LINDAS CENAS (POEMA DO MARANHENSE ARTHUR AZEVEDO)
LINDAS CENAS
Arthur Azevedo
É na varanda a cena, onde o trabalho
Ocupa três morenas,
Rosas do mesmo galho,
A quem desponta apenas
Um sol de primavera.
Que lindo! ai, quem me dera
Saber reproduzir tão lindas cenas:
A primeira uma saia finaliza,
E a outra um cós pesponta,
E a terceira marcando uma camisa
Está, que já das mãos lhe saiu pronta.
Na pobre meassaba
(O canapé da mísera vivenda)
Das morenas a mãe ligeira acaba
Algumas varas de engenhosa renda.
Trabalho de encomenda.
A velha mão cansada
Dos bilros no vaivém parece nova,
Acompanhando a lânguida toada,
A invariável trova,
Entre dentes cantada.
De vez em quando cessa a cantilena,
E ao taquari sorvendo umas fumaças,
A velha mãe ordena
Mais ativo trabalho àquelas graças.
Meu Deus! que linda cena l
E que pintor pintá-la poderia!
A primeira das três, toda alegria,
Tem a feição brejeira;
A segunda é não menos prazenteira;
Mas que melancolia
Entenebrece o rosto da terceira!
A primeira, da mãe severa e dura
A distração aguarda,
Pois em baixo dos panos da costura
A Moreninha, de Macedo, guarda,
E, em rápido relance,
Fundo e furtivo olhar manda ao romance.
A segunda parece mais sensata:
As vistas em redor jamais espaça,
Mas a mana maltrata
Um beliscão que é dado em ar de graça
Si a felicidade só no rir consiste,
Que são felizes todas ires diviso;
Mas a terceira ri de um rir tão triste...
As lágrimas prefiro àquele riso.
Em vão simula calma...
Deixa dos dedos lhe cair a agulha.
Aquela cândida alma
Acaso se mergulha
Nalguma dor sincera?
Que lindo! ai, quem me dera
Saber reproduzir tão linda cena!
A velha está serena.
— Que tens, sinhá, que tens? Te desconheço I
Tu bem sabes, pequena:
Quando eu te vejo triste, me entristeço J —
Disfarça a moça a comoção, o enleio,
Partindo a linha co'os formosos dentes,
Mas desfolha no seio
um rosário de lágrimas ardentes.
Desse modo acusada,
Ergue-se envergonhada,
E no eólio materno, abrigo santo,
Tenta esconder o resto do seu pranto.
As outras duas moreninhas belas,
Erguidas logo, serenar procuram
A dolorida irmã, bem sabem elas
Que são artes do amor que assim misturam
As lágrimas aos risos
Tristes, amargurados, indecisos:
Mas não sabem da missa nem metade...
Com que meiga piedade
Em beijos degenera
Aquela doce pena!
Que lindo! ai, quem me dera
Saber reproduzir tão linda cena
A porta da varanda se escancara
E no lumiar a cara
De um velho se apresenta.
Carregando garboso os seus sessenta.
Dá-lhe um solene, venerando aspeito,
A barba branca que lhe cobre o peito.
Não está só o ancião: traz ao seu lado
Um bonito rapaz, tipo de poeta,
E vem acompanhado
Por um cão agitando a cauda inquieta.
Dirigindo-se a velha
Que, surpreendida, franze a sobrancelha,
— Minha senhora, diz o velho, queira
Perdoar-me entrar aqui desta maneira,
Sem me fazer anunciar; urgente
Caso me traz humilde e reverente:
Este moço é meu filho;
Saiu-me, por desgraça, um peralvilho!
De uma destas meninas
Alcançou entrevistas clandestinas.
E fugiu dela, calculando, injusto,
Que eu, que sou velho honrado, me oporia
Ao casamento. Só a muito custo
Me revelou essa patifaria,
Da qual me prevenira um bom amigo
Senhora, aqui o tem, trouxe-o comigo,
E peco-lhe, para este bigorrilha,
Com o seu perdão, a mão de sua filha,
Si o julga digno de casar com ela.
Nesta pálida tela
Não ponho, que o pincel me não ajuda,
A longa cena muda
Que se passou; da velha o grande espanto,
E da culpada o pranto,
E a surpresa das manas, e o enleio
Do sedutor, parado ali, no meio
Da casa, cabisbaixo, e o pai sisudo,
De barbas brancas e figura austera,
E o cão curioso, farejando tudo,
Indiferente à sorte da pequena.
Que lindo! ai, quem me dera
Saber reproduzir tão linda cena!
Quando a velha, passado o espanto imenso,
Lançou à moça um longo olhar magoado,
Esta, mordendo o lenço,
De lágrimas lavado,
— Mamãe, perdoa... murmurou apenas.
Ai, quem me dera, em verso aprimorado
Saber reproduzir tão lindas cenas l