Almanaque Raimundo Floriano
Fundado em 24.09.2016
(Cultural, sem fins comerciais, lucrativos ou financeiros)


Raimundo Floriano de Albuquerque e Silva, Editor deste Almanaque, também conhecido como Velho Fulô, Palhaço Seu Mundinho e Mundico Trazendowski, nascido em Balsas , Maranhão, a 3 de julho de 1936, Católico Apostólico Romano, Contador, Oficial da Reserva do Exército Brasileiro, Funcionário Público aposentado da Câmara dos Deputados, Titular da Cadeira nº 10 da Academia Passa Disco da Música Nordestina, cuja patrona é a cantora Elba Ramalho, Mestre e Fundador da Banda da Capital Federal, Pesquisador da MPB, especializado em Velha Guarda, Música Militar, Carnaval e Forró, Cardeal Fundador da Igreja Sertaneja, Pioneiro de Brasília, Xerife nos Mares do Caribe, Cordelista e Glosador, Amigo do Rio das Balsas, Inventor da Descida de Boia, em julho de 1952, Amigo da Fanfarra do 1° RCG, autor dos livros O Acordo PDS/PTB, coletânea de charges, Sinais de Revisão e Regras de Pontuação, normativo, Do Jumento ao Parlamento, com episódios da vida real, De Balsas para o Mundo, centrado na navegação fluvial Balsas/Oceano Atlântico, Pétalas do Rosa, saga da Família Albuquerque e Silva, Memorial Balsense, dedicado à história de sua terra natal, e Caindo na Gandaia, humorístico apimentado, é casado, tem quatro filhos, uma nora, dois genros e dois netos e reside em Brasília, Distrito Federal, desde dezembro de 1960.

Poemas e Poesias domingo, 22 de março de 2020

OCEANO NOX (POEMA DO PORTUGUÊS ANTERO DE QUENTAL)

OCEANO NOX

Antero de Quental

 

Junto do mar, que erguia gravemente
A trágica voz rouca, enquanto o vento
Passava como o vôo do pensamento
Que busca e hesita, inquieto e intermitente,

Junto do mar sentei-me tristemente,
Olhando o céu pesado e nevoento,
E interroguei, cismando, esse lamento
Que saía das coisas, vagamente...

Que inquieto desejo vos tortura,
Seres elementares, força obscura?
Em volta de que idéia gravitais?

Mas na imensa extensão, onde se esconde
O Inconsciente imortal, só me responde
Um bramido, um queixume, e nada mais...


Poemas e Poesias sábado, 21 de março de 2020

CANTIGA (POEMA DO PAULISTA ÁLVARES DE AZEVEDO)

CANTIGA

Álvares de Azevedo

 

 

I

Em um castelo doirado
Dorme encantada donzela...
Nasceu; e vive dormindo
— Dorme tudo junto dela.
 
Adormeceu-a, sonhando,
Um feiticeiro condão,
E dormem no seio dela
As rosas do coração.


Dorme a lâmpada argentina
Defronte do leito seu;
Noite a noite a lua triste
Vem espreitá-la do céu.
 
Voam os sonhos errantes
Do leito sob o dossel
E suspiram no alaúde
As notas do menestrel.
 
E no castelo, sozinha,
Dorme encantada donzela...
Nasceu; e vive dormindo
— Dorme tudo junto dela.
 
Dormem cheirosas, abrindo,
As roseiras em botão...
E dormem no seio dela
As rosas do coração.
 

II

A donzela adormecida
É a tua alma, santinha,

Que não sonha nas saudades
E nos amores da minha.
 
— Nos meus amores que velam
Debaixo do teu dossel
E suspiram no alaúde
As notas do menestrel.
 
Acorda, minha donzela,
Foi-se a lua, eis a manhã
E nos céus da primavera
É a aurora tua irmã.
 
Abriram no vale as flores
Sorrindo na fresquidão:
Entre as rosas da campina
Abram-se as do coração.
 
Acorda, minha donzela,
Soltemos da infância o véu...
Se nós morrermos num beijo,
Acordaremos no céu.


Poemas e Poesias sexta, 20 de março de 2020

TERCEIRA DOR (POEMA DO MINEIRO ALPHONSUS GUIMARAENS)

TERCEIRA DOR

Alphonsus Gimaraens

 

É Sião que dorme ao luar. Vozes diletas
Modulam salmos de visões contritas...
E a sombra sacrossanta dos Profetas
Melancoliza o canto dos levitas.

As torres brancas, terminando em setas, 
Onde velam, nas noites infinitas, 
Mil guerreiros sombrios como ascetas, 
Erguem ao Céu as cúpulas benditas.

As virgens de Israel as negras comas
Aromalizam com os unguentos brancos
Dos nigromantes de mortais aromas...

Jerusalém, em meio às Doze Portas, 
Dorme: e o luar que lhe vem beijar os flancos
Evoca ruínas de cidades mortas.


Poemas e Poesias quinta, 19 de março de 2020

A IMPLOSÃO DA MENTIRA - FRAGMENTO 2 (POEMA DO MINEIRO AFFONSO ROMANO DE SANT,ANNA)

A IMPLOSÃO DA MENTIRA

FRAGMENTO 2

Affonso Romano de Sant'Anna

 

                Evidente/mente a crer

               nos que me mentem

               uma flor nasceu em Hiroshima

               e em Auschwitz havia um circo

               permanente.


               Mentem. Mentem caricatural-

               mente.

               Mentem como a careca

               mente ao pente,

               mentem como a dentadura

               mente ao dente,

               mentem como a carroça

               à besta em frente,

               mentem como a doença

               ao doente,

               mentem clara/mente

               como o espelho transparente.

               Mentem deslavadamente,

               como nenhuma lavadeira mente

               ao ver a nódoa sobre o linho. Mentem

               com a cara limpa e nas mãos

               o sangue quente. Mentem

               ardente/mente como um doente

               em seus instantes de febre. Mentem

               fabulosa/mente como o caçador que quer passar

               gato por lebre. E nessa trilha de mentiras

               a caça é que caça o caçador

               com a armadilha.

               E assim cada qual

               mente industrial?mente,

               mente partidária?mente,

               mente incivil?mente,

               mente tropical?mente,

               mente incontinente?mente,

               mente hereditária?mente,

               mente, mente, mente.

               E de tanto mentir tão brava/mente

               constroem um país

               de mentira

               —diária/mente.


Poemas e Poesias quarta, 18 de março de 2020

SEM TÍTULO (POEMA DO MARANHENSE ADELINO FONTOURA)

SEM TÍTULO

Adelino Fontoura 

 

        És como doce juriti da mata,
        Ligeira, esquiva, tímida e medrosa:
        Foges de mim tremente e suspirosa,
        Como quem de um perigo se recata.

        Mas não sei, afinal, criança ingrata,
        Porque foges: não sei porque amorosas
        Tua alma casta, angélica e bondosa,
        Com tão doce esquivança me maltrata.

        Abre as asas à luz serenamente
        E vem fugindo aos gelos do deserto
        Buscar o sol do meu amor ardente.

        Dirige para mim teu voto incerto,
        Pois tens meu coração, pomba inocente,
        Como um tépido ninho  sempre aberto.


Poemas e Poesias quarta, 18 de março de 2020

SEM TÍTULO (POEMA DO MARANHENSE ADELINO FONTOURA)

 

 

        És como doce juriti da mata,
        Ligeira, esquiva, tímida e medrosa:
        Foges de mim tremente e suspirosa,
        Como quem de um perigo se recata.

        Mas não sei, afinal, criança ingrata,
        Porque foges: não sei porque amorosas
        Tua alma casta, angélica e bondosa,
        Com tão doce esquivança me maltrata.

        Abre as asas à luz serenamente
        E vem fugindo aos gelos do deserto
        Buscar o sol do meu amor ardente.

        Dirige para mim teu voto incerto,
        Pois tens meu coração, pomba inocente,
        Como um tépido ninho sempre aberto.


Poemas e Poesias terça, 17 de março de 2020

BILHETE DA OUSADA DONZELA (POEMA DA MINEIRA ADÉLIA PRADO)

BILHETE DA OUSADA DONZELA

Adélia Prado

 

 

Jonathan,
há nazistas desconfiados.
Põe aquela sua camisa que eu detesto
- comprada no Bazar Marrocos -
e venha como se fosse pra consertar meu chuveiro.
Aproveita na terça que meu pai vai com minha mãe
visitar tia Quita no Lajeado.
Se mudarem de idéia, mando novo bilhete.
Venha sem guarda-chuva - mesmo se estiver chovendo -
Não aguento mais tio Emílio que sabe e finge não saber
que te namoro escondido e vive te pondo apelidos.
O que você disse outro dia na festa dos pecuaristas
até hoje soa igual música tocando no meu ouvido:
"Não paro de pensar em você."
Eu também, Natinho, nem um minuto.
Na terça, às duas da tarde,
hora em que se o mundo acabar eu nem vejo.

Com aflição,
Antônia.


Poemas e Poesias segunda, 16 de março de 2020

A POESIA SE ESFREGA NOS SERES E NAS COUSAS (POEMA DA CARIOCA ADALGISA NERY)

A POESIA SE ESFREGA NOS SERES E NAS COUSAS

Adalgisa Nery

 

Nunca sentiste uma força melodiosa

Cercando tudo que teus olhos vêem,

Um misto de tristeza numa paisagem grandiosa

Ou um grito de alegria na morte de um ser que queres bem?

Nunca sentiste nostalgia na essência das cousas perdidas

Deparando com um campo devoluto

Semelhante a uma virgem esquecida?

Num circo, nunca se apoderou de ti, um amargor sutil

Vendo animais amestrados

E logo depois te mostrarem

Seres humanos imitando um réptil?

Nunca reparaste na beleza de uma estrada

Cortando as carnes do solo

Para unir carinhosamente

Todos os homens, de um a outro pólo?

Nunca te empolgastes diante de um avião

Olhando uma locomotiva, a quilha de um navio,

Ou de qualquer outra invenção?

Nunca sentiste esta força que te envolve desde o brilho do dia

Ao mistério da noite,

Na extensão da tua dor

E na delícia da tua alegria?

Pois então, faz de teus olhos o cume da mais alta montanha

Para que vejas com toda a amplitude

A grandeza infindável da poesia que não percebes

E que é tamanha!


Poemas e Poesias domingo, 15 de março de 2020

A CASA (POEMA DO CARIOCA VINÍCIUS DE MORAES)

A CASA

Vinícius de Moraes

 

Era uma casa
Muito engraçada
Não tinha teto
Não tinha nada
Ninguém podia
Entrar nela, não
Porque na casa
Não tinha chão

Ninguém podia
Dormir na rede
Porque na casa
Não tinha parede
Ninguém podia
Fazer pipi
Porque penico
Não tinha ali

Mas era feita
Com muito esmero
Na Rua dos Bobos
Número Zero


Poemas e Poesias sábado, 14 de março de 2020

A VOZ DO SINO (POEMA DO PAULISTA VICENTE DE CARVALHO)

A VOZ DO SINO

Vicente de Carvalho

 

 

Tarde triste e silenciosa
De vila de beira-mar:
Uma tarde cor-de-rosa
Que vai morrendo em luar...

(...)

De súbito, rumoreja
Violentamente o ar:
Na torrezinha da igreja
Rompe o sino a badalar.

Ponho-me atento, a escutá-lo:
Que diz, alto e repentino,
Esse bater de um badalo
Num sino?

Badalo que assim badalas
No sino que assim ressoa,
Aves, já nenhuma voa:
Dormem; e vais acordá-las
À-toa...

Vais espantar quanta moça
Aí pelos arredores
Depois de um dia de roça,
De enxada e de soalheira,
Dedica a tarde ligeira
A tarefas bem melhores:

Pelas discretas beiradas
De alguma fonte; fiadas
Na proteção pitoresca
De ramagens, folha, flores;
Que fazem elas? Coitadas,
Bebem, nas mãos, água fresca...
Lavam as caras tostadas...
Ou cuidam dos seus amores...

Badalo que assim badalas
No sino que assim ressoa,
Olha que vais espantá-las
À-toa...

Badalas... E eu que te falo
Não sei e nem imagino
Que pretendes tu, badalo,
A bater, bater no sino.

Talvez convoques à ceia
Pescadores que, lidando,
Nem viram que entardeceu;
Algum se estendeu na areia
A descansar; senão quando,
De cansado adormeceu...


Poemas e Poesias sexta, 13 de março de 2020

O MENTIROSO E O IGNORANTE (POEMA DO CEARENSE QUINTINO CUNHA)

O MENTIROSO E O IGNORANTE

Quintino Cunha

 

 

O mentiroso é consciente

da mentira que ele explora.

Mas o ignorante ignora,

que ignora o que fizer.

De onde suponho, com acerto,

ser natural que prefiras

um soltador de mentiras


a um ignorante qualquer.


Poemas e Poesias quinta, 12 de março de 2020

A MENINA MENDIGA (POEMA DO CEARENSE PATATIVA DO ASSARÉ)

A MENINA MENDIGA

Patativa do Assaré

 

De pés descalços sobre o frio chão.
Roto o vestido, em desalinho a trança.
De porta em porta a mendigar o pão.
Vai pela rua uma infeliz criança.

O seu estado causa compaixão.
Ninguém lhe nota um riso de esperança.
Sempre a estender a sua magra mão.
Canta, pedindo com voz fraca e mansa:

- Ó nobre rico, tende piedade!
Vede como ainda no verdor da idade
são dolorosos os martírios meus!

Olhai a pobre que com fome cai:
Não tenho mãe nem conheci meu pai,
dai-me uma esmola pelo amor de Deus!


Poemas e Poesias quarta, 11 de março de 2020

DESENCANTO (POEMA DO CEARENSE PADRE ANTÔNIO TOMÁS)

DESENCANTO

Padre Antônio Tomás

 

Muitas vezes cantei, nos tempos idos,
Acalentando sonhos de ventura;
Então da lira a voz suave e pura
Era-me um gozo d’alma e dos sentidos.

Hoje vejo esses sonhos convertidos
Num acervo de penas e amargura,
E percorro da vida a estrada escura
Recalcando no peito os meus gemidos.

E, se tento cantar como remédio
Às minhas mágoas, ao sombrio tédio
Que lentamente as forças me quebranta,

Os sons que arranco à pobre lira agora
Mais parecem soluços de quem chora
Do que a doce toada de quem canta.


Poemas e Poesias terça, 10 de março de 2020

PECADOR (POEMA DO CARIOCA OLAVO BILAC)

PECADOR

Olavo Bilac

 

Este é o altivo pecador sereno,
Que os soluços afoga na garganta,
E, calmamente, o copo de veneno
Aos lábios frios sem tremer levanta.

Tonto, no escuro pantanal terreno
Rolou. E, ao cabo de torpeza tanta,
Nem assim, miserável e pequeno,
Com tão grandes remorsos se quebranta.

Fecha a vergonha e as lágrimas consigo...
E, o coração mordendo impenitente,
E, o coração rasgando castigado,

Aceita a enormidade do castigo,
Com a mesma face com que antigamente
Aceitava a delícia do pecado.


Poemas e Poesias segunda, 09 de março de 2020

BANZO (POEMA DO PAULISTA MENOTTI DEL PICCHIA)

BANZO

Menotti Del Picchia

 

E por que deixou na areia do Congo
a aldeia de palmas;
e porque seus ídolos negros
não fazem mais feitiços;
e porque o homem branco o enganou com missangas
e atulhou o porão do navio negreiro
com seu desespero covarde;
e porque não vê mais de ânfora ao ombro
a imagem do conga nas águas do Kuango,
ele fica na porta da senzala
de mão no queixo e cachimbo na boca,
varado de angústia,
olhando o horizonte,
calado, dormente,
pensando,
sofrendo,
chorando.
morrendo.


Poemas e Poesias domingo, 08 de março de 2020

DA DISCRIÇÃO (POEMA DO GAÚCHO MÁRIO QUINTANA)

DA DISCRIÇÃO

Mário Quintana

 

Não te abras com teu amigo
Que ele um outro amigo tem.
E o amigo do teu amigo
Possui amigos também...


Poemas e Poesias sábado, 07 de março de 2020

AH! NÃO POSSO (POEMA DA MARANHENSE MARIA FIRMINA DOS REIS)

AH! NÃO POSSO

Maria Firmina dos Reis

 

Se uma frase se pudesse

Do meu peito destacar;

Uma frase misteriosa

Como o gemido do mar,

Em noite erma, e saudosa,

De meigo, e doce luar;

Ah! se pudesse!… mas muda

Sou, por lei, que me impõe Deus!

Essa frase maga encerra,

Resume os afetos meus;

Exprime o gozo dos anjos,

Extremos puros dos céus.

Entretanto, ela é meu sonho,

Meu ideal inda é ela;

Menos a vida eu amara

Embora fosse ela bela.

Como rubro diamante,

Sob finíssima tela.

Se dizê-la é meu empenho,

Reprimi-la é meu dever:

Se se escapar dos meus lábios,

Oh! Deus, ─ fazei-me morrer!

Que eu pronunciando-a não posso

Mais ─ sobre a terra viver.

 


Poemas e Poesias sexta, 06 de março de 2020

ANDORINHA (POEMA DO PERNAMBUCANO MANUEL BANDEIRA)

ANDORINHA

Manuel Bandeira

 

Andorinha lá fora está dizendo:
— "Passei o dia à toa, à toa!"

Andorinha, andorinha, minha cantiga é mais triste!
Passei a vida à toa, à toa . . .


Poemas e Poesias quinta, 05 de março de 2020

CAMINHADA (POEMA DO MATO-GROSSENSE MANOEL DE BARROS)

CAMINHADA

Manoel de Barros

 

Eu vinha aquela tarde pela terra
fria de sapos...
O azul das pedras tinha cauda e canto.

De um sarã espreitava meu rosto um passarinho.
Caracóis passeavam com róseos casacos ao sol.
As mãos cresciam crespas para a água da ilha.

Começaram de mim a abrir roseiras bravas.
Com as crinas a fugir rodavam cavalos
investindo os orvalhos ainda em carne.

De meu rosto viam ribeiros...

Limpando da casa-do-vento os limos
no ar minha voz pisava...


Poemas e Poesias quarta, 04 de março de 2020

PÁSSAROS (POEMA DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

PÁSSAROS

Machado de Assis

Je veux changer mes pensées en oiseaux.
C. MAROT

Olha como, cortando os leves ares,
Passam do vale ao monte as andorinhas;
Vão pousar na verdura dos palmares,
Que, à tarde, cobre transparente véu;
Voam também como essas avezinhas
Meus sombrios, meus tristes pensamentos;
Zombam da fúria dos contrários ventos,
Fogem da terra, acercam-se do céu.

Porque o céu é também aquela estância
Onde respira a doce criatura,
Filha do nosso amor, sonho da infância,
Pensamento dos dias juvenis.
Lá, como esquiva flor, formosa e pura,
Vives tu escondida entre a folhagem,
Ó rainha do ermo, ó fresca imagem
Dos meus sonhos de amor calmo e feliz!

Vão para aquela estância enamorados,
Os pensamentos de minh'alma ansiosa;
Vão contar-lhe os meus dias gozados
E estas noites de lágrimas e dor.

Na tua fronte pousarão, mimosa,
Como as aves no cimo da palmeira,
Dizendo aos ecos a canção primeira
De um livro escrito pela mão do amor.

Dirão também como conservo ainda
No fundo de minh'alma essa lembrança
De tua imagem vaporosa e linda,
Único alento que me prende aqui.

E dirão mais que estrelas de esperança
Enchem a escuridão das noites minhas.
Como sobem ao monte as andorinhas,
Meus pensamentos voam para ti.


Poemas e Poesias terça, 03 de março de 2020

AVISO PRÉVIO (POEMA DO PERNAMBUCANO LUÍS TURIBA)

AVISO PRÉVIO

Luís Turiba

 

meu coração é uma uva

pulsa explode abusa pluga

 

meu coração é rebelde

vive ameaçando greve

 

meu coração trapezista

dá nó nas próprias tripas

 

meu coração maiakóvski

quanto mais sofre mais love

 

o cardiologista dá as cartas

— todo cuidado, meu chapa

ou se sinquadra ou infarta!


Poemas e Poesias segunda, 02 de março de 2020

ESSA PAVANA (POEMA DO ALAGOANO JORGE DE LIMA)

ESSA PAVANA

Jorge de Lima

 

Essa pavana é para uma defunta
infanta, bem-amada, ungida e santa,
e que foi encerrada num profundo
sepulcro recoberto pelos ramos

de salgueiros silvestres para nunca
ser retirada desse leito estranho
em que repousa ouvindo essa pavana
recomeçada sempre sem descanso,

sem consolo, através dos desenganos,
dos reveses e obstáculos da vida,
das ventanias que se insurgem contra

a chama inapagada, a eterna chama
que anima esta defunta infanta ungida
e bem-amada e para sempre santa.


Poemas e Poesias domingo, 01 de março de 2020

COISAS DE CABECEIRA - SEVILHA(POEMA DO PERNAMBUCANO JOÃO CABRAL DE MELO NETO)

COISA DE CABECEIRA - SEVILHA

João Cabral de Melo Neto

 

Diversas coisas se alinham na memória
Numa prateleira com o rótulo: Sevilha.
Coisas, se na origem apenas expressões
De ciganos dali; mas claras e concisas.
A um ponto de se condensarem em coisas,
Bem concretas, em suas formas nítidas.
2
Algumas delas, e fora as já contadas:
não esparramar-se, fazer na dose certa;
por derecho, fazer qualquer que fazer,
e o do ser, com a incorrupção da reta;
con nervio, dar a tensão ao que se faz
da corda de arco e a retensão da seta;
pies claros, qualidade de quem dança,
se bem pontuada a linguagem da perna.
(Coisas de cabeceira somam: exponerse,
fazer no extremo, onde o risco começa).


Poemas e Poesias sábado, 29 de fevereiro de 2020

AGORA (POEMA DO ACRIANO J. G. DE ARAÚJO JORGE)

 

AGORA

J. G. de Araújo Jorge

Agora
já frio o coração
(mas a alma, entretanto,ainda ferida)
resta-me a amarga e silenciosa convicção,
de só tão tarde ter percebido
que nem sequer existi em tua vida.


Poemas e Poesias sexta, 28 de fevereiro de 2020

CANTARES DE PERDA E PREDILEÇÃO (POEMA DA PAULISTA HILDA HILST)

CANTARES DE PERDA E PREDILEÇÃO

Hilda Hilst

 

Eu amo Aquele que caminha

Antes do meu passo

É Deus e resiste.

 

Eu amo a minha morada

A Terra triste.

É sofrida e finita

E sobrevive.

 

Eu amo o Homem-luz

Que há em mim.

É poeira e paixão

E acredita.

Amo-te, meu ódio-amor

Animal-Vida.

És caça e perseguidor

E recriaste a Poesia

Na minha Casa.

(XXIII)

 

 * * *

 

Vida da minha alma:

Um dia nossas sombras

Serão lagos, águas

Beirando antiqüíssimos telhados.

De argila e luz

Fosforescentes, magos,

Um tempo no depois

Seremos um só corpo adolescente.

Eu estarei em ti

Transfixiada. Em mim

Teu corpo. Duas almas

Nômades, perenes

Texturadas de mútua sedução.


Poemas e Poesias quinta, 27 de fevereiro de 2020

A MINHA DOR (POEMA DA PORTUGUESA FLORBELA ESPANCA)

A MINHA DOR

Florbela Espanca

A você


A minha Dor é um convento ideal
Cheio de claustros, sombras, arcarias,
Aonde a pedra em convulsões sombrias
Tem linhas dum requinte escultural.

Os sinos têm dobres de agonias
Ao gemer, comovidos, o seu mal ...
E todos têm sons de funeral
Ao bater horas, no correr dos dias ...

A minha Dor é um convento. Há lírios
Dum roxo macerado de martírios,
Tão belos como nunca os viu alguém!

Nesse triste convento aonde eu moro,
Noites e dias rezo e grito e choro,
E ninguém ouve ... ninguém vê ... ninguém ...


Poemas e Poesias quarta, 26 de fevereiro de 2020

PERDE E GANHA (POEMA DO MARANHENSE FERREIRA GULLAR)

PERDE E GANHA

Ferreira Gullar

 

Vida tenho uma só
          que se gasta com a sola de meu sapato
          a cada passo pelas ruas
          e não dá meia-sola.

 

Perdi-a já
em parte
num pôquer solitário,
mas a ganhei de novo
para um jogo comum.

E neste jogo a jogo
inteira, a cada lance,
que a vida ou se perde ou se ganha com os demais
e assim se vive
que o mais é pura perda 


Poemas e Poesias terça, 25 de fevereiro de 2020

AZUL, OU VERDE, OU ROXO (POEMA DO PORTUGUÊS FERNANDO PESSOA)

AZUL, OU VERDE, OU ROXO

Fernando Pessoa

 

Azul, ou verde, ou roxo quando o sol
O doura falsamente de vermelho,
O mar é áspero (?), casual (?) ou mol(e),
É uma vez abismo e outra espelho.
Evoco porque sinto velho
O que em mim quereria mais que o mar
Já que nada ali há por desvendar.

Os grandes capitães e os marinheiros
Com que fizeram a navegação,
Jazem longínquos, lúgubres parceiros
Do nosso esquecimento e ingratidão.

Só o mar às vezes, quando são
Grandes as ondas e é deveras mar
Parece incertamente recordar. Mas sonho...

O mar é água, é água nua,
Serva do obscuro ímpeto distante
Que, como a poesia, vem da lua
Que uma vez o abate outra o levanta.
Mas, por mais que descante
Sobre a ignorância natural do mar,
Pressinto-o, vasante, a murmurar.

Quem sabe o que é a alma ? Quem conhece
Que alma há nas coisas que parecem mortas.
Quanto em terra ou em nada nunca esquece.
Quem sabe se no espaço vácuo há portas?
O sonho que me exortas
A meditar assim a voz do mar,
Ensina-me a saber-te meditar.

Capitães, contramestres - todos nautas
Da descoberta infiel de cada dia
Acaso vos chamou de igonotas flautas
A vaga e impossível melodia.
Acaso o vosso ouvido ouvia
Qualquer coisa do mar sem ser o mar
Sereias só de ouvir e não de achar?

Quem atrás de intérminos oceanos
Vos chamou à distância ou quem
Sabe que há nos corações humanos
Não só uma ânsia natural de bem
Mas, mais vaga, mais sutil também
Uma coisa que quer o som do mar
E o estar longe de tudo e não parar.

Se assim é e se vós e o mar imenso
Sois qualquer coisa, vós por o sentir
E o mar por o ser, disto que penso;
Se no fundo ignorado do existir
Há mais alma que a que pode vir
À tona vã de nós, como à do mar
Fazei-me livre, enfim , de o ignorar.

Dai-me uma alma transposta de argonauta,
Fazei que eu tenha, como o capitão
Ou o contramestre, ouvidos para a flauta
Que chama ao longe o nosso coração,
Fazei-me ouvir , como a um perdão,
Numa reminiscência de ensinar,
O antigo português que fala o mar!


Poemas e Poesias segunda, 24 de fevereiro de 2020

TROVAS HUMORÍSTICAS - 01 - (POEMA DO PARANAENSE ENO TEODORO WANKE)

TROVA HUMORÍSTICA - 01

Eno Teodoro Wanke

 

A mulher,  no aniversário

Sempre deseja que a gente

Se esqueça do seu passado

Mas nunca do seu presente 

 

 


Poemas e Poesias domingo, 23 de fevereiro de 2020

A VIGÍLIA DO SILÊNCIO (POEMA DO PIAUIENSE DA COSTA E SILVA)

A VIGÍLIA DO SILÊNCIO

Da Costa e Silva

 

Apraz-me ouvir, às horas vespertinas,
Quando o ocaso desmaia o azul sidéreo, 
O longo cantochão das casuarinas
Na religiosa paz do cemitério.

As árvores, em múrmuras surdinas,
De um rumor elegíaco e funéreo,
Falam de coisas mortas e divinas,
Veladas pelas sombras do mistério.

A perscrutar as vozes do arvoredo, 
Na ânsia inquietante e céptica do sábio, 
Tento, ó Morte! saber o teu segredo.

Mas vejo, no alvo mármore das urnas,
O Silêncio com o dedo sobre o lábio, 
Olhando as vagas solidões noturnas...


Poemas e Poesias sábado, 22 de fevereiro de 2020

Ó FLORA, Ó NINFA DAS ROSAS (POEMA DO CATARINENSE CRUZ SOUSA)

Ó FLORA, Ó NINFA DAS ROSAS

Cruz e Sousa

 

Ó Flora, ó ninfa das rosas,
Ó frescura dos morangos,
Abre as pupilas radiosas,
Ó Flora, ó ninfa das rosas,
Dá-me as estrelas formosas
Do olhar repleto de tangos,
Ó Flora, ó ninfa das rosas,
Ó frescura dos morangos.


Poemas e Poesias sexta, 21 de fevereiro de 2020

O CORAÇÃO É TERRA QUE NINGUÉM VÊ (POEM ADA GOIANA CORA CORALINA)

O CORAÇÃO É TERRA QUE NINGUÉM VÊ

Cora Coralina

 

Quis ser um dia, jardineira
de um coração.
Sachei, mondei - nada colhi.
Nasceram espinhos
e nos espinhos me feri.

Quis ser um dia, jardineira
de um coração.
Cavei, plantei.
Na terra ingrata
nada criei.

Semeador da Parábola...
Lancei a boa semente
a gestos largos...
Aves do céu levaram.
Espinhos do chão cobriram.
O resto se perdeu
na terra dura
da ingratidão

Coração é terra que ninguém vê
- diz o ditado.
Plantei, reguei, nada deu, não.
Terra de lagedo, de pedregulho,
- teu coração. Bati na porta de um coração.
Bati. Bati. Nada escutei.
Casa vazia. Porta fechada,
foi que encontrei...


Poemas e Poesias quinta, 20 de fevereiro de 2020

FILHA DA NATUREZA (POEMA DA UCRANIANA-BRASILEIRA CLARICE LISPECTOR)

FILHA DA NATUREZA

Clarice Lispector

 

"Sou uma filha da natureza:
quero pegar, sentir, tocar, ser.
E tudo isso já faz parte de um todo,
de um mistério.
Sou uma só... Sou um ser.
E deixo que você seja. Isso lhe assusta?
Creio que sim. Mas vale a pena.
Mesmo que doa. Dói só no começo."


Poemas e Poesias quarta, 19 de fevereiro de 2020

CENÁRIO (POEMA DA CARIOCA CECÍLIA MEIRELES)

CENÁRIO

Cecília Meireles

 

Passei por essas plácidas colinas
e vi das nuvens, silencioso, o gado
pascer nas solidões esmeraldinas.

Largos rios de corpo sossegado
dormiam sobre a tarde, imensamente,
— e eram sonhos sem fim, de cada lado.

Entre nuvens, colinas e torrente,
uma angústia de amor estremecia
a deserta amplidão na minha frente.

Que vento, que cavalo, que bravia
saudade me arrastava a esse deserto,
me obrigava a adorar o que sofria?

Passei por entre as grotas negras, perto
dos arroios fanados, do cascalho
cujo ouro já foi todo descoberto.

As mesmas salas deram-me agasalho
onde a face brilhou de homens antigos,
iluminada por aflito orvalho.

De coração votado a iguais perigos
vivendo as mesmas dores e esperanças,
a voz ouvi de amigos e inimigos

Vencendo o tempo, fértil em mudanças,
conversei com doçura as mesmas fontes,
e vi serem comuns nossas lembranças.

Da brenha tenebrosa aos curvos montes,
do quebrado almocafre aos anjos de ouro
que o céu sustêm nos longos horizontes,

tudo me fala e entende do tesouro
arrancado a estas Minas enganosas,
com sangue sobre a espada, a cruz e o louro.

Tudo me fala e entendo: escuto as rosas
e os girassóis destes jardins, que um dia
foram terras e areias dolorosas,

por onde o passo da ambição rugia;
por onde se arrastava, esquartejado,
o mártir sem direito de agonia.

Escuto os alicerces que o passado
tingiu de incêndio: a voz dessas ruínas
de muros de ouro em fogo evaporado.

Altas capelas cantam-me divinas
fábulas. Torres, santos e cruzeiros
apontam-me altitudes e neblinas.

Ó pontes sobre os córregos! ó vasta
desolação de ermas, estéreis serras
que o sol frequenta e a ventania gasta!

Armado pó que finge eternidade,
lavra imagens de santos e profetas
cuja voz silenciosa nos persuade.

E recompunha as coisas incompletas:
figuras inocentes, vis, atrozes,
vigários, coronéis, ministros, poetas.

Retrocedem os tempos tão velozes
que ultramarinos árcades pastores
falam de Ninfas e Metamorfoses.

E percebo os suspiros dos amores
quando por esses prados florescentes
se ergueram duros punhos agressores.

Aqui tiniram ferros de correntes;
pisaram por ali tristes cavalos.
E enamorados olhos refulgentes

— parado o coração por escutá-los
prantearam nesse pânico de auroras
densas de brumas e gementes galos.

Isabéis, Dorotéias, Heliodoras,
ao longo desses vales, desses rios,
viram as suas mais douradas horas

em vasto furacão de desvarios
vacilar como em caules de altas velas
cálida luz de trêmulos pavios.

Minha sorte se inclina junto àquelas
vagas sombras da triste madrugada,
fluidos perfis de donas e donzelas.

Tudo em redor é tanta coisa e é nada:
Nise, Anarda, Marília… — quem procuro?
Quem responde a essa póstuma chamada?

Que mensageiro chega, humilde e obscuro?
Que cartas se abrem? Quem reza ou pragueja?
Quem foge? Entre que sombras me aventuro?

Quem soube cada santo em cada igreja?
A memória é também pálida e morta
sobre a qual nosso amor saudoso adeja.

O passado não abre a sua porta
e não pode entender a nossa pena.
Mas, nos campos sem fim que o sonho corta,

vejo uma forma no ar subir serena:
vaga forma, do tempo desprendida.
É a mão do Alferes, que de longe acena.

Eloquência da simples despedida:
“Adeus! que trabalhar vou para todos!…”
(Esse adeus estremece a minha vida.)


Poemas e Poesias segunda, 17 de fevereiro de 2020

CREPÚSCULO SERTANEJO (25ª PARTE DO POEMA A CACHOEIRA DE PAULO AFONSO, DO BAIANO CASTRO ALVES)

CREPÚSCULO SERTANEJO

Castro Alves

(Do poema A Cachoeira de Paulo Afonso)

 

A tarde morria! Nas águas barrentas
As sombras das margens deitavam-se longas;
Na esguia atalaia das árvores secas
Ouvia-se um triste chorar de arapongas.

A tarde morria! Dos ramos, das lascas,
Das pedras, do líquen, das heras, dos cardos,
As trevas rasteiras com o ventre por terra
Saíam, quais negros, cruéis leopardos.

A tarde morria! Mais funda nas águas
Lavava-se a galha do escuro ingazeiro...
Ao fresco arrepio dos ventos cortantes
Em músico estalo rangia o coqueiro.

Sussurro profundo! Marulho gigante!
Tal vez um silêncio!... Tal vez uma orquestra...
Da folha, do cálix, das asas, do inseto ...
Do átomo à estrêla... do verme - à floresta!...

As garças metiam o bico vermelho
Por baixo das asas - da brisa ao açoite;
E a terra na vaga de azul do infinito
Cobria a cabeça coas penas da noite!

Somente por vezes, dos jungles das bordas
Dos golfos enormes daquela paragem,
Erguia a cabeça surpreso, inquieto,
Coberto de limos - um touro selvagem.

Então as marrecas, em torno boiando,
O vôo encurvavam medrosas, à toa...
E o tímido bando pedindo outras praias
Passava gritando por sobre a canoa!...

 


Poemas e Poesias domingo, 16 de fevereiro de 2020

BORBOLETA (POEMA DO FLUMINENSE CASIMIRO DE ABREU)

BORBOLETA

Casimiro de Abreu

 

Borboleta dos amores,
como a outra sobre as flores,
por que és volúvel assim?
Por que deixas, caprichosa,
por que deixas tu a rosa
e vais beijar o jasmim?

Pois essa alma é tão sedenta
que um só amor não contenta
e louca quer variar?
Se já tens amores belos,
pra que vais dar teus desvelos
aos goivos da beira-mar?

Não sabes que a flor traída
na débil haste pendida
em breve murcha será?
Que de ciúmes fenece
e nunca mais estremece
aos beijos que a brisa dá?…

Borboleta dos amores,
como a outra sobre as flores,
por que és volúvel assim?
Por que deixas, caprichosa,
por que deixas tu a rosa
e vais beijar o jasmim?


Poemas e Poesias sábado, 15 de fevereiro de 2020

AS DÁDIVAS DO AMANTE (POEMA DO PERNAMBUCANO CARLOS PENA FILHO)

AS DÁDIVAS DO AMANTE

Carlos Pena Filho

 

Deu-lhe a mais limpa manhã
que o tempo ousara inventar.
Deu-lhe até a palavra lã,
e mais não podia dar.

Deu-lhe o azul que o céu possuía
deu-lhe o verde da ramagem,
deu-lhe o sol do meio dia
e uma colina selvagem.

Deu-lhe a lembrança passada
e a que ainda estava por vir,
deu-lhe a bruma dissipada
que conseguira reunir.

Deu-lhe o exato momento
em que uma rosa floriu
nascida do próprio vento;
ela ainda mais exigiu.

Deu-lhe uns restos de luar
e um amanhecer violento
que ardia dentro do mar.

Deu-lhe o frio esquecimento
e mais não podia dar.


Poemas e Poesias sexta, 14 de fevereiro de 2020

A PALAVRA MÁGICA (POEMA DOM O MINEIRO CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE)

A PALAVRA MÁGICA

Carlos Drumond de Andrade

 

Certa palavra dorme na sombra
de um livro raro.
Como desencantá-la?
É a senha da vida
a senha do mundo.
Vou procurá-la.

Vou procurá-la a vida inteira
no mundo todo.
Se tarda o encontro, se não a encontro,
procuro sempre.

Procuro sempre, e minha procura
ficará sendo
minha palavra.


Poemas e Poesias quinta, 13 de fevereiro de 2020

SONETO 003 - BUSQUE AMOR NOVAS ARTES, NOVO ENGENHO (POEMA DO PORTUGUÊS LUÍS DE CAMÕES)

BUSQUE AMOR, NOVAS ARTES, NOVO ENGENHO

Soneto 003

Luís de Camões

 

Busque Amor novas artes, novo engenho,
para matar me, e novas esquivanças;
que não pode tirar me as esperanças,
que mal me tirará o que eu não tenho.

Olhai de que esperanças me mantenho!
Vede que perigosas seguranças!
Que não temo contrastes nem mudanças,
andando em bravo mar, perdido o lenho.

Mas, conquanto não pode haver desgosto
onde esperança falta, lá me esconde
Amor um mal, que mata e não se vê.

Que dias há que n'alma me tem posto
um não sei quê, que nasce não sei onde,
vem não sei como, e dói não sei por quê.


Poemas e Poesias quarta, 12 de fevereiro de 2020

OUTRO SONETO AO VIL INSETO (POEMA DO PORTUGUÊS MANUEL MARIA DU BOCAGE)

 

OUTRO SONETO AO VIL INSETO

Bocage

 

Ha juncto do Parnaso um turvo lago,
Aonde em rans existem transformados
Os trovistas de cascos esquentados,
Cerebro frouxo, ou de miolo vago:

Por mais infamia sua, e mais estrago
Doou-lhe Phebo os animos damnados,
P'ra que exprimam em versos desasados
Os seus destinos vis, nos quaes eu cago:

Aqui Bocage, vive, e d'aqui ralha,
E co'a tartarea lingua ponctiaguda
Bons e maus, maus e bons, tudo atassalha.

É vil insecto, e o genio atroz não muda,
Bem como a escura cor não muda a gralha,
E o hediondo fedor não perde a arruda.

 


Poemas e Poesias terça, 11 de fevereiro de 2020

ASA DE CORVO (POEMA DO CAPIXABA AUGUSTO DOS ANJOS)

ASA DE CORVO

Augusto dos Anjos

Asa de corvos carniceiros, asa
De mau agouro que, nos doze meses,
Cobre às vezes o espaço e cobre às vezes
O telhado de nossa própria casa...

Perseguido por todos os reveses,
É meu destino viver junto a essa asa,
Como a cinza que vive junto à brasa,
Como os Goncourts, como os irmãos siameses!

É com essa asa que eu faço este soneto
E a indústria humana faz o pano preto
Que as famílias de luto martiriza...

É ainda com essa asa extraordinária
Que a Morte - a costureira funerária -
Cose para o homem a última camisa!


Poemas e Poesias segunda, 10 de fevereiro de 2020

MARACATU (POEMA DO PERNAMBUCANO ASCENSO FERREIRA)

MARACATU

Ascenso Ferreira

Zabumba de bombos,
Estouro de bombas,
Batuques de ingonos,
Cantigas de banzo,
Rangir de ganzás…

– Luanda, Luanda, onde estás?
Luanda, Luanda, onde estás?

As luas crescentes
De espelhos luzentes,
Colares e pentes,
Queijares e dentes
De maracajás…

– Luanda, Luanda, onde estás?
Luanda, Luanda, onde estás?

A balsa do rio
Cai no corrupio
Faz passo macio,
Mas toma desvio
Que nunca sonhou…

– Luanda, Luanda, onde estou?
Luanda, Luanda, onde estou?


Poemas e Poesias domingo, 09 de fevereiro de 2020

INFANTILIDADE (POEMA DO MARANHENSE ARTHUR AZEVEDO)

INFANTILIDADE

Arthur Azevedo

 

Que reboliço vai em casa de Marieta!

É que fugiu Mignonne, a gata favorita,

E tanto chora e chora a pobre pequenita,

Que o papai manda pôr anúncio na gazeta.

 

Da vizinhança alguém, com olho na gorjeta,

A trânsfuga encontrou, que andava de visita

Ao demo de um maltês filósofo que habita

De um canto de fogão a cálida saleta.

 

Marieta, ao ver Mignonne, estende-lhe os bracinhos.

Dá-lhe um banho de amor em beijos e carinhos,

Nervosa, a soluçar, e, ao mesmo tempo, a rir.

 

E entre afagos lhe diz: "Senhora, foi preciso

Pôr um anúncio! Veja o que é não ter juízo!"

E todo o anúncio lê para Mignonne ouvir...


Poemas e Poesias sábado, 08 de fevereiro de 2020

A ONÇA, POR SER ESPERTA (POEMA DO PARAIBANO ARIANO SUASSUNA)

A ONÇA, POR SER ESPERTA

Ariano Suassuna

 

A Onça, por ser esperta,
já começa o seu Caminho,
Fez da sua Furna o ninho
e esturra que está alerta!
Será a Cadeia aberta!
Quanto ao Porco, é muito certo:
Fugirá para o Deserto,
e a Onça, com seu bramido,
libertará O Ferido,
o nosso Prinspe-Encoberto!

A Onça vai esturrando
atrás do Porco-selvagem:
matá-lo-á na passagem,
com nosso Prinspe ajudando!
O Rei vai ressuscitando
no Prinspe, sua Criança
E a Espora da remonstrança,
Pedra do Reino e da Prata,
no sangue desta Escarlata


Poemas e Poesias sexta, 07 de fevereiro de 2020

OCEANO NOX (POEMA DO PORTUGUÊS ANTRO DE QUENTAL)

OCEANO NOX

Antero de Quental

 

Junto do mar, que erguia gravemente
A trágica voz rouca, enquanto o vento
Passava como o vôo do pensamento
Que busca e hesita, inquieto e intermitente,

Junto do mar sentei-me tristemente,
Olhando o céu pesado e nevoento,
E interroguei, cismando, esse lamento
Que saía das coisas, vagamente...

Que inquieto desejo vos tortura,
Seres elementares, força obscura?
Em volta de que idéia gravitais?

Mas na imensa extensão, onde se esconde
O Inconsciente imortal, só me responde
Um bramido, um queixume, e nada mais...


Poemas e Poesias quinta, 06 de fevereiro de 2020

C... (POEMA DO PAULISTA ÁLVARES DE AZEVEDO)

C...

Álvares de Azevedo

C...

Oh! não tremas! que este olhar, este
abraço te digam quanto é inefável - o de
abandono sem receio, os inebriamentos de
uma voluptuosidade que deve ser eterna.
GOETHE, Fausto

Sim! coroemos as noites
Com as rosas do himeneu...
Entre flores de laranja
Serás minha e serei teu!

Sim! quero em leito de flores
Tuas mãos dentro das minhas...
Mas os círios dos amores
Sejam só as estrelinhas.

Por incenso os teus perfumes,
Suspiros por oração
E por lágrimas... somente
As lágrimas da paixão!

Dos véus da noiva só tenhas
Dos cílios o negro véu...
Basta do colo o cetim
Para as Madonas do céu!

Eu soltarei-te os cabelos...
Quero em teu colo sonhar...
Hei de embalar-te... do leito
Seja lâmpada o luar!

Sim!... coroemos as noites
Da laranjeira co'a flor...
Adormeçamos num templo
- Mas seja o templo do amor.

É doce amar como os anjos
Da ventura no himeneu:
Minha noiva, ou minh'amante,
Vem dormir no peito meu!

Dá-me um beijo, abre teus olhos
Por entre esse úmido véu:
Se na terra és minha amante,
És a minh'alma no céu!


Poemas e Poesias quarta, 05 de fevereiro de 2020

PUCHRA UR LUNA (POEMA DO MINEIRO ALPHONSUS GUIMARAENS)

PULCHRA UT LUNA

Alphonsus Guimaraens

 

Celeste... É assim, divina, que te chamas.
Belo nome tu tens, Dona Celeste...
Que outro terias entre humanas damas,
Tu que embora na terra do céu vieste?

Celeste... E como tu és do céu não amas:
Forma imortal que o espírito reveste
De luz, não temes sol, não temes chamas,
Porque és sol, porque és luar, sendo celeste.

Incoercível como a melancolia,
Andas em tudo: o sol no poente vasto
Pede-te a mágoa do findar do dia.

E a lua, em meio à noite constelada,
Pede-te o luar indefinido e casto
Da tua palidez de hóstia sagrada.


Poemas e Poesias terça, 04 de fevereiro de 2020

A IMPLOSÃO DA MENTIRA - FRAGMENTO 1 (POEMA DO MINEIRO AFFONSO ROMANO DE SANT,ANNA)

A IMPLOSÃO DA MENTIRA

FRAGMENTO 1

Affonso Romano de Sant'Anna

 

                Mentiram-me. Mentiram-me ontem

               e hoje mentem novamente. Mentem

               de corpo e alma, completamente.

               E mentem de maneira tão pungente

               que acho que mentem sinceramente.


               Mentem, sobretudo, impune/mente.

               Não mentem tristes. Alegremente

               mentem. Mentem tão nacional/mente

               que acham que mentindo história afora

               vão enganar a morte eterna/mente.


               Mentem. Mentem e calam. Mas suas frases

               falam. E desfilam de tal modo nuas

               que mesmo um cego pode ver

               a verdade em trapos pelas ruas.


               Sei que a verdade é difícil

               e para alguns é cara e escura.

               Mas não se chega à verdade

               pela mentira, nem à democracia

               pela ditadura.


Poemas e Poesias segunda, 03 de fevereiro de 2020

PÁGINA DESCONHECIDA (POEMA DO MARANHENSE ADELINO FONTOURA)

PÁGINA DESCONHECIDA

Adelino Fontoura

 

À brisa, ao sol, à serra, à flor silvestre
Ao ribeiro que corre cristalino,
Ao canto alegre e doce, matutino,
Das aventuras no arvoredo agreste;

À campina que do orvalho a manhã veste,
Eu, sem de Homero for o alto destino,
Um conto fui pedir áureo, divino,
Radiante dessa luz alva e celeste!
 
Com ele ornar quisera, alegremente,
O teu álbum mimoso — onde o talento
Do teu gênio se curva ao foto ingente;
 
Mas, não tenho de Dante o pensamento,
Não acho inspiração na luz fulgente
Pra um canto te ofertar com sentimento.


Poemas e Poesias domingo, 02 de fevereiro de 2020

ARTEFATO NIPÔNICO (POEMA DA MINEIRA ADÉLIA PRADO)

ARTEFATO NIPÔNICO

Adélia Prado

 

A borboleta pousada
ou é Deus
ou é nada.


Poemas e Poesias sábado, 01 de fevereiro de 2020

A ESPERA (POEMA DA CARIOCA ADALGISA NERY)

A ESPERA

Adalgisa Nery

Amado... Por que tardas tanto?
As primeiras sombras se avizinham
E as estrelas iniciam a noite.
Vem...
Pois a esperança que se acolheu em meu coração
Vai deixá-lo como um ninho abandonado nos penhascos.
Vem...Amado..
Desce a tua boca sobre a minha boca.
Para a tua alma levar a minha alma
Pesada de sofrimento!
Vem...
Para que, beijando a minha boca
Eu receba a sensação de uma janela aberta.
Amado meu...
Por que tardas tanto?
Vem...
E serás como um ramo de rosas brancas
Pousando no túmulo da minha vida...
Vem amado meu...
Por que tardas tanto?


Poemas e Poesias sexta, 31 de janeiro de 2020

A CACHORRINHA (POEMA DO CARIOCA VINÍCIUS DE MORAES)

A CACHORRINHA

Vinícius de Moraes

 

Mas que amor de cachorrinha!
Mas que amor de cachorrinha!

Pode haver coisa no mundo
Mais branca, mais bonitinha
Do que a tua barriguinha
Crivada de mamiquinha?

Pode haver coisa no mundo
Mais travessa, mais tontinha
Que esse amor de cachorrinha
Quando vem fazer festinha
Remexendo a traseirinha?


Poemas e Poesias quinta, 30 de janeiro de 2020

A TERNURA DO MAR (POEMA DO PAULISTA VICENTE DE CARVALHO)

A TERNURA DO MAR

Vicente de Carvalho

 

No firmamento azul, cheio de estrelas de ouro

Ia boiando a Lua indiferente e fria.

De penhasco em penhasco e de estouro em estouro,

Em baixo, o mar dizia:

 

“Lua, só meu amor é fiel tempo em fora.

Muda o céu, que se alegra à madrugada, e pelas

Sombras do entardecer todo entristece, e chora

Marejado de estrelas;

 

Ora em pompas, a terra, ora desfeita e nua

— Como a folha que vai arrastada na brisa —

Aos caprichos do tempo inconstante flutua

Indecisa, indecisa.

 

Desfolha-se, encanece em musgos, aos rigores

Do céu mostra a nudez dos seus galhos mesquinhos,

A árvore que viçou toda folhas e flores,

Toda aromas e ninhos;

 

Cóleras de tufão, pompas de primavera,

Céu que em sombras se esvai, terra que se desnuda,

A tudo o tempo alcança, e a tudo o tempo altera...

— Só meu amor não muda!

 

Há mil anos que eu vivo a terra suprimindo:

Hei de romper-lhe a crosta e cavar-lhe as entranhas,

Dentro de vagalhões penhascos submergindo.

Submergindo montanhas.

 

Hei de alcançar-te um dia... Embalde nos separa

A largura da terra e o fraguedo dos montes.

Hei de chegar aí de onde vens nua e clara

Subindo os horizontes.

 

Um passo para ti cada dia entesouro,

Há de ter fim o espaço, e o meu amor caminha...

Dona do céu azul e das estrelas de ouro,

Um dia serás minha!

 

E serei teu escravo, à noite, pela calma

Rendilharei de espuma o teu berço de areias,

E há de embalar teu sono e acalentar tua alma

O canto das sereias.

 

Quando a aurora romper no céu despovoado,

Tesouros a teus pés estenderei, de rastros.

Ser amante do mar vale mais, sonho amado,

Que ser dona dos astros.

 

Deliciando-te o olhar, afagando-te a vista,

Todo me tingirei de mil cores cambiantes,

E abrir-se-á de meu seio a brancura imprevista

Das ondas arquejantes.

 

Levar-te-ei de onda em onda a vagar de ilha em ilha,

Tranquilas solidões, ermas como atalaias,

Onde o marulho canta e a salsugem polvilha

A alva nudez das praias.

 

Ao longe, de repente assomando e fugindo,

Alguma vela, ao sol, verás, alva de neve:

Teus olhos sonharão enlevados, seguindo

Seu voo claro e leve;

 

Sonharão, na delícia indefinida e vaga

De sentir-se levar sem destino, um momento,

Para além, para além, nos balanços da vaga,

Nos acasos do vento.

 

Far-te-ei ver o país, nunca visto, da sombra,

Onde cascos de naus arrombadas, a espaços

Dormem o último sono estendidos na alfombra

De algas e de sargaços.

 

Opulentos galeões, pelas junturas rotas,

Vertem ouro, troféus inúteis, vis monturos,

Que foram conquistar às praias mais remotas,

Pelos parcéis mais duros.

 

Flâmula ao vento, proa em rumo ao largo, velas

Desfraldadas, varando ermos desconhecidos,

Rudes ondas, tufões brutais, turvas procelas,

Sombra, fuzis, bramidos,

 

Todo o estranho pavor das águas afrontando,

Altivos como reis e leves como plumas,

Iam de golfo em golfo, em triunfo arrastando

Uma esteira de espumas.

 

Ei-los, carcaças vis d’onde o ouro em vão supura,

Esqueletos de heróis, dei-os em pasto à fome

Silenciosa e sutil da multidão obscura,

Dos moluscos sem nome.

 

Essa estranha região nunca vista, hás de vê-la,

Onde, numa bizarra exuberância, a flora

Rebenta pelo chão pérolas cor de estrela

E conchas cor de aurora;

 

Onde o humilde infusório aspira às maravilhas

Da glória, sonha o sol, e, dos grotões mais fundos

De meu seio, levanta a pouco e pouco as ilhas,

Arquipélagos, mundos.

 

Lua, eu sou a paixão, eu sou a vida. Eu te amo,

Paira, longe, no céu, desdenhosa rainha!

Que importa? O tempo é vasto, e tu, bem que reclamo!

Um dia serás minha!

 

Embalde nos afastai, embalde nos separa

A largura da terra e o fraguedo dos montes:

Hei de chegar aí de onde vens, nua e clara

Subindo os horizontes.”

 

Na quietação da noite apenas tumultua

Quebrada de onda em onda a voz brusca do mar

Corta o silêncio, agita o sossego, flutua,

E espalha-se no luar.


Poemas e Poesias quarta, 29 de janeiro de 2020

TAPUIA (POEMA DO GAÚCHO RAUL BOPP)

TAPUIA

Raul Bopp

 

As florestas ergueram braços peludos para esconder-te
A tua carne triste se desabotoa nos seios
recém-chegados do fundo das selvas.

Pararam no teu olhar as noites do Amazonas
mornas e imensas
E no teu corpo longo.
ficou dormindo a sombra das cinco estrelas do Cruzeiro.

O mato acorda no teu sangue
sonhos de tribos desaparecidas
- filha de raças anônimas
que se misturam em grandes adultérios!

E erras sem rumo assim pelas beiras do rio
que os teus antepassados te deixaram de herança

O vento desarruma os teus cabelos soltos
e modela o vestido na intimidade do teu corpo exato.

À noite o rio te chama.

Chamam-te vozes do fundo do mato.

Então entregas à água
demoradamente
como uma flor selvagem
ante a curiosidade das estrelas.


Poemas e Poesias terça, 28 de janeiro de 2020

O GATO (POEMA DO CEARENSE QUINTINO CUNHA)

O GATO

Quintino Cunha

 

                    ― O Gato, se tem fome, é assim: procura,

                  todo brandura,

                  o dono seu, pedindo-lhe comida.

                  Mas de uma fórma, tão enternecida,

                  que nos parece Gato

                  a sombra fiel de um candidato

                 pedindo votos para ser eleito...

                E, quando o  apanha,

                que ao próprio dono ferozmente estranha,

                aí é que o retrato está perfeito!

 


Poemas e Poesias segunda, 27 de janeiro de 2020

O PEIXE (POEMA DO CEARENSE PATATIVA DO ASSARÉ)

O PEIXE

Patativa do Assaré

 

     Tendo por berço  o lago cristalino,
     Folga o peixe, a nadar todo inocente,
     Medo ou receio do porvir não sente,
     Pois vive incauto do fatal destino.

     Se na ponta de um fio longo e fino
     A isca avista, ferra-a inconsciente,
     Ficando o pobre peixe, de repente,
     Preso ao anzol do pescador ladino.

     O camponês também do nosso Estado
     Ante a campanha eleitoral, coitado!
     Daquele peixe tem a mesma sorte.

     Antes do pleito, festa riso e gosto,
     depois do pleito, imposto e mais imposto
     Pobre matuto do sertão do norte!


Poemas e Poesias domingo, 26 de janeiro de 2020

CONTRASTE (POEMA DO CEARENSE PADRE ANTÔNIO TOMÁS)

CONTRASTE

Padre Antônio Tomás

 

Quando partimos no verdor dos anos,
Da vida pela estrada florescente,
As esperanças vão conosco à frente,
E vão ficando atrás os desenganos.

Rindo e cantando, céleres e ufanos,
Vamos marchando descuidosamente...
Eis que chega a velhice, de repente,
Desfazendo ilusões, matando enganos.

Então, nós enxergamos, claramente,
Como a existência é rápida e falaz,
E vemos que sucede exatamente

O contrário dos tempos de rapaz:
- Os desenganos vão conosco à frente
E as esperanças vão ficando atrás.


Poemas e Poesias sábado, 25 de janeiro de 2020

ESTÂNCIAS (POEMA DO CARIOCA OLAVO BILAC)

ESTÂNCIAS

Olavo Bilac

 

 

I

Ah! finda o inverno! adeus, noites, breve esquecidas,
Junto ao fogo, com as mãos estreitamente unidas!
Abracemo-nos muito! adeus! um beijo ainda!
Prediz-me o coração que é o nosso amor que finda,
Há de em breve sorrir a primavera. Em breve,
Branca, aos beijos do sol, há de fundir-se a neve.
E. na festa nupcial das almas e das flores,
Quando tudo acordar para os novos amores,
Meu amor! haverá dois lugares vazios.
Tu tão longe de mim! e ambos, mudos e frios,
Procurando esquecer os beijos que trocamos,
E maldizendo o tempo em que nos adoramos...

II

Mas, às vezes, sozinha, hás de tremer, o vulto
De um fantasma entrevendo, em tua alcova oculto.
E pelo corpo todo, a ofegar de desejo,
Pálida, sentirás a carícia de um beijo.
Sentirás o calor da minha boca ansiosa,
Na água que te banhar a carne cor-de-rosa,
No linho do lençol que te roçar o peito.
E hás de crer que sou eu que procuro o teu leito,
E hás de crer que sou eu que procuro a tua alma!
E abrirás a janela... E, pela noite calma,
Ouvirás minha voz no barulho dos ramos,
E bendirás o tempo em que nos adoramos...

III

E eu, errante, através das paixões, hei de, um dia,
Volver o olhar atrás, para a estrada sombria.
Talvez uma saudade, um dia, inesperada,
Me punja o coração, como uma punhalada.
E agitarei no vácuo as mãos, e um beijo ardente
Há de subir-me à boca: e o beijo e as mãos somente
Hão de o vácuo encontrar, sem te encontrar, querida!
E, como tu, também me acharei só na vida,
Só! sem o teu amor e a tua formosura:
E chorarei então a minha desventura,
Ouvindo a tua voz no barulho dos ramos,
E bendizendo o tempo em que nos adoramos...

IV

Renascei, revivei, árvores sussurrantes!
Todas as asas vão partir, loucas e errantes,
A ruflar, a ruflar... O amor é um passarinho:
Deixemo-lo partir: - desertemos o ninho...
A primavera vem. Vai-se o inverno. Que importa
Que a primavera encontre esta ventura morta?
Que importa que o esplendor do universal noivado
Venha este noivo achar da noiva separado?
Esqueçamos o amor que julgamos eterno...
- Dia que iluminaste os meus dias de inverno!
Esqueçamos o ardor dos beijos que trocamos,
Maldigamos o tempo em que nos adoramos...


Poemas e Poesias sexta, 24 de janeiro de 2020

AVENIDA PAULISTA (POEMA DO PAULISTA MENOTTI DEL PICCHIA)

AVENIDA PAULISTA

Menotti Del Picchia

 

 

Todos os estilos ancoraram no cais mole
do asfalto fidalgo...
Dentro daquele parque
fuma goiano um califa enriquecido
com uma fábrica de alpargatas da rua 25 de Março.

O sr. Conde está bebendo Chianti
servido por um criado de libré.

Até as colunas de mármore são de cimento armado.

E domingo, em Roles Royce ou em Ford
passaremos em revista
na parada do corso
todos os candidatos à consagração da Avenida.


Poemas e Poesias quinta, 23 de janeiro de 2020

CANÇÃO DO DIA DE SEMPRE (POEMA DO GAÚCHO MÁRIO QUINTANA)

CANÇÃO DO DIA DE SEMPRE

Mário Quintana

 

Tão bom viver dia a dia...
A vida assim, jamais cansa...

Viver tão só de momentos
Como estas nuvens no céu...

E só ganhar, toda a vida,
Inexperiência... esperança...

E a rosa louca dos ventos
Presa à copa do chapéu.

Nunca dês um nome a um rio:
Sempre é outro rio a passar.

Nada jamais continua,
Tudo vai recomeçar!

E sem nenhuma lembrança
Das outras vezes perdidas,
Atiro a rosa do sonho
Nas tuas mãos distraídas...


Poemas e Poesias quarta, 22 de janeiro de 2020

A UMA AMIGA (POEMA DA MARANHENSE MARIA FIRMINA DOS REIS)

A UMA AMIGA

Maria Firmina dos Reis

Eu a vi - gentil mimosa,
Os lábios da cor da rosa,
A voz um hino de amor!
Eu a vi, lânguida, e bela:
E ele a rever-se nela:
Ele colibri - ela flor.

Tinha a face reclinada
Sobre a débil mão nevada:
Era a flor à beira-rio.
A voz meiga, a voz fluente,
Era um arrulo cadente,
Era um vago murmúrio.

No langor dos olhos dela
Havia expressão tão bela,
Tão maga, tão sedutora,
Que eu mesmo julguei-a anjo,
Eloá, fada, ou arcanjo,
Ou nuvem núncia d'aurora.

Eu vi - o seio lhe arfava:
E ela... ela cismava,
Cismava no que lhe ouvia;
Não sei que frase era aquela:
Só ele falava a ela,
Só ela a frase entendia.

Eu tive tantos ciúmes!...
Teria dos próprios numes,
Se lhe falassem de amor.
Porque, querê-la - só eu.
Mas ela! - a outra ela deu
meigo riso encantador...
Ela esqueceu-se de mim
Por ele... por ele, enfim.


Poemas e Poesias terça, 21 de janeiro de 2020

A VIGÍLIA DE HERO (POEMA DO PERNAMBUCANO MANUEL BANDEIRA)

A VIGÍLIA DE HERO

Manuel Bandeira

 

Tu amarás outras mulheres
E tu me esquecerás!
É tão cruel, mas é a vida. E no entanto
Alguma coisa em ti pertence-me!
Em mim alguma coisa és tu.
O lado espiritual do nosso amor
Nos marcou para sempre.
Oh, vem em pensamento nos meus braços!
Que eu te afeiçoe e acaricie...

Não sei por que te falo assim de coisas que não são.
Esta noite, de súbito, um aperto
De coração tão vivo e lancinante
Tive ao pensar numa separação!
Não sei que tenho, tão ansiosa e sem motivo.
Queria ver-te... estar ao pé de ti...
Cruel volúpia e profunda ternura dilaceram-me.

É como uma corrida, em minhas veias,
De fúrias e de santas para a ponta dos meus dedos
Que queriam tomar tua cabeça amada,
Afagar tua fronte e teus cabelos,
Prender-te a mim por que jamais tu me escapasses!

Oh, quisera não ser tão voluptuosa!
E todavia
Quanta delícia ao nosso amor traz a volúpia!
Mas faz sofrer... inquieta...
Ah, como poderei contentá-la, jamais!
Quisera calmá-la na música... Ouvir muito, ouvir muito...
Sinto-me terna... e sou cruel e melancólica!

Possui-me como sou na ampla noite pressaga!
Sente o inefável! Guarda apenas a ventura
Do meu desejo ardendo a sós
Na treva imensa... Ah, se eu ouvisse a tua voz!

Poemas e Poesias segunda, 20 de janeiro de 2020

CACIMBA DA SAÚDE (POEMA DO MATO-GROSSENSE MANOEL DE BARROS)

CACIMBA DA SAÚDE

Manoel de Barros

 

Descendo um trilheiro de pedras ladeado por cansanção
A gente dávamos na Cacimba
Na estrada à direita o casebre de Ignácio Rubafo, que
tinha esse nome porque se alimentava de lodo.
Aberta na grande pedra da cidade a Cacimba!
De águas milagrosas
Cheinhas de sapos.

A gente matávamos bentevi a soco.


Poemas e Poesias domingo, 19 de janeiro de 2020

OS DOIS HORIZONTES (POEMA DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

OS DOIS HORIZOJTES

Machado de Assis

 

Um horizonte, — a saudade
Do que não há de voltar;
Outro horizonte, — a esperança
Dos tempos que hão de chegar;
No presente, — sempre escuro, —
Vive a alma ambiciosa
Na ilusão voluptuosa
Do passado e do futuro.
.
Os doces brincos da infância
Sob as asas maternais,
O vôo das andorinhas,
A onda viva e os rosais.
O gozo do amor, sonhado
Num olhar profundo e ardente,
Tal é na hora presente
O horizonte do passado.
.

Ou ambição de grandeza
Que no espírito calou, 
Desejo de amor sincero
Que o coração não gozou;
Ou um viver calmo e puro
À alma convalescente, 
Tal é na hora presente
O horizonte do futuro.
.
No breve correr dos dias
Sob o azul do céu, — tais são
Limites no mar da vida:
Saudade ou aspiração;
Ao nosso espírito ardente,
Na avidez do bem sonhado,
Nunca o presente é passado,
Nunca o futuro é presente.
.
Que cismas, homem? — Perdido
No mar das recordações,
Escuto um eco sentido
Das passadas ilusões.
Que buscas, homem? — Procuro,
Através da imensidade,
Ler a doce realidade
Das ilusões do futuro.


Poemas e Poesias sábado, 18 de janeiro de 2020

ATO ÍNTIMO (POEMA DO PERNAMBUCANO LUÍS TURIBA)

ATO ÍNTIMO

Luís Turiba

Antes do banho
m´imbainha
m´imbainha
m´imbainha
meu calor

Durante o banho
m´inlavinha
m`inlavinha
m´invalinha
minha flor

Final do banho
m´inxuguinha
m´inxuguinha
m´inxuguinha
meu ioiô

Após o banho
m´invistinha
m´invistinha
m´invistinha
meu amor


Poemas e Poesias sexta, 17 de janeiro de 2020

ESSA NEGRA FULÔ (POEMA DO ALAGOANO JORGE DE LIMA)

ESSA NEGRA FULÔ

Jorge de Lima

 

Ora, se deu que chegou
(isso já faz muito tempo)
no bangüê dum meu avô
uma negra bonitinha,
chamada negra Fulô.

Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!

Ó Fulô! Ó Fulô!
(Era a fala da Sinhá)
— Vai forrar a minha cama
pentear os meus cabelos,
vem ajudar a tirar
a minha roupa, Fulô!

Essa negra Fulô!

Essa negrinha Fulô!
ficou logo pra mucama
pra vigiar a Sinhá,
pra engomar pro Sinhô!

Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!

Ó Fulô! Ó Fulô!
(Era a fala da Sinhá)
vem me ajudar, ó Fulô,
vem abanar o meu corpo
que eu estou suada, Fulô!
vem coçar minha coceira,
vem me catar cafuné,
vem balançar minha rede,
vem me contar uma história,
que eu estou com sono, Fulô!

Essa negra Fulô!

"Era um dia uma princesa
que vivia num castelo
que possuía um vestido
com os peixinhos do mar.
Entrou na perna dum pato
saiu na perna dum pinto
o Rei-Sinhô me mandou
que vos contasse mais cinco".

Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!

Ó Fulô! Ó Fulô!
Vai botar para dormir
esses meninos, Fulô!
"minha mãe me penteou
minha madrasta me enterrou
pelos figos da figueira
que o Sabiá beliscou".

Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!

Ó Fulô! Ó Fulô!
(Era a fala da Sinhá
Chamando a negra Fulô!)
Cadê meu frasco de cheiro
Que teu Sinhô me mandou?
— Ah! Foi você que roubou!
Ah! Foi você que roubou!

Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!

O Sinhô foi ver a negra
levar couro do feitor.
A negra tirou a roupa,
O Sinhô disse: Fulô!
(A vista se escureceu
que nem a negra Fulô).

Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!

Ó Fulô! Ó Fulô!
Cadê meu lenço de rendas,
Cadê meu cinto, meu broche,
Cadê o meu terço de ouro
que teu Sinhô me mandou?
Ah! foi você que roubou!
Ah! foi você que roubou!

Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!

O Sinhô foi açoitar
sozinho a negra Fulô.
A negra tirou a saia
e tirou o cabeção,
de dentro dêle pulou
nuinha a negra Fulô.

Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!

Ó Fulô! Ó Fulô!
Cadê, cadê teu Sinhô
que Nosso Senhor me mandou?
Ah! Foi você que roubou,
foi você, negra fulô?

Essa negra Fulô!


Poemas e Poesias quinta, 16 de janeiro de 2020

COISAS DE CABECEIRA - RECIFE (POEMA DO PERNAMBUCANO JOÃO CABRAL DE MELO NETO)

COISAS DE CABECEIRA

João Cabral de Melo Neto

 

1

Diversas coisas se alinham na memória
numa prateleira com o rótulo: Recife.
Coisas como de cabeceira da memória.
a um tempo coisas e no próprio índice;
e pois que em índice: densas, recortadas,
bem legíveis, em suas formas simples.


2
Algumas delas, e fora as já contadas:
o combogó, cristal do número quatro;
os paralelepípedos de algumas ruas,
de linhas elegantes, mas grão áspero;
a empena dos telhados, quinas agudas
como se também para cortar, telhados;
os sobrados, paginados em romancero,
várias colunas por fólio, imprensados.
(Coisas de cabeceira, firmando módulos:
assim, o do vulto esguio dos sobrados).

 


Poemas e Poesias quarta, 15 de janeiro de 2020

A SÓS (POEMA DO ACRIANO J. G. DE ARAÚJO JORGE)

A SÓS

J. G. de Araújo Jorge

 

A sós
como duas gaivotas
na solidão do céu,
em pleno mar,
sonhando no ar...
A sós,
lado a lado, sem alarde,
como dois pássaros num alto ramo,
ao cair da tarde...
 A sós
como duas mãos quando se procuram
e se encontram,
sem voz...
 Como eu e tu
quando somos nós
a sós...


Poemas e Poesias terça, 14 de janeiro de 2020

ÁRIAS PEQUENAS. PARA BANDOLIM (POEMA DA PAULISTA HILDA HILST)

ÁRIAS  PEQUENAS. PARA BANDOLIM

Hilda Hilst

 


Antes que o mundo acabe, Túlio,
Deita-te e prova
Esse milagre do gosto
Que se fez na minha boca
Enquanto o mundo grita
Belicoso. E ao meu lado
Te fazes árabe, me faço israelita
E nos cobrimos de beijos
E de flores
Antes que o mundo se acabe
Antes que acabe em nós
Nosso desejo.


Poemas e Poesias segunda, 13 de janeiro de 2020

SONETO (POEMA DO CARIOCA FRANCISCO OTAVIANO)

SONETO

Francisco Otaviano

 

Morrer, dormir, não mais: termina a vida
E com ela terminam nossas dores,
Um punhado de terra, algumas flores,
E às vezes uma lágrima fingida!

Sim, minha morte não será sentida,
Não deixo amigos e nem tive amores!
Ou se os tive mostraram-se traidores,
Algozes vis de uma alma consumida.

Tudo é pobre no mundo; que me importa
Que ele amanhã se esbroe e que desabe,
Se a natureza para mim está morta!

É tempo já que o meu exílio acabe;
Vem, pois, ó morte, ao nada me transporta
Morrer, dormir, talvez sonhar, quem sabe?


Poemas e Poesias domingo, 12 de janeiro de 2020

A MAIOR TORTURA (POEMA DA PORTUGUESA FLORBELA ESPANCA)

A MAIOR TORTURA

Florbela Espanca

Na vida, para mim, não há deleite.
Ando a chorar convulsa noite e dia ...
E não tenho uma sombra fugidia
Onde poise a cabeça, onde me deite!

E nem flor de lilás tenho que enfeite
A minha atroz, imensa nostalgia! ...
A minha pobre Mãe tão branca e fria
Deu-me a beber a Mágoa no seu leite!

Poeta, eu sou um cardo desprezado,
A urze que se pisa sob os pés.
Sou, como tu, um riso desgraçado!

Mas a minha tortura inda é maior:
Não ser poeta assim como tu és
Para gritar num verso a minha Dor! ...

 


Poemas e Poesias sábado, 11 de janeiro de 2020

DOIS E DOIS SÃO QUATRO (POEMA DO MARANHENSE FERREIRA GULLAR)

DOIS E DOIS SÃO QUATRO

Ferreira Gullar

 

Como dois e dois são quatro
Sei que a vida vale a pena
Embora o pão seja caro
E a liberdade pequena
Como teus olhos são claros
E a tua pele, morena
como é azul o oceano
E a lagoa, serena

Como um tempo de alegria
Por trás do terror me acena
E a noite carrega o dia
No seu colo de açucena

- sei que dois e dois são quatro
sei que a vida vale a pena
mesmo que o pão seja caro
e a liberdade pequena.


Poemas e Poesias sexta, 10 de janeiro de 2020

ATRAVESSA ESTA PAISAGEM O MEU SONHO (POEMA DO PORTUGUÊS FERNANDO PESSOA)

ATRAVESSA ESTA PAISAGEM O MEU SONHO

Fernando Pessoa

 

Atravessa esta paisagem o meu sonho dum porto infinito
E a cor das flores é transparente de as velas de grandes navios
Que largam do cais arrastando nas águas por sombra
Os vultos ao sol daquelas árvores antigas...

O porto que sonho é sombrio e pálido
E esta paisagem é cheia de sol deste lado...
Mas no meu espírito o sol deste dia é porto sombrio
E os navios que saem do porto são estas árvores ao sol...

Liberto em duplo, abandonei-me da paisagem abaixo...
O vulto do cais é a estrada nítida e calma
Que se levanta e se ergue como um muro,
E os navios passam por dentro dos troncos das árvores
Com uma horizontalidade vertical,
E deixam cair amarras na água pelas folhas uma a uma dentro...

Não sei quem me sonho...
Súbito toda a água do mar do porto é transparente
E vejo no fundo, como uma estampa enorme que lá estivesse
   desdobrada,
Esta paisagem toda, renque de árvore, estrada a arder em aquele
   porto,
E a sombra duma nau mais antiga que o porto que passa
Entre o meu sonho do porto e o meu ver esta paisagem
E chega ao pé de mim, e entra por mim dentro,
E passa para o outro lado da minha alma...


Poemas e Poesias quinta, 09 de janeiro de 2020

TROVAS LÍRICAS E FILOSÓFICAS - 28 (POEMA DO PARANAENSE ENO TEODORO WANKE)

TROVA LÍRICA E FILOSÓFICA - 28

Eno Teodoro Wanke

 

A liberdade é tão boa

Que a humanidade está cheia

De inteligentes pessoas

Querendo mandar na alheia

 

 


Poemas e Poesias quarta, 08 de janeiro de 2020

A ÚLTIMA ILUSÃO (POEMA DO PIAUIENSE DA COSTA E SILVA)

A ÚLTIMA ILUSÃO

Da Costa e Silva

 

 
Sobre o mar de safira, o céu de opala.

Uma vela perdida no horizonte,
E o azul que foge cada vez mais longe...

Ilusão de minh’alma!


Poemas e Poesias terça, 07 de janeiro de 2020

Ó CINTILANTE QUIQUIA (POEMA DO CATARINENSE CRUZ E SOUSA)

Ó CINTILANTE QUIQUIA

Cruz e Sousa

 

Ó cintilante Quiquia,
Menina dos meus olhares,
Flor azul da simpatia,
Ó cintilante Quiquia,
Rasga este céu da alegria
Dos meus risonhos cantares,
Ó cintilante Quiquia,
Menina dos meus olhares.


Poemas e Poesias segunda, 06 de janeiro de 2020

CONSIDERAÇÕES DE ANINHA (POEMA DA GOIANA CORA CORALINA)

CONSIDERAÇÕES DE ANINHA

Cora Coralina

 

Melhor do que a criatura,
fez o criador a criação.
A criatura é limitada.
O tempo, o espaço,
normas e costumes.
Erros e acertos.
A criação é ilimitada.
Excede o tempo e o meio.
Projeta-se no Cosmos.


Poemas e Poesias domingo, 05 de janeiro de 2020

ESTRELA PERIGOSA (POEMA DA UCRANIANA-BRASILEIRA CLARICE LISPECTOR)

ESTRELA PERIOSA

Clarice Lispector

 

Estrela perigosa
Rosto ao vento
Marulho e silêncio
leve porcelana
templo submerso
trigo e vinho
tristeza de coisa vivida
árvores já floresceram
o sal trazido pelo vento
conhecimento por encantação
esqueleto de idéias
ora pro nobis
Decompor a luz
mistério de estrelas
paixão pela exatidão
caça aos vagalumes.
Vagalume é como orvalho
Diálogos que disfarçam conflitos por explodir
Ela pode ser venenosa como às vezes o cogumelo é.

No obscuro erotismo de vida cheia
nodosas raízes.
Missa negra, feiticeiros.
Na proximidade de fontes,
lagos e cachoeiras
braços e pernas e olhos,
todos mortos se misturam e clamam por vida.
Sinto a falta dele
como se me faltasse um dente na frente:
excrucitante.
Que medo alegre,
o de te esperar.


Poemas e Poesias sábado, 04 de janeiro de 2020

CÂNTICO VI (POEMA DA CARIOCA CECÍLIA MEIRELES)

CÂNTICO VI

Cecília Meireles

 

Tu tens um medo:
Acabar.
Não vês que acaba todo o dia.
Que morres no amor.
Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo.
Que te renovas todo o dia.
No amor.
Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo.
Que és sempre outro.
Que és sempre o mesmo.
Que morrerás por idades imensas.
Até não teres medo de morrer.

E então serás eterno.


Poemas e Poesias quinta, 02 de janeiro de 2020

O SEGREDO (24ª PARTE DO POEMA A CACHOEIRA DE PAULO AFONSO DO BAIANO CASTRO ALVES)

O SEGREDO

Castro Alves

(Do poema A Cachoeira de Paulo Afonso)

 

"Agora vou dizer-te por que morro;

Mas hás de jurar primeiro,

Que jamais tuas mãos inocentes
Ferirão meu algoz derradeiro...

Meu filho, eu fui a vítima
Da raiva e do ciúme.

Matou-me como um tigre carniceiro,

Bem vês,

Uma branca mulher, que em si resume

Do tigre — a malvadez,
Do cascavel — o rancor!...

Deixo-te, pois...

— Um grito de vingança?
— Não, pobre criança! ...

Um crime a perdoar... o que é melhor!...
"Depois. teve razão... Esta mulher

É tua e minha senhora!...

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

"Lucas, silêncio! que por ela implora

Teu pai... e teu irmão! ...

"Teu irmão, que é seu filho... (ó magoa e dor!)
"Teu pai — que é seu marido... e teu senhor! ...
"Juras não me vingar? — ó mãe, eu juro

Por ti, pelos beijos teus!
"— Obrigada! agora... agora

Já nada mais me demora...
Deus! — recebe a pecadora!
Filho! — recebe este adeus!"

______________

Quando, rompendo as barras do oriente,
A estrela da manhã mais desmaiava,
E o vento da floresta ao céu levava
O canto jovial do bem-te-vi;
Na casinha de palha uma criança,
Da defunta abraçando o corpo frio,
Murmurava chorando em desvario:
— Eu não me vingo, ó mãe... juro por ti!..."

______________

Maria calou-se... Na fronte do Escravo
Suor de agonia gelado passou;
Com riso convulso murmura: "Que importa
Se o filho da escrava na campa jurou?!...

"Que tem o passado com o crime de agora?
Que tem a vingança, que tem com o perdão?"
E como arrancando do crânio uma idéia
Na fronte corria-lhe a gélida mão...

"Esquece o passado! Que morra no olvido...
Ou antes relembra-o cruento, feroz!
Legenda de lodo, de horror e de crimes
E gritos de vítima e risos de algoz!

"No frio da cova que jaz na explanada,
— Vingança — murmuram os ossos dos meus!"

— Não ouves um canto, que passa nos ares?
— Perdoa! — respondem as almas nos céus!"

— "São longos gemidos do seio materno
Lembrando essa noite de horror e traição!"

— "É o flébil suspiro do vento, que outrora
Bebera nos lábios da morta o perdão!..."

E descaiu profundo
Em longo meditar...
Após sombrio e fero
Viram-no murmurar:

"Mãe! Na região longínqua
Onde tua alma vive,
Sabes que eu nunca tive
Um pensamento vil.
Sabes que esta alma livre
Por ti curvou-se escrava;
E devorou a bava...
E tigre — foi reptil!

"Nem um tremor correra-me
A face fustigada!
Beijei a mão armada
Com o ferro que a feriu...
Filho, de um pai misérrimo
Fui o fiel rafeiro...
Caim, irmão traiçoeiro!
Feriste... e Abel sorriu!

"De tanto horror o cúmulo,
Ó mãe, alma celeste
Se perdoar quiseste,
Eu perdoei também.
Santificaste os míseros;
Curvei-me reverente
A eles tão-somente,
Somente... a mais ninguém!

"Ninguém! que a nada humilho-me
Na terra, nem no espaço!...
Pode ferir meu braço...
— "Lucas! não pode, não!
Mísero a mão que abrira
De tua mãe a cova...
O golpe hoje renova!...
Mata-me!... É teu irmão!..."


Poemas e Poesias quarta, 01 de janeiro de 2020

MORENINHA (POEMA DO FLUMINENSE CASIMIRO DE ABREU)

MORENINHA

Casimiro de Abreu

 

Moreninha, Moreninha,
Tu és do campo a rainha,
Tu és senhora de mim;
Tu matas todos d'amores,
Faceira, vendendo as flores
Que colhes no teu jardim.

Quando tu passas n'aldeia
Diz o povo à boca cheia:
- "Mulher mais linda não há
"Ai! vejam como é bonita
"Co'as tranças presas na fita,
"Co'as flores no samburá! -

Tu és meiga, és inocente
Como a rola que contente
Voa e folga no rosal;
Envolta nas simples galas,
Na voz, no riso, nas falas,
Morena - não tens rival!

Tu, ontem, vinhas do monte
E paraste ao pé da fonte
À fresca sombra do til;
Regando as flores, sozinha,
Nem tu sabes, Moreninha,
O quanto achei-te gentil!

Depois segui-te calado
Como o pássaro esfaimado
Vai seguindo a juriti;
Mas tão pura ias brincando,
Pelas pedrinhas saltando,
Que eu tive pena de ti!

E disse então: - Moreninha,
Se um dia tu fores minha,
Que amor, que amor não terás!
Eu dou-te noites de rosas
Cantando canções formosas
Ao som dos meus ternos ais.

Morena, minha sereia,
Tu és a rosa da aldeia,
Mulher mais linda não há;
Ninguém t'iguala ou t'imita
Co'as tranças presas na fita,
Co'as flores no samburá!

Tu és a deusa da praça,
E todo o homem que passa
Apenas viu-te... parou!
Segue depois seu caminho
Mas vai calado e sozinho
Porque sua alma ficou!

Tu és bela, Moreninha,
Sentada em tua banquinha
Cercada de todos nós;
Rufando alegre o pandeiro,
Como a ave no espinheiro
Tu soltas também a voz:

- "Oh quem me compra estas flores?
"São lindas como os amores,
"Tão belas não há assim;
"Foram banhadas de orvalho,
"São flores do meu serralho,
"Colhi-as no meu jardim." -

Morena, minha Morena,
És bela, mas não tens pena
De quem morre de paixão!
- Tu vendes flores singelas
E guardas as flores belas,
As rosas do coração?!...

Moreninha, Moreninha,
Tu és das belas rainha,
Mas nos amores és má
- Como tu ficas bonita
Co'as tranças presas na fita,
Co'as flores no samburá!

Eu disse então: - "Meus amores,
"Deixa mirar tuas flores,
"Deixa perfumes sentir!"
Mas naquele doce enleio,
Em vez das flores, no seio,
No seio te fui bulir!

Como nuvem desmaiada
Se tinge de madrugada
Ao doce albor da manhã
Assim ficaste, querida,
A face em pejo acendida,
Vermelha como a romã!

Tu fugiste, feiticeira,
E decerto mais ligeira
Qualquer gazela não é;
Tu ias de saia curta...
Saltando a moita de murta
Mostraste, mostraste o pé!

Ai! Morena, ai! meus amores,
Eu quero comprar-te as flores,
Mas dá-me um beijo também;
Que importam rosas do prado
Sem o sorriso engraçado
Que a tua boquinha tem?...

Apenas vi-te, sereia,
Chamei-te - rosa da aldeia -
Como mais linda não há.
- Jesus! Como eras bonita
Co'as tranças presas na fita,
Co'as flores no samburá!


Poemas e Poesias terça, 31 de dezembro de 2019

A SOLIDÃO E SUA PORTA (POEMA DO PERNAMBUCANO CARLOS PENA FILHO)

A SOLIDÃO E SUA PORTA

Carlos Pena Filho

 

A Solidão e Sua Porta
Quando mais nada resistir que valha
a pena de viver e a dor de amar
E quando nada mais interessar
(nem o torpor do sono que se espalha)
Quando pelo desuso da navalha
A barba livremente caminhar
e até Deus em silêncio se afastar
deixando-te sozinho na batalha

Arquitetar na sombra a despedida
Deste mundo que te foi contraditório
Lembra-te que afinal te resta a vida

Com tudo que é insolvente e provisório
e de que ainda tens uma saída
Entrar no acaso e amar o transitório.


Poemas e Poesias segunda, 30 de dezembro de 2019

A PAIXÃO MEDIDA (POEMA DO MINEIRO CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE)

A  PAIXÃO MEDIDA

Carlos Drummond de Andrade

 

Trocaica te amei, com ternura dáctila
e gesto espondeu.
Teus iambos aos meus com força entrelacei.
Em dia alcmânico, o instinto ropálico
rompeu, leonino,
a porta pentâmetra.
Gemido trilongo entre breves murmúrios.
E que mais, e que mais, no crepúsculo ecóico,
senão a quebrada lembrança
de latina, de grega, inumerável delícia?


Poemas e Poesias domingo, 29 de dezembro de 2019

SONETO 096 - BEM SEI, AMOR, QUE É CERTO O QUE RECEIO (POEMA DO PORTUGUÊS LUÍS DE CAMÕES

BEM SEI,  AMOR, QUE É CERTO O QUE RECEIO

Soneto 096

Luís de Camões

 

Bem sei, Amor, que é certo o que receio;
Mas tu, porque com isso mais te apuras,
De manhoso, mo negas, e mo juras
Nesse teu arco de ouro; e eu te creio.

A mão tenho metida no meu seio,
E não vejo os meus danos às escuras;
Porém porfias tanto e me asseguras,
Que me digo que minto, e que me enleio.

Nem somente consinto neste engano,
Mas inda to agradeço, e a mim me nego
Tudo o que vejo e sinto de meu dano.

Oh poderoso mal a que me entrego!
Que no meio do justo desengano
Me possa inda cegar um moço cego?

 


Poemas e Poesias sábado, 28 de dezembro de 2019

SONETO AO VIL INSETO (POEMA DO PORTUGUÊS MANUEL MARIA DU BOCAGE)

SONETO AO VIL INSETO

Bocage

 

Emquanto a rude plebe alvoroçada
Do rouco vate escuta a voz de mouro,
Que do peito inflammado sae d'estouro
Por estreito boccal desentoada:

Não cessa a cantilena acigarrada
Do vil insecto, do mordaz bezouro;
Que à larga se creou por entre o louro
De que a sabia Minerva está c'roada:

Emquanto o cego atheu, calvo da tinha,
Com parolas confunde alguns basbaques,
Psalmeando a amatoria ladainha:

Eu não me posso ter; cheio de achaques,
Cansado de lhe ouvir — "Bravo! Esta é minha!"
Cago sem me sentir, desando em traques.

Poemas e Poesias sexta, 27 de dezembro de 2019

OS DOENTES (POEMA DO CAPIXABA AUGUSTO DOS ANJOS)

OS DOENTES

Augusto dos Anjos

 

Como uma cascavel que se enroscava,
A cidade dos lázaros dormia...
Somente, na metrópole vazia,
Minha cabeça autônoma pensava!

Mordia-me a obsessão má de que havia,
Sob os meus pés, na terra onde eu pisava,
Um fígado doente que sangrava
E uma garganta de orfã que gemia!

Tentava compreender com as conceptivas
Funções do encéfalo as substâncias vivas
Que nem Spencer, nem Haeckel compreenderam...

E via em mim, coberto de desgraças,
O resultado de biliões de raças
Que há muitos anos desapareceram!


Poemas e Poesias quinta, 26 de dezembro de 2019

CANTO DE NATAL (POEMA DO PERNAMBUCANO MANUEL BANDEIRA)

CANTO DE NATAL

Manuel Bandeira

 

 

 

O nosso menino
Nasceu em Belém.
Nasceu tão-somente
Para querer bem.

Nasceu sobre as palhas
O nosso menino.
Mas a mãe sabia
Que ele era divino.

Vem para sofrer
A morte na cruz,
O nosso menino.
Seu nome é Jesus.

Por nós ele aceita
O humano destino:
Louvemos a glória
De Jesus menino.

 

 


Poemas e Poesias quinta, 26 de dezembro de 2019

HISTÓRIA PÁTRIA (POEMA DO PERNAMBUCANO ASCENSO FERREIRA)

HISTÓRIA PÁTRIA

Ascenso Ferreira

 

Plantando mandioca, plantando feijão,
colhendo café, borracha, cacau,
comendo pamonha, canjica, mingau,
rezando de tarde nossa ave-maria,
Negramente...
Caboclamente...
Portuguesamente...
A gente vivia.

De festas no ano só quatro é que havia :
Entrudo e Natal, Quaresma e Sanjoão !
Mas tudo emendava num só carrilhão !
E a gente vadiava, dançava, comia...
Negramente...
Caboclamente...
Portuguesamente...
Todo santo dia !

O Rei, entretanto, não era da terra !
E gente pra Europa mandou-se estudar...
Gentinha idiota que trouxe a mania
de nos transformar
da noite pro dia...

A gente que tão
Negramente...
Caboclamente...
Portuguesamente...
Vivia !

(E foi um dia a nossa civilização
tão fácil de criar!)

Passou-se a pensar,
passou-se a cantar,
passou-se a dançar,
passou-se a comer,
passou-se a vestir,
passou-se a viver,
passou-se a sentir,
tal como Paris
pensava,
cantava,
comia,
sentia...
A gente que tão
Negramente...
Caboclamente...
Portuguesamente...
Vivia !


Poemas e Poesias quarta, 25 de dezembro de 2019

IMPRESSÕES DE TEATRO (POEMA DO MARANHENSE ARTHUR AZEVEDO)

IMPRESSÕES DE TEATRO

Arthur Azevedo

 

Que dramalhão! Um intrigante ousado,
Vendo chegar da Palestina o conde,
Diz-lhe que a pobre da condessa esconde
No seio o fruto de um amor culpado.

Naturalmente o conde fica irado
— “O pai quem é?” pergunta — “Eu!” lhe responde
Um pajem que entra. — “Um duelo!” — “Sim! Quando? Onde?” —
No encontro morre o amante desgraçado.

Folga o intrigante... Porem surge um mano
E vendo morto o irmão, perde a cabeça:
Crava um punhal no peito do tirano.

É preso o mano, mata-se a condessa,
Endoidece o marido... e cai o pano,
Antes que outra catástrofe aconteça.


Poemas e Poesias terça, 24 de dezembro de 2019

A MULHER E O REINO (POEMA DO PARAIBANO ARIANO SUASSUNA)

A MULHER E O REINO

Ariano Suassuna

 

Oh! Romã do pomar, relva esmeralda
Olhos de ouro e azul, minha alazã
Ária em forma de sol, fruto de prata
Meu chão, meu anel, cor do amanhã

Oh! Meu sangue, meu sono e dor, coragem
Meu candeeiro aceso da miragem
Meu mito e meu poder, minha mulher

Dizem que tudo passa e o tempo duro
tudo esfarela
O sangue há de morrer

Mas quando a luz me diz que esse ouro puro
se acaba pôr finar e corromper
Meu sangue ferve contra a vã razão
E há de pulsar o amor na escuridão


Poemas e Poesias sexta, 20 de dezembro de 2019

IDEAL (POEMA DO PORTUGUÊS ANTERO DE QUENTAL)

IDEAL

Antero de Quental

Aquela, que eu adoro, não é feita
De lírios nem de rosas purpurinas,
Não tem as formas languidas, divinas
Da antiga Vénus de cintura estreita...

Não é a Circe, cuja mão suspeita
Compõe filtros mortaes entre ruinas,
Nem a Amazona, que se agarra ás crinas
D'um corcel e combate satisfeita...

A mim mesmo pergunto, e não atino
Com o nome que dê a essa visão,
Que ora amostra ora esconde o meu destino...

É como uma miragem, que entrevejo,
Ideal, que nasceu na solidão,
Nuvem, sonho impalpável do Desejo...


Poemas e Poesias quinta, 19 de dezembro de 2019

ANJOS DO MAR (POEMA DO PAULISTA ÁLVARES DE AZEVEDO)

ANJOS DO MAR

Álvares de Azevedo

 

As ondas são anjos que dormem no mar,
Que tremem, palpitam, banhados de luz...
São anjos que dormem, a rir e sonhar
E em leito d'escuma revolvem-se nus!

E quando de noite vem pálida a lua
Seus raios incertos tremer, pratear,
E a trança luzente da nuvem flutua,
As ondas são anjos que dormem no mar!

Que dormem, que sonham — e o vento dos céus
Vem tépido à noite nos seios beijar!
São meigos anjinhos, são filhos de Deus,
Que ao fresco se embalam do seio do mar!

E quando nas águas os ventos suspiram,
São puros fervores de ventos e mar:
São beijos que queimam... e as noites deliram,
E os pobres anjinhos estão a chorar!

Ai! quando tu sentes dos mares na flor
Os ventos e vagas gemer, palpitar,
Porque não consentes, num beijo de amor,
Que eu diga-te os sonhos dos anjos do mar!


Poemas e Poesias quarta, 18 de dezembro de 2019

POETAS EXILADOS (POEMA DO MINEIRO ALPHONSUS GUIMARAENS)

POETAS EXILADOS

Alphonsus Guimaraens

 

 


A CRUZ E SOUSA


No Mosteiro, da velha arquitetura, de era
Remota, vão chegando os poetas exilados.
A porta principal é engrinaldada em hera...
Os sinos dobram nos torreões, abandonados.

Uns são bem velhos, e há moços, na primavera
Da idade humana. Alguns choram mortos noivados.
Sem esperança, cada um deles tudo espera...
Outros muitos tem o ar de monges maus, transviados.

E ninguém fala. O sonho é mudo: e sonham, quando
Ei-los todos de pé, estáticos, olhando
A branca aparição de hierático painel.

Chegaste enfim, magoado Eleito! Olham. Vermelhos
Tons de poente num fundo azul... Dobram-se os joelhos:
É Cruz e Sousa aos pés do arcanjo São Gabriel.

Poemas e Poesias terça, 17 de dezembro de 2019

A COISA PÚBLICA E PRIVADA (POEMA DO MINEIRO AFFONSO ROMANO DE SANT,ANNA)

A COISA PÚBLICA E PRIVADA

Affonso Romano de Sant'anna

 

Entre a coisa pública
e a privada
achou-se a República
assentada.

Uns queriam privar
da coisa pública,
outros queriam provar
da privada,
conquanto, é claro,
que, na provação,
a privada, publicamente,
parecesse perfumada.

Dessa luta intestina
entre a gula pública e a privada
a República
acabou desarranjada
e já ninguém sabia
quando era a empresa pública
privada pública
ou
pública privada.

Assim ia a rês pública: avacalhada
uma rês pública: charqueada
uma rês pública, publicamente
corneada, que por mais
que lhe batessem na cangalha
mais vivia escangalhada.

Qual o jeito?
Submetê-la a um jejum?
Ou dar purgante à esganada
que embora a prisão de ventre
tinha a pança inflacionada?

O que fazer?
Privatizar a privada
onde estão todos
publicamente assentados?
Ou publicar, de uma penada,
que a coisa pública
se deixar de ser privada
pode ser recuperada?

— Sim, é preciso sanear,
desinfetar a coisa pública,
limpar a verba malversada,
dar descarga na privada.

Enfim, acabar com a alquimia
de empresas públicas-privadas
que querem ver suas fezes
em ouro alheio transformadas.

 


Poemas e Poesias segunda, 16 de dezembro de 2019

OHS! E AIS! (POEMA DO MARANHENSE ADELINO FONTOURA)

OHS! E AIS!

Adelino Fontoura

 

Essa mulher que tantos ohs! provoca,
Essa mulher que tantos ais! arranca,
Essa mulher quem é? Por que abre a boca
O Silvestre quando a vê? - É branca?

É morena? É francesa? É carioca?
As belezas helênicas desbanca?
O seu olhar os cérebros desloca?
O seu sorriso as lágrimas estanca?

Vamos, Raimundo, tu que viste há dias
A mágica visão, o ser terrestre,
Por quem já deste uns ais! e uns ohs! eu sinto,

Tira as garras da dúvida ao Matias,
Faze valsar o Lins, rir o Silvestre
E reler os Subsídios o Filinto.


Poemas e Poesias domingo, 15 de dezembro de 2019

ANTES DO NOME (POEMA DA MINEIRA ADÉLIA PRADO)

ANTES DO NOME 

Adélia Prado

 

Não me importa a palavra, esta corriqueira.
Quero é o esplêndido caos de onde emerge a sintaxe,
os sítios escuros onde nasce o «de», o «aliás»,
o «o», o «porém» e o «que», esta incompreensível
muleta que me apoia.
Quem entender a linguagem entende Deus
cujo Filho é Verbo. Morre quem entender.
A palavra é disfarce de uma coisa mais grave, surda-muda,
foi inventada para ser calada.
Em momentos de graça, infrequentíssimos,
se poderá apanhá-la: um peixe vivo com a mão.
Puro susto e terror.


Poemas e Poesias sábado, 14 de dezembro de 2019

A AMADA É COMO A TERRA ( POEMA DA CARIOCA ADALGISA NERY)

A AMADA É COMO A TERRA

Adalgisa Nery

 

 

[Conservando a ortografia original]

 

Agachado, com a boca bem collada ao sólo
Fala para que a tua voz penetre na terra
E abasteça de harmonia e de vigor o grão que vae nascer.
Mergulha a tua voz no sólo para que os ramos dos arbustos
Tocados pelo ventos das manhãs
Sejam um mixto de amargor e de alegria
Acompanhando os desolados com essa melodia.
Falla bem dentro da terra e dize palavras de consolo
Que assim as flores terão quando brotarem
A belleza eterna em seus perfumes e em suas cores.
Colla a tua boca ao sólo
E envia com os sons da tua garganta
Os teus insuperaveis pensamentos de Unidade
Para que elles cainhem subterraneamente
E rebentem nomeio de outros povos
Cantando a glória da Verdade e da Fraternidade.
Abre com tuas mãos uma fenda na terra
Encosta a tua boca aflicta e diz bem no fundo
                    a razão dos teus tormentos
Para que a agua e o fogo central dissolvam os teus lamentos.
Colla a boca no ventre da Amada
E fala a seu corpo
Para que os seus filhos transportem a tua harmonia
                                        pelos tempos infindáveis
E possas ouvil-a em cada homem, em cada flor,
Na intensidade de todos os perfumes
E nos millesimos reflexos de cada côr!...


Poemas e Poesias sexta, 13 de dezembro de 2019

A BRUSCA POESIA DA MULHER AMADA - III (POEMA DO CARIOCA VINICIUS DE MORAES)

A BRUSCA POESIA DA MULHER AMADA

Vinícius de Moraes

 

 

Rio de Janeiro
A Nelita 

Minha mãe, alisa de minha fronte todas as cicatrizes do passado 
Minha irmã, conta-me histórias da infância em que que eu haja sido herói sem mácula 
Meu irmão, verifica-me a pressão, o colesterol, a turvação do timol, a bilirrubina 
Maria, prepara-me uma dieta baixa em calorias, preciso perder cinco quilos 
Chamem-me a massagista, o florista, o amigo fiel para as confidências 
E comprem bastante papel; quero todas as minhas esferográficas 
Alinhadas sobre a mesa, as pontas prestes à poesia. 
Eis que se anuncia de modo sumamente grave 
A vinda da mulher amada, de cuja fragrância já me chega o rastro. 
É ela uma menina, parece de plumas 
E seu canto inaudível acompanha desde muito a migração dos ventos 
Empós meu canto. É ela uma menina. 
Como um jovem pássaro, uma súbita e lenta dançarina 
Que para mim caminha em pontas, os braços suplicantes 
Do meu amor em solidão. Sim, eis que os arautos 
Da descrença começam a encapuçar-se em negros mantos 
Para cantar seus réquiens e os falsos profetas 
A ganhar rapidamente os logradouros para gritar suas mentiras. 
Mas nada a detém; ela avança, rigorosa 
Em rodopios nítidos 
Criando vácuos onde morrem as aves. 
Seu corpo, pouco a pouco 
Abre-se em pétalas... Ei-la que vem vindo 
Como uma escura rosa voltejante 
Surgida de um jardim imenso em trevas. 
Ela vem vindo... Desnudai-me, aversos! 
Lavai-me, chuvas! Enxugai-me, ventos! 
Alvoroçai-me, auroras nascituras! 
Eis que chega de longe, como a estrela 
De longe, como o tempo 
A minha amada última!

Poemas e Poesias quinta, 12 de dezembro de 2019

A PARTIDA DA MONÇÃO (POEMA DO PAULISTA VICENTE DE CARVALHO)

A PARTIDA DA MONÇÃO

Vicente de Carvalho

 

I

Ei-las, as toscas naus de borda rastejante

À flor das águas, naus de estreitos rios quietos;

Ei-las, prestes a abrir para o sertão distante

O seu voo, arrastado e sem glória, de insetos.

 

Nem o porte arrogante, o sobranceiro aprumo

— Altivo no descanso e ousado nos tufões —

Dessas águias que vão bordejando sem rumo

Pelo acaso do mar, feito de turbilhões;

 

Nem a airosa altivez de velas desfraldadas

Fulgindo ao sol, ao vento abroquelando o bojo;

Nem proas a romper ondas e espumaradas,

Pelos parcéis em fúria arroteando o rebojo;

 

Nada disso que faz o petulante orgulho

De afoitos bergantins e galeras reais:

Calcar a onda, rompê-la, ouvindo no marulho

A comemoração de seus passos triunfais;

 

Nem adiante, acirrando o desejo atrevido

De aventura e perigo, ânsias de glória, em suma,

— A infinita extensão do mar ermo, perdido

Nos confins do horizonte amortalhado em bruma;

 

Nem o arroubo, a poesia, a esperança fogosa

De ir ao longe, através das ondas, conquistar

A nudeza pagã e a virgindade ociosa

De ermas ilhas em flor nas solidões do mar

 

 

II

 

Humildes, toscas naus de borda rastejante

À tona d’água, naus de estreitos rios quietos,

Vão apenas abrir para o sertão distante

O seu voo, arrastado e sem glória, de insetos.

 

Levadas no pendor macio da corrente,

Irão seguindo, irão seguindo sem rumor

E sem vontade, mole e resignadamente,

Por um rumo servil, forçado e encantador.

 

A raiva dos tufões (como a grita afastada

De eco em eco se adoça em suspiro de mágoas)

Esvaída, a morrer de quebrada em quebrada,

Mal roçará de leve a face azul das águas.

 

Em todo o curso, a terra ao lado, seio amigo,

Companheira constante e proteção fiel,

Pondo o socorro à mão nas ânsias do perigo,

Dando ao gozo do olhar delícias de um vergel.

 

E o rio, manso, manso, a ondular, murmurando

O seu murmúrio igual, monótono estribilho,

Morosa cantilena, em voz baixa e em tom brando,

De mãe que embala o berço onde repousa o filho.

 

E o rio, manso, manso, a embalá-las, descendo,

No balanço sutil da mole ondulação,

E a arrastá-las, de leve, assim, para o tremendo,

Para o longínquo, vago, infinito sertão.

 

 

III

 

Hão de em breve surgir, pelas margens sinuosas

Florestas virgens de onde um confuso rumor

Sobe de solidões profundas, misteriosas,

Como um uivo agourento, um uivo ameaçador.

 

Voz sem eco, a não ser na alma de quem a escuta,

Surdo resfolegar de monstro provocado

Que de repente acorda e, prestes para a luta,

Abre a goela de sombra, e espera, sossegado.

 

Sossegado, seguro, apercebido, espera,

Os que lhe vêm trazer, fanática oblação,

Corações para a flecha e sangue para a fera,

Carniça para o abutre e ossadas para o chão.

 

A oculta sucuri, das ervas no disfarce,

Ergue a cabeça, afirma o olhar esconso e fusco,

E vagarosamente, e como a espreguiçar-se,

Desenrodilha o corpo e apresta o salto brusco.

 

Na sombra eternamente apagada, noturna,

De fundos socavões virgens da luz solar,

Em cada gruta, em cada escuro, em cada furna,

Relampejam fuzis nos olhos de um jaguar

 

 

IV

 

Depois da mata escura, o campo undoso e verde,

Banhado em sol, fechado em céu ao longe; e assim

Tão vasto e nu, que o olhar se fatiga e se perde

Num esplendor sem sombra e num ermo sem fim.

 

Paira, grassa em redor, toda a melancolia

De uma paisagem morta, igual, deserta e imensa,

Pondo nos olhos e nas almas que enfastia

Um peso ainda maior que a dor, a indiferença.

 

Desanimado, absorto, ante essa indefinida

Solidão que se espraia além, além, o olhar

Tem a impressão que faz a tristeza da vida:

De ir seguindo, seguindo, e nunca mais voltar.

 

Sobre os dias irão caindo as noites. Vastas

Noites de um céu que é todo azul de lado a lado,

Quando, oh triste luar das planícies, afastas

Ainda mais, ainda mais, o horizonte afastado.

 

V

 

De repente, uma flecha alígera sibila.

De onde veio? Da sombra. E a sombra, de repente,

— Traição da cascavel numa alfombra tranquila —

Principia a silvar com silvos de serpente.

 

Por toda parte a larga escuridão se anima

Desse leve rumor que espalha a morte, e sai

Do chão e voa, ou vem rastejante, ou, de cima,

Salpicado, vivaz, como um granizo, cai.

 

Bruscamente borbulha em fantasmas a margem

Agitada do rio. O clarão da metralha

Responde à sombra. E de eco em eco a imensa vargem

Reboa de um fragor de guerra e de batalha.

 

Eis o caminho aberto ao triunfo e à conquista.

— Como a corça ferida escapa e foge em vão,

Deixando atrás, deixando, úmida e fresca, a pista

De seu flanco rasgado e sangrando no chão;

 

Fugitiva e dispersa, a turba dos vencidos

Atrai, guia, conduz para a tribo distante,

Para a perdida paz de seus lares traídos,

A guerra, o cativeiro, a morte: o bandeirante.

 

Ferve a luta. De serra a serra voa o rouco

Som da inúbia, acordando ecos e legiões;

Ouriço monstruoso, o sertão, pouco a pouco

Todo se erriça das flechas de cem nações.

 

 

VI

 

Ei-las, as toscas naus de borda rastejante,

À flor das águas, naus de estreitos rios quietos;

Ei-las, prestes a abrir para o sertão distante,

Para assombros de glória, o seu voo de insetos.

 

Apinhem-se na praia os velhos, derramando

De encarquilhadas mãos inúteis para mais

A bênção dos que já se sentem bruxuleando

Aos que lhes vão tornar os nomes imortais.

 

Mães, deixai que, sonhando, a vista embevecida

De vossos filhos pouse, e se ilumine, e aprenda

Nessa formosa folha em que o livro da vida

Tem estrofes de poema e proporções de lenda.

 

Noivas, com os corações envoltos na penumbra

Indecisa do amor que se orgulha e se doe,

Vinde trazer-lhes vosso olhar de que ressumbra

Saudade pelo amante e enlevo pelo herói.

 

Ao largo, enfim! Clarins e buzinas atroam.

E as canoas, na luz da manhã cor de rosa,

Pairam por um momento em pleno rio; aproam

Para o sertão. E rompe a marcha vagarosa.

 

Nos barrancos, até rente d’água investidos

De filhos a sorrir e de mães a chorar,

Lancem as frouxas mãos e os olhos comovidos

O derradeiro adeus e o derradeiro olhar

 

 

VII

 

Longe, na solidão do campo undoso e verde,

O rio serpenteia. Em cada contorção

Mais se afasta. E a fugir, pouco a pouco se perde

No majestoso, vago, infinito sertão.

 


Poemas e Poesias quarta, 11 de dezembro de 2019

MONJOLO (POEMA DO GAÚCHO RAUL BOPP)

MONJOLO 

Raul Bopp

 

Fazenda velha. Noite e dia
Bate-pilão.

Negro passa a vida ouvindo
Bate-pilão.

Relógio triste o da fazenda.
Bate-pilão.

Negro deita. Negro acorda.
Bate-pilão.

Quebra-se a tarde. Ave-Maria.
Bate-pilão.

Chega a noite. Toda a noite
Bate-pilão.

Quando há velório de negro
Bate-pilão.

Negro levado pra cova
Bate-pilão.


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