentam sempre.
E para aqueles que reconhecem
a importância das pessoas que passam por suas vidas.

O futuro mais brilhante
é baseado num passado intensamente vivido.
Você só terá sucesso na vida
quando perdoar os erros
e as decepções do passado.

A vida é curta, mas as emoções que podemos deixar
duram uma eternidade.
A vida não é de se brincar,
porque um belo dia se morre.


Poemas e Poesias sexta, 03 de abril de 2020

COLAR DA CAROLINA (POEMA DA CARIOCA CECÍLIA MEIRELES)

COLAR DA CAROLINA

Cecília Meireles

 

Para minha Carolina, que me fez

querer da vida o que ela tem de melhor.

Com seu colar de coral,
Carolina
corre por entre as colunas
da colina

O colar de Carolina
colore o colo de cal,
torna corada a menina.

E o sol, vendo aquela cor
do colar de Carolina,
põe coroas de coral

nas colunas da colina.


Poemas e Poesias quinta, 02 de abril de 2020

O CEGO (POEMA DO MARANHENSE CATULO DA PAIXÃO CEARENSE)

Catulo da Paixão Cearense

 

DECLAMAÇÃO POR ROLANDO BOLDRIN


Poemas e Poesias quarta, 01 de abril de 2020

O BANDOLIM DA DESGRAÇA (26ª PARTE DO POEMA A CACHEIRA DE PAULO AFONSO, DO BAIANO CASTRO ALVES)

O BANDOLIM DA DESGRAÇA

Castro Alves

(Do poema A Cachoeira de Paulo Afonso)

 

Quando de amor a Americana douda
A moda tange na febril viola,
E a mão febrenta sobre a corda fina
Nervosa, ardente, sacudida rola.

A gusla geme, sestorcendo em ânsias,
Rompem gemidos do instrumento em pranto...
Choro indizível... comprimir de peitos...
Queixas, soluços... desvairado canto!

E mais dorida a melodia arqueja!
E mais nervosa corre a mão nas cordas!...
Ai! tem piedade das crianças louras
Que soluçando no instrumento acordas! ...

"Ai! tem piedade dos meus seios trêmulos..."
Diz estalando o bandolim queixoso.
... E a mão palpita-lhe apertando as fibras...
E fere, e fere em dedilhar nervoso!...


Poemas e Poesias terça, 31 de março de 2020

QUANDO TU CHORAS (POEMA DO FLUMINENSE CASIMIRO DE ABREU)

QUANDO TU CHORAS

Casimiro de Abreu

 

Quando tu choras, meu amor, teu rosto
Brilha formoso com mais doce encanto,
E as leves sombras de infantil desgosto
Tornam mais belo o cristalino pranto.

Oh! nessa idade da paixão lasciva
Como o prazer, é o chorar preciso:
Mas breve passa - qual a chuva estiva -
E quase ao pranto se mistura o riso.

É doce o pranto de gentil donzela,
É sempre belo quando a virgem chora:
- Semelha a rosa pudibunda e bela
Toda banhada do orvalhar da aurora.

Da noite o pranto, que tão pouco dura,
Brilha nas folhas como um rir celeste,
E a mesma gota transparente e pura
Treme na relva que a campina veste.

Depois o sol, como sultão brilhante,
De luz inunda o seu gentil serralho,
E às flores todas - tão feliz amante -
Cioso sorve o matutino orvalho.

Assim, se choras, inda és mais formosa,
Brilha teu rosto com mais doce encanto:
- Serei o sol e tu serás a rosa...
Chora, meu anjo, - beberei teu pranto!


Poemas e Poesias segunda, 30 de março de 2020

CHOPE (POEMA DO PERNAMBUCANO CARLOS PENA FILHO)

CHOPE

Carlos Pens Filho

 

Na avenida Guararapes,
o Recife vai marchando.
O bairro de Santo Antonio,
tanto se foi transformando
que, agora, às cinco da tarde,
mais se assemelha a um festim,
nas mesas do Bar Savoy,
o refrão tem sido assim:
São trinta copos de chope,
são trinta homens sentados,
trezentos desejos presos,
trinta mil sonhos frustrados.

Ah, mas se a gente pudesse
fazer o que tem vontade:
espiar o banho de uma,
a outra amar pela metade
e daquela que é mais linda
quebrar a rija vaidade.

Mas como a gente não pode
fazer o que tem vontade,
o jeito é mudar a vida
num diabólico festim.

Por isso no Bar Savoy,
o refrão é sempre assim:
São trinta copos de chope,
são trinta homens sentados,
trezentos desejos presos,
trinta mil sonhos frustrados.


Poemas e Poesias domingo, 29 de março de 2020

A PUTA (POEMA DO MINEIRO CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE)

A PUTA

Carlos Drummond de Andrade

 

Quero conhecer a puta.
A puta da cidade. A única.
A fornecedora.
Na rua de Baixo
Onde é proibido passar.
Onde o ar é vidro ardendo
E labaredas torram a língua
De quem disser: Eu quero
A puta
Quero a puta quero a puta.

Ela arreganha dentes largos
De longe. Na mata do cabelo
Se abre toda, chupante
Boca de mina amanteigada
Quente. A puta quente.

É preciso crescer esta noite inteira sem parar
De crescer e querer
A puta que não sabe
O gosto do desejo do menino
O gosto menino
Que nem o menino
Sabe, e quer saber, querendo a puta.


Poemas e Poesias sábado, 28 de março de 2020

SONETO 120 - CÁ NESTA BABILÔNIA (POEMA DO PORTUGUÊS LUÍS DE CAMÕES)

CÁ NESTA BABILÔNIA

Soneto 120

Luís de Camões

 

Cá nesta Babilónia, donde mana
Matéria a quanto mal o mundo cria;
Cá, onde o puro Amor não tem valia,
Que a Mãe, que manda mais, tudo profana;

Cá, onde o mal se afina, o bem se dana,
E pode mais que a honra a tirania;
Cá, onde a errada e cega Monarquia
Cuida que um nome vão a Deus engana;

Cá, neste labirinto, onde a Nobreza,
O Valor e o Saber pedindo vão
Às portas da Cobiça e da Vileza;

Cá, neste escuro caos de confusão,
Cumprindo o curso estou da natureza.
Vê se me esquecerei de ti, Sião!


Poemas e Poesias sexta, 27 de março de 2020

SONETO AO PECADOR MORTO (POEMA DO PORTUGUÊS MANUEL MARIA DU BOCAGE)

SONETO AO PECADOR MORTO

Bocage

 

(Grafia original)

Morreu Bocage, sepultou-se em Gôa!
Chorai, moças venaes, chorai, pedantes,
O insulso estragador dos consoantes.
Que tantos tempos aturdiu Lisboa!

Por aventuras mil obteve a c′rôa
Que a fronte cinge dos heroes andantes;
Inda veio de climas tão distantes
Á toa vegetar, versar á toa:

Este que vês, com olhos macerados,
Não é Bocage, não, rei dos bregeiros.
São apenas seus olhos descarnados:

Fugiu do cemiterio aos companheiros;
Anda agora purgando seus peccados
Glosando aos cagaçaes pelos outeiros.


Poemas e Poesias quinta, 26 de março de 2020

UMA NOITE NO CAIRO, POEMA DO CAPIXABA AUGUSTO DOS ANJOS

UMA NOITE NO CAIRO

Augusto dos Anjos

 

Noite no Egito. O céu claro e profundo 
Fulgura. A rua é triste. A Lua Cheia 
Está sinistra, e, sobre a paz do mundo, 
A alma dos Faraós anda e vagueia.
 
Os mastins negros vão ladrando à lua... 
O Cairo é de uma formosura arcaica. 
No ângulo mais recôndito da rua 
Passa cantando uma mulher hebraica.
 
O Egito é sempre assim quando anoitece! 
Às vezes das pirâmides o quêdo 
E atro perfil, exposto ao luar, parece 
Uma sombria interjeição de medo!
 
Como um contraste aqueles míseres 
Num quiosque em festa a alegre turba grita 
E dentro dançam homens e mulheres 
Numa aglomeração cosmopolita.
 
Tonto do vinho, um saltimbanco da Asia 
Convulso e rôto, no apogeu da fúria, 
Executando evoluções de razzia 
Solta um brado epiléptico de injúria!
 
Em derredor duma ampla mesa preta 
- Última nota do conúbio infando - 
Vêem-se dez jogadores de roleta 
Fumando, discutindo, conversando.
 
Resplandece a celeste superfície 
Dorme soturna a natureza sabia... 
Em baixo, na mais próxima planície, 
Pasta um cavalo esplêndido da Arábia.
 
Vaga no espaço um silfo solitário. 
Troam kinnors! Depois tudo é tranquilo... 
Apenas, como um velho stradivario, 
Soluça toda a noite a água do Nilo!

Poemas e Poesias quarta, 25 de março de 2020

MINHA ESCOLA (POEMA DO PERNAMBUCANO ASCENSO FERREIRA)

Ascenso Ferreira

MINHA ESCOLA

Ascenso Ferreira

 

A escola que eu frequentava era cheia de grades como as prisões.
E o meu Mestre, carrancudo como um dicionário;
Complicado como as Matemáticas;
Inacessível como Os Lusíadas de Camões!

À sua porta eu estava sempre hesitante...
De um lado a vida... — A minha adorável vida de criança:
Pinhões... Papagaios... Carreiras ao sol...
Vôos de trapézio à sombra da mangueira!
Saltos da ingazeira pra dentro do rio...
Jogos de castanhas...
— O meu engenho de barro de fazer mel!

Do outro lado, aquela tortura:
"As armas e os barões assinalados!"
— Quantas orações?
— Qual é o maior rio da China?
— A 2 + 2 A B = quanto?
— Que é curvilíneo, convexo?
— Menino, venha dar sua lição de retórica!
— "Eu começo, atenienses, invocando
a proteção dos deuses do Olimpo
para os destinos da Grécia!"
— Muito bem! Isto é do grande Demóstenes!
— Agora, a de francês:
— "Quand le christianisme avait apparu sur la terre..."
— Basta
— Hoje temos sabatina...
— O argumento é a bolo!
— Qual é a distância da Terra ao Sol?
— ?!!
— Não sabe? Passe a mão à palmatória!
— Bem, amanhã quero isso de cor...

Felizmente, à boca da noite,
eu tinha uma velha que me contava histórias...
Lindas histórias do reino da Mãe-d'Água...
E me ensinava a tomar a bênção à lua nova.


Poemas e Poesias terça, 24 de março de 2020

LINDAS CENAS (POEMA DO MARANHENSE ARTHUR AZEVEDO)

LINDAS CENAS

Arthur Azevedo

 

É na varanda a cena, onde o trabalho

Ocupa três morenas,

Rosas do mesmo galho,

A quem desponta apenas

Um sol de primavera.

 

Que lindo! ai, quem me dera

Saber reproduzir tão lindas cenas:

 

A primeira uma saia finaliza,

E a outra um cós pesponta,

E a terceira marcando uma camisa

Está, que já das mãos lhe saiu pronta.

 

Na pobre meassaba

(O canapé da mísera vivenda)

Das morenas a mãe ligeira acaba

Algumas varas de engenhosa renda.

Trabalho de encomenda.

 

A velha mão cansada

Dos bilros no vaivém parece nova,

Acompanhando a lânguida toada,

A invariável trova,

Entre dentes cantada.

 

De vez em quando cessa a cantilena,

E ao taquari sorvendo umas fumaças,

A velha mãe ordena

Mais ativo trabalho àquelas graças.

 

Meu Deus! que linda cena l

E que pintor pintá-la poderia!

 

A primeira das três, toda alegria,

Tem a feição brejeira;

A segunda é não menos prazenteira;

Mas que melancolia

Entenebrece o rosto da terceira!

 

A primeira, da mãe severa e dura

A distração aguarda,

Pois em baixo dos panos da costura

A Moreninha, de Macedo, guarda,

E, em rápido relance,

Fundo e furtivo olhar manda ao romance.

 

A segunda parece mais sensata:

As vistas em redor jamais espaça,

Mas a mana maltrata

Um beliscão que é dado em ar de graça

 

Si a felicidade só no rir consiste,

Que são felizes todas ires diviso;

Mas a terceira ri de um rir tão triste...

As lágrimas prefiro àquele riso.

 

Em vão simula calma...

Deixa dos dedos lhe cair a agulha.

Aquela cândida alma

Acaso se mergulha

Nalguma dor sincera?

 

Que lindo! ai, quem me dera

Saber reproduzir tão linda cena!

 

A velha está serena.

— Que tens, sinhá, que tens? Te desconheço I

Tu bem sabes, pequena:

Quando eu te vejo triste, me entristeço J —

 

Disfarça a moça a comoção, o enleio,

Partindo a linha co'os formosos dentes,

Mas desfolha no seio

um rosário de lágrimas ardentes.

 

Desse modo acusada,

Ergue-se envergonhada,

E no eólio materno, abrigo santo,

Tenta esconder o resto do seu pranto.

 

As outras duas moreninhas belas,

Erguidas logo, serenar procuram

A dolorida irmã, bem sabem elas

Que são artes do amor que assim misturam

As lágrimas aos risos

Tristes, amargurados, indecisos:

Mas não sabem da missa nem metade...

 

Com que meiga piedade

Em beijos degenera

Aquela doce pena!

Que lindo! ai, quem me dera

Saber reproduzir tão linda cena

 

A porta da varanda se escancara

E no lumiar a cara

De um velho se apresenta.

Carregando garboso os seus sessenta.

Dá-lhe um solene, venerando aspeito,

A barba branca que lhe cobre o peito.

 

Não está só o ancião: traz ao seu lado

Um bonito rapaz, tipo de poeta,

E vem acompanhado

Por um cão agitando a cauda inquieta.

 

Dirigindo-se a velha

Que, surpreendida, franze a sobrancelha,

— Minha senhora, diz o velho, queira

Perdoar-me entrar aqui desta maneira,

Sem me fazer anunciar; urgente

Caso me traz humilde e reverente:

Este moço é meu filho;

Saiu-me, por desgraça, um peralvilho!

De uma destas meninas

Alcançou entrevistas clandestinas.

 

E fugiu dela, calculando, injusto,

Que eu, que sou velho honrado, me oporia

Ao casamento. Só a muito custo

Me revelou essa patifaria,

Da qual me prevenira um bom amigo

Senhora, aqui o tem, trouxe-o comigo,

E peco-lhe, para este bigorrilha,

Com o seu perdão, a mão de sua filha,

Si o julga digno de casar com ela.

 

Nesta pálida tela

Não ponho, que o pincel me não ajuda,

A longa cena muda

Que se passou; da velha o grande espanto,

E da culpada o pranto,

E a surpresa das manas, e o enleio

Do sedutor, parado ali, no meio

Da casa, cabisbaixo, e o pai sisudo,

De barbas brancas e figura austera,

E o cão curioso, farejando tudo,

Indiferente à sorte da pequena.

 

Que lindo! ai, quem me dera

Saber reproduzir tão linda cena!

 

Quando a velha, passado o espanto imenso,

Lançou à moça um longo olhar magoado,

Esta, mordendo o lenço,

De lágrimas lavado,

— Mamãe, perdoa... murmurou apenas.

 

Ai, quem me dera, em verso aprimorado

Saber reproduzir tão lindas cenas l


Poemas e Poesias segunda, 23 de março de 2020

A TIGRE NEGRA (POEMA DO PARAIBANO ARIANO SUASSUNA)

A TIGRE NEGRA

Ariano Suassuna

 

O Amor e o Tempo – Com Tema de Augusto dos Anjos

Da Cabeleira negra aleonada,

Tocha escura que o Sol transforma em Crina,

o crespo Capacete se ilumina,

em faíscas de Treva agateada.

 

Gata negra, Pantera-extraviada,

abres ao sol tua Romã felina.

Ao Dardo em fogo queima-se a Colina,

e há cascos e tropéis por essa Estrada.

Bebo, na Taça, o aroma da Sombria!

 

A vida foge, Amor, e a Sombra-tarda,

ao fogo, cresta a rosa da Paloma!

A Cega afia a sua Faca, afia,

e chega o Sono, a Morte-Leoparda,

Jaguar cruel para abrasar-te as Pomas.


Poemas e Poesias domingo, 22 de março de 2020

OCEANO NOX (POEMA DO PORTUGUÊS ANTERO DE QUENTAL)

OCEANO NOX

Antero de Quental

 

Junto do mar, que erguia gravemente
A trágica voz rouca, enquanto o vento
Passava como o vôo do pensamento
Que busca e hesita, inquieto e intermitente,

Junto do mar sentei-me tristemente,
Olhando o céu pesado e nevoento,
E interroguei, cismando, esse lamento
Que saía das coisas, vagamente...

Que inquieto desejo vos tortura,
Seres elementares, força obscura?
Em volta de que idéia gravitais?

Mas na imensa extensão, onde se esconde
O Inconsciente imortal, só me responde
Um bramido, um queixume, e nada mais...


Poemas e Poesias sábado, 21 de março de 2020

CANTIGA (POEMA DO PAULISTA ÁLVARES DE AZEVEDO)

CANTIGA

Álvares de Azevedo

 

 

I

Em um castelo doirado
Dorme encantada donzela...
Nasceu; e vive dormindo
— Dorme tudo junto dela.
 
Adormeceu-a, sonhando,
Um feiticeiro condão,
E dormem no seio dela
As rosas do coração.


Dorme a lâmpada argentina
Defronte do leito seu;
Noite a noite a lua triste
Vem espreitá-la do céu.
 
Voam os sonhos errantes
Do leito sob o dossel
E suspiram no alaúde
As notas do menestrel.
 
E no castelo, sozinha,
Dorme encantada donzela...
Nasceu; e vive dormindo
— Dorme tudo junto dela.
 
Dormem cheirosas, abrindo,
As roseiras em botão...
E dormem no seio dela
As rosas do coração.
 

II

A donzela adormecida
É a tua alma, santinha,

Que não sonha nas saudades
E nos amores da minha.
 
— Nos meus amores que velam
Debaixo do teu dossel
E suspiram no alaúde
As notas do menestrel.
 
Acorda, minha donzela,
Foi-se a lua, eis a manhã
E nos céus da primavera
É a aurora tua irmã.
 
Abriram no vale as flores
Sorrindo na fresquidão:
Entre as rosas da campina
Abram-se as do coração.
 
Acorda, minha donzela,
Soltemos da infância o véu...
Se nós morrermos num beijo,
Acordaremos no céu.


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