Almanaque Raimundo Floriano
Fundado em 24.09.2016
(Cultural, sem fins comerciais, lucrativos ou financeiros)


Raimundo Floriano de Albuquerque e Silva, Editor deste Almanaque, também conhecido como Velho Fulô, Palhaço Seu Mundinho e Mundico Trazendowski, nascido em Balsas , Maranhão, a 3 de julho de 1936, Católico Apostólico Romano, Contador, Oficial da Reserva do Exército Brasileiro, Funcionário Público aposentado da Câmara dos Deputados, Titular da Cadeira nº 10 da Academia Passa Disco da Música Nordestina, cuja patrona é a cantora Elba Ramalho, Mestre e Fundador da Banda da Capital Federal, Pesquisador da MPB, especializado em Velha Guarda, Música Militar, Carnaval e Forró, Cardeal Fundador da Igreja Sertaneja, Pioneiro de Brasília, Xerife nos Mares do Caribe, Cordelista e Glosador, Amigo do Rio das Balsas, Inventor da Descida de Boia, em julho de 1952, Amigo da Fanfarra do 1° RCG, autor dos livros O Acordo PDS/PTB, coletânea de charges, Sinais de Revisão e Regras de Pontuação, normativo, Do Jumento ao Parlamento, com episódios da vida real, De Balsas para o Mundo, centrado na navegação fluvial Balsas/Oceano Atlântico, Pétalas do Rosa, saga da Família Albuquerque e Silva, Memorial Balsense, dedicado à história de sua terra natal, e Caindo na Gandaia, humorístico apimentado, é casado, tem quatro filhos, uma nora, dois genros e dois netos e reside em Brasília, Distrito Federal, desde dezembro de 1960.

Poemas e Poesias quarta, 21 de agosto de 2019

A PRAIA - GUIA PRÁTICO DA CIDADE DO RECIFE (POEMA DO PERNAMBUCANO CARLOS PENA FILHO)

A PRAIA - GUIA PRÁTICO DA CIDADE DO RECIFE 

Carlos Pena Filho

No ponto onde o mar se extingue
E as areias se levantam
Cavaram seus alicerces
Na surda sombra da terra
E levantaram seus muros.
Depois armaram seus flancos:
Trinta bandeiras azuis
Plantadas no litoral.
Hoje, serena, flutua,
Metade roubada ao mar,
Metade à imaginação,
Pois é do sonho dos homens
Que uma cidade se inventa.


Poemas e Poesias terça, 20 de agosto de 2019

A HORA DO CANSAÇO (POEMA DO MINEIRO CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE)

A HORA DO CANSAÇO

Carlos Drummond de Andrade

 


As coisas que amamos,
as pessoas que amamos
são eternas até certo ponto.
Duram o infinito variável
no limite de nosso poder
de respirar a eternidade.

Pensá-las é pensar que não acabam nunca,
dar-lhes moldura de granito.
De outra matéria se tornam, absoluta,
numa outra (maior) realidade.

Começam a esmaecer quando nos cansamos,
e todos nos cansamos, por um outro itinerário,
de aspirar a resina do eterno.
Já não pretendemos que sejam imperecíveis.
Restituímos cada ser e coisa à condição precária,
rebaixamos o amor ao estado de utilidade.

Do sonho eterno fica esse gosto acre
na boca ou na mente, sei lá, talvez no ar.


Poemas e Poesias segunda, 19 de agosto de 2019

SONETO 038 - ÁRVORE, CUJO POMO, BELO E BRANDO (POEMA DO PORTUGUÊS LUÍS DE CAMÕES)

ÁRVORE,  CUJO POMO, BRELO E BRANDO

Soneto 038

Luís de Camões

 

Árvore, cujo pomo, belo e brando,
natureza de leite e sangue pinta,
onde a pureza, de vergonha tinta,
está virgíneas faces imitando;

nunca da ira e do vento, que arrancando
os troncos vão, o teu injúria sinta;
nem por malícia de ar te seja extinta
a cor, que está teu fruito debuxando.

Que pois me emprestas doce e idóneo abrigo
a meu contentamento, e favoreces
com teu suave cheiro minha glória,

se não te celebrar como mereces,
cantando-te, sequer farei contigo
doce, nos casos tristes, a memória.


Poemas e Poesias domingo, 18 de agosto de 2019

SONETO DO CARALHO POTENTE (POEMA DO PORTUGUÊS MANUEL MARIA Du BOCAGE

SONETO DO CARALHO POTENTE

Bocage

 

Porri-potente herói, que uma cadeira
Susténs na ponta do caralho teso,
Pondo-lhe em riba mais por contrapeso
A capa de baetão da alcoviteira:
 
Teu casso é como o ramo da palmeira,
Que mais se eleva, quando tem mais peso;
Se o não conservas açaimado e preso,
É capaz de foder Lisboa inteira!
 
Que forças tens no hórrido marsapo,
Que assentando a disforme cachamorra
Deixa conos e cus feitos num trapo!
 
Quem ao ver-te o tesão há não discorra
Que tu não podes ser senão Priapo,
Ou que tens um guindaste em vez de porra?


Poemas e Poesias sábado, 17 de agosto de 2019

VOZES DA MORTE (POEMA DO CAPIXABA AUGUSTO DOS ANJOS)

VOZES DA MORTE

Augusto dos Anjos

 

Agora, sim! Vamos morrer, reunidos,
Tamarindo de minha desventura,
Tu, com o envelhecimento da nervura,
Eu, com o envelhecimento dos tecidos!

Ah! Esta noite é a noite dos Vencidos!
E a podridão, meu velho! E essa futura
Ultrafatalidade de ossatura,
A que nos acharemos reduzidos!

Não morrerão, porém, tuas sementes!
E assim, para o Futuro, em diferentes
Florestas, vales, selvas, glebas, trilhos,

Na multiplicidade dos teus ramos,
Pelo muito que em vida nos amamos,
Depois da morte inda teremos filhos!


Poemas e Poesias sexta, 16 de agosto de 2019

CATIMBÓ (POEMA DO PERNAMBUCANO ASCENSO FERREIRA)

CATIMBÓ

Ascenso Ferreira

 

Mestre Carlos, rei dos mestres,
aprendeu sem se ensinar…
– Ele reina no fogo !
– Ele reina na água !
– Ele reina no ar !

Por isto, em minha amada, acenderá a paixão que consome !
Umedecerá sempre, em sua lembrança, o meu nome !
Levar-lhe-á os perfumes do incenso que lhe vivo a queimar.

E ela há de me amar.
Há de me amar…
Há de me amar…
– Como a coruja ama a treva e o bacurau ama o luar !

À luz do sete-estrelo nós havemos de casar !
E há de ser bem perto.
Há de ser tão certo.
como que este mundo tem de se acabar…

Foi a jurema da sua beleza que embriagou os meus sentidos !
Eu vivo tão triste como os ventos perdidos
que passam gritando na noite enorme…

Porque quero gozar o viço que no seu lábio estua !
Quero sentir sua carícia branda como um raio da lua !
Quero acordar a volúpia que no seu seio dorme …
E hei de tê-la,
hei de vencê-la,
ainda mesmo contra seu querer …
– Porque de Mestre Carlos é grande o poder !

Pelas três-marias… Pelos três reis magos … Pelo sete-estrelo…
Eu firmo esta intenção,
bem no fundo do coração,
e o signo-de-salomão
ponho como selo…

E ela há de me amar…
Há de me amar…
Há de me amar…
– Como a coruja ama a treva e o bacurau ama o luar !

Porque Mestre Carlos, rei dos mestres,
reina no fogo… reina na água… reina no ar…
– Ele aprendeu sem se ensinar…


Poemas e Poesias quarta, 14 de agosto de 2019

A MOÇA CAETANA - A MORTE SERTANEJA (POEMA DO PARAIBANO ARIANO SUASSUNA)

A MOÇA CAETANA - A MORTE SERTANEJA 

Ariano Suassuna

 

Eu vi a Morte, a moça Caetana,
com o Manto negro, rubro e amarelo.
Vi o inocente olhar, puro e perverso,
e os dentes de Coral da desumana.

Eu vi o Estrago, o bote, o ardor cruel,
os peitos fascinantes e esquisitos.
Na mão direita, a Cobra cascavel,
e na esquerda a Coral, rubi maldito.

Na fronte, uma coroa e o Gavião.
Nas espáduas, as Asas deslumbrantes
que, rufiando nas pedras do Sertão,

pairavam sobre Urtigas causticantes,
caules de prata, espinhos estrelados
e os cachos do meu Sangue iluminado.


Poemas e Poesias terça, 13 de agosto de 2019

PALÁCIO DA VENTURA (POEMA DO PORTUGUÊS ANTERO DE QUENTAL)

PALÁCIO DA VENTURA

Antero de Quental

 

Sonho que sou um cavaleiro andante. 
Por desertos, por sóis, por noite escura, 
Paladino do amor, busco anelante 
O palácio encantado da Ventura! 

Mas já desmaio, exausto e vacilante, 
Quebrada a espada já, rota a armadura... 
E eis que súbito o avisto, fulgurante 
Na sua pompa e aérea formosura! 

Com grandes golpes bato à porta e brado: 
Eu sou o Vagabundo, o Deserdado... 
Abri-vos, portas de ouro, ante meus ais! 

Abrem-se as portas d'ouro com fragor... 
Mas dentro encontro só, cheio de dor, 
Silêncio e escuridão - e nada mais! 


Poemas e Poesias segunda, 12 de agosto de 2019

AMOR (POEMA DO PAULISTA ÁLVARES DE AZEVEDO)

AMOR

Álvares de Azevedo

 

Amemos! quero de amor
Viver no teu coração!
Sofrer e amar essa dor
Que desmaia de paixão!
Na tu'alma, em teus encantos
E na tua palidez
E nos teus ardentes prantos
Suspirar de languidez!


Quero em teus lábios beber
Os teus amores do céu!
Quero em teu seio morrer
No enlevo do seio teu!
Quero viver d'esperança!
Quero tremer e sentir!
Na tua cheirosa trança
Quero sonhar e dormir!
 
Vem, anjo, minha donzela,
Minh'alma, meu coração...
Que noite! que noite bela!
Como é doce a viração!
E entre os suspiros do vento,
Da noite ao mole frescor,
Quero viver um momento,
Morrer contigo de amor!


Poemas e Poesias domingo, 11 de agosto de 2019

FILHOS (POEMA DO MINEIRO ALPHONSUS GUIMARAENS

FILHOS

Alphonsus Guimaraens

 

O amor, a cada filho, se renova.
Mesmo no inverno, brilha a primavera...
E o coração dos pais, sedento, prova
O néctar suave de quem tudo espera.

Vai-se a lua, e vem outra lua nova...
Ai! os filhos... (e quem os não quisera?)
São frutos que criamos para a cova.
Melhor fora que Deus no-los não dera.

Frutos de beijos e de abraços, frutos
Dos instantes fugazes, voluptuosos,
Rosário interminável de noivados...

Filhos... São flores para velhos lutos.
Por que Jesus nos fez tão venturosos,
Para sermos depois tão desgraçados?


Poemas e Poesias sábado, 10 de agosto de 2019

FRUTO PROIBIDO (POEMA DO MARANHENSE ADELINO FONTOURA)

FRUTO PROIBIDO

Adelino Fontoura

Escravo dessa angélica meiguice
por uma lei fatal, como um castigo,
não abrigara tanta dor comigo,
se este afeto que sinto não sentisse.
 
Que te não doa, entanto, isto que digo
nem as magoadas falas que te disse.
Não tas dissera nunca, se não visse
que por dizê-las minha dor mitigo
 
 
Longe de ti, sereno e resoluto,
irei morrer, misérrimo, esquecido,
mas hei de amar-te sempre, anjo impoluto.
 
És para mim o fruto proibido:
não pousarei meus lábios nesse fruto;
mas morrerei sem nunca ter vivido.

Poemas e Poesias sexta, 09 de agosto de 2019

AMOR FEINHO (POEMA DA MINEIRA ADÉLIA PRADO)

AMOR FEINHO

Adélia Prado

 

Eu quero amor feinho.
Amor feinho não olha um pro outro.
Uma vez encontrado, é igual fé,
não teologa mais.
Duro de forte, o amor feinho é magro, doido por sexo
e filhos tem os quantos haja.
Tudo que não fala, faz.
Planta beijo de três cores ao redor da casa
e saudade roxa e branca,
da comum e da dobrada.
Amor feinho é bom porque não fica velho.
Cuida do essencial; o que brilha nos olhos é o que é:
eu sou homem você é mulher.
Amor feinho não tem ilusão,
o que ele tem é esperança:
eu quero amor feinho.


Poemas e Poesias quinta, 08 de agosto de 2019

A BOMBA ATÔMICA - I (POEMA DO CARIOCA VINÍCIUS DE MORAES)

A BOMBA ATÔMICA - I

Vinícius de Moraes

 

e = mc2
Einstein

Deusa, visão dos céus que me domina
… tu que és mulher e nada mais!

(Deusa, valsa carioca.)

Dos céus descendo
Meu Deus eu vejo
De paraquedas?
Uma coisa branca
Como uma forma
De estatuária
Talvez a forma
Do homem primitivo
A costela branca!
Talvez um seio
Despregado à lua
Talvez o anjo
Tutelar cadente
Talvez a Vênus
Nua, de clâmide
Talvez a inversa
Branca pirâmide
Do pensamento
Talvez o troço
De uma coluna
Da eternidade
Apaixonado
Não sei indago
Dizem-me todos
É A BOMBA ATÔMICA.

Vem-me uma angústia.

Quisera tanto
Por um momento
Tê-la em meus braços
A coma ao vento
Descendo nua
Pelos espaços
Descendo branca
Branca e serena
Como um espasmo
Fria e corrupta
Do longo sêmen
Da Via Láctea
Deusa impoluta
O sexo abrupto
Cubo de prata
Mulher ao cubo
Caindo aos súcubos
Intemerata
Carne tão rija
De hormônios vivos
Exacerbada
Que o simples toque
Pode rompê-la
Em cada átomo
Numa explosão
Milhões de vezes
Maior que a força
Contida no ato
Ou que a energia
Que expulsa o feto
Na hora do parto.

II

A bomba atômica é triste
Coisa mais triste não há
Quando cai, cai sem vontade
Vem caindo devagar
Tão devagar vem caindo
Que dá tempo a um passarinho
De pousar nela e voar...
Coitada da bomba atômica
Que não gosta de matar!

Coitada da bomba atômica
Que não gosta de matar
Mas que ao matar mata tudo
Animal e vegetal
Que mata a vida da terra
E mata a vida do ar
Mas que também mata a guerra...
Bomba atômica que aterra!
Pomba atônita da paz!

Pomba tonta, bomba atômica
Tristeza, consolação
Flor puríssima do urânio
Desabrochada no chão
Da cor pálida do helium
E odor de radium fatal
Lœlia mineral carnívora
Radiosa rosa radical.

Nunca mais, oh bomba atômica
Nunca, em tempo algum, jamais
Seja preciso que mates
Onde houve morte demais:
Fique apenas tua imagem
Aterradora miragem
Sobre as grandes catedrais:
Guarda de uma nova era
Arcanjo insigne da paz!

III

Bomba atômica, eu te amo! és pequenina
E branca como a estrela vespertina
E por branca eu te amo, e por donzela
De dois milhões mais bélica e mais bela
Que a donzela de Orleans; eu te amo, deusa
Atroz, visão dos céus que me domina
Da cabeleira loura de platina
E das formas aerodivinais
— Que és mulher, que és mulher e nada mais!
Eu te amo, bomba atômica, que trazes
Numa dança de fogo, envolta em gazes
A desagregação tremenda que espedaça
A matéria em energias materiais!
Oh energia, eu te amo, igual à massa
Pelo quadrado da velocidade
Da luz! alta e violenta potestade
Serena! Meu amor, desce do espaço
Vem dormir, vem dormir no meu regaço
Para te proteger eu me encouraço
De canções e de estrofes magistrais!
Para te defender, levanto o braço
Paro as radiações espaciais
Uno-me aos líderes e aos bardos, uno-me
Ao povo, ao mar e ao céu brado o teu nome
Para te defender, matéria dura
Que és mais linda, mais límpida e mais pura
Que a estrela matutina! Oh bomba atômica
Que emoção não me dá ver-te suspensa
Sobre a massa que vive e se condensa
Sob a luz! Anjo meu, fora preciso
Matar, com tua graça e teu sorriso
Para vencer? Tua enérgica poesia
Fora preciso, oh deslembrada e fria
Para a paz? Tua fragílima epiderme
Em cromáticas brancas de cristais
Rompendo? Oh átomo, oh neutrônio, oh germe
Da união que liberta da miséria!
Oh vida palpitando na matéria
Oh energia que és o que não eras
Quando o primeiro átomo incriado
Fecundou o silêncio das Esferas:
Um olhar de perdão para o passado
Uma anunciação de primaveras!

Poemas e Poesias quarta, 07 de agosto de 2019

DIAMBA (POEMA DO GAÚCHO RAUL BOPP)

DIAMBA

Raul Bopp

Negro velho fuma diamba

para amassar a memória

O que é bom fica lá longe...

Os olhos vão-se embora pra longe
O ouvido de repente parou

Com mais uma pitada
o chão perdeu o fundo
Negro escorregou
Caiu no meio da África

Então apareceu do fundo da floresta
uma tropa de elefantes enormes
trotando
Cinqüenta elefantes
puxando uma lagoa

– Para onde vão levar esta lagoa?
Está derramando água no caminho

A água no caminho juntou
correu correu
fez o rio Congo

Águas tristes gemeram
e as estrelas choraram

– Aquele navio veio buscar o rio Congo!
Então as florestas se reuniram
e emprestaram um pouco de sombras pro rio Congo dormir

Os coqueiros debruçaram-se na praia
para dizer adeus
 


Poemas e Poesias segunda, 05 de agosto de 2019

O VAQUÊRO (POEMA DO CEARENSE PATATIVA DO ASSARÉ)

O VAQUÊRO

Patativa do Assaré

 

Eu venho dêrne menino, 
Dêrne munto pequenino, 
Cumprindo o belo destino 
Que me deu Nosso Senhô. 
Eu nasci pra sê vaquêro, 
Sou o mais feliz brasilêro, 
Eu não invejo dinhêro, 
Nem diproma de dotô.

Sei que o dotô tem riquêza, 
É tratado com fineza, 
Faz figura de grandeza, 
Tem carta e tem anelão, 
Tem casa branca jeitosa 
E ôtas coisa preciosa; 
Mas não goza o quanto goza 
Um vaquêro do sertão.

Da minha vida eu me orgúio, 
Levo a Jurema no embrúio 
Gosto de ver o barúio 
De barbatão a corrê, 
Pedra nos casco rolando, 
Gaios de pau estralando, 
E o vaquêro atrás gritando, 
Sem o perigo temê.

Criei-me neste serviço, 
Gosto deste reboliço, 
Boi pra mim não tem feitiço, 
Mandinga nem catimbó. 
Meu cavalo Capuêro, 
Corredô, forte e ligêro, 
Nunca respeita barsêro 
De unha de gato ou cipó.

Tenho na vida um tesôro 
Que vale mais de que ôro: 
O meu liforme de côro, 
Pernêra, chapéu, gibão. 
Sou vaquêro destemido, 
Dos fazendêro querido, 
O meu grito é conhecido 
Nos campo do meu sertão.

O pulo do meu cavalo 
Nunca me causou abalo; 
Eu nunca sofri um galo, 
pois eu sei me desviá. 
Travesso a grossa chapada, 
Desço a medonha quebrada, 
Na mais doida disparada, 
Na pega do marruá.

Se o bicho brabo se acoa, 
Não corro nem fico à tôa: 
Comigo ninguém caçoa, 
Não corro sem vê de quê. 
É mêrmo por desaforo 
Que eu dou de chapéu de côro 
Na testa de quarqué tôro 
Que não qué me obedecê.

Não dou carrêra perdida, 
Conheço bem esta lida, 
Eu vivo gozando a vida 
Cheio de satisfação. 
Já tou tão acostumado 
Que trabaio e não me enfado, 
Faço com gosto os mandado 
Das fia do meu patrão.

Vivo do currá pro mato, 
Sou correto e munto izato, 
Por farta de zelo e trato 
Nunca um bezerro morreu. 
Se arguém me vê trabaiando, 
A bezerrama curando, 
Dá pra ficá maginando 
Que o dono do gado é eu.

Eu não invejo riqueza 
Nem posição, nem grandeza, 
Nem a vida de fineza 
Do povo da capitá. 
Pra minha vida sê bela 
Só basta não fartá nela 
Bom cavalo, boa sela 
E gado pr'eu campeá.

Somente uma coisa iziste, 
Que ainda que teja triste 
Meu coração não resiste 
E pula de animação. 
É uma viola magoada, 
Bem chorosa e apaxonada, 
Acompanhando a toada 
Dum cantadô do sertão.

Tenho sagrado direito 
De ficá bem satisfeito 
Vendo a viola no peito 
De quem toca e canta bem. 
Dessas coisa sou herdêro, 
Que o meu pai era vaquêro, 
Foi um fino violêro 
E era cantadô tombém.

Eu não sei tocá viola, 
Mas seu toque me consola, 
Verso de minha cachola 
Nem que eu peleje não sai, 
Nunca cantei um repente 
Mas vivo munto contente, 
Pois herdei perfeitamente 
Um dos dote de meu pai.

O dote de sê vaquêro, 
Resorvido marruêro, 
Querido dos fazendêro 
Do sertão do Ceará. 
Não perciso maió gozo, 
Sou sertanejo ditoso, 
O meu aboio sodoso 
Faz quem tem amô chorá.


Poemas e Poesias domingo, 04 de agosto de 2019

ENCONTRO DAS ÁGUAS (POEMA DO CEARENSE QUINTINO CUNHA)

ENCONTRO DAS ÁGUAS

Quintino Cunha

 


Vê bem, Maria aqui se cruzam: este
É o Rio Negro, aquele é o Solimões.
Vê bem como este contra aquele investe,
como as saudades com as recordações.

Vê como se separam duas águas,
Que se querem reunir, mas visualmente;
É um coração que quer reunir as mágoas
De um passado, às venturas de um presente.

É um simulacro só, que as águas donas
D'esta região não seguem o curso adverso,
Todas convergem para o Amazonas,
O real rei dos rios do Universo;

Para o velho Amazonas, Soberano
Que, no solo brasílio, tem o Paço;
Para o Amazonas, que nasceu humano,
Porque afinal é filho de um abraço!

Olha esta água, que é negra como tinta.
Posta nas mãos, é alva que faz gosto;
Dá por visto o nanquim com que se pinta,
Nos olhos, a paisagem de um desgosto.

Aquela outra parece amarelaça,
Muito, no entanto é também limpa, engana:
É direito a virtude quando passa
Pela flexível porta da choupana.

Que profundeza extraordinária, imensa,
Que profundeza, mais que desconforme!
Este navio é uma estrela, suspensa
Neste céu d'água, brutalmente enorme.

Se estes dois rios fôssemos, Maria,
Todas as vezes que nos encontramos,
Que Amazonas de amor não sairia
De mim, de ti, de nós que nos amamos!...


Poemas e Poesias sábado, 03 de agosto de 2019

ÁRVORE SOLITÁRIA (POEMA DO CEARENSE PADRE ANTÔNIO TOMÁS)

ÁRVORE SOLITÁRIA

Padre Antônio Tomás

 


“Há cem anos ou mais, surgindo da abertura
De um penhasco, nasceu franzino arbusto, e agora,
Gigante vegetal, às nuvens se alcandora, 
Banhando à luz do sol a coma verde-escura. 

Nenhuma clara fonte em seu redor murmura,
Nem a abelha, zumbindo, a agreste flor lhe explora,
Nem lhe soam na fronde, ao clarear da aurora,
Da passarada alegre os cantos de doçura.

Qual mísero galé ao solo acorrentado,
Exposto fatalmente aos golpes do machado,
Às injúrias do tempo e à sanha das procelas,

Pranteia o velho angico a sua ingrata sina,
Do âmago vertendo o choro da resina,
Por sobre o tronco rude, em bagas amarelas”.


Poemas e Poesias sexta, 02 de agosto de 2019

DESTERRO (POEMA DO CARIOCA OLAVO BILAC)

DESTERRO

Olavo Bilac

 

Já me não amas? Basta! Irei, triste, e exilado 
Do meu primeiro amor para outro amor, sozinho. 
Adeus, carne cheirosa! Adeus, primeiro ninho 
Do meu delírio! Adeus, belo corpo adorado! 

Em ti, como num vale, adormeci deitado, 
No meu sonho de amor, em meão do caminho... 
Beijo-te inda uma vez, num último carinho, 
Como quem vai sair da pátria desterrado... 

Adeus, corpo gentil, pátria do meu desejo! 
Berço em que se emplumou o meu primeiro idílio, 
Terra em que floresceu o meu primeiro beijo! 

Adeus! Esse outro amor há de amargar-me tanto 
Como o pão que se come entre estranhos, no exílio, 
Amassado com fel e embebido de pranto... 


Poemas e Poesias quinta, 01 de agosto de 2019

AMOR (POEMA DO GAÚCHO MÁRIO QUINTANA) VÍDEO


Poemas e Poesias quarta, 31 de julho de 2019

A MEDITAÇÃO SOBRE O TIETÊ (POEMA DO PAULISTA MÁRIO DE ANDRADE)

A MEDITAÇÃO SOBRE O TIETÊ

Mário de Andrade

 

  Água do meu Tietê,
      Onde me queres levar?
      ─ Rio que me entras pela terra
      E que me afastas do mar...
 
É noite. E tudo é noite. Debaixo do arco admirável
Da ponte das Bandeiras o rio
Murmura num banzeiro de água pesada e oliosa.
É noite e tudo é noite. Uma ronda de sombras,
Soturnas sombras, enchem de noite tão vasta
O peito do rio, que é como si a noite fosse água,
Água noturna, noite líquida, afogando de apreensões
As altas torres do meu coração exausto. De repente
O ólio das águas recolhe em cheio luzes trêmulas,
É um susto. E num momento o rio
Esplende em luzes inumeráveis, lares, palácios e ruas, 
Ruas, ruas, por onde os dinosauros caxingam
Agora, arranhacéus valentes donde saltam
Os bichos blau e os punidores gatos verdes,
Em cânticos, em prazeres, em trabalhos e fábricas,
Luzes e glória. É a cidade... É a emaranhada forma
Humana corrupta da vida que muge e se aplaude.
E se aclama e se falsifica e se esconde. E deslumbra.
Mas é um momento só. Logo o rio escurece de novo,
Está negro. As águas oliosas e pesadas se aplacam
Num gemido. Flor. Tristeza que timbra um caminho de morte.
É noite. E tudo é noite. E o meu coração devastado
É um rumor de germes insalubres pela noite insone e humana.
Meu rio, meu Tietê, onde me levas?
Sarcástico rio que contradizes o curso das águas
E te afastas do mar e te adentras na terra dos homens,
Onde me queres levar?...
Por que me proíbes assim praias e mar, por que
Me impedes a fama das tempestades do Atlântico
E os lindos versos que falam em partir e nunca mais voltar?
Rio que fazes terra, húmus da terra, bicho da terra,
Me induzindo com a tua insistência turrona paulista
Para as tempestades humanas da vida, rio, meu rio!...


Poemas e Poesias terça, 30 de julho de 2019

A ESTRELA (POEMA DO PERNAMBUCANO MANUEL BANDEIRA)

A ESTRELA

Manuel Bandeira

 

Vi uma estrela tão alta,
Vi uma estrela tão fria!
Vi uma estrela luzindo
Na minha vida vazia.

Era uma estrela tão alta!
Era uma estrela tão fria!
Era uma estrela sozinha
Luzindo no fim do dia.

Por que da sua distância
Para a minha companhia
Não baixava aquela estrela?
Por que tão alta luzia?

E ouvi-a na sombra funda
Responder que assim fazia
Para dar uma esperança
Mais triste ao fim do meu dia.


Poemas e Poesias segunda, 29 de julho de 2019

ÁRVORE (POEMA DO MATO-GROSSENSE MANOEL DE BARROS)

ÁRVORE

Manoel de Barros

 


Um passarinho pediu a meu irmão para ser sua árvore.
Meu irmão aceitou de ser a árvore daquele passarinho.
No estágio de ser essa árvore, meu irmão aprendeu de
sol, de céu e de lua mais do que na escola.
No estágio de ser árvore meu irmão aprendeu para santo
mais do que os padres lhes ensinavam no internato.
Aprendeu com a natureza o perfume de Deus.
Seu olho no estágio de ser árvore aprendeu melhor o azul.
E descobriu que uma casca vazia de cigarra esquecida
no tronco das árvores só serve pra poesia.
No estágio de ser árvore meu irmão descobriu que as árvores são vaidosas.
Que justamente aquela árvore na qual meu irmão se transformara,
envaidecia-se quando era nomeada para o entardecer dos pássaros
E tinha ciúmes da brancura que os lírios deixavam nos brejos.
Meu irmão agradecia a Deus aquela permanência em árvore
porque fez amizade com muitas borboletas.


Poemas e Poesias domingo, 28 de julho de 2019

O MEU VIVER (POEMA DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

O MEU VIVER

Machado de Assis

 

Chama-se a vida a um martírio certo
Em que a alma vive se morrer não pode,
É crer que há vida p'ra o arbusto seco,
Que as folhas todas para o chão sacode.

Dizer que eu vivo... e minha mãe perdi,
Minha alma geme e o coração de amores,
É crer que um filho, sem a mãe... sozinho,
Também existe, com pungentes dores.

Dizer que vivo, se ausente existo
Da amante terna, tão formosa e pura,
E crer que triste desgraçado preso
Vive também lá na masmorra escura.

Quero despir-me desta vida má,
Quero ir viver com minha mãe nos céus,
Quero ir cantar os meus amores todos,
Quero depois em ti pensar, meu Deus!


Poemas e Poesias sábado, 27 de julho de 2019

CRISTO REDENTOR DO CORCOVADO (POEMA DO ALAGOANO JORGE DE LIMA)

CRISTO REDENTOR DO CORCOVADO

Jorge de Lima

 

O avô
de minha avó
Morreu também corcovado
Carregando um cristo de maçaranduba
Que protegia os passos vagarosos da família.

Arranjei velocidade.
Virei homem de cimento armado.

Adoro esse Cristo turista
De braços abertos
Que procura equilíbrio
Na montanha brasileira.

Os homens de fé têm esperança n Ele,
Porque Ele é ligeiro, porque Ele é ubíquo,
Porque Ele é imutável.

Ele acompanha o homem de cimento armado
Através de todas as substancias,
Através de todas as perspectivas,
Através de todas as distancias.


Poemas e Poesias sexta, 26 de julho de 2019

ALGUNS TOUREIROS (POEMA DO PERNAMBUCANO JOÃO CABRAL DE MELO NETO)

ALGUNS TOUREIROS

João Cabral de Melo Neto

 

Eu vi Manolo Gonzáles
e Pepe Luís, de Sevilha:
precisão doce de flor,
graciosa, porém precisa.

Vi também Julio Aparício,
de Madrid, como Parrita:
ciência fácil de flor,
espontânea, porém estrita.

Vi Miguel Báez, Litri,
dos confins da Andaluzia,
que cultiva uma outra flor:
angustiosa de explosiva.

E também Antonio Ordóñez,
que cultiva flor antiga:
perfume de renda velha,
de flor em livro dormida.

Mas eu vi Manuel Rodríguez,
Manolete, o mais deserto,
o toureiro mais agudo,
mais mineral e desperto,

o de nervos de madeira,
de punhos secos de fibra
o da figura de lenha
lenha seca de caatinga,

o que melhor calculava
o fluido aceiro da vida,
o que com mais precisão
roçava a morte em sua fímbria,

o que à tragédia deu número,
à vertigem, geometria
decimais à emoção
e ao susto, peso e medida.


Poemas e Poesias quinta, 25 de julho de 2019

AMAVISSE (POEMA DA PAULISTA HILDA HILST)

AMAVISSE

Hilda Hilst

 

Como se te perdesse, assim te quero.
Como se não te visse (favas douradas
Sob um amarelo) assim te apreendo brusco
Inamovível, e te respiro inteiro

Um arco-íris de ar em águas profundas.

Como se tudo o mais me permitisses,
A mim me fotografo nuns portões de ferro
Ocres, altos, e eu mesma diluída e mínima
No dissoluto de toda despedida.

Como se te perdesse nos trens, nas estações
Ou contornando um círculo de águas
Removente ave, assim te somo a mim:
De redes e de anseios inundada.


Poemas e Poesias quarta, 24 de julho de 2019

O AÇÚCAR (POEMA DO MARANHENSE FERREIRA GULLAR)

O AÇÚCAR

Ferreira Gullar

 

O branco açúcar que adoçará meu café
nesta manhã de Ipanema
não foi produzido por mim
nem surgiu dentro do açucareiro por milagre.

Vejo-o puro
e afável ao paladar
como beijo de moça,
água na pele,
flor que se dissolve na boca.
Mas este açúcar
não foi feito por mim.

Este açúcar veio
da mercearia da esquina
e tampouco o fez o Oliveira,
dono da mercearia.
Este açúcar veio
de uma usina de açúcar em Pernambuco
ou no Estado do Rio
e tampouco o fez o dono da usina.

Este açúcar era cana
e veio dos canaviais extensos
que não nascem por acaso
no regaço do vale.

Em lugares distantes, onde não há
hospital nem escola,
homens que não sabem ler e morrem
aos vinte e sete anos
plantaram e colheram a cana
que viria a ser o açúcar.

Em usinas escuras, homens de vida amarga e dura
produziram este açúcar branco e puro
com que adoço meu café esta manha em Ipanema.
                       Ferreira Gullar


Poemas e Poesias terça, 23 de julho de 2019

AS MINHAS ANSIEDADES (POEMA DO PORTUGUÊS FERNANDO PESSOA)

AS MINHAS ANSIEDADES

Fernando Pessoa

As minhas ansiedades caem 
Por uma escada abaixo. 
Os meus desejos balouçam-se 
Em meio de um jardim vertical. 

Na Múmia a posição é absolutamente exata. 

Música longínqua, 
Música excessivamente longínqua, 
Para que a Vida passe 
E colher esqueça aos gestos. 


Poemas e Poesias segunda, 22 de julho de 2019

TROVAS LÍRICAS E FILOSÓFICAS - 24 (POEMA DO PARANAENSE ENO TEODORO WANKE)

TROVA LÍRICA E FILOSÓFICA - 24

Eno Teodoro Wanke

 

O meu destino se encerra

Num grave e eterno conflito

Meu corpo é feito de terra

Meu coração, de infinito

– 


Poemas e Poesias domingo, 21 de julho de 2019

A LÂMPADA DE PRANTO (POEMA DO PIAUIENSE DA COSTA E SILVA)

A  LÂMPADA DE PRANTO

Da Costa e Silva

 


Tíbia a lâmpada apagava-se 
E, antes que o óleo se extinguisse, 
Tentei, desolado e triste, 
Alimentá-la com lágrimas. 
E ei-la com o bojo ainda úmido 
De pranto amargo e silente, 
A alumiar para sempre 
A solidão do teu túmulo. 

Nem o vento frio e ríspido 
A chama oscilante apaga, 
Porque esta luz é a saudade, 
E a lâmpada o meu espírito.


Poemas e Poesias sábado, 20 de julho de 2019

O BOTÃO DE ROSA (POEMA DO CATARINENSE CRUZ E SOUSA)

O BOTÃO DE ROSA

 Cruz e Sousa

 

O campo abrira o seio às expansões frementes 
das árvores senis, dos galhos viridentes. 
Caía a tarde fresca 
Loira, gentil, vivaz como a canção tudesca. 
A iluminada esfera 
Calma, profunda, azul como um sonhar de virgem, 
Dava um brilho-cetim às verdes folhas d'hera. 
No ar uma harmonia avigorada e casta, 
No crânio uma vertigem 
Duma idéia viril, duma eloqüência vasta. 

Tardes formosíssimas, 
Ó grande livro aberto aos geniais artistas, 
Como tanto alargais as crenças panteístas, 
Como tanto esplendeis e como sois riquíssimas. 

Quanta vitalidade indefinida, quanta, 
Na pequenina planta, 
No doce verde-mar dos trêmulos arbustos, 
Que misticismo, justos, 
Bebia a alma inteira ao devassar o arcano 
Das árvores titãs, das árvores fecundas 
Que tinham, como o oceano, 
Febris palpitações intérminas, profundas. 

Esplêndidas paisagens, 
Opunha o largo campo às vistas deslumbradas. 
As múrmuras ramagens, 
À luz serena e terna, à luz do sol - que espadas 
De fogo arremessava, em frêmitos nervosos, 
Pelo côncavo azul dos céus esplendorosos, 
Tinham falas de amor, segredos vacilantes 
Finos como os brilhantes. 

A música das aves 
Cortava o éter calmo, em notas multiformes, 
Límpidas e graves 
Que estouravam no ar em convulsões enormes. 
Aqui e além um rio 
Serpejava na sombra, em meio de um rochedo 
Áspero e sombrio. 
O olhar perscrutador, o grande olhar, sem medo 
E o espírito mudo, 
Como um herói gigante avassalavam tudo... 

Nuns madrigais risonhos 
Abria-se o país fantástico dos sonhos. 
Alavam-se os aromas 
Leais, inexauríveis 
Das largas e invisíveis Selváticas redomas. 

A seiva rebentava 
Em ondas - irrompia 
Na doce e maviosa e plácida alegria 
De uma ave que cantava, 
Dos belos roseirais 
Que ostentavam a flux as rosas virginais. 

E as jubilosas franças 
Dos arvoredos altos, 
Rígidos, atléticos, 
Derramavam no campo uns fluidos magnéticos 
Dumas vontades mansas. 

A doce alacridade ia explosindo aos saltos. 
E toda a natureza 
Robusta de saúde e estrênua de grandeza 
Libérrima e vital, 
Erguia-se pujante, audaz e redentora, 
No gérmen material da força criadora, 
Dentre a vida selvagem, mística, animal... 

Dos roseirais preciosos 
Nos renques primorosos, 
Numa linda roseira abria castamente, 
Como um sonho de luz numa cabeça ardente, 
O mais belo, o mais puro entre os botões de rosa. 
Tinha essa cor formosa, 
Tinha essa cor da aurora, 
Quando ensangüenta em rubro a vastidão sonora. 

Era um botão feliz 
Sorrindo para o Azul, zombando da matéria. 
Tinha o leve quebranto e a maciez etérea 
Que uma estrofe não diz. 
Das pétalas macias, 
Das pétalas sanguíneas, 
Doces como harmonias 
Brandas e velutíneas 
Uns perfumes sutis se espiralavam, raros, 
Pela mansão do Bem, pelos espaços claros. 
Perfumes excelentes, 
Perfumes dos melhores 
Perfumes bons de incógnitos Orientes. 

Matéria, não deplores 
O viver natural dos vegetais alegres; 
Eles são mais ditosos 
Que os nababos e reis nos seus coxins pomposos; 
E por mais que tu regres 
O matéria fatal, a tua vida inteira, 
No rigor da higiene; 
E por mais que a maneira 
Do teu grande existir, desse existir - perene 
De ironias e pasmos, 
Explosões de sarcasmos 
Tu completes, matéria - ó humanidade ousada 
Com a ciência altanada; 
E por mais que no século, 
Tu mergulhes a idéia, o prodigioso espéculo, 
Será sempre maior e exuberante e forte, 
Ó matéria fatal, 
Essa vida tão rica 
Que se corporifica 
Na valente coorte 
Do poder vegetal. 

Era um botão feliz, 
Cuia roseira, impávida, 
Ébria de aromas bons, ébria de orgulhos - ávida 
De completa fragrância, 
Palpitava com ânsia 
Desde a própria raiz. 

E entanto o sol tombara e triunfantemente 
Como um supremo Rubens, 
Jorrando à curvidade etérea do poente, 
O ouro e o escarlate, aprimorando as nuvens, 
Numa distribuição simpática de cores, 
De tintas e de luzes 
De galas e fulgores 
Rubros como o estourar dos férvidos obuses. 

O cérebro em nevrose, 
No pasmo que precede a augusta apoteose 
De uma excelsa visão perfeitamente bela, 
De uma excelsa visão em límpidos docéis, 
Exaltava o acabado artístico da Tela 
E o gosto dos pincéis. 

Caíam da amplidão em névoas singulares 
Os pálidos crepúsculos. 
Os fúlgidos altares 
Do homem primitivo - a relva, o prado, o campo 
Onde ele ia buscar a força de uma crença 
Que então lhe iluminasse a alma escura e densa, 
Morriam de clarões - os poderosos músculos 
Da fértil mãe de tudo - a natureza ingente - 
Deixavam de bater. - O olhar do pirilampo 
Oscilava, tremia - azul, fosforescente. 

As sombras vinham, vinham, 
Lembrando um batalhão d'espectros que caminham 
E a casta nitidez sintética das cousas 
Tomava a proporção das funerárias lousas. 
Completara-se então o mais extraordinário, 
O mais extravagante, 
Dos fenômenos todos: 
A noite. - Enfim descera a treva do Calvário, 
A treva que envolveu o Cristo agonizante. 

Coaxavam negras rãs nos charcos e nos lodos. 
A abóbada espaçosa, a física amplitude, 
Mostrava a profundez da angústia de ataúde 
De um operário pobre, 
Quando se escuta o dobre 
Amplíssimo e funéreo, 
Sinistro e compassado, 
Rolar pela mansão gloriosa do mistério, 
Assim com um soluço aflito, estrangulado. 

Devia ser, devia 
Por uma noite assim, 
Como esta noite igual, 
Que derramou Maria 
A lágrima da dor, - que o célebre Caim 
Sentiu dentro do crânio as convulsões do Mal. 

Mas o botão de rosa, 
Traído pelo estranho zéfiro da sorte, 
Rolou como uma cisma 
Intensa e luminosa 
Ardente e jovial em que a razão se abisma 
E foi cair, cair no pélago da morte, 
Em um dos mais raivosos, 
Em um dos mais atrozes 
Rios impetuosos, 
Cheios de surdas vozes, 
Sozinho, em desamparo, assim como um proscrito, 
Em meio à placidez 
Dos astros no infinito 
E à mesma irracional e fúnebre mudez. 

Depois e além de tudo, 
Além do grave aspecto inteiramente mudo, 
Ao tempo que morria 
O cândido botão - em um dos tantos galhos 
Virentes da roseira - alegre no ar se abria 
Um outro que ostentava as pétalas sedosas, 
As pétalas gracis de cores deliciosas, 
De cores ideais. 
As auras musicais 
Passavam-lhe de leve, 
Nos tímidos rumores, 
De um ósculo mais breve. 

E dentre a exposição das delicadas flores, 
Das rosas - o botão 
Aberto ultimamente às cúpulas austeras, 
Às plagas da esperança, a irmã das primaveras, 
Pendido um quase nada, esbelto na roseira, 
Mostrava aquela unção, 
A ínclita maneira 
De quem se glorifica 
Subindo ao céu azul da majestade pura, 
Da eterna exuberância, 
Da fonte sempre rica, 
Da esplêndida fartura 
Da luz imaculada - a egrégia substância 
Que faz das almas claras 
Pela fecundidade olímpica do amor, Magníficas searas, 
De onde se difunde à vida sempiterna, 
À vida essencial, à lei que nos governa, 
À idéia varonil do poeta sonhador. 

A arte especialmente, esse prodígio, atriz, 
Como o botão de rosa 
Tão meigo e tão feliz, 
Pode ser arrojada e brutalmente, ao pego, 
Na treva silenciosa, 
Onde o espírito vai, atordoado e cego, 
Cair, entre soluços, 
Como um colosso ideal tombado ao chão de bruços, 
Ou pode equilibrar-se em admirável base 
Estética e profunda, 
Assim, bem como o outro, à mais radiosa altura. 

Deves sondá-la bem nesta segunda fase. 
Precisas para isso uma alma mais fecunda. 
Precisas de sentir a artística loucura...
 O campo abrira o seio às expansões frementes 
das árvores senis, dos galhos viridentes. 
Caía a tarde fresca 
Loira, gentil, vivaz como a canção tudesca. 
A iluminada esfera 
Calma, profunda, azul como um sonhar de virgem, 
Dava um brilho-cetim às verdes folhas d'hera. 
No ar uma harmonia avigorada e casta, 
No crânio uma vertigem 
Duma idéia viril, duma eloqüência vasta. 

Tardes formosíssimas, 
Ó grande livro aberto aos geniais artistas, 
Como tanto alargais as crenças panteístas, 
Como tanto esplendeis e como sois riquíssimas. 

Quanta vitalidade indefinida, quanta, 
Na pequenina planta, 
No doce verde-mar dos trêmulos arbustos, 
Que misticismo, justos, 
Bebia a alma inteira ao devassar o arcano 
Das árvores titãs, das árvores fecundas 
Que tinham, como o oceano, 
Febris palpitações intérminas, profundas. 

Esplêndidas paisagens, 
Opunha o largo campo às vistas deslumbradas. 
As múrmuras ramagens, 
À luz serena e terna, à luz do sol - que espadas 
De fogo arremessava, em frêmitos nervosos, 
Pelo côncavo azul dos céus esplendorosos, 
Tinham falas de amor, segredos vacilantes 
Finos como os brilhantes. 

A música das aves 
Cortava o éter calmo, em notas multiformes, 
Límpidas e graves 
Que estouravam no ar em convulsões enormes. 
Aqui e além um rio 
Serpejava na sombra, em meio de um rochedo 
Áspero e sombrio. 
O olhar perscrutador, o grande olhar, sem medo 
E o espírito mudo, 
Como um herói gigante avassalavam tudo... 

Nuns madrigais risonhos 
Abria-se o país fantástico dos sonhos. 
Alavam-se os aromas 
Leais, inexauríveis 
Das largas e invisíveis Selváticas redomas. 

A seiva rebentava 
Em ondas - irrompia 
Na doce e maviosa e plácida alegria 
De uma ave que cantava, 
Dos belos roseirais 
Que ostentavam a flux as rosas virginais. 

E as jubilosas franças 
Dos arvoredos altos, 
Rígidos, atléticos, 
Derramavam no campo uns fluidos magnéticos 
Dumas vontades mansas. 

A doce alacridade ia explosindo aos saltos. 
E toda a natureza 
Robusta de saúde e estrênua de grandeza 
Libérrima e vital, 
Erguia-se pujante, audaz e redentora, 
No gérmen material da força criadora, 
Dentre a vida selvagem, mística, animal... 

Dos roseirais preciosos 
Nos renques primorosos, 
Numa linda roseira abria castamente, 
Como um sonho de luz numa cabeça ardente, 
O mais belo, o mais puro entre os botões de rosa. 
Tinha essa cor formosa, 
Tinha essa cor da aurora, 
Quando ensangüenta em rubro a vastidão sonora. 

Era um botão feliz 
Sorrindo para o Azul, zombando da matéria. 
Tinha o leve quebranto e a maciez etérea 
Que uma estrofe não diz. 
Das pétalas macias, 
Das pétalas sanguíneas, 
Doces como harmonias 
Brandas e velutíneas 
Uns perfumes sutis se espiralavam, raros, 
Pela mansão do Bem, pelos espaços claros. 
Perfumes excelentes, 
Perfumes dos melhores 
Perfumes bons de incógnitos Orientes. 

Matéria, não deplores 
O viver natural dos vegetais alegres; 
Eles são mais ditosos 
Que os nababos e reis nos seus coxins pomposos; 
E por mais que tu regres 
O matéria fatal, a tua vida inteira, 
No rigor da higiene; 
E por mais que a maneira 
Do teu grande existir, desse existir - perene 
De ironias e pasmos, 
Explosões de sarcasmos 
Tu completes, matéria - ó humanidade ousada 
Com a ciência altanada; 
E por mais que no século, 
Tu mergulhes a idéia, o prodigioso espéculo, 
Será sempre maior e exuberante e forte, 
Ó matéria fatal, 
Essa vida tão rica 
Que se corporifica 
Na valente coorte 
Do poder vegetal. 

Era um botão feliz, 
Cuia roseira, impávida, 
Ébria de aromas bons, ébria de orgulhos - ávida 
De completa fragrância, 
Palpitava com ânsia 
Desde a própria raiz. 

E entanto o sol tombara e triunfantemente 
Como um supremo Rubens, 
Jorrando à curvidade etérea do poente, 
O ouro e o escarlate, aprimorando as nuvens, 
Numa distribuição simpática de cores, 
De tintas e de luzes 
De galas e fulgores 
Rubros como o estourar dos férvidos obuses. 

O cérebro em nevrose, 
No pasmo que precede a augusta apoteose 
De uma excelsa visão perfeitamente bela, 
De uma excelsa visão em límpidos docéis, 
Exaltava o acabado artístico da Tela 
E o gosto dos pincéis. 

Caíam da amplidão em névoas singulares 
Os pálidos crepúsculos. 
Os fúlgidos altares 
Do homem primitivo - a relva, o prado, o campo 
Onde ele ia buscar a força de uma crença 
Que então lhe iluminasse a alma escura e densa, 
Morriam de clarões - os poderosos músculos 
Da fértil mãe de tudo - a natureza ingente - 
Deixavam de bater. - O olhar do pirilampo 
Oscilava, tremia - azul, fosforescente. 

As sombras vinham, vinham, 
Lembrando um batalhão d'espectros que caminham 
E a casta nitidez sintética das cousas 
Tomava a proporção das funerárias lousas. 
Completara-se então o mais extraordinário, 
O mais extravagante, 
Dos fenômenos todos: 
A noite. - Enfim descera a treva do Calvário, 
A treva que envolveu o Cristo agonizante. 

Coaxavam negras rãs nos charcos e nos lodos. 
A abóbada espaçosa, a física amplitude, 
Mostrava a profundez da angústia de ataúde 
De um operário pobre, 
Quando se escuta o dobre 
Amplíssimo e funéreo, 
Sinistro e compassado, 
Rolar pela mansão gloriosa do mistério, 
Assim com um soluço aflito, estrangulado. 

Devia ser, devia 
Por uma noite assim, 
Como esta noite igual, 
Que derramou Maria 
A lágrima da dor, - que o célebre Caim 
Sentiu dentro do crânio as convulsões do Mal. 

Mas o botão de rosa, 
Traído pelo estranho zéfiro da sorte, 
Rolou como uma cisma 
Intensa e luminosa 
Ardente e jovial em que a razão se abisma 
E foi cair, cair no pélago da morte, 
Em um dos mais raivosos, 
Em um dos mais atrozes 
Rios impetuosos, 
Cheios de surdas vozes, 
Sozinho, em desamparo, assim como um proscrito, 
Em meio à placidez 
Dos astros no infinito 
E à mesma irracional e fúnebre mudez. 

Depois e além de tudo, 
Além do grave aspecto inteiramente mudo, 
Ao tempo que morria 
O cândido botão - em um dos tantos galhos 
Virentes da roseira - alegre no ar se abria 
Um outro que ostentava as pétalas sedosas, 
As pétalas gracis de cores deliciosas, 
De cores ideais. 
As auras musicais 
Passavam-lhe de leve, 
Nos tímidos rumores, 
De um ósculo mais breve. 

E dentre a exposição das delicadas flores, 
Das rosas - o botão 
Aberto ultimamente às cúpulas austeras, 
Às plagas da esperança, a irmã das primaveras, 
Pendido um quase nada, esbelto na roseira, 
Mostrava aquela unção, 
A ínclita maneira 
De quem se glorifica 
Subindo ao céu azul da majestade pura, 
Da eterna exuberância, 
Da fonte sempre rica, 
Da esplêndida fartura 
Da luz imaculada - a egrégia substância 
Que faz das almas claras 
Pela fecundidade olímpica do amor, Magníficas searas, 
De onde se difunde à vida sempiterna, 
À vida essencial, à lei que nos governa, 
À idéia varonil do poeta sonhador. 

A arte especialmente, esse prodígio, atriz, 
Como o botão de rosa 
Tão meigo e tão feliz, 
Pode ser arrojada e brutalmente, ao pego, 
Na treva silenciosa, 
Onde o espírito vai, atordoado e cego, 
Cair, entre soluços, 
Como um colosso ideal tombado ao chão de bruços, 
Ou pode equilibrar-se em admirável base 
Estética e profunda, 
Assim, bem como o outro, à mais radiosa altura. 

Deves sondá-la bem nesta segunda fase. 
Precisas para isso uma alma mais fecunda. 
Precisas de sentir a artística loucura...
 


Poemas e Poesias sexta, 19 de julho de 2019

ANINHA E SUAS PEDRAS (POEMA DA GOIANA CORA CORALINA)

ANINHA E SUAS PEDRAS

Cora Coralina

 


Não te deixes destruir...
Ajuntando novas pedras
e construindo novos poemas.
Recria tua vida, sempre, sempre.
Remove pedras e planta roseiras e faz doces. Recomeça.
Faz de tua vida mesquinha
um poema.
E viverás no coração dos jovens
e na memória das gerações que hão de vir.
Esta fonte é para uso de todos os sedentos.
Toma a tua parte.
Vem a estas páginas
e não entraves seu uso
aos que têm sede.


Poemas e Poesias quinta, 18 de julho de 2019

ALMA LUZ (POEMA DA UCRANIANA-BRASILEIRA CLARICE LISPECTOR

ALMA LUZ

Clarice Lispector

 

Minha alma tem o peso da luz
Tem o peso da música
Tem o peso da palavra nunca dita,
Tem o peso de uma lembrança
Tem o peso de uma saudade
Tem o peso de um olhar
Pesa como pesa uma ausência
E a lágrima que não se chorou
Tem o imaterial peso de uma solidão no meio de outros.


Poemas e Poesias quarta, 17 de julho de 2019

A LÍNGUA DO NHEM (POEMA DA CARIOCA CECÍLIA MEIRELES)

 

A LÍNGUA DO NHEM

Cecília Maireles

Havia uma velhinha
que andava aborrecida
pois dava a sua vida
para falar com alguém.

E estava sempre em casa
a boa velhinha
resmungando sozinha:
nhem-nhem-nhem-nhem-nhem-nhem…

O gato que dormia
no canto da cozinha
escutando a velhinha,
principiou também

a miar nessa língua
e se ela resmungava,
o gatinho a acompanhava:
nhem-nhem-nhem-nhem-nhem-nhem…

Depois veio o cachorro
da casa da vizinha,
pato, cabra e galinha
de cá, de lá, de além,

e todos aprenderam
a falar noite e dia
naquela melodia
nhem-nhem-nhem-nhem-nhem-nhem…

De modo que a velhinha
que muito padecia
por não ter companhia
nem falar com ninguém,

ficou toda contente,
pois mal a boca abria
tudo lhe respondia:
nhem-nhem-nhem-nhem-nhem-nhem…


Poemas e Poesias segunda, 15 de julho de 2019

DESESPERO (20ª PARTE DO POEMA A CACHOEIRA DE PAULO AFONSO, DO BAIANO CASTRO ALVES)

DESESPERO

Castro Alves

(Do poema A Cachoeira de Paulo Afonso)

 

"Crime! Pois será crime se a jibóia
Morde silvando a planta, que a esmagara?
Pois será crime se o jaguar nos dentes
Quebra do índio a pérfida taquara?

"E nós que somos, pois? Homens? — Loucura!
Família, leis e Deus lhes coube em sorte.
A família no lar, a lei no mundo...
E os anjos do Senhor depois da morte.

"Três leitos, que sucedem-se macios,
Onde rolam na santa ociosidade...
O pai o embala... a lei o acaricia...
O padre lhe abre a porta à eternidade.

"Sim! Nós somos reptis... Quimporta a espécie?
— A lesma é vil, — o cascavel é bravo.
E vens falar de crimes ao cativo ?
Então não sabes o que é ser escravo! ...

"Ser escravo — é nascer no alcoice escuro
Dos seios infamados da vendida...
— Filho da perdição no berço impuro
Sem leite para a boca ressequida...
"É mais tarde, nas sombras do futuro,
Não descobrir estrela foragida...
É ver — viajante morto de cansaço —
A terra — sem amor!... sem Deus - o espaço!

"Ser escravo — é, dos homens repelido,
Ser também repelido pela fera;
Sendo dos dois irmãos pasto querido,
Que o tigre come e o homem dilacera...
— É do lodo no lodo sacudido
Ver que aqui ou além nada o espera,
Que em cada leito novo há mancha nova...
No berço... após no toro... após na cova!...

"Crime! Quem falou, pobre Maria,
Desta palavra estúpida?... Descansa!
Foram eles talvez?! ... É zombaria...
Escarnecem de ti, pobre criança!
Pois não vês que morremos todo dia,
Debaixo do chicote, que não cansa?
Enquanto do assassino a fronte calma
Não revela um remorso de sua alma?

"Não! Tudo isto é mentira! O que é verdade
É que os infames tudo me roubaram ...
Esperança, trabalho, liberdade
Entreguei-lhes em vão... não se fartaram.
Quiseram mais... Fatal voracidade!
Nos dentes meu amor espedaçaram...
Maria! Última estrela de minhalma!
O que é feito de ti, virgem sem palma?

"Pomba — em teu ninho as serpes te morderam.
Folha — rolaste no paul sombrio.
Palmeira — as ventanias te romperam.
Corça — afogaram-te as caudais do rio.
Pobre flor — no teu cálice beberam,
Deixando-o depois triste e vazio...
— E tu, irmã! e mãe! e amante minha!
Queres que eu guarde a faca na bainha!

"Ó minha mãe! ó mártir africana,
Que morreste de dor no cativeiro!
Ai! sem quebrar aquela jura insana,
Que jurei no teu leito derradeiro,
No sangue desta raça ímpia, tirana
Teu filho vai vingar um povo inteiro!...

Vamos, Maria! Cumpra-se o destino...
Dize! dize-me o nome do assassino!..."

"Virgem das Dores,
Vem dar-me alento,
Neste momento
De agro sofrer!
Para ocultar-lhe
Busquei a morte...
Mas vence a sorte,
Deve assim ser.

....................................

"Pois que seja! Debalde pedi-te,
Ai! debalde a teus pés me rojei...
Porém antes escuta esta história...
Depois dela... O seu nome direi!"


Poemas e Poesias domingo, 14 de julho de 2019

SEGREDOS (POEMA DO FLUMINENSE CASIMIRO DE ABREU)

SEGREDOS

Casimiro de Abreu

 

Eu tenho uns amores — quem é que os não tinha
Nos tempos antigos! — Amar não faz mal;
As almas que sentem paixão como a minha
Que digam, que falem em regra geral.
— A flor dos meus sonhos é moça e bonita
Qual flor entreaberta do dia ao raiar,
Mas onde ela mora, que casa ela habita,
Não quero, não posso, não devo contar!

Seu rosto é formoso, seu talhe elegante,
Seus lábios de rosa, a fala é de mel,
As tranças compridas, qual livre bacante,
O pé de criança, cintura de anel;
— Os olhos rasgados são cor das safiras,
Serenos e puros, azuis como o mar;
Se falam sinceros, se pregam mentiras,
Não quero, não posso, não devo contar!

Oh! ontem no baile com ela valsando
Senti as delícias dos anjos do céu!
Na dança ligeira qual silfo voando
Caiu-lhe do rosto seu cândido véu!
— Que noite e que baile! — Seu hálito virgem
Queimava-me as faces no louco valsar,
As falas sentidas que os olhos falavam
Não posso, não quero, não devo contar!

Depois indolente firmou-se em meu braço,
Fugimos das salas, do mundo talvez!
Inda era mais bela rendida ao cansaço,
Morrendo de amores em tal languidez!
— Que noite e que festa! e que lânguido rosto
Banhado ao reflexo do branco luar!
A neve do colo e as ondas dos seios
Não quero, não posso, não devo contar!

A noite é sublime! — Tem longos queixumes,
Mistérios profundos que eu mesmo não sei:
Do mar os gemidos, do prado os perfumes,
De amor me mataram, de amor suspirei!
— Agora eu vos juro... Palavra! — não minto!
Ouvi-a formosa também suspirar;
Os doces suspiros que os ecos ouviram
Não quero, não posso, não devo contar!

Então nesse instante nas águas do rio
Passava uma barca, e o bom remador
Cantava na flauta: — "Nas noites d'estio
O céu tem estrelas, o mar tem amor!" —
— E a voz maviosa do bom gondoleiro
Repete cantando: — "viver é amar!" —
Se os peitos respondem à voz do barqueiro...
Não quero, não posso, não devo contar!

Trememos de medo... a boca emudece
Mas sentem-se os pulos do meu coração!
Seu seio nevado de amor se entumece...
E os lábios se tocam no ardor da paixão!
— Depois... mas já vejo que vós, meus senhores,
Com fina malícia quereis me enganar.
Aqui faço ponto; — segredos de amores
Não quero, não posso, não devo contar!


Poemas e Poesias sábado, 13 de julho de 2019

A PALAVRA (POEMA DO PERNAMBUCANO CARLOS PENA FILHO)

A PALAVRA

Carlos Pena Filho

 


Navegador de bruma e de incerteza,
Humilde me convoco e visto audácia
E te procuro em mares de silêncio
Onde, precisa e límpida, resides.

Frágil, sempre me perco, pois retenho
Em minhas mãos desconcertados rumos
E vagos instrumentos de procura
Que, de longínquos, pouco me auxiliam.

Por ver que és claridade e superfície,
Desprendo-me do ouro do meu sangue
E da ferrugem simples dos meus ossos,
E te aguardo com loucos estandartes
Coloridos por festas e batalhas.

Aí, reúno a argúcia dos meus dedos
E a precisão astuta dos meus olhos
E fabrico estas rosas de alumínio
Que, por serem metal, negam-se flores
Mas, por não serem rosas, são mais belas
Por conta do artifício que as inventa.

Às vezes permaneces insolúvel
Além da chuva que reveste o tempo
E que alimenta o musgo das paredes
Onde, serena e lúcida, te inscreves.

Inútil procurar-te neste instante,
Pois muito mais que um peixe és arredia
Em cardumes escapas pelos dedos
Deixando apenas uma promessa leve
De que a manhã não tarda e que na vida
Vale mais o sabor de reconquista.

Então, te vejo como sempre foste,
Além de peixe e mais que saltimbanco, 
Forma imprecisa que ninguém distingue
Mas que a tudo resiste e se apresenta
Tanto mais pura quanto mais esquiva.

De longe, olho teu sonho inusitado
E dividido em faces, mais te cerco
E se não te domino então contemplo
Teus pés de visgo, tua vogal de espuma,
E sei que és mais que astúcia e movimento,
Aérea estátua de silêncio e bruma


Poemas e Poesias sexta, 12 de julho de 2019

A FALTA QUE AMA (POEMA DO MINEIRO CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE)

A FALTA QUE AMA

Carlos Drummond de Andrade

 

Entre areia, sol e grama
o que se esquiva se dá,
enquanto a falta que ama
procura alguém que não há.

Está coberto de terra,
forrado de esquecimento.
Onde a vista mais se aferra,
a dália é toda cimento.

A transparência da hora
corrói ângulos obscuros:
cantiga que não implora
nem ri, patinando muros.

Já nem se escuta a poeira
que o gesto espalha no chão.
A vida conta-se, inteira,
em letras de conclusão.

Por que é que revoa à toa
o pensamento, na luz?
E por que nunca se escoa
o tempo, chaga sem pus?

O inseto petrificado
na concha ardente do dia
une o tédio do passado
a uma futura energia.

No solo vira semente?
Vai tudo recomeçar?
É a falta ou ele que sente
o sonho do verbo amar?


Poemas e Poesias quinta, 11 de julho de 2019

SONETO 116 - AQUELES CLAROS OLHOS QUE CHORANDO (POEMA DO PORTUGUÊS LUÍS DE CAMÕES)

AQUELES CLAROS OLHOS  QUE CHORANDO

Soneto 116

Luís de Camões

 

Aqueles claros olhos que chorando
ficavam, quando deles me partia,
agora que farão? Quem mo diria?
Se porventura estarão em mim cuidando?

Se terão na memória, como ou quando
deles me vim tão longe de alegria?
Ou se estarão aquele alegre dia,
que torne a vê-los, na alma figurando?

Se contarão as horas e os momentos?
Se acharão num momento muitos anos?
Se falarão co as aves e cos ventos?

Oh! bem-aventurados fingimentos
que, nesta ausência, tão doces enganos
sabeis fazer aos tristes pensamentos!


Poemas e Poesias quarta, 10 de julho de 2019

SONETO DO PADRE PATIFE (POEMA DO PORTUGUÊS MANUEL MARIA BARBOSA DU BOCAGE)

SONETO DO PADRE PATIFE

Bocage

Aquele semi-clérigo patife,
Se eu no mundo fizera ainda apostas,
Apostara contigo que nas costas
O grande Pico tem de Tenerife:
 
Célebre traste! É justo que se rife;
Eu também pronto estou, se disso gostas;
Não haja mais perguntas, nem respostas;
Venha, antes que algum taful o bife:
 
Parece hermafrodita o corcovado;
Pela rachada parte (que apeteço)
Parece que emprenhou, pois anda opado!
 
Mas desta errada opinião me desço;
Pois que traz a criança no costado,
Deve ter emprenhado pelo sesso.


Poemas e Poesias terça, 09 de julho de 2019

VERSOS A UM COVEIRO (POEMA DO CAPIXABA AUGUSTO DOS ANJOS)

VERSOS A UM COVEIRO

Augusto dos Anjos

 


Numerar sepulturas e carneiros,

Reduzir carnes podres a algarismos,

Tal é, sem complicados silogismos,

A aritmética hedionda dos coveiros!

 

Um, dois, três, quatro, cinco... Esoterismos

Da Morte! E eu vejo, em fúlgidos letreiros,

Na progressão dos números inteiros

A gênese de todos os abismos!

 

Oh! Pitágoras da última aritmética,

Continua a contar na paz ascética

Dos tábidos carneiros sepulcrais:

 

Tíbias, cérebros, crânios, rádios e úmeros,

Porque, infinita como os próprios números,

A tua conta não acaba mais!


Poemas e Poesias segunda, 08 de julho de 2019

BLACKOUT (POEMA DO PERNAMBUCANO ASCENSO FERREIRA)

BLACKOUT

Ascenso Ferreira

 

   

A BOCA-DA-NOITE passou no papo todas as luzes!
Há Cabras-Cabriolas lá fora a berrar...
        (Transeunte, abriga-te!)

O Pai-da-Mata dá gritos de alarmes:
— Quem vem lá?
— Quem vem lá?
— Quem vem lá?

E pelos descampados dos céus sombrios,
gigantes de bota-de-sete-léguas
apostam carreiras sobre a Terra e o Mar.
........................................................


 Oh! O pavor das criancinhas atônitas:
— Mamãe, o mundo vai se acabar?!

 


Poemas e Poesias sábado, 06 de julho de 2019

A INFÂNCIA (POEMA DO PARAIBANO ARIANO SUASSUNA)

A INFÂNCIA

Ariano Suassuna

 

Sem lei nem Rei, me vi arremessado
bem menino a um Planalto pedregoso.
Cambaleando, cego, ao Sol do Acaso,
vi o mundo rugir. Tigre maldoso.

O cantar do Sertão, Rifle apontado,
vinha malhar seu Corpo furioso.
Era o Canto demente, sufocado,
rugido nos Caminhos sem repouso.

E veio o Sonho: e foi despedaçado!
E veio o Sangue: o marco iluminado,
a luta extraviada e a minha grei!

Tudo apontava o Sol! Fiquei embaixo,
na Cadeia que estive e em que me acho,
a Sonhar e a cantar, sem lei nem Rei!


Poemas e Poesias sexta, 05 de julho de 2019

COM OS MORTOS (POEMA DO PORTUGUÊS ANTERO DE QUENTAL)

COM OS MORTOS

Antero de Quental

 

Os que amei, onde estão? Idos, dispersos,
arrastados no giro dos tufões,
Levados, como em sonho, entre visões,
Na fuga, no ruir dos universos…

E eu mesmo, com os pés também imersos
Na corrente e à mercê dos turbilhões,
Só vejo espuma lívida, em cachões,
E entre ela, aqui e ali, vultos submersos…

Mas se paro um momento, se consigo
Fechar os olhos, sinto-os a meu lado
De novo, esses que amei vivem comigo,

Vejo-os, ouço-os e ouvem-me também,
Juntos no antigo amor, no amor sagrado,
Na comunhão ideal do eterno Bem.


Poemas e Poesias quinta, 04 de julho de 2019

AI, JESUS! (POEMA DO PAULISTA ÁLVARES DE AZEVEDO)

AI, JESUS!

Álvares de Azevedo

 

Ai, Jesus! não vês que gemo,
Que desmaio de paixão
Pelos teus olhos azuis?
Que empalideço, que tremo,
Que me expira o coração?
Ai, Jesus!
 
Que por um olhar, donzela,
Eu poderia morrer
Dos teus olhos pela luz?
Que morte! que morte bela!
Antes seria viver!
Ai, Jesus!
 
Que por um beijo perdido
Eu de gozo morreria
Em teus níveos seios nus?
Que no oceano dum gemido
Minh'alma se afogaria?
Ai, Jesus!


Poemas e Poesias quarta, 03 de julho de 2019

ESTÂNCIA XII (POEMA DO MINEIRO ALPHONSUS GUIMARAENS)

ESTÂNCIA XII

Alponsus Guimaraens

 

 

 

Vinha nascendo a aurora como nasce
O sorriso na face
De quem nunca sofreu.
Um jorro de rubis e de topázios
Tombara sobre o vale angelical, onde eu
Colhia flores que eram crisoprásios
Orvalhados pelo céu…
Da minha mocidade os sonhos mortos
(Da minha morta mocidade) vinham
Ante mim como naus buscando portos,
E bem longe se detinham.
Por que, depois de tantas esperanças,
Esse caos de infortúnio?
Alma, é bem certo que jamais alcanças
A paz sagrada do teu plenilúnio!

E contemplei o céu, onde surgia
O dia…
Sol, ó sol! Astro rei dos espaços,
Rubra tulipa imperial,
Iluminai no ocaso os meus cansados braços,
Com toda a vossa luz de púrpura real,
Para que eles possa,
Cheios de clarões dos olhos teus
(São beijos que pelos meus lábios roçam),
Erguer-se a Deus!


Poemas e Poesias terça, 02 de julho de 2019

DESPEDIDA (POEMA DO MARANHENSE ADELINO FONTOURA)

DESPEDIDA 

Adelino Fontoura

 

Pois que é chegada finalmente a hora
Do triste afastamento e da provança,
Venho dizer-te adeus, gentil criança,
Venho dizer-te adeus, pois vou-me embora.

Morreu em mim a última esperança,
Bem como um sonho bom que se evapora;
Não sei que dor maior que resta agora
Sofrer, nem que maior desesperança.

Não sei, ó sorte mísera e nefasta,
Que assim me arrancas do seu lar querido,
Que assim me roubas sua imagem casta.

Bem vês que eu tenho o coração partido,
E teu peito, inda assim, não desengasta
Um soluço, uma lágrima, um gemido.


Poemas e Poesias segunda, 01 de julho de 2019

A SERENATA (POEMA DA MINEIRA ADÉLIA PRADO)

A SERENATA

Adélia Prado

 


Uma noite de lua pálida e gerânios
ele viria com boca e mão incríveis
tocar flauta no jardim. 
Estou no começo do meu desespero 
e só vejo dois caminhos:
ou viro doida ou santa.
Eu que rejeito e exprobo
o que não for natural como sangue e veias
descubro que estou chorando todo dia,
os cabelos entristecidos,
a pele assaltada de indecisão. 
Quando ele vier, porque é certo que vem,
de que modo  vou chegar ao balcão sem juventude?
A lua, os gerânios e ele serão os mesmos
- só a mulher entre as coisas envelhece.
De que modo vou abrir a janela, se não for doida?
Como a fecharei, se não for santa?


Poemas e Poesias domingo, 30 de junho de 2019

A BERLIM (POEMA DO CARIOCA VINÍCIUS DE MORAES)

A BERLIM

Vinicius de Moraes

 


Vós os vereis surgir da aurora mansa 
Firmes na marcha e uníssonos no brado 
Os heróicos demônios da vingança 
Que vos perseguem desde Stalingrado. 

As mãos queimadas do fuzil candente 
As vestes podres de granizo e lama 
Vós os vereis surgir subitamente 
Aos heróicos prosélitos do Drama. 

De início mancha tateante e informe 
Crescendo às sombras da manhã exangue 
Logo o vereis se erguer, o Russo enorme 
Sob um sol rubro como um punho em sangue. 

E ao seu avanço há de ruir a Porta 
De Brandemburgo, e hão de calar os cães 
E então hás de escutar, Cidade Morta 
O silêncio das vozes alemãs.


Poemas e Poesias sábado, 29 de junho de 2019

COCO DE PAGU (POEMA DO GAÚCHO RAUL BOPP)

COCO DE PAGU

Raul Bopp

 

Pagu tem os olhos moles
uns olhos de fazer doer.
Bate-côco quando passa.
Coração pega a bater.

Eh Pagu eh!
Dói porque é bom de fazer doer.

Passa e me puxa com os olhos
provocantissimamente.
Mexe-mexe bamboleia
pra mexer com toda a gente.

Eli Pagu eh!
Dói porque é bom de fazer doer.

Toda a gente fica olhando
o seu corpinho de vai-e-vem
umbilical e molengo
de não-sei-o-que-é-que-tem.

Eh Pagu eh!
Dói porque é bom de fazer doer.

Quero porque te quero
Nas formas do bem-querer.
Querzinho de ficar junto
que é bom de fazer doer.

Eh Pagu eh!
Dói porque é bom de fazer doer.


Poemas e Poesias sexta, 28 de junho de 2019

COMUNHÃO DA SERRA (POEMA DO CEARENSE QUINTINO CUNHA)

COMUNHÃO DA SERRA

Quintino Cunha

 

Ontem, à noite, eu vi a minha Serra,
Como uma virgem, trêmula, contrita,
Recebendo de Deus, daqui da terra,
Uma hóstia do Céu, hóstia bendita.

Como foi, para vê-la assim? De neves
Era o véu transparente, que a cobria,
Vendo-se aqui e ali negros tons leves,
Do negro que do verde aparecia.

Tons negros, talvez restos, que os comparo,
De alguma nuvem torva, esfacelada
Por Deus, que só queria o Céu bem claro,
Porque ia dar a hóstia consagrada!

o cafeeiral, que rebentava em flores,
A grinalda na fronte lhe brotava;
E o frio, rebento dos temores,
No seu intimo, o frio rebentava!

Assim a Natureza era o sacrário,
De onde Deus dava a comunhão radiosa
À Serra! E era o Céu o grande hostiário
E era a lua, a hóstia luminosa.

E digam que eu não vi a minha Serra,
Como uma virgem, de grinalda e véu,
Recebendo de Deus, daqui da terra,
A hóstia luminosa lá do Céu!

 


Poemas e Poesias quinta, 27 de junho de 2019

VOU VORTÁ (POEMA DO CEARENSE PATATIVA DO ASSARÉ)

VOU VORTÁ

Patativa do Assaré

 

 

Vou vortá pro meu sertão

Não posso me acostumar

Com o grande rebuliço das ruas da capital:

Vem um carro em minha frente,

De pressa, de repente,

Já vem outro por detrás...

É uma coisa sem soma

E o fôlego que agente toma

É só catinga de galho

Eu não gostei do rejume da vida da capital

Eu aqui só gostei muito do mar!

Deste grande mar

Que grande poço pai d´égua!

Ele tem légua e mais légua

Agente só sabe é vendo

Veve a roncar com orgulho

De longe se oiço o barulho

Das águas se arremexendo 

Aquilo é que é ser bonito!

Eta marzão colossal!

Não goza nada da vida quem morre sem ver o mar

Eu atarentado fico em ver aquele fuxico

A zuada da maré, aquela grande peleja

O mar tem o que quer que seja

Que só Deus sabe o que é.

Vi o mar, volto contente

A viagem não perdi.

Ele fez eu me lembrar

Lá dos campos onde eu nasci

Vendo a verdura das águas

Uma saudade, uma mágoa

Dentro do meu coração

Como lanceta furou:

Essas águas tem a cor das matas do meu sertão.


Poemas e Poesias quarta, 26 de junho de 2019

ACARAÚ (PEMA DO CEARENSE PADRE ANTÔNIO TOMÁS)

ACARAÚ

Padre Antônio Tomás


Revejo em sonho a terra estremecida 
Do Acaraú... seus vastos tabuleiros, 
A minha casa, os belos companheiros 
Que lá deixei na hora da partida. 

Vejo o mercado, as Pontes, a Avenida, 
O Rio, o Porto, os Mangues altaneiros, 
Ouço o rugir dos ventos nos coqueiros, 
E, além, do mar queixoso a voz sentida. 

Do velho sino os graves tons escuto, 
E lá do torreão no cocuruto, 
De andorinhas avisto inquieto bando... 

Entro na igreja, – minha igreja outrora, – 
E vejo em seu altar Nossa Senhora, 
Com seu olhar piedoso me fitando... 
_____________________________________


Poemas e Poesias terça, 25 de junho de 2019

CAMPO SANTO (POEMA DO CARIOCA OLAVO BILAC)

CAMPO SANTO

Olavo Bilac

 

Os anos matam e dizimam tanto
Como as inundações e como as pestes.
A alma de cada velho é um Campo-Santo 
Que a velhice cobriu de cruzes e ciprestes
Orvalhados de pranto.

Mas as almas não morrem como as flores, 
Como os homens, os pássaros e as feras:
Rotas, despedaçadas pelas dores,
Renascem para o sol de novas primaveras 
E de novos amores.

Assim, às vezes, na amplidão silente, 
No sono fundo, na terrível calma
Do Campo-Santo, ouve-se um grito ardente:
É a Saudade! é a Saudade!... 
E o cemitério da alma 
Acorda de repente.

Uivam os ventos funerais medonhos. .
Brilha o luar... As lápides se agitam. .
E, sob a rama dos chorões tristonhos,
Sonhos mortos de amor despertam e palpitam,
Cadáveres de sonhos...


Poemas e Poesias segunda, 24 de junho de 2019

A RUA DOS CATA-VENTOS (POEMA DO GAÚCHO MÁRIO QUINTANA)

 A RUA DOS CATA-VENTOS

Mário Quintana

 

 

Da vez primeira em que me assassinaram,
Perdi um jeito de sorrir que eu tinha.
Depois, a cada vez que me mataram,
Foram levando qualquer coisa minha.

Hoje, dos meu cadáveres eu sou
O mais desnudo, o que não tem mais nada.
Arde um toco de Vela amarelada,
Como único bem que me ficou.

Vinde! Corvos, chacais, ladrões de estrada!
Pois dessa mão avaramente adunca
Não haverão de arracar a luz sagrada!

Aves da noite! Asas do horror! Voejai!
Que a luz trêmula e triste como um ai,
A luz de um morto não se apaga nunca!


Poemas e Poesias domingo, 23 de junho de 2019

A CANÇÃO DAS LÁGRIMAS DE PIERROT (POEMA DO PERNAMBUCANO MANUEL BANDEIRA)

A CANÇÃO DAS LÁGRIMAS DE PIERROT

Manuel Bandeira

 




A sala em espelhos brilha 
Com lustres de dez mil velas. 
Miríades de rodelas 
Multicores - maravilha! - 

Torvelhinham no ar que alaga 
O cloretilo e se toma 
Daquele mesclado aroma 
De carnes e de bisnaga. 

E rodam mais que confete, 
Em farândolas quebradas, 
cabeças desassisadas 
Por Colombina ou Pierrete 

II 

Pierrot entra em salto súbito. 
Upa! Que força o levanta? 
E enquanto a turba se espanta, 
Ei-lo se roja em decúbito. 

A tez, antes melancólica, 
Brilha. A cara careteia. 
Canta. Toca. E com tal veia, 
com tanta paixão diabólica, 

Tanta, que se lhe ensangüentam 
Os dedos. Fibra por fibra, 
Toda a sua essência vibra 
Nas cordas que se arrebentam. 

III 

Seu alaúde de plátano 
Milagre é que não se quebre. 
E a sua fronte arde em febre, 
Ai dele! e os cuidados matam-no. 

Ai dele! e essa alegria, 
Aquelas canções, aquele 
Surto não é mais, ai dele! 
Do que uma imensa ironia. 

Fazendo à cantiga louca 
Dolorido contracanto, 
Por dentro borbulha o pranto 
Como outra voz de outra boca: 

IV 

- "Negaste a pele macia 
À minha linda paixão 
E irás entregá-la um dia 
Aos feios vermes do chão... 

"Fiz por ver se te podia 
Amolecer - e não pude! 
Em vão pela noite fria 
Devasto o meu alaúde... 

"Minha paz, minha alegria, 
Minha coragem, roubaste-mas... 
E hoje a minh'alma sombria 
É como um poço de lástimas..." 



Corre após a amada esquiva. 
Procura o precário ensejo 
De matar o seu desejo 
Numa carícia furtiva. 

E encontrando-o Colombina, 
Se lhe dá, lesta,  socapa, 
Em vez de beijo um tapa, 
O pobre rosto ilumina-se-lhe! 

Ele que estava de rastros, 
Pula, e tão alto se eleva, 
Como se fosse na treva 
Romper a esfera dos astros!...


Poemas e Poesias sábado, 22 de junho de 2019

ARTE DE INFANTILIZAR FORMIGAS (POEMA DO MATO-GROSSENSE MANOEL DE BARROS)

A ARTE DE INFANTILIZAR FORMIGAS

Manoel de Barros

 

As coisas tinham para nós uma desutilidade poética.
Nos fundos do quintal era muito riquíssimo o nosso dessaber.
A gente inventou um truque pra fabricar brinquedos com palavras.
O truque era só virar bocó.
Como dizer: Eu pendurei um bentevi no sol…
O que disse Bugrinha: Por dentro de nossa casa passava um rio inventado.
O que nosso avô falou: O olho do gafanhoto é sem princípios.
Mano Preto perguntava: Será que fizeram o beija-flor diminuído só para ele voar parado?
As distâncias somavam a gente para menos.
O pai campeava campeava.
A mãe fazia velas.
Meu irmão cangava sapos.
Bugrinha batia com uma vara no corpo do sapo e ele virava uma pedra.
Fazia de conta?
Ela era acrescentada de garças concluídas.


Poemas e Poesias sexta, 21 de junho de 2019

O DESFECHO (POEMA DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

O DESFECHO

Machado de Assis

 

 

Prometeu sacudiu os braços manietados

E súplice pediu a eterna compaixão,

Ao ver o desfilar dos séculos que vão

Pausadamente, como um dobre de finados.

 

Mais dez, mais cem, mais mil e mais um bilião,

Uns cingidos de luz, outros ensanguentados...

Súbito, sacudindo as asas de tufão,

Fita-lhe a águ[i]a em cima os olhos espantados.

 

Pela primeira vez a víscera do herói,

Que a imensa ave do céu perpetuamente rói,

Deixou de renascer às raivas que a consomem.

 

Uma invisível mão as cadeias dilui;

Frio, inerte, ao abismo um corpo morto rui;

Acabara o suplício e acabara o homem.


Poemas e Poesias quarta, 19 de junho de 2019

INVENÇÃO DE ORFEU (POEMA DO ALAGOANO JORGE DE LIMA)

INVENÇÃO DE ORFEU

Jorge de Lima

 

 

CANTO III

POEMAS RELATIVOS

I

Caída a noite
o mar se esvai,
aquele monte
desaba e cai
silentemente.

Bronzes diluídos
já não são vozes,
seres na estrada
nem são fantasmas,
aves nos ramos
inexistentes;
tranças noturnas
mais que impalpáveis,
gatos nem gatos,
nem os pés no ar,
nem os silêncios.

O sono está.
E um homem dorme.

II

Queres ler o que
tão só se entrelê
e o resto em ti está?
Flor no ar sem umbela
nem tua lapela;
flor que sem nós há.

Subitamente olhas:
nem lês nem desfolhas;
folha, flor, tiveste-as.

E nem as tocaste:
folha e flor. Tu - haste,
elas reais, mas réstias.

III

qualquer voz alou-se
muito desejada.
Branco fosse o espaço
e ela ardente cor.

Quis o espaço a voz
a voz veio e ampliou-o.

Mas se não houvesse
propriamente voz...

Vamos nós supô-los:
dois sem seus sentidos.

Desejemos mesmo
dois incompreensíveis.

Bom nos ecoarmos
na voz recebida.

E o espaço esvaziado
povoá-lo de vez.

Amá-los tão sem
amada presença,
só com o coração
sem correspondência,
só com a vocação
do verso feliz.

IV

Numas noites chegamos à janela,
e as mandíbulas do ar tanto nos roem,
que os leitos rotos logo deliqüescem
com os nossos corpos complacentemente.

Certos dias olhamos o sol claro;
e a boca hiante das cores nos devora
carnes e sangues, poeiras de costelas,
que ficamos inúteis, sem matéria.

Essas bocas nos sugam noite e dia,
vigiando dia e noite nossas vidas
um minuto no espaço, menos que ai
de chumbo soluçado nos silêncios,
ou cal de fome longa, revelada,
na noite igual ao dia, de tão gêmeos.

V

Agora o sem senso
sorriso nos ares,
minha alma perdida,
os vales lá embaixo
de minhas lonjuras
de não existido,
parado nos antes,
nem sei de pecados,
nem sei de mim mesmo,
eu mesmo não sou
nem nada me vê;
ausentes palavras
não soam no vácuo
dos antes das coisas,
das coisas sem nexo,
nem fluidos. Só o Verbo
chorando por mim.

VI

Agora, escutai-me
que eu falo de mim;
ouvi que sou eu,
sou eu, eu em mim;
tocai esses cravos
já feitos pra mim,
suores de sangue,
pressuados sem poros
verônica herdada.
sem face do ser.

Embora; escutai-me,
que eu falo com a voz
inata que diz
que a voz não é essa
que fala por mim,
talvez minha fala
saída de ti.

VII

Alegria achareis neste poema
como poema ilícito, como um
corpo casual ou vão, como a memória
dura e acídula, como um homem se
conhece respirando, ou como quando
se entristece sem causa ou se doente,
ou se lavando sempre ou comparando-se
às dimensões das coisas relativas;
ou como sente os ombros de seu ser,
transmitidos e opacos, e os avós
responsabilizando-se presentes.

São alegrias rápidas. Lugares,
reencontrados países, becos, passos
sob as chuvas que não vos molharão.

VIII

Se falta alguém nesses versos
pele vento interminável,
pelas arenas de estátuas,
sucedam-lhe os cegos olhos
sacudidos pelos medos,
mãos de chuvas lhe inteiricem
o corpo com algas remissas
e com matérias tranqüilas
tão soturna como os poços,
exasperados invernos,
ombros de escova comida,
as asas secas caídas,
ante seus netos calados;
e incorporem-se a esse alvitre
esse sabor de cortiça,
essas esponjas morridas,
essas marés estanhadas,
essas escunas de espáduas
estritamente fechadas
como casas de abandono,
restringem-se os conciliábulos,
certos sigilos de pez,
certas coisas enlutadas,
refúgios, dramas ocultos,
pois as rosas são de trapos
e os fios menos que teias,
menos que finos agora,
e as camisas sem os pêlos
enterrados nas ilhargas,
vestem enganos e punhos
e crimes em vez de adegas,
mas tudo em vão, mesmo as plumas,
mesmo os ausentes e as vozes
aderidas a fragmentos
aí moram degredadas,
listrando as grades, de faces
que não conhecem espelhos

IX

Numa hora perdida cantos doeram. Os desejos
E flores despenteadas, flores largas e a barbárie
e inconfidentes quase abominadas dos corpos.
por oculta paixão, se intumesceram. E a relatividade
do espírito
Lírios eram pilares de cristal sob o cerco
subindo para as aves; então dardos da matéria.
desceram sobre os mais amados colos
cantando amor com seus sentimentos.

Canção melhor. Mais consentimentos puros olhos. Eu
sei de cor os rebanhos, e olho o mundo.
Tudo contém pequenas doces máscaras.
Mas da selva selvagem desce o pranto
dos que mastigam suas próprias fomes,
sem saliva de pão, e o gosto ausente.

Ninguém consegue assim amar os lírios.
E esse amor é amaríssimo e adstringente
com a memória das dores engolidas.

X

Vós não viveis sozinhos
os outros vos invadem
felizes convivências
agregações incômodas
enfim ambientalismos,
e tudo subsistências
e mais comunidades;
e tantas ventanias
acotovelamentos,
desgastes de antemão,
acréscimos depois,
depois substituições,
a massa vos tragando,
as coisas vos bisando;
os hábitos, os vícios,
as moças embutidas
mudando vossas cartas;
sereis administrados
no sono e nos pecados,
vós mapas e diagramas
com várias delinqüências,
e insanidades várias,
dosando o vosso espaço,
pesando o vosso pão
de tempos racionados;
e não tereis vivido
e não tereis amado,
porém sereis morrido.

XI

Éreis vós Tiago, Diogo, Jaques, Jaime?
Clodoveu ou Clodovigo?
Éreis vós por acaso eles?
Éreis vós aqueles nomes,
estes, e os demais já mortos,
os mortos tão renovados
nós mesmos sempre chamados
Lútero, Lotário, otário,
sim otário tão singelo,
tão puro de todo o mal,
relativo, universal.

Éreis vós Tiago, Diogo, Jaques, Jaime?
Dizei-me se acaso vós
éreis eles ou voz sou
de algum avo tão otário,
tão eu mesmo como voz,
como poema de outros vários.

XII

O simples ar
de uma só corda
em curta raia,
mão de menino,
punhado escasso,
ar perfumado,
sem o alvoroço
dos vendavais;
anjo acolhido
em róseo céu
abrigo instante,
pranto lavado,
chorar em ti
de arrependido,
subir teus vales,
amar teu pólen,
nunca escapar-me
de tuas pétalas
cair com elas.

XIII

Uma janela aberta
e um simples rosto hirto,
e que provavelmente
nela se debruçou;
e nesse gesto puro
do rosto na janela
estava todo o poema
que ninguém escutou;
só a janela aberta
e o espaço dentro dela
que o tempo atravessou.

XIV

O contro era um dia,
um dia futuro,
e dentro do dia
incluído o conforme,
e dentro o que foi
porque fora isso
se tal não se dera,
se o mundo parasse
e o espaço se excluí


Poemas e Poesias terça, 18 de junho de 2019

A PALAVRA SEDA (POEMA DO PERNAMBUCANO JOÃO CABRAL DE MELO NETO)

A PALAVRA SEDA

João Cabral de Melo Neto

 

A atmosfera que te envolve
atinge tais atmosferas
que transforma muitas coisas
que te concernem, ou cercam.
E como as coisas, palavras
impossíveis de poema:
exemplo, a palavra ouro,
e até este poema, seda.
É certo que tua pessoa
não faz dormir, mas desperta;
nem é sedante, palavra
derivada da de seda.
E é certo que a superfície
de tua pessoa externa,
de tua pele e de tudo
isso que em ti se tateia,
nada tem da superfície 
luxuosa, falsa, acadêmica,
de uma superfície quando
se diz que ela é “como seda”.
Mas em ti, em algum ponto,
talvez fora de ti mesma, 
talvez mesmo no ambiente
que retesas quando chegas,
há algo de muscular,
de animal, carnal, pantera,
de felino, da substância
felina, ou sua maneira,
de animal, de animalmente,
de cru, de cruel, de crueza, que sob a palavra gasta
persiste na coisa seda.

Poemas e Poesias segunda, 17 de junho de 2019

AMANHECER (POEMA DA PAULISTA HILDA HILST)

AMANHECER

Hilda Hilst

 

Colada à tua boca a minha desordem.
O meu vasto querer.
O incompossível se fazendo ordem.
Colada à tua boca, mas descomedida
Árdua
Construtor de ilusões examino-te sôfrega
Como se fosses morrer colado à minha boca.
Como se fosse nascer
E tu fosses o dia magnânimo
Eu te sorvo extremada à luz do amanhecer.


Poemas e Poesias domingo, 16 de junho de 2019

NO MUNDO HÁ MUITAS ARMADILHAS (POEMA DO MARANHENSE FERREIRA GULLAR)

NO MUNDO HÁ MUITAS ARMADILHAS

Ferreira Gullar

 

No mundo há muitas armadilhas
e o que é armadilha pode ser refúgio
e o que é refúgio pode ser armadilha

Tua janela por exemplo
aberta para o céu
e uma estrela a te dizer que o homem é nada
ou a manhã espumando na praia
a bater antes de Cabral, antes de Tróia
(há quatro séculos Tomás Bequimão
tomou a cidade, criou uma milícia popular
e depois foi traído, preso, enforcado)

No mundo há muitas armadilhas
e muitas bocas a te dizer
que a vida é pouca
que a vida é louca
E por que não a Bomba? te perguntam.
Por que não a Bomba para acabar com tudo, já
que a vida é louca?

Contudo, olhas o teu filho, o bichinho
que não sabe
que afoito se entranha à vida e quer
a vida
e busca o sol, a bola, fascinado vê
o avião e indaga e indaga

A vida é pouca
a vida é louca
mas não há senão ela.
E não te mataste, essa é a verdade.

Estás preso à vida como numa jaula.
Estamos todos presos
nesta jaula que Gagárin foi o primeiro a ver
de fora e nos dizer: é azul.
E já o sabíamos, tanto
que não te mataste e não vais
te matar
e aguentarás até o fim.

O certo é que nesta jaula há os que têm
e os que não têm
há os que têm tanto que sozinhos poderiam
alimentar a cidade
e os que não têm nem para o almoço de hoje

A estrela mente
o mar sofisma. De fato,
o homem está preso à vida e precisa viver
o homem tem fome
e precisa comer
o homem tem filhos
e precisa criá-los
Há muitas armadilhas no mundo e é preciso quebrá-las.


Poemas e Poesias sábado, 15 de junho de 2019

AS HORAS PELA ALAMEDA (POEMA DO PORTUGUÊS FERNANDO PESSOA)

AS HORAS PELA ALAMEDA

Fernando Pessoa

 

As horas pela alameda 
Arrastam vestes de seda, 

Vestes de seda sonhada 
Pela alameda alongada 

Sob o azular do luar... 
E ouve-se no ar a expirar - 

A expirar mas nunca expira - 
Uma flauta que delira, 

Que é mais a idéia de ouvi-la 
Que ouvi-la quase tranquila 

Pelo ar a ondear e a ir... 
Silêncio a tremeluzir... 


Poemas e Poesias sexta, 14 de junho de 2019

TROVAS LÍRICAS E FILOSÓFICAS - 23 (POEMA DO PARANAENSE ENO TEODORO WANKE)

TROVA LÍRICA E FILOSÓFICA - 23

Eno Teodoro Wanke

 

Felicidade, vantagem

Que todos querem ganhar

Não é bem um fin de viagem

É um modo de viajar


Poemas e Poesias quinta, 13 de junho de 2019

A GRANDE DÚVIDA (POEMA DO PIAUIENSE DA COSTA E SILVA)

A GRANDE DÚVIDA

Da Costa e Silva

 

 

Porque hei sofrido tantos golpes rudes, 
Às vezes penso que outra vida existe, 
Para ficar mais céptico e mais triste 
Com o meu destino de vicissitudes.

 

Nem sofrendo, às celestes amplitudes 
Hei de ascender à altura que atingiste, 
Por não poder, na prova que me assiste, 
Aos meus erros opor tuas virtudes.

 

Assim temo, a evocar-te a imagem linda, 
Que após a morte, venha a eternidade 
Esta separação tornar infinda...

 

E, então, o sentimento que me invade, 
Sem a esperança de te ver ainda, 
É dor eterna, não é mais saudade.


Poemas e Poesias quarta, 12 de junho de 2019

ADALZIZA (POEMA DO CATARINENSE CRUZ E SOUSA)

ADALZIZA

Cruz e Sousa

 

Tens um olhar cintilante,
Tens uma voz dulçurosa,
Tens um pisar fascinante,
Tens um olhar cintilante
Cheio de raios, faiscante
Ó criatura formosa,
Tens um olhar cintilante,
Tens uma voz dulçurosa!...


Poemas e Poesias terça, 11 de junho de 2019

AMIGO (POEMA DA GOIANA CORA CORALINA)

AMIGO

Cora Coralina

 

 

Vamos conversar
Como dois velhos que se encontram
no fim da caminhada.
Foi o mesmo nosso marco de partida.
Palmilhamos juntos a mesma estrada.

Eu era moça.
Sentia sem saber
seu cheiro de terra,
seu cheiro de mato,
seu cheiro de pastagens

É que havia dentro de mim,
no fundo obscuro de meu ser
vivências e atavismo ancestrais:
fazendas, latifúndios,
engenhos e currais.

Mas... ai de mim!
Era moça da cidade.
Escrevia versos e era sofisticada.

Você teve medo.
O medo que todo homem sente
da mulher letrada.

Não pressentiu, não adivinhou
aquela que o esperava
mesmo antes de nascer.

Indiferente
tomaste teu caminho
por estrada diferente.
Longo tempo o esperei
na encruzilhada,
depois... depois...
carreguei sozinha
a pedra do meu destino.

Hoje, no tarde da vida,
apenas,
uma suave e perdida relembrança.


Poemas e Poesias segunda, 10 de junho de 2019

A PERFEIÇÃO (POEMA DA UCRANIANA-BRASILEIRA CLARICE LISPECTOR)

A PERFEIÇÃO

Clarice Lispector

 

O que me tranquiliza 
é que tudo o que existe, 
existe com uma precisão absoluta. 

O que for do tamanho de uma cabeça de alfinete 
não transborda nem uma fração de milímetro 
além do tamanho de uma cabeça de alfinete. 

Tudo o que existe é de uma grande exatidão. 
Pena é que a maior parte do que existe 
com essa exatidão 
nos é tecnicamente invisível. 

O bom é que a verdade chega a nós 
como um sentido secreto das coisas. 

Nós terminamos adivinhando, confusos, 
a perfeição.


Poemas e Poesias domingo, 09 de junho de 2019

A CHÁCARA DO CHICO BOLACHA (POEMA DA CARIOCA CECÍLIA MEIRELES)

A CHÁCARA DO CHICO BOLACHA

Cecília Meireles

 

Na chácara do Chico Bolacha,
o que se procura
nunca se acha!

Quando chove muito,
o Chico brinca de barco,
porque a chácara vira charco.

Quando não chove nada,
Chico trabalha com a enxada
e logo se machuca
e fica de mão inchada.

Por isso, com o Chico Bolacha
o que se procura
nunca se acha!

Dizem que a chácara do Chico
só tem mesmo chuchu
e um cachorro coxo
que se chama Caxambu.

Outras coisas ninguém procura,
porque não acha,
coitado do Chico Bolacha!


Poemas e Poesias sexta, 07 de junho de 2019

ANJO (19ª PARTE DO POEMA A CACHOEIRA DE PAULO AFONSO, DE CASTRO ALVES)

ANJO

Castro Alves

(Do poema A Cachoeira de Paulo Afonso)

 

"Ai! Que vale a vingança, pobre amigo,
Se na vingança a honra não se lava?...
O sangue é rubro, a virgindade é branca —
O sangue aumenta da vergonha a bava.

"Se nós fomos somente desgraçados,
Para que miseráveis nos fazermos?
Desportados da terra assim perdemos
De além da campa as regiões sem termos...

"Ai! não manches no crime a tua vida,
Meu irmão, meu amigo, meu esposo!...
Seria negro o amor de uma perdida
Nos braços a sorrir de um criminoso!. . . "


Poemas e Poesias quinta, 06 de junho de 2019

PERFUMES E AMOR (POEMA DO FLUMINENSE CASIMIRO DE ABREU)

PERFUMES E  AMOR

Casimiro de Abreu

 


A flor mimosa que abrilhanta o prado
Ao sol nascente vai pedir fulgor;
E o sol, abrindo da açucena as folhas,
Dá-lhe perfumes — e não nega amor.

Eu que não tenho, como o sol, seus raios,
Embora sinta nesta fronte ardor,
Sempre quisera ao encetar teu álbum
Dar-lhe perfumes — desejar-lhe amor.

Meu Deus! nas folhas deste livro puro
Não manche o pranto da inocência o alvor,
Mas cada canto que cair dos lábios
Traga perfumes — e murmure amor.

Aqui se junte, qual num ramo santo,
Do nardo o aroma e da camélia a cor,
E possa a virgem, percorrendo as folhas,
Sorver perfumes — respirar amor.

Encontre a bela, caprichosa sempre,
Nos ternos hinos d'infantil frescor
Entrelaçados na grinalda amiga
Doces perfumes — e celeste amor.

Talvez que diga, recordando tarde
O doce anelo do feliz cantor:
— "Meu Deus! nas folhas do meu livro d'alma
Sobram perfumes — e não falta amor!"


Poemas e Poesias quarta, 05 de junho de 2019

A MESMA ROSA AMARELA (POEMA DO PERNAMBUCANO CARLOS PENA FILHO)

A MESMA ROSA AMARELA

Carlos Pena Filho

 

 

Você tem quase tudo dela,

o mesmo perfume, a mesma cor,

a mesma rosa amarela,

só não tem o meu amor.

 

Mas nestes dias de carnaval

para mim, você vai ser ela.

O mesmo perfume, a mesma cor,

a mesma rosa amarela.

Mas não sei o que será

quando chega a lembrança dela

e de você apenas restar

a mesma rosa amarela,

a mesma rosa amarela.


Poemas e Poesias terça, 04 de junho de 2019

A BUNDA, QUE ENGRAÇADA (POEMA D MINEIRO CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

A BUNDA, QUE ENGRAÇADA

Carlos Drummond de Andrade

 

A bunda, que engraçada.
Está sempre sorrindo, nunca é trágica.

Não lhe importa o que vai
pela frente do corpo. A bunda basta-se.
Existe algo mais? Talvez os seios.
Ora – murmura a bunda – esses garotos
ainda lhes falta muito que estudar.

A bunda são duas luas gêmeas
em rotundo meneio. Anda por si
na cadência mimosa, no milagre
de ser duas em uma, plenamente.

A bunda se diverte
por conta própria. E ama.
Na cama agita-se. Montanhas
avolumam-se, descem. Ondas batendo
numa praia infinita.

Lá vai sorrindo a bunda. Vai feliz
na carícia de ser e balançar.
Esferas harmoniosas sobre o caos.

A bunda é a bunda,
rebunda.


Poemas e Poesias segunda, 03 de junho de 2019

SONETO 091 - AQUELA TRISTE E LEDA MADRUGADA (POEMA DO PORTUGUÊS LUÍS DE CAMÕES)

AQUELA TRISTE E LEDA MADRUGADA

Soneto 091

Luís de Camões

 

Aquela triste e leda madrugada,
cheia toda de mágoa e de piedade,
enquanto houver no mundo saudade
quero que seja sempre celebrada.

Ela só, quando amena e marchetada
saía, dando ao mundo claridade,
viu apartar-se de üa outra vontade,
que nunca poderá ver-se apartada.

Ela só viu as lágrimas em fio,
de que uns e outros olhos derivadas
se acrescentaram em grande e largo rio.

Ela viu as palavras magoadas
que puderam tornar o fogo frio,
e dar descanso às almas condenadas.


Poemas e Poesias domingo, 02 de junho de 2019

SONETO DO PREGADOR PECADOR (POEMA O PORTUGUÊS MANUEL MARIA DU BOCAGE)

SONETO DO PREGADOR PECADOR

Bocage

 

Bojudo fradalhão de larga venta,
Abismo imundo de tabaco esturro,
Doutor na asneira, na ciência burro,
Com barba hirsuta, que no peito assenta:

No púlpito um domingo se apresenta;
Pregas nas grades espantoso murro;
E acalmado do povo o grão sussurro
O dique das asneiras arrebenta.

Quatro putas mofavam de seus brados,
Não querendo que gritasse contra as modas
Um pecador dos mais desaforados:

"Não (diz uma) tu padre não me engodas:
Sempre, me hé-de lembrar por meus pecados
A noite, em que me deste nove fodas"!


Poemas e Poesias sábado, 01 de junho de 2019

SOLILÓQUIO DE UM VISIONÁRIO (POEMA DO CAPIXABA AUGUSTO DOS ANJOS)

SOLILÓQUIO DE UM VISIONÁRIO

Augusto dos Anjos

 

 

Para desvirginar o labirinto
Do velho e metafísico Mistério,
Comi meus olhos crus no cemitério,
Numa antropofagia de faminto!

A digestão desse manjar funéreo
Tornado sangue transformou-me o instinto
De humanas impressões visuais que eu sinto,
Nas divinas visões do íncola etéreo!

Vestido de hidrogênio incandescente,
Vaguei um século, improficuamente,
Pelas monotonias siderais...

Subi talvez ás máximas alturas,
Mas, se hoje volto assim, com a alma às escuras,
É necessário que ainda eu suba mais!


Poemas e Poesias sexta, 31 de maio de 2019

A PEGA DO BOI (PEMA DO PERNAMBUCANO ASCENSO FERREIRA)

A PEGA DO BOI

Ascenso Ferreira

 

A rês tresmalhada
ouviu na quebrada,
soar a toada,
de alguém que aboiou:

— Hô — hô — hô — hô — hô,
Vaá!
Meu boi Surubim!
Boi!
Boiato!

E, logo espantada,
sentindo a laçada,
no mato embocou...

Atrás, o vaqueiro,
montando o "Veleiro"
também mergulhou...

Os casco nas pedras
davam cada risco
que só o corisco
de noite no céu...

Saltaram valados,
subriam oiteiros,
pisaram faxeiros
e mandacarus...

Até que enfim...
No Jatobá
do Catolé,
bem junto a um pé
de oiticoró,
já do Exu
na direção...

— O rabo da bicha reteve na mão!

Poeiriço danado e dois vultos no chão)
.......................................

Mas, baixa a poeira,
a res mandingueira
por terra ficou...

E um grito de glória
no espaço vibrou:

— Hô — hô — hô — hô — hô,
Váá!
Meu boi Surubim!
Boi!
Boiato!


Poemas e Poesias quinta, 30 de maio de 2019

A ESTRADA, POEMA DO PARAIBANO ARIANO SUASSUNA

 

 A ESTRADA

Ariano Suassuna

o relógio do Céu, o Sol ponteiro
Sangra a Cabra no estranho céu chumboso.
A Pedra lasca o Mundo impiedoso,
A chama da Espingarda fere o Aceiro.

No carrascal do sol, azul braseiro,
Refulge o Girassol rubro e fogoso.
Como morrer na sombra do meu Pouso?
Como enfrentar as flechas desse Arqueiro?

Lá fora, o incêndio: o roxo lampadário
das Macambiras rubras e auri-pardos
Anjos-diabos e Tronos-vai queimando.

Sopra o vento – o Sertão incendiário!
Andam monstros sombrios pela Estrada
e, pela Estrada, entre esses Monstros, ando!


Poemas e Poesias quarta, 29 de maio de 2019

EVOLUÇÃO (POEMA DO PORTUGUÊS ANTERO DE QUENTAL)

EVOLUÇÃO

Antero de Quental

 

Fui rocha em tempo, e fui no mundo antigo 
tronco ou ramo na incógnita floresta... 
Onda, espumei, quebrando-me na aresta 
Do granito, antiquíssimo inimigo... 

Rugi, fera talvez, buscando abrigo 
Na caverna que ensombra urze e giesta; 
O, monstro primitivo, ergui a testa 
No limoso paúl, glauco pascigo... 

Hoje sou homem, e na sombra enorme 
Vejo, a meus pés, a escada multiforme, 
Que desce, em espirais, da imensidade... 

Interrogo o infinito e às vezes choro... 
Mas estendendo as mãos no vácuo, adoro 
E aspiro unicamente à liberdade. 


Poemas e Poesias terça, 28 de maio de 2019

ADEUS, MEUS SONHOS (POEMA DO PAULISTA ÁLVARES DE AZEVEDO)

ADEUS, MEUS SONHOS

Álvares de Azevedo

 


Adeus, meus sonhos, eu pranteio e morro!
Não levo da existência uma saudade!
E tanta vida que meu peito enchia
Morreu na minha triste mocidade!

Misérrimo! votei meus pobres dias
À sina doida de um amor sem fruto...
E minh’alma na treva agora dorme
Como um olhar que a morte envolve em luto.

Que me resta, meu Deus?!... morra comigo
A estrela de meus cândidos amores,
Já que não levo no meu peito morto
Um punhado sequer de murchas flores!


Poemas e Poesias segunda, 27 de maio de 2019

ESTÂNCIA (POEMA DO MINEIRO ALPHONSUS GUIMARAENS)

ESTÂNCIA

Alphonsus Guimaraens

 

Foi a tua beleza?
Foi toda a minha Dor?
Não sei, nem sabes, mas na devesa
Chorou cantando o rouxinol do amor.
Ias de preto, leve,
Como uma andorinha no ar.
Pelo céu tranquilo tombava a neve
Do meu pesar.
Como tinhas de ser crucificada,
Abri-te os braços…
O luar, mais brando do que tu, Amada,
Vinha guiar os nossos passos.
Agora que cheguei e que chegaste
Ao fim da vida,
Bem sabes que a ilusão com que sonhaste
Foi pérola de bem alto caída
E que vimos enfim no mar perdida…
No mesmo mar ebúrneo do teu seio,
Donde ela em tempos mais felizes veio!


Poemas e Poesias domingo, 26 de maio de 2019

CELESTE (POEMA DO MARANHENSE ADELINO FONTOURA)

CELESTE

Adelino Fontoura

 

 

 

É tão divina a angélica aparência 
e a graça que ilumina o rosto dela, 
que eu concebera o tipo de inocência 
nessa criança imaculada e bela.

 

Peregrina do céu, pálida estrela, 
exilada na etérea transparência, 
sua origem não pode ser aquela 
da nossa triste e mísera existência.

 

Tem a celeste e ingênua formosura 
e a luminosa auréola sacrossanta 
de uma visão do céu, cândida e pura.

 

E quando os olhos para o céu levanta, 
inundados de mística doçura, 
nem parece mulher - parece santa.

 


Poemas e Poesias sábado, 25 de maio de 2019

A INVENÇÃO DE UM MODO (POEMA DA MINEIRA ADÉLIA PRADO)

A INVENÇÃO DE UM MODO

Adélia Prado

 

 

Entre paciência e fama quero as duas,

pra envelhecer vergada de motivos.

Imito o andar das velhas de cadeiras duras

e se me surpreendem, explico cheia de verdade:

tô ensaiando. Ninguém acredita

e eu ganho uma hora de juventude.

Quis fazer uma saia longa pra ficar em casa,

a menina disse: "Ora, isso é pras mulheres de São Paulo"

Fico entre montanhas,

entre guarda e vã,

entre branco e branco,

lentes pra proteger de reverberações.

Explicação é para o corpo do morto,

de sua alma eu sei.

Estátua na Igreja e Praça

quero extremada as duas.

Por isso é que eu prevarico e me apanham chorando,

vendo televisão,

ou tirando sorte com quem vou casar.

Porque que tudo que invento já foi dito

nos dois livros que eu li:

as escrituras de Deus,

as escrituras de João.

Tudo é Bíblias. Tudo é Grande Sertão. 

Em busca de um conceito de relação.


Poemas e Poesias sexta, 24 de maio de 2019

A AUSENTE (POEMA DO CARIOCA VINÍCIUS DE MORAES)

A AUSENTE

Vinícius de Moraes

 

Amiga, infinitamente amiga
Em algum lugar teu coração bate por mim
Em algum lugar teus olhos se fecham à ideia dos meus.
Em algum lugar tuas mãos se crispam, teus seios
Se enchem de leite, tu desfaleces e caminhas
Como que cega ao meu encontro...
Amiga, última doçura
A tranquilidade suavizou a minha pele
E os meus cabelos. Só meu ventre
Te espera, cheio de raízes e de sombras.
Vem, amiga
Minha nudez é absoluta
Meus olhos são espelhos para o teu desejo
E meu peito é tábua de suplícios
Vem. Meus músculos estão doces para os teus dentes
E áspera é minha barba. Vem mergulhar em mim
Como no mar, vem nadar em mim como no mar
Vem te afogar em mim, amiga minha
Em mim como no mar...


Poemas e Poesias quinta, 23 de maio de 2019

COBRA NORATO - FRAGMENTOS (POEMA DO GAÚCHO RAUL BOPP)

COBRA NORATO

Raul Bopp

 

(Fragmentos)

I
Um dia
ainda eu hei de morar nas terras do Sem-Fim.

Vou andando, caminhando, caminhando;
me misturo rio ventre do mato, mordendo raízes.
Depois
faço puçanga de flor de tajá de lagoa
e mando chamar a Cobra Norato.

— Quero contar-te uma história:
Vamos passear naquelas ilhas decotadas?
Faz de conta que há luar.

A noite chega mansinho.
Estrelas conversam em voz baixa.

O mato já se vestiu.
Brinco então de amarrar uma fita no pescoço
e estrangulo a cobra.

Agora, sim,
me enfio nessa pele de seda elástica
e saio a correr mundo:

Vou visitar a rainha Luzia.
Quero me casar com sua filha.

— Então você tem que apagar os olhos primeiro.
O sono desceu devagar pelas pálpebras pesadas.
Um chão de lama rouba a força dos meus passos.

II
Começa agora a floresta cifrada.
A sombra escondeu as árvores.
Sapos beiçudos espiam no escuro.

Aqui um pedaço de mato está de castigo.
Árvorezinhas acocoram-se no charco.
Um fio de água atrasada lambe a lama.

— Eu quero é ver a filha da rainha Luzia!

Agora são os rios afogados,
bebendo o caminho.
A água vai chorando afundando afundando.

Lá adiante
a areia guardou os rastos da filha da rainha Luzia.

— Agora sim, vou ver a filha da rainha Luzia!

Mas antes tem que passar por sete portas
Ver sete mulheres brancas de ventres despovoados
guardadas por um jacaré.

— Eu só quero a filha da rainha Luzia.

Tem que entregar a sombra para o bicho do fundo
Tem que fazer mironga na lua nova.
Tem que beber três gotas de sangue.

— Ah, só se for da filha da rainha Luzia!

A selva imensa está com insônia.

Bocejam árvores sonolentas.
Ai, que a noite secou. A água do rio se quebrou.
Tenho que ir-me embora.

E me sumo sem rumo no fundo do mato
onde as velhas árvores grávidas cochilam.

De todos os lados me chamam:
— Onde vai, Cobra Norato?
Tenho aqui três árvorezinhas jovens, à tua espera.

— Não posso.
Eu hoje vou dormir com a filha da rainha Luzia.

IV
Esta é a floresta de hálito podre,
parindo cobras.

Rios magros obrigados a trabalhar.

A correnteza arrepiada junto às margens
descasca barrancos gosmentos.

Raízes desdentadas mastigam lodo.

A água chega cansada.
Resvala devagarinho na vasa mole
com medo de cair.

A lama se amontoa.

Num estirão alagado
o charco engole a água do igarapé.

Fede...

Vento mudou de lugar.

Juntam-se léguas de mato atrás dos pântanos de aninga.
Um assobio assusta as árvores.

Silêncio se machucou.

Cai lá adiante um pedaço de pau seco:
Pum

Um berro atravessa a floresta.

Correm cipós fazendo intrigas no alto dos galhos.
Amarram as árvorezinhas contrariadas.

Chegam vozes.

Dentro do mato
pia a jurucutu.

— Não posso.
Eu hoje vou dormir com a filha da rainha Luzia.

XXXII
— E agora, compadre,
eu vou de volta pro Sem-Fim.

Vou lá para as terras altas,
onde a serra se amontoa,
onde correm os rios de águas claras
em matos de molungu.

Quero levar minha noiva.
Quero estarzinho com ela
numa casa de morar,
com porta azul piquininha
pintada a lápis de cor.

Quero sentir a quentura
do seu corpo de vaivém.
Querzinho de ficar junto
quando a gente quer bem, bem;

Ficar à sombra do mato
ouvir a jurucutu,
águas que passam cantando
pra gente se espreguiçar,

E quando estivermos à espera
que a noite volte outra vez
eu hei de contar histórias
(histórias de não-dizer-nada)
escrever nomes na areia
pro vento brincar de apagar.


Poemas e Poesias quarta, 22 de maio de 2019

S PIRACEMA (POEMA DO CEARENSE QUINTINO CUNHA)

A PIRACEMA

Quntino Cunha

 

Aqui é um lago, feito de água clara,

Visualmente negro se mostrando;

Calmo que sobre si passa uma igara,

Como no espaço um passarinho voando.

 

Sol das dez da manhã. O amor compara

Este quadro à virtude. Um vento brando...

Mas lá fora no rio. Ele aqui para,

O lago, a mata e o céu quietos deixando.

 

Do anivelado espelho dágua, apenas

Manchado levemente por pequenas

Nódoas que lhe colorem, nódoas cérulas,

 

Aos bandos, as sardinhas vão surgindo,

Frágeis, cambiantes, rápidas, fugindo,

Como travessas conchas madrepérolas.


Poemas e Poesias terça, 21 de maio de 2019

APELO DE UM AGRICULTOR (POEMA DO CEARENSE PATATIVA DO ASSARÉ)

APELO DE UM AGRICULTOR

Patativa do Assaré

 

 

Seu dotô, não lhe aborreço,
Venho é fazê um pedido
E como sei qui merêço,
Espero sê atendido.
Não quera se aborrecê,
Pois antes de lhe dizê
O meu desejo sagrado,
Vou minha históra contá
E o senhô vai iscutá
Todo meu palavriado.

 

 
Vevi sempre a trabaiá
De ferramenta na mão
Tenho no rosto o siná
Do quente só do sertão.
Tratando de agricurtura
Já mostrei grande bravura
Sempre dei uma premêra
Naquele tempo passado,
Fui o herói do machado
Foice, inxada e roçadeira.

 

 
Sei qui o dotô inguinora,
E tem bastante razão,
Pois quem na cidade mora,
Não vai pensá no Sertão,
E por isso eu vou assim
Contá tin-tin por tin-tin
Como é que tenho vivido,
Minhas razão eu dizendo
O dotô fica sabendo
Quanto eu lhe tenho servido.
 
Sou pai de quatôze fio,
Cabras macho de valô,
Pois num tem nenhum vadio,
São todos trabaiadô,
Cada um destes cabôco
Aprendeu a lê um pôco,
Mais porém mode votá,
Nunca nenhum levô pau,
Já são quatôze degrau
Pra seu dotô se atrepá.
 
Quando o dia amanhecia,
Que meu café eu tomava,
Pra meu roçado  ia
E os fio me acompanhava;
Pra roça eu levava tudo
Era os miúdo e os graúdo,
Era os menino e os rapaz,
Eu satisfeito e contente
Ia seguindo na frente
E aquela infiêra atráz.

O mais véio dava um grito:
__Anima rapaziada!
Era um truvejo bonito
No manejá das inxada;
Com licença da palavra,
Eu tinha da minha lavra
Munta gente em serviço
Trabaiando no roçado
Mode abastecê os mercado
Com os geno alimenticio
 
Defendendo a vida alêia,
Vivi sempre a trabaiá
E nunca fiz cara feia
Promode imposto pagá,
Pois todos aquele que tem
Budega, loja , armazém
E ôtras vendas de valô
O seu lucro nunca estraga,
Pruquê o imposto quem paga
É sempre o consumidô.
 
Fui um  correto sujeito 
E nunca baruio fiz.
Bradando contra os dereito
Criado em nosso país,
Eu nunca me revortava 
Quando pra fêra eu levava
Mio, farinha e feijão
Mode vendê no mercado
Qui chegava um impregado
Trazendo um papé na mão.
 
O agricurtô é desposto
Ele vende , paga imposto,
Se compra, paga também.
Nesta coisa maginando
Vejo qui venho pagando
Imposto derne menino,
Quando comprava bom-bom
Qui chupava e achava bom
Quando eu era pequeninino.
 
Mesmo assim , falando errado,
Já contei a seu dotô,
Quem eu já fui no passado,
Honesto e trabaiadô.
A linguage tá errada
Mas a verdade é sagrada.
E agora preste tensão,
Tenha a bondade de uvi
O qui eu venho lhe pedi
Com dereito e com razão:
 
Não lhe minto e nem lhe nego
Já tenho sessenta ano,
Sofro munto, não sossego,
Já vivo mole, sem prano;
E por isto, nesta idade,
Eu venho aqui lhe rogá
Pra eu sê apusentado
Com dereito carimbado,
Por meio do FUNRURÁ.
 
Sessenta ano, pra mim,
É uma carga pesada,
Tô achando munto ruim,
O peso da minha inxada;
Os fio todos casado
Eu, doente, fracassado,
E além de vivê doente,
Sou da percisão cativo
Sei lá se eu ainda vivo
Mais cinco ano pra frente?
 
Sei que o dotô considera
O meu dito verdadêro.
Que diabo é que a gente espera
Já com sessenta janêro?
Esta idade é um castigo
E é por isto que lhe digo:
Minha aposentadoria
Já é tempo de fazê,
Eu passos mais vivê
Dando murro todo dia.
 
Eu, novo, resovi tudo
Qui fiquei de péia grossa,
Fui cabra bamba, peitudo
Iguá um boi de carroça;
Passei minha vida intêra
Naquela grande cansêra
Da paioça pro roçado.
Se o nosso Brasi falasse
O lucro que eu tenho dado.
 
Já tô de cabelo branco,
A cara toda incuída,
Eu lhe digo e falo franco
Nesta viage da vida
Já tô no fim do caminho;
Seu dotô ,  vá de pouquinho
Mandando de lá pra cá,
Pra este meu cativêro,
Uma parte do dinhêro
Que mandei daqui pra lá.

Poemas e Poesias segunda, 20 de maio de 2019

A MORTE DO JANGADEIRO (POEMA DO CEARENSE PADRE ANTÔNIO TOMÁS)

A MORTE DO JANGADEIRO 

Padre Antônio Tomás

 

Ao sopro do terral abrindo a vela, 
Na esteira azul das águas arrastada, 
Segue veloz a intrépida jangada 
Entre os uivos do mar que se encapela. 

Prudente, o jangadeiro se acautela 
Contra os mil acidentes da jornada; 
Fazem-lhe, entanto, guerra encarniçada 
O vento, a chuva, os raios, a procela. 

Súbito, um raio o prostra e, furioso, 
Da jangada o despeja na água escura; 
E, em brancos véus de espuma, o desditoso. 

Envolve e traga a onda intumescida, 
Dando-lhe, assim, mortalha e sepultura 
O mesmo mar que o pão lhe dera em vida.
 


Poemas e Poesias domingo, 19 de maio de 2019

DENTRO DA NOITE (POEMA DO CARIOCA OLAVO BILAC)

DENTRO DA NOITE

Olavo Bilac

 

Ficas a um canto da sala,
Olhas-me e finges que lês..
Ainda uma vez te ouço a fala,
Olho-te ainda uma vez;
Saio... Silêncio por tudo:
Nem uma folha se agita;
E o firmamento, amplo e mudo,
Cheio de estrelas palpita.
E eu vou sozinho, pensando
Em teu amor, a sonhar,
No ouvido e no olhar levando
Tua voz e teu olhar.

Mas não sei que luz me banha
Todo de um vivo clarão;
Não sei que música estranha
Me sobe do coração.
Como que, em cantos suaves,
Pelo caminho que sigo,
Eu levo todas as aves,
Todos os astros comigo.
E é tanta essa luz, é tanta
Essa música sem par,
Que nem sei se é a luz que canta,
Se é o som que vejo brilhar.

Caminho em êxtase, cheio
Da luz de todos os sóis,
Levando dentro do seio
Um ninho de rouxinóis.
E tanto brilho derramo,
E tanta música espalho,
Que acordo os ninhos e inflamo
As gotas frias do orvalho.
E vou sozinho, pensando
Em teu amor, a sonhar,
No ouvido e no olhar levando
Tua voz e teu olhar.

Caminho. A terra deserta
Anima-se. Aqui e ali,
Por toda parte desperta
Um coração que sorri.
Em tudo palpita um beijo,
Longo, ansioso, apaixonado,
E um delirante desejo
De amar e de ser amado.
E tudo, - o céu que se arqueia
Cheio de estrelas, o mar,
Os troncos negros, a areia,
- Pergunta, ao ver-me passar:

"O Amor, que a teu lado levas,
A que lugar te conduz,
Que entras coberto de trevas,
E sais coberto de luz?
De onde vens? que firmamento
Correste durante o dia,
Que voltas lançando ao vento
Esta inaudita harmonia?
Que país de maravilhas,
Que Eldorado singular
Tu visitaste, que brilhas
Mais do que a estrela polar?"

E eu continuo a viagem,
Fantasma deslumbrador,
Seguido por tua imagem,
Seguido por teu amor.
Sigo... Dissipo a tristeza
De tudo, por todo o espaço,
E ardo, e canto, e a Natureza
Arde e canta, quando eu passo,
- Só porque passo pensando
Em teu amor, a sonhar,
No ouvido e no olhar levando
Tua voz e teu olhar...


Poemas e Poesias sábado, 18 de maio de 2019

A LARANJA (POEMA DO GAÚCHO MÁRIO QUINTANA)

A LARANJA

Mário Quintana

 

 

A laranja cortada ao meio, 
Úmida de amor, anseia pela outra... 
É assim, é bem assim que eu te desejo!


Poemas e Poesias sexta, 17 de maio de 2019

A CAMÕES (POEMA DO PERNAMBUCANO MANUEL BANDEIRA)

A CAMÕES

Manuel Bandeira

 

 

Quando n'alma pesar de tua raça 
A névoa da apagada e vil tristeza, 
Busque ela sempre a glória que não passa, 
Em teu poema de heroismo e de beleza.

Gênio purificado na desgraça, 
Tu resumiste em ti toda a grandeza: 
Poeta e soldado... Em ti brilhou sem jaça 
O amor da grande pátria portuguesa.

E enquanto o fero canto ecoar na mente 
Da estirpe que em perigos sublimados 
Plantou a cruz em cada continente,

Não morrerá sem poetas nem soldados 
A língua em que cantaste rudemente 
As armas e os barões assinalados. 


Poemas e Poesias quinta, 16 de maio de 2019

ARRANJOS PARA ASSOBIO (POEMAS DO MATO-GROSSENSE MANOEL DE BARROS)

ARRANJOS PARA ASSOBIO

Manoel de Barros


ARRANJOS PARA ASSOBIO
OFERTA
Arcado ser — 
eu sou o apogeu do chão. Deixa passar o meu 
estorvo o meu trevo a minha corcova 
Senhor! 
(este assobio vai para todas as pessoas pertencidas 
pelos antros)

§

ARRANJOS PARA ASSOBIO
O PULO
Estrela foi se arrastando no chão deu no sapo 
sapo ficou teso de flor! 
e pulou o silêncio

§

ARRANJOS PARA ASSOBIO
SERVIÇOS
Catar um por um os espinhos da água 
restaurar nos homens uma telha de menos 
respeitar e amar o puro traste em flor


Poemas e Poesias quarta, 15 de maio de 2019

NO ALTO (POEMA DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

NO ALTO

Machado de Assis


O poeta chegara ao alto da montanha,
E quando ia a descer a vertente do oeste,
Viu uma cousa estranha,
Uma figura má.

Então, volvendo o olhar ao subtil, ao celeste,
Ao gracioso Ariel, que de baixo o acompanha,
Num tom medroso e agreste
Pergunta o que será.

Como se perde no ar um som festivo e doce,
Ou bem como se fosse
Um pensamento vão,

Ariel se desfez sem lhe dar mais resposta.
Para descer a encosta 
O outro lhe deu a mão.


Poemas e Poesias terça, 14 de maio de 2019

AQUI FOI UM LUGAR DE CALMAS HORAS (POEMA DO ALAGOANO JORGE DE LIMA)

AQUI FOI UM LUGAR DE CALMAS HORAS

Jorge de Lima

 

Aqui foi um lugar de calmas horas,
ali era a distância. Em cima o pássaro.
Na planta essa raiz, e agora a ausência,
agora esse tecido alinhavado
por entre unhas de dedos invisíveis.
Apagaram-se as coisas tintas com
o sopro das palavras: geografias,
paciências, velhos trigos, decisões.
Aqui era um sinal, ali um número,
em cima esse fagote, e o anzol das plantas
fisgando o grão já grávido de sumos.
Agora esses molares ruminando
amargores sumidos, sais de medos;
agora a linha preta, a fronte baixa,
a luz escurecida, as mariposas.


Poemas e Poesias segunda, 13 de maio de 2019

A LIÇÃO DA POESIA (POEMA DO PERNAMBUCANO JOÃO CABRAL DE MELO NETO)

A LIÇÃO DA POESIA

João Cabral de Melo Neto

 

1. Toda a manhã consumida
como um sol imóvel
diante da folha em branco:
princípio do mundo, lua nova.

Já não podias desenhar
sequer uma linha;
um nome, sequer uma flor
desabrochava no verão da mesa:

nem no meio-dia iluminado,
cada dia comprado,
do papel, que pode aceitar,
contudo, qualquer mundo.

2. A noite inteira o poeta
em sua mesa, tentando
salvar da morte os monstros
germinados em seu tinteiro.

Monstros, bichos, fantasmas
de palavras, circulando,
urinando sobre o papel,
sujando-o com seu carvão.

Carvão de lápis, carvão
da idéia fixa, carvão
da emoção extinta, carvão
consumido nos sonhos.

3. A luta branca sobre o papel
que o poeta evita,
luta branca onde corre o sangue
de suas veias de água salgada.

A física do susto percebida
entre os gestos diários;
susto das coisas jamais pousadas
porém imóveis — naturezas vivas.

E as vinte palavras recolhidas
nas águas salgadas do poeta
e de que se servirá o poeta
em sua máquina útil.

Vinte palavras sempre as mesmas
de que conhece o funcionamento,
a evaporação, a densidade
menor que a do ar.


Poemas e Poesias domingo, 12 de maio de 2019

SER MÃE (POEMA DO MARANHENSE COELHO NETO)

SER MÃE

Coelho Neto

 

Ser mãe é desdobrar fibra por fibra
O coração! Ser mãe é ter no alheio
Lábio, que suga, o pedestal do seio,
Onde a vida, onde o amor cantando vibra.

Ser mãe é ser um anjo que se libra
Sobre um berço dormido; é ser anseio,
É ser temeridade, é ser receio,
É ser força que os males equilibra!

Todo o bem que a mãe goza é bem do filho,
Espelho em que se mira afortunada,
Luz que lhe põe nos olhos novo brilho!

Ser mãe é andar chorando num sorriso!
Ser mãe é ter um mundo e não ter nada!
Ser mãe é padecer num paraíso!

Poemas e Poesias domingo, 12 de maio de 2019

AMA-ME (POEMA DA PAULISTA HILDA HILST)

AMA-ME

Hilda Hilst

 

Aos amantes é lícito a voz desvanecida. 
Quando acordares, um só murmúrio sobre o teu ouvido: 
Ama-me. Alguém dentro de mim dirá: não é tempo, senhora, 
Recolhe tuas papoulas, teus narcisos. Não vês 
Que sobre o muro dos mortos a garganta do mundo 
Ronda escurecida? 

Não é tempo, senhora. Ave, moinho e vento 
Num vórtice de sombra. Podes cantar de amor 
Quando tudo anoitece? Antes lamenta 
Essa teia de seda que a garganta tece. 

Ama-me. Desvaneço e suplico. Aos amantes é lícito 
Vertigens e pedidos. E é tão grande a minha fome 
Tão intenso meu canto, tão flamante meu preclaro tecido 
Que o mundo inteiro, amor, há de cantar comigo. 


Poemas e Poesias sábado, 11 de maio de 2019

NÃO HÁ VAGAS (POEMA DO MARANHENSE FERREIRA GULLAR)

NÃO HÁ VAGAS

Ferreira Gullar

 

O preço do feijão
não cabe no poema. O preço
do arroz
não cabe no poema.
Não cabem no poema o gás
a luz o telefone
a sonegação
do leite
da carne
do açúcar
do pão

O funcionário público
não cabe no poema
com seu salário de fome
sua vida fechada
em arquivos.
Como não cabe no poema
o operário
que esmerila seu dia de aço
e carvão
nas oficinas escuras

- porque o poema, senhores,
está fechado:
“não há vagas”

Só cabe no poema
o homem sem estômago
a mulher de nuvens
a fruta sem preço

O poema, senhores,
não fede
nem cheira


Poemas e Poesias sexta, 10 de maio de 2019

AO LONGE, AO LUAR (POEMA DO PORTUGUÊS FERNANDO PESSOA)

AO LONGE, AO LUAR

Fernando Pessoa

 

Ao longe, ao luar, 
No rio uma vela, 
Serena a passar, 
Que é que me revela? 

Não sei, mas meu ser 
Tornou-se-me estranho, 
E eu sonho sem ver 
Os sonhos que tenho. 

Que angústia me enlaça? 
Que amor não se explica? 
É a vela que passa 
Na noite que fica. 


Poemas e Poesias quinta, 09 de maio de 2019

TROVAS LÍRICAS E FILOSÓFICAS - 21 (POEMA DO PARANAENSE ENO TEODORO WANKE)

TROVA LÍRICA E FILOSÓFICA

Eno Teodoro Wanke

 

Senhor! Que eu partique o bem

Separe o joio do trigo

E tenha forças, também

De amar o irmão inimigo

 


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