Almanaque Raimundo Floriano
Fundado em 24.09.2016
(Cultural, sem fins comerciais, lucrativos ou financeiros)
Raimundo Floriano de Albuquerque e Silva, Editor deste Almanaque, também conhecido como Velho Fulô, Palhaço Seu Mundinho e Mundico Trazendowski, nascido em Balsas , Maranhão, a 3 de julho de 1936, Católico Apostólico Romano, Contador, Oficial da Reserva do Exército Brasileiro, Funcionário Público aposentado da Câmara dos Deputados, Titular da Cadeira nº 10 da Academia Passa Disco da Música Nordestina, cuja patrona é a cantora Elba Ramalho, Mestre e Fundador da Banda da Capital Federal, Pesquisador da MPB, especializado em Velha Guarda, Música Militar, Carnaval e Forró, Cardeal Fundador da Igreja Sertaneja, Pioneiro de Brasília, Xerife nos Mares do Caribe, Cordelista e Glosador, Amigo do Rio das Balsas, Inventor da Descida de Boia, em julho de 1952, Amigo da Fanfarra do 1° RCG, autor dos livros O Acordo PDS/PTB, coletânea de charges, Sinais de Revisão e Regras de Pontuação, normativo, Do Jumento ao Parlamento, com episódios da vida real, De Balsas para o Mundo, centrado na navegação fluvial Balsas/Oceano Atlântico, Pétalas do Rosa, saga da Família Albuquerque e Silva, Memorial Balsense, dedicado à história de sua terra natal, e Caindo na Gandaia, humorístico apimentado, é casado, tem quatro filhos, uma nora, dois genros e dois netos e reside em Brasília, Distrito Federal, desde dezembro de 1960.
Poemas e Poesias quarta, 12 de agosto de 2020
AS CASA DA RUA ABÍLIO (POEMA DO FLUMINENSE ALBERTO DE OLIVEIRA)
A CASA DA RUA ABÍLIO
Alberto de Oliveira
A casa que foi minha, hoje é casa de Deus. Traz no topo uma cruz. Ali vivi com os meus, Ali nasceu meu filho; ali, só, na orfandade Fiquei de um grande amor. Às vezes a cidade
Deixo e vou vê-la em meio aos altos muros seus. Sai de lá uma prece, elevando-se aos céus; São as freiras rezando. Entre os ferros da grade, Espreitando o interior, olha a minha saudade.
Um sussurro também, como esse, em sons dispersos, Ouvia não há muito a casa. Eram meus versos. De alguns talvez ainda os ecos falarão,
E em seu surto, a buscar o eternamente belo, Misturados à voz das monjas do Carmelo, Subirão até Deus nas asas da oração.
Poemas e Poesias terça, 11 de agosto de 2020
AMAR A MORTE (POEMA DO MINEIRO AFFONSO ROMANO DE SANT,ANNA)
AMAR A MORTE
Affonso Romano de Sant'Anna
Amar de peito aberto a morte. Não de esguelha, de frente. Amar a morte, digamos, despudoradamente.
Amá-la como se ama uma bela mulher e inteligente.Amá-la diariamente sabendo que por mais que a amemos ela se deitará com uns e outros indiferente.
Poemas e Poesias segunda, 10 de agosto de 2020
COM LICENÇA POÉTICA (POEMA DA MINEIRA ADÉLIA PRADO)
COM LICENÇA POÉTICA
Adélia Prado
Quando nasci um anjo esbelto, desses que tocam trombeta, anunciou: vai carregar bandeira. Cargo muito pesado pra mulher, esta espécie ainda envergonhada. Aceito os subterfúgios que me cabem, sem precisar mentir. Não sou tão feia que não possa casar, acho o Rio de Janeiro uma beleza e ora sim, ora não, creio em parto sem dor. Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina. Inauguro linhagens, fundo reinos -- dor não é amargura. Minha tristeza não tem pedigree, já a minha vontade de alegria, sua raiz vai ao meu mil avô. Vai ser coxo na vida é maldição pra homem. Mulher é desdobrável. Eu sou.
Poemas e Poesias domingo, 09 de agosto de 2020
ASPIRAÇÃO (POEMA DA CARIOCA ADALGISA NERY)
ASPIRAÇÃO
Adalgisa Nery
Desejo de desmontar meu corpo
E atirá-lo aos quatro ventos do mundo,
De enfrentar a luz do sol
Até que seu calor pulverize meus ossos,
De atirar-me no oceano
Até que o batimento de suas águas
Transforme meus cabelos em algas perdidas,
De gritar contra as montanhas
Até que o eco se ausente de minha voz,
De matar a consciência de mim mesma
Até que eu possa viver.
Poemas e Poesias sábado, 08 de agosto de 2020
O DIA DA CRIAÇÃO (POEMA DO CARIOCA VINÍCIUS DE MORAES)
O DIA DA CRIAÇÃO
Vinícius de Moraes
Rio de Janeiro , 1946
Macho e fêmea os criou. Bíblia: Gênese, 1, 27
I
Hoje é sábado, amanhã é domingo A vida vem em ondas, como o mar Os bondes andam em cima dos trilhos E Nosso Senhor Jesus Cristo morreu na Cruz para nos salvar.
Hoje é sábado, amanhã é domingo Não há nada como o tempo para passar Foi muita bondade de Nosso Senhor Jesus Cristo Mas por via das dúvidas livrai-nos meu Deus de todo mal.
Hoje é sábado, amanhã é domingo Amanhã não gosta de ver ninguém bem Hoje é que é o dia do presente O dia é sábado.
Impossível fugir a essa dura realidade Neste momento todos os bares estão repletos de homens vazios Todos os namorados estão de mãos entrelaçadas Todos os maridos estão funcionando regularmente Todas as mulheres estão atentas Porque hoje é sábado.
II
Neste momento há um casamento Porque hoje é sábado. Há um divórcio e um violamento Porque hoje é sábado. Há um homem rico que se mata Porque hoje é sábado. Há um incesto e uma regata Porque hoje é sábado. Há um espetáculo de gala Porque hoje é sábado. Há uma mulher que apanha e cala Porque hoje é sábado. Há um renovar-se de esperanças Porque hoje é sábado. Há uma profunda discordância Porque hoje é sábado. Há um sedutor que tomba morto Porque hoje é sábado. Há um grande espírito de porco Porque hoje é sábado. Há uma mulher que vira homem Porque hoje é sábado. Há criancinhas que não comem Porque hoje é sábado. Há um piquenique de políticos Porque hoje é sábado. Há um grande acréscimo de sífilis Porque hoje é sábado. Há um ariano e uma mulata Porque hoje é sábado. Há uma tensão inusitada Porque hoje é sábado. Há adolescências seminuas Porque hoje é sábado. Há um vampiro pelas ruas Porque hoje é sábado. Há um grande aumento no consumo Porque hoje é sábado. Há um noivo louco de ciúmes Porque hoje é sábado. Há um garden-party na cadeia Porque hoje é sábado. Há uma impassível lua cheia Porque hoje é sábado. Há damas de todas as classes Porque hoje é sábado. Umas difíceis, outras fáceis Porque hoje é sábado. Há um beber e um dar sem conta Porque hoje é sábado. Há uma infeliz que vai de tonta Porque hoje é sábado. Há um padre passeando à paisana Porque hoje é sábado. Há um frenesi de dar banana Porque hoje é sábado. Há a sensação angustiante Porque hoje é sábado. De uma mulher dentro de um homem Porque hoje é sábado. Há a comemoração fantástica Porque hoje é sábado. Da primeira cirurgia plástica Porque hoje é sábado. E dando os trâmites por findos Porque hoje é sábado. Há a perspectiva do domingo Porque hoje é sábado.
III
Por todas essas razões deverias ter sido riscado do Livro das Origens, ó Sexto Dia da Criação. De fato, depois da Ouverture do Fiat e da divisão de luzes e trevas E depois, da separação das águas, e depois, da fecundação da terra E depois, da gênese dos peixes e das aves e dos animais da terra Melhor fora que o Senhor das Esferas tivesse descansado. Na verdade, o homem não era necessário Nem tu, mulher, ser vegetal, dona do abismo, que queres como as plantas, imovelmente e nunca saciada Tu que carregas no meio de ti o vórtice supremo da paixão. Mal procedeu o Senhor em não descansar durante os dois últimos dias Trinta séculos lutou a humanidade pela semana inglesa Descansasse o Senhor e simplesmente não existiríamos Seríamos talvez pólos infinitamente pequenos de partículas cósmicas em queda invisível na terra. Não viveríamos da degola dos animais e da asfixia dos peixes Não seríamos paridos em dor nem suaríamos o pão nosso de cada dia Não sofreríamos males de amor nem desejaríamos a mulher do próximo Não teríamos escola, serviço militar, casamento civil, imposto sobre a renda e missa de sétimo dia, Seria a indizível beleza e harmonia do plano verde das terras e das águas em núpcias A paz e o poder maior das plantas e dos astros em colóquio A pureza maior do instinto dos peixes, das aves e dos animais em cópula. Ao revés, precisamos ser lógicos, freqüentemente dogmáticos Precisamos encarar o problema das colocações morais e estéticas Ser sociais, cultivar hábitos, rir sem vontade e até praticar amor sem vontade Tudo isso porque o Senhor cismou em não descansar no Sexto Dia e sim no Sétimo E para não ficar com as vastas mãos abanando Resolveu fazer o homem à sua imagem e semelhança Possivelmente, isto é, muito provavelmente Porque era sábado.
Poemas e Poesias sexta, 07 de agosto de 2020
CANTIGA (DEIXA QUE EU TE FALE, DEIXA) - POEMA DO PAULISTA VICENTE DE CARVALHO
CANTIGA (DEIXA QUE EU TE FALE, DEIXA)
Vicente de Carvalho
Deixa que eu te fale, deixa Que o meu verso dolorido Vá murmurar-te uma queixa No ouvido.
Eu te amo tanto... Perdoa! Por mais que a recalco e esmago-a, Foge, abre as asas e voa A mágoa
Já bastante me atormento De amar e não ser amado; E calar é sofrimento Dobrado.
Os amores infelizes — Tristes roseiras sem rosas — São como aquelas raízes Teimosas
Que um vaso estreito encarcera E que, num sonho constante, Aspiram à primavera Distante:
Crescem, a terra solapam, E, do vaso que partiram, Por entre as frinchas escapam, Respiram...
Assim o amor sem ventura — Raiz na terra escondida — Abafa, anseia, procura Saída...
Sei que debalde te estendo A mão, a mão de mendigo: Ouves sorrindo o que eu digo Gemendo;
Bem sei... E se em voz magoada Assim te digo que te amo, Eu que nada espero, e nada Reclamo,
É que demais me atormento De amar e não ser amado, E calar é sofrimento Dobrado.
Poemas e Poesias quarta, 05 de agosto de 2020
AS MÃOS QUE SE PROCURAM (POEMA DO MINEIRO PAULO MENDES CAMPOS)
AS MÃOS QUE SE PROCURAM
Paulo Mendes Campos
Quando o olhar adivinhando a vida Prende-se a outro olhar de criatura O espaço se converte na moldura O tempo incide incerto sem medida
As mãos que se procuram ficam presas Os dedos estreitados lembram garras Da ave de rapina quando agarra A carne de outras aves indefesas
A pele encontra a pele e se arrepia Oprime o peito o peito que estremece O rosto o outro rosto desafia
A carne entrando a carne se consome Suspira o corpo todo e desfalece E triste volta a si com sede e fome.
Poemas e Poesias terça, 04 de agosto de 2020
SPES UNICA! (POEMA DO CEARENSE QUINTINO CUNHA)
SPES UNICA!
Quitino Cunha
Morto, dentro da fria sepultura,
Sem te poder falar?
E tu que me amas, boa criatura,
Indo me visitar...
Banhada de suspiros, de soluços,
Desmaiada, talvez...
Muita vez reclinada, até de bruços,
Na altura dos meus pés...
Pedindo a Deus o meu viver eterno
Junto das glórias suas;
Que me livre das penas do inferno,
E a chorar continuas,
Lembrando nossa vida, a todo instante,
Repassada de dor...
A lembrar-te que fui o teu amante
— O teu único amor!
Mal pensando na horrífica caveira,
Em que me transformei,
Exausto de fadiga, de canseira,
Imaginar não sei...
Para evitar essa hora amargurada,
Esse quadro de dor, tão verdadeiro,
Deus há de ser servido, minha amada,
Que tu morras primeiro!...
Poemas e Poesias segunda, 03 de agosto de 2020
SE EXISTE INFERNO (POEMA DO CEARENSE PATATIVA DO ASSARÉ)
SE EXISTE INFERNO
Patativa do Assaré
Se existe inferno, como diz a Briba, Se lá de riba é que o castigo vem, Se o esprito vai se derretê queimado, Purgá os pecado que o sujeito tem,
Se os home escravo de ôro, prata e cobre, A quem é pobre com rigor domina, Fazendo tudo contra a baxa crasse, Não vê a face da Visão Divina,
Se é grande crime pro dotô Juiz Traí o país com a crué maliça, Jurgando as causa só do lado oposto, Cuspindo o rosto da fié justiça,
Se é pecado o poderoso rico Fazê fuxico e começá questão, Pra não pagá seu operáro forte, Que enfrenta a morte pra ganhá o pão,
Se o cabra ruim quando morrê padece E triste desce os inferná dregau, Se os anjo preto lá nos tacho ardente Dá banho quente castigando os mau,
Se geme as alma dos pió canaia Nessas fornáia onde o Demônio tá, Nas brasa acesa desse forno imundo, O nosso mundo vai se escangaiá!
Poemas e Poesias domingo, 02 de agosto de 2020
FUNERAL (POEMA DO CEARENSE PADRE ANTÔNIO TOMÁS)
FUNERAL
Padre Antônio Tomás
Vão-na levando para a sepultura, Amortalhada em brancos véus de linho, Dentro de um leve esquife cor de arminho, Ao fulgor da manhã serena e pura.
Carpindo-a segue o vento e, porventura, Para incensá-la agita, de mansinho, Ramos em flor, pendentes do caminho Cheios de sombras e orlas de verdura.
No entanto o louro enxame das abelhas Vai atirando pétalas vermelhas Sobre o caixão franzino que a comporta.
Cai das folhas o orvalho como pranto, E as meigas aves em piedoso canto Rezam contritas sufragando a morta.
Poemas e Poesias sábado, 01 de agosto de 2020
A UM VIOLINISTA (POEMAS DO CARIOCA OLAVO BILAC)
A UM VIOLINISTA
Olavo Bilac
I
Quando do teu violino, as asas entreabrindo Mansamente no espaço, iam-se as notas quérulas, Anjos de olhos azuis, às duas mãos partindo Os seus cofres de pérolas,
- Minhas crenças de amor, esquecidas em calma No fundo da memória, ouvindo-as recebiam Novo alento, e outra vez do oceano de minh'alma, Arquipélago verde, à tona apareciam.
E eu via rutilar o meu amor perdido, Belo, de nova luz e novo encanto cheio, E um corpo, que supunha há muito consumido, Agitar-se de novo e oferecer-me o seio.
Tudo ressuscitava ao teu influxo, artista! E minh'alma revia, alucinada e louca, Olhos, cujo fulgor me entontecia a vista, Lábios, cujo sabor me entontecia a boca.
Oh milagre! E, feliz, ajoelhava-me, em pranto, Como quem, por acaso, um dia, entrando as portas De um cemitério, vai achar vivas a um canto As suas ilusões que acreditava mortas,
E ficava a pensar... como se não partia Essa fraca madeira ao teu toque violento, Quando com tanta febre a paixão se estorcia Dentro do pequenino e frágil instrumento!
Porque, nesse instrumento, unidos num só peito, Todos os corações da terra palpitavam; E havia dentro dele, em lágrimas desfeito, O amor universal de todos os que amavam,
Rio largo de sons, tapetado de flores, A harmonia do céu jorrava ampla e sonora; E, boiando e cantando, alegrias e dores Iam corrente em fora...
A Primavera rindo esfolhava as capelas, E entornava no chão as ânforas cheirosas: E a canção acordava as rosas e as estrelas, E enchia de desejo as estrelas e as rosas.
E a água verde do mar, e a água fresca dos rios, E as ilhas de esmeralda, e o céu resplandecente, E a cordilheira, e o vale, e os matagais sombrios, Crespos, e a rocha bruta exposta ao sol ardente:
- Tudo, ouvindo essa voz, tudo cantava e amava! O amor, caudal de fogo atropelada e acesa, Entrava pelo sangue e pela seiva entrava, E ia de corpo em corpo enchendo a Natureza!
E ei-lo triste, no chão, inanimado e frio, O teu pobre violino, o teu amor primeiro: E inda nas cordas há, como um leve arrepio, A última vibração do arpejo derradeiro...
Como, ígneas e imortais, num redemoinho insano, Longe, a torvelinhar em céus inacessíveis, Pairam constelações virgens do olhar humano, Nebulosas sem fim de mundos invisíveis:
- Assim no teu violino, artista! adormecido À espera do teu arco, em grupos vaporosos, Dorme, como num céu que não alcança o ouvido, Um mundo interior de sons misteriosos...
Suspendam-me ao ar livre esse doce instrumento! Deixem-no ao sol, em glória, em delirante festa! E ele se embeberá dos perfumes que o vento Traz dos frescos desvios do vale e da floresta.
Os pássaros virão tecer nele os seus ninhos! As rosas se abrirão em suas cordas rotas! E ele derramará sobre os verdes caminhos Da antiga melodia as esquecidas notas!
Hão de as aves cantar, hão de cantar as flores... Os astros sorrirão de amor na imensa esfera... E a terra acordará para os novos amores De nova primavera!
II
Porque, como Terpandro acrescentou à lira, Para a tornar mais doce, uma corda mais pura, Que é a corda onde a paixão desprezada suspira, E, em lágrimas, a arder, suspira a desventura;
Também desse instrumento às quatro cordas de ouro, O Desespero, o Amor, a Cólera, a Piedade, - Tu, nobre alma, chorando acrescentaste o choro Eterno e a eterna dor da corda da Saudade
É saudade o que sinto, e me enche de ais a boca, E me arrebata o sonho, e os nervos me fustiga, Quando te ouço tocar: saudade ansiosa e louca Do primitivo amor e da beleza antiga...
Para trás! para trás! Basta um simples arpejo, Basta uma nota só... Todo o espaço estremece: E, dando aos pés do amado o derradeiro beijo Quase morta de dor, Madalena aparece...
Ao luar de Verona, a amorosa cabeça De Julieta desmaia entre os braços do amante: Não tarda que a alvorada em fogo resplandeça, E na devesa em flor a cotovia cante...
Viúva triste, que à paz do claustro pede alivio, Para a sua viuvez, para o seu luto imenso, Branca, sob o livor do escapulário níveo, Heloísa ergue as mãos, numa nuvem de incenso...
E na suave espiral das melodias puras, Vão fugindo, fugindo os vultos infelizes, Mostrando ao meu amor as suas amarguras, Mostrando ao meu olhar as suas cicatrizes.
Canta! o rio de sons que do seio te brota E, entre os parcéis da dor, corre, cascateando, E vai, de vaga em vaga, e vai, de nota em nota, Ao sabor da corrente os sonhos arrastando;
Que pelo vale espalha a cabeleira inquieta, Refrescando os rosais, e, em leve burburinho, Um gracejo segreda a cada borboleta, E segreda um queixume a cada passarinho;
Que a todo o desconforto e a todo o sofrimento Abre maternalmente o regaço das águas, - É o rio perfumado e azul do Esquecimento, Onde se vão banhar todas as minhas mágoas.
Poemas e Poesias sexta, 31 de julho de 2020
ESTÁTUAS PERDIDAS (POEMA DO PAULISTA MENOTTI DEL PICCHIA)
ESTÁTUAS PERDIDAS
Menotti Del Picchia
Há formas irrealizadas de ti no côncavo de minha mão que poderiam fazer cem estátuas. Instantes de felina beleza movimentos bruscos de quem freme ou ou foge às carícias, detalhe do teu corpo esquivo feitos de curvas plásticas e inéditas que ficaram decalcadas na minha pelo, no meu insatisfeito desejo como se eu fosse um molde vivo de obras-primas que esperam ser fundidas em bronze, em verso, em música. Nessas estátuas perdidas vai-se tua própria mocidade porque forma teus instantes de amor que tive em minhas mãos.
Poemas e Poesias quinta, 30 de julho de 2020
CÉREBRO E CORAÇÃO (POEMA DO PERNAMBUCANO MEDEIROS E ALBUQUERQUE)
CÉREBRO E CORAÇÃO
Medeiros e Albuquerque
Eu tenho muita vez a estranha pretensão de me fundir em bronze e aparecer nas praças para poder ouvir da voz das populaças a sincera explosão;
senti-la, quando, em festa, as grandes multidões aclamam doidamente os fortes vencedores, e febris, pelo ar, espalham-se os clamores das nobres ovações;
senti-la, quando o sopro aspérrimo da dor nubla de escuro crepe o lúgubre horizonte e curva para o chão a entristecida fronte do povo sofredor;
poder sempre pairar solenemente em pé, sobre as mágoas cruéis do miserando povo, e ter sempre no rosto, eternamente novo, uma expressão de fé.
E, quando enfim cair do altivo pedestal, à sacrílega mão do bárbaro estrangeiro, meu braço descrever no gesto derradeiro a maldição final.
Poemas e Poesias quarta, 29 de julho de 2020
DA INQUIETA ESPERANÇA (POEMA DO GAÚCHO MÁRIO QUINTANA)
DA INQUIETA ESPERANÇA
Mário Quintana
Bem sabes Tu, Senhor, que o bem melhor é aquele
Que não passa, talvez, de um desejo ilusório.
Nunca me dê o Céu... quero é sonhar com ele
Na inquietação feliz do Purgatório.
Poemas e Poesias segunda, 27 de julho de 2020
CONFISSÃO (POEMA DA MARANHENSE MARIA FIRMINA DOS REIS)
CONFISSÃO
Maria Firmina dos Reis
Embalde, te juro, quisera fugir-te, Negar-te os extremos de ardente paixão: Embalde, quisera dizer-te: - não sinto Prender-me à existência profunda afeição.
Embalde! é loucura. Se penso um momento, Se juro ofendida meus ferros quebrar: Rebelde meu peito, mais ama querer-te, Meu peito mais ama de amor delirar.
E as longas vigílias, - e os negros fantasmas, Que os sonhos povoam, se intento dormir, Se ameigam aos encantos, que tu me despertas, Se posso a teu lado venturas fruir.
E as dores no peito dormentes se acalmam. E eu julgo teu riso credor de um favor: E eu sinto minh'alma de novo exaltar-se, Rendida aos sublimes mistérios do amor.
Não digas, é crime - que amar-te não sei, Que fria te nego meus doces extremos... Eu amo adorar-te melhor do que a vida, melhor que a existência que tanto queremos.
Deixara eu de amar-te, quisera um momento, Que a vida eu deixara também de gozar! Delírio, ou loucura - sou cega em querer-te, Sou louca... perdida, só sei te adorar.
Poemas e Poesias domingo, 26 de julho de 2020
BACANAL (POEMA DO PERNAMBUCANO MANUEL BANDEIRA)
BACANAL
Manuel Bandeira
Quero beber! cantar asneiras No esto brutal das bebedeiras Que tudo emborca e faz em caco... Evoé Baco!
Lá se me parte a alma levada No torvelim da mascarada. A gargalhar em doudo assomo... Evoé Momo!
Lacem-na toda, multicores As serpentinas dos amores, Cobras de lívidos venenos... Evoé Vênus!
Se perguntarem: Que mais queres, Além de versos e mulheres?... - Vinhos!... o vinho que é meu fracco!... Evoé Baco!
O alfanje rútilo da lua, Por degolar a nuca nua Que me alucina e que eu não domo!... Evoé Momo!
A Lira etérea, a grande Lira!... Por que eu extático desfira Em seu louvor versos obscenos. Evoé Vênus!
Poemas e Poesias sábado, 25 de julho de 2020
ENTRADA (POEMA DO MATO-GROSSENSE MANOEL DE BARROS)
ENTRADA
Manuel de Barros
Distâncias somavam a gente para menos. Nossa morada estava tão perto do abandono que dava até para a gente pegar nele. Eu conversava bobagens profundas com os sapos, com as águas e com as árvores. Meu avô abastecia a solidão. A natureza avançava nas minhas palavras tipo assim: O dia está frondoso em borboletas. No amanhecer o sol põe glórias no meu olho. O cinzento da tarde me empobrece. E o rio encosta as margens na minha voz. Essa fusão com a natureza tirava de mim a liberdade de pensar. Eu queria que as garças me sonhassem. Eu queria que as palavras me gorjeassem. Então comecei a fazer desenhos verbais de imagens. Me dei bem. Perdoem-me os leitores desta entrada mas vou copiar de mim alguns desenhos verbais que fiz para este livro. Acho-os como os impossíveis verossímeis de nosso mestre Aristóteles. Dou quatro exemplos: 1) É nos loucos que grassam luarais; 2) Eu queria crescer pra passarinho; 3) Sapo é um pedaço de chão que pula; 4) Poesia é a infância da língua. Sei que os meus desenhos verbais nada significam. Nada. Mas se o nada desaparecer a poesia acaba. Eu sei. Sobre o nada eu tenho profundidades.
Poemas e Poesias sexta, 24 de julho de 2020
RELÍQUIA ÍNTIMA (POEMA DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)
RELÍQUIA ÍNTIMA
Machado de Assis
Ilustríssimo, caro e velho amigo, Saberás que, por um motivo urgente, Na quinta-feira, nove do corrente, Preciso muito de falar contigo.
E aproveitando o portador te digo, Que nessa ocasião terás presente, A esperada gravura de patente Em que o Dante regressa do Inimigo.
Manda-me pois dizer pelo bombeiro Se às três e meia te acharás postado Junto à porta do Garnier livreiro:
Senão, escolhe outro lugar azado; Mas dá logo a resposta ao mensageiro, E continua a crer no teu Machado.
Poemas e Poesias quinta, 23 de julho de 2020
CERIMONIAL (POEMA DO PERNAMBUCANO LUÍS TURIBA)
CERIMONIAL
Luís Turiba
Coloquem Imagine na vitrola
retirem—lhe o coração em frangalhos
e enterrem—no enrolado
na bandeira do Flamengo
Quanto ao resto
corpo — subproduto da vida
qualquer cerimônia (simples) cabe
Afinal
a morte é sempre um gol de placa
aos 45 minutos
do segundo tempo da existência.
No mais: —foi bom ponta-de-lança
Comemorem pois
nada disso lhe pertence mais
Poemas e Poesias quarta, 22 de julho de 2020
BREJAL DOS GUAJAS (POEMA DO MARANHENSE JOSÉ SARNEY)
BREJAL DOS GUAJAS
José Sarney
Brejal, ai meu Brejal, Brejal dos Guajajaras, Morrer em ti, ai Deus, Morrer em ti, ai Deus, Tomara ... Valsa de Zé Binga
Em pace, em pace, em rua, em rua, Ai meu Deus, padecendo sem culpa nenhuma! Incelência do Olho-d’Água Seco
Brejal, Brejal, terra querida, Brejal, ai meu Brejal, Motivo da minha vida, Dizer adeus a ti, ai Deus, Não digo tal ... Valsa de Zé do Bule
Poemas e Poesias terça, 21 de julho de 2020
FOME (POEMA DO ALAGOANO JORGE DE LIMA)
FOME
Jorge de Lima
Vinte séculos de revolução
e inda há fome do pão que é a poesia.
Quando tento saciá-la, tento em vão:
é meu ritmo perene, noite e dia.
Cristo, quero escutar Teu coração:
pendo a cabeça e escuto-o. Essa agonia
de fazer o poema, essa paixão,
na Última Ceia começou. Seria,
um de nós... um de nós era suspeito,
um de nós entre os doze Te trairia.
E sob o peso dessa suspeição,
repousei a cabeça no Teu peito.
E esse ritmo de vida que eu ouvia
era o ritmo de fome deste pão.
Poemas e Poesias segunda, 20 de julho de 2020
FÁBULA DE UM ARQUITETO (POEMA DO PERNAMBUCANO JOÃO CABRAL DE MELO NETO)
FÁBULA DE UM ARQUITETO
João Cabral de Melo Neto
1.
A arquitetura como construir portas, de abrir; ou como construir o aberto; construir, não como ilhar e prender, nem construir como fechar secretos; construir portas abertas, em portas; casas exclusivamente portas e teto. O arquiteto: o que abre para o homem (tudo se sanearia desde casas abertas) portas por-onde, jamais portas-contra; por onde, livres: ar luz razão certa.
2.
Até que, tantos livres o amedrontando, renegou dar a viver no claro e aberto. Onde vãos de abrir, ele foi amurando opacos de fechar; onde vidro, concreto; até refechar o homem: na capela útero, com confortos de matriz, outra vez feto.
Poemas e Poesias domingo, 19 de julho de 2020
AMOR DE FANTASIA (POEMA DO ACRIANO J. G. DE ARAÚJO JORGE)
AMOR DE FANTASIA
J. G. de Araújo Jorge
O pior, para mim, é ter que encontrar-te todo dia, falar contigo como a uma estranha, ver-te linda e distraída, estender-te a mão, em cumprimentos banais, quando tu és afinal (que importa se não sabes?) - a minha Vida...
Em vão me confesso num olhar de ternura que procura teus olhos, além, onde ninguém pode chegar, e o coração se alvoroça! e paro, e me contenho, numa angústia apaixonada... E linda, e distraída, tu nem percebes nada...
Iludo o meu desejo, (esse Fauno em travesti de velho Pierrot) a imaginar mil coisas de poeta e de louco, (Ah! se eu fosse o teu Senhor!) - e te atiro palavras, como serpentinas displicentes, para distrair os outros, os intrusos, - presentes a este singular carnaval do meu amor...
Ah! se soubesses o quanto és minha, nesses instantes proibidos da imaginação, mas profundamente verdadeiros, - tu, linda e distraída, boneca e criança, talvez acendesses, na distancia dos teus olhos para os meus olhos marinheiros e para a minha vida, alguma esperança.
Poemas e Poesias sábado, 18 de julho de 2020
DESDE SEMPRE EM MIM (POEMA DA PAULISTA HILDA HILST)
DESDE SEMPRE EM MIM
Hilda Hilst
Contente. Contente do instante Da ressurreição, das insônias heróicas
Contente da assombrada canção Que no meu peito agora se entrelaça. Sabes? O fogo iluminou a casa. E sobre a claridade do capim Um expandir-se de asa, um trinado
Uma garganta aguda, vitoriosa.
Desde sempre em mim. Desde Sempre estiveste. Nas arcadas do Tempo Nas ermas biografias, neste adro solar No meu mudo momento Desde sempre, amor, redescoberto em mim.
Poemas e Poesias sexta, 17 de julho de 2020
AGRAVOS DE COLOPÊNDIO (POEMA DO PORTUGUÊS GIL VICENTE)
AGRAVOS DE COLOPÊNDIO
Gil Vicente
Agravos de Colopêndio Pois Amor o quis assi, que meu mal tanto me dura, não tardes triste ventura, que a dor não se doi de mi, e sem ti não tenho cura.
Foges-me, sabendo certo que passo perigo marinho, e sem ti vou tão deserto que, quando cuido que acerto, vou mais fora de caminho. Porque tais carreiras sigo, e com tal dita naci nesta vida, em que não vivo, que eu cuido que estou comigo, e ando fora de mi.
Quando falo, estou calado; quando estou, entonces ando; quando ando, estou quedado; quando durmo, estou acordado; quando acordo, estou sonhando; quando chamo, então respondo; quando choro, entonces rio; quando me queimo, hei frio; quando me mostro, me escondo; quando espero, desconfio.
Não sei se sei o que digo, que cousa certa não acerto; se fujo de meu perigo, cada vez estou mais perto de ter mor guerra comigo. Prometem-me uns vãos cuidados mil mundos favorecidos, com que serão descansados; e eu acho-os todos mudados em outros mundos perdidos.
Já não ouso de cuidar, nem posso estar sem cuidado; mato-me por me matar,
onde estou não posso estar sem estar desesperado. Parece-me quanto vejo Tudo triste com rezão: cousas que não vem nem vão essas são as que desejo, e tôdas pena me dão.
Eu remédio não no espero, porque aquela, em que me fundo, pera mi, que tanto a quero, tem o coração de Nero pera me tirar do mundo.
Poemas e Poesias quinta, 16 de julho de 2020
A NOITE DESCE (POEMA DA PORTUGUESA FLORBELA ESPANCA)
A NOITE DESCE
Florbela Espanca
Como pálpebras roxas que tombassem Sobre uns olhos cansados, carinhosas, A noite desce... Ah! doces mãos piedosas Que os meus olhos tristíssimos fechassem!
Assim mãos de bondade me embalassem! Assim me adormecessem, caridosas, E em braçadas de lírios e mimosas, No crepúsculo que desce me enterrassem!
A noite em sombra e fumo se desfaz... Perfume de baunilha ou de lilás, A noite põe-me embriagada, louca!
E a noite voi descendo, muda e calma... Meu doce Amor, tu beijas a minhalma Beijnado nesta hora a minha boca!
Poemas e Poesias quarta, 15 de julho de 2020
VERÃO (POEMA DO MARANHENSE FERREIRA GULLAR)
VERÃO
Ferreira Gullar
Este fevereiro azul como a chama da paixão nascido com a morte certa com prevista duração
deflagra suas manhãs sobre as montanhas e o mar com o desatino de tudo que está para se acabar.
A carne de fevereiro tem o sabor suicida de coisa que está vivendo vivendo mas já perdida.
Mas como tudo que vive não desiste de viver, fevereiro não desiste: vai morrer, não quer morrer.
E a luta de resistência se trava em todo lugar: por cima dos edifícios por sobre as águas do mar.
O vento que empurra a tarde arrasta a fera ferida, rasga-lhe o corpo de nuvens, dessangra-a sobre a Avenida
Vieira Souto e o Arpoador numa ampla hemorragia. Suja de sangue as montanhas, tinge as águas da baía.
E nesse esquartejamento a que outros chamam verão, fevereiro ainda em agonia resiste mordendo o chão.
Sim, fevereiro resiste como uma fera ferida. E essa esperança doida que é o próprio nome da vida.
Vai morrer, não quer morrer. Se apega a tudo que existe: na areia, no mar, na relva, no meu coração – resiste.
Poemas e Poesias terça, 14 de julho de 2020
BRILHA UMA VOZ NA NOUTE (POEMA DO PORTUGUÊS FERNANDO PESSOA)
BRILHA UMA VOZ NA NOUTE
Fernando Pessoa
Brilha uma voz na noute De dentro de Fora ouvi-a... Ó Universo, eu sou-te... Oh, o horror da alegria Deste pavor, do archote Se apagar, que me guia!
Cinzas de idéia e de nome Em mim, e a voz:Ó mundo, Sermente em ti eu sou-me... Mero eco demim, me inundo De ondas de negro lume Em que pra Deus me afundo.
Poemas e Poesias segunda, 13 de julho de 2020
AS HORAS SÃO AMARGAS (POEMA DO GAÚCHO FABRÍCIO CARPINEJAR)
AS HORAS SÃO AMARGAS
Fabrício Carpinejar
As horas são amargas, derradeiras, os anjos perderam
a escala dos teus ouvidos, O destino nos assemelha mais que o nascimento.
Tuas passadas são curtas, o perfil, enviesado. Há uma parelha sendo
levada nas costas. Fermentas o funcho, o fungo e o estrume.
Poemas e Poesias domingo, 12 de julho de 2020
TROVAS HUMORÍSTICAS - 04 - (POEMA DO PARANAENSE ENO TEODORO WANKE)
TROVA HUMORÍSTICA - 04
Eno Teodoro Wanke
Se a formiga é atarefada
De fato, quero que explique:
Então, por que é que a danada
Nunca falta a um piquenique?
Poemas e Poesias sábado, 11 de julho de 2020
ANATHEMA (POEMA DO PIAUIENSE DA COSTA E SILVA)
ANATHEMA
Da Costa e Silva
Persigam-te as prisões fortes do meu ciúme —Invisíveis grilhões de desejo e de zelo: Prendam-te as mãos, os pés, as ondas do cabello, O olhar, o hálito, a voz e o que em ti se resume.
Vibre o som desse andar, vague o doce perfume Dessa carne pagã, causa do meu desvelo, Mando que te acompanhe o eterno pesadelo Deste amor que ainda mais temo em dor se avolume.
Ronda-te o meu olhar, como o olhar de um morcego Varando o brumo véo de uma noite de crime, Prescrutando, a seguir-te —onde chegas eu chego.
Foges? Em vão fugir —o ciúme priva a fuga… E esse amor que te busca e te cerca e te opprime, É o mesmo que me afflige, acobarda e subjuga.
Poemas e Poesias sexta, 10 de julho de 2020
COMO UM CISNE, EST,ALMA FRISA (POEMA DO CATARINENSE CRUZ E SOUSA)
COMO UM CISNE, EST'ALMA FRISA
Cruz e Sousa
Como um cisne, est'alma frisa
O mar de luz de teus olhos,
ó simpática Adalziza
como um cisne, est'alma frisa,
vagueia, paira, desliza
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sem naufragar nos escolhos
como um cisne, est'alma frisa
o mar de luz de teus olhos.
Poemas e Poesias quinta, 09 de julho de 2020
HUMILDADE (POEMA DA GOIANA CORA CORALINA)
HUMILDADE
Cora Coralina
Senhor, fazei com que eu aceite minha pobreza tal como sempre foi.
Que não sinta o que não tenho. Não lamente o que podia ter e se perdeu por caminhos errados e nunca mais voltou.
Dai, Senhor, que minha humildade seja como a chuva desejada caindo mansa, longa noite escura numa terra sedenta e num telhado velho.
Que eu possa agradecer a Vós, minha cama estreita, minhas coisinhas pobres, minha casa de chão, pedras e tábuas remontadas. E ter sempre um feixe de lenha debaixo do meu fogão de taipa, e acender, eu mesma, o fogo alegre da minha casa na manhã de um novo dia que começa.
Poemas e Poesias quarta, 08 de julho de 2020
XCVIII (SONETOS) DESTES PENHASCOS FEZ A NATUREZA
XCVIII (SONETOS) DESTES PENHASCOS FEZ A NATUREZA
Cláudio Manuel da Costa
Destes penhascos fez a natureza O berço, em que nasci: oh quem cuidara, Que entre penhas tão duras se criara Uma alma terna, um peito sem dureza!
Amor, que vence os tigres, por empresa Tomou logo render-me; ele declara Contra o meu coração guerra tão rara, Que não me foi bastante a fortaleza.
Por mais que eu mesmo conhecesse o dano, A que dava ocasião minha brandura, Nunca pude fugir ao cego engano:
Vós, que ostentais a condição mais dura, Temei, penhas, temei; que Amor tirano, Onde há mais resistência, mais se apura.
Poemas e Poesias terça, 07 de julho de 2020
MEU DEUS, ME DÊ A CORAGEM (POEMA DA UCRANIANA-BRASILEIRA CLARICE LISPECTOR)
MEU DEUS, ME DÊ A CORAGEM
Clarice Lispector
Meu Deus, me dê a coragem De viver trezentos e sessenta e cinco dias e noites, Todos vazios de Tua presença. Me dê a coragem de considerar esse vazio Como uma plenitude. Faça com que eu seja a Tua amante humilde, Entrelaçada a Ti em êxtase. Faça com que eu possa falar Com este vazio tremendo E receber como resposta O amor materno que nutre e embala. Faça com que eu tenha a coragem de Te amar, Sem odiar as Tuas ofensas à minha alma e ao meu corpo. Faça com que a solidão não me destrua. Faça com que minha solidão me sirva de companhia. Faça com que eu tenha a coragem de me enfrentar. Faça com que eu saiba ficar com o nada E mesmo assim me sentir Como se estivesse plena de tudo. Receba em teus braços O meu pecado de pensar.
Poemas e Poesias segunda, 06 de julho de 2020
DISCURSO (POEMA DA CARIOCA CECÍLIA MEIRELES)
DISCURSO
Cecília Meireles
E aqui estou, cantando.
Um poeta é sempre irmão do vento e da água: deixa seu ritmo por onde passa.
Venho de longe e vou para longe: mas procurei pelo chão os sinais do meu caminho e não vi nada, porque as ervas cresceram e as serpentes andaram.
Também procurei no céu a indicação de uma trajetória, mas houve sempre muitas nuvens. E suicidaram-se os operários de Babel.
Pois aqui estou, cantando.
Se eu nem sei onde estou, como posso esperar que algum ouvido me escute?
Ah! Se eu nem sei quem sou, como posso esperar que venha alguém gostar de mim?
Poemas e Poesias sábado, 04 de julho de 2020
O SÃO FRANCISCO (28ª PARTE DO POEMA A CACHOEIRA DE PAULO AFONSO, CO BAIANO CASTRO ALVES)
O RIO SÃO FRANCISCO
Castro Alves
(Do poema A Cachoeira de Paulo Afonso)
LONGE, bem longe, dos cantões bravios, Abrindo em alas os barrancos fundos; Dourando o colo aos perenais estios, Que o sol atira nos modernos mundos; Por entre a grita dos ferais gentios, Que acampam sob os palmeirais profundos; Do São Francisco a soberana vaga Léguas e léguas triunfante alaga!
Antemanhã, sob o sendal da bruma, Ele vagia na vertente ainda, — Linfa amorosa — coa nitente espuma Orlava o seio da Mineira linda; Ao meio-dia, quando o solo fuma Ao bafo morto de lia calma infinda, Viram-no aos beijos, delamber demente As rijas formas da cabocla ardente.
Insano amante! Não lhe mata o fogo O deleite da indígena lasciva... Vem — à busca talvez de desafogo Bater à porta da Baiana altiva. Nas verdes canas o gemente rogo Ouve-lhe à tarde a tabaroa esquiva... E talvez por magia à luz da lua Mole a criança na caudal flutua.
Rio soberbo! Tuas águas turvas Por isso descem lentas, peregrinas... Adormeces ao pé das palmas curvas Ao músico chorar das casuarinas! Os poldros soltos — retesando as curvas, — Ao galope agitando as longas crinas, Rasgam alegres — relinchando aos ventos — De tua vaga os turbilhões barrentos.
E tu desces, ó Nilo brasileiro, As largas ipueiras alagando, E das aves o coro alvissareiro Vai nas balças teu hino modilhando! Como pontes aéreas — do coqueiro Os cipós escarlates se atirando, De grinaldas em flor tecendo a arcada São arcos triunfais de tua estrada!...
Poemas e Poesias sexta, 03 de julho de 2020
VIOLETA (POEMA DO FLUMINENSE CASIMIRO DE ABREU)
VIOLETA
Casimiro de Abreu
Sempre teu lábio severo Me chama de borboleta! - Se eu deixo as rosas do prado É só por ti - violeta!
Tu és formosa e modesta, As outras são tão vaidosas! Embora vivas na sombra Amo-te mais do que às rosas.
A borboleta travessa Vive de sol e de flores. - Eu quero o sol de teus olhos, O néctar dos teus amores!
Cativo de teu perfume Não mais serei borboleta; - Deixa eu dormir no teu seio, Dá-me o teu mel - violeta!
Poemas e Poesias quinta, 02 de julho de 2020
ELEGIA PARA A ADOLESCÊNCIA (POEMA DO PERNAMBUCANO CARLOS PENA FILHO_
ELEGIA PARA A ADOLESCÊNCIA
Carlos Pena Filho
E enfim descansaremos sob a verde resistência dos campos escondidos. Nem pensaremos mais no que há-de ser de nós que então seremos definidos.
No mar que nos chamou, no mar ausente, simples e prolongado que supomos seremos atirados de repente, puros e inúteis como sempre fomos.
Veremos que as vogais e as consoantes não são mais que ornamentos coloridos, fruto de nossas bocas inconstantes.
E em silêncio seremos transformados, quando formos, serenos e perdidos, além das coisas vãs precipitados.
Poemas e Poesias quarta, 01 de julho de 2020
A UM AUSENTE (POEMA DO MINEIRO CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE)
A UM AUSENTE
Carlos Drummond de Andrade
Tenho razão de sentir saudade, tenho razão de te acusar. Houve um pacto implícito que rompeste e sem te despedires foste embora. Detonaste o pacto. Detonaste a vida geral, a comum aquiescência de viver e explorar os rumos de obscuridade sem prazo sem consulta sem provocação até o limite das folhas caídas na hora de cair.
Antecipaste a hora. Teu ponteiro enlouqueceu, enlouquecendo nossas horas. Que poderias ter feito de mais grave do que o ato sem continuação, o ato em si, o ato que não ousamos nem sabemos ousar porque depois dele não há nada?
Tenho razão para sentir saudade de ti, de nossa convivência em falas camaradas, simples apertar de mãos, nem isso, voz modulando sílabas conhecidas e banais que eram sempre certeza e segurança.
Sim, tenho saudades. Sim, acuso-te porque fizeste o não previsto nas leis da amizade e da natureza nem nos deixaste sequer o direito de indagar porque o fizeste, porque te foste.
Poemas e Poesias terça, 30 de junho de 2020
SONETO 086 - CARA MINHA INIMIGA, EM CUJA MÃO (POEMA DO PORTUGUÊS LUÍS DE CAMPÕES)
CARA MINHA INIMIGA, EM CUJA MÃO
Soneto 086
Luís de Camões
Cara minha inimiga, em cuja mão Pôs meus contentamentos a ventura, Faltou-te a ti na terra sepultura, Porque me falte a mim consolação.
Eternamente as águas lograrão A tua peregrina fermosura; Mas, enquanto me a mim a vida dura, Sempre viva em minha alma te acharão.
E se meus rudos versos podem tanto Que possam prometer-te longa história Daquele amor tão puro e verdadeiro,
Celebrada serás sempre em meu canto; Porque, enquanto no mundo houver memória, Será a minha escritura o teu letreiro.
Poemas e Poesias segunda, 29 de junho de 2020
SONETO MAÇÔNICO (POEMA DO PORTUGUÊS MANUEL MARIA BARBOSA DU BOCAGE)
SONETO MAÇÔNICO
Bocage
(Grafia original)
Turba esfaimada, multidão canina,
Corja, que tem por deus ou Momo, ou Baccho,
Reina, e decreta nos covis de Caco
Ignorancia daqui, dalli rapina:
Colhe de alto systema e lei divina
Imaginario jus, com que encha o sacco;
Textos gagueja em vão Doutor macaco
Por ouro, que promette alma sovina:
Circulo umbroso de venaes pedantes,
Com torpe astucia de maligna zorra
Usurpa nome excelso, e graus flammantes:
Ora mijei na sucia, inda que eu morra
Corno, arrocho, bambu nos elephantes,
Cujo vulto é de anões, a tromba é porra!
Poemas e Poesias domingo, 28 de junho de 2020
AMADA HIJA (POEMA DA MINEIRA BÁRBARA HELIODORA)
AMADA HIJA
Bárbara Heliodora
Amada hija, ya es llegado el dia
En que la luz de la razón, como antorcha encendida,
Viene a conducir a la simple naturaleza;
Es hoy cuando tu mundo da principio.
La mano, que te ha formado, guía tus pasos,
Desprecia ofertas de belleza vana
Y sacrifica honras y riquezas
A las santas leyes del Hijo de María.
Imprime caridad en tu alma,
Que a amar a Dios y a nuestros semejantes
Son eternos preceptos de verdad.
Lo demás son ideas delirantes;
Procura ser feliz en lo eerno,
Que el mundo son brevísimos instantes.
Poemas e Poesias sábado, 27 de junho de 2020
DUAS ESTROFES (POEMA DO CAPIXABA AUGUSTO DOS ANJOS)
DUAS ESTROFES
Augusto dos Anjos
A queda do teu lírico arrabil De um sentimento português ignoto Lembra Lisboa, bela como um brinco, Que um dia no ano trágico de mil E setecentos e cincoenta e cinco, Foi abalada por um terremoto!
A água quieta do Tejo te abençoa. Tu representas toda essa Lisboa De glórias quase sobrenaturais, Apenas com uma diferença triste, Com a diferença que Lisboa existe E tu, amigo, não existes mais!
Poemas e Poesias sexta, 26 de junho de 2020
NANA, NANANA (POEMA DO PERNAMBUCANO ASCENSO FERREIRA)
NANA, NANANA
Ascenso Ferreira
Sentes que a minha vida é um rio caudaloso, tomado do delírio das enchentes, correndo alucinado para o mar! E te assombras, com medo dos abismos, onde as águas nos seus loucos paroxismos te possam arrastar...
No entanto, sobre a flor dessas águas tempestuosas, leve com as espumas vaporosas, hás de sempre boiar...
Sentindo a sensação deliciosa de que as águas arrogantes, tumultuosas, estão cantando para te ninar.
Poemas e Poesias quinta, 25 de junho de 2020
MISERÁVEL (POEMA DO MARANHENSE ARTHUR AZEVEDO)
MISERÁVEL
Arthur Azevedo
A Carvalho Junior.
O noivo, como noivo, é repugnante: Materialão, estúpido, chorudo, Arrotando, a propósito de tudo, O ser comendador e negociante.
Tem a viuvinha, a noiva interessante, Todo o arsenal de um poeta guedelhudo: Alabastro, marfim, coral, veludo, Azeviche, safira e tutti quanti.
Da misteriosa alcova a porta geme, O noivo dorme n'um lençol envolto... Entra a viuvinha, a noiva... Oh, céu, contém-me!
Ela deita-se... espera... Qual! Revolto, O leito estala... Ela suspira... freme..., E o miserável dorme a sono solto!..
Poemas e Poesias quarta, 24 de junho de 2020
ABERTURA SOB PEDE DE OVELHA (POEMA DO PARAIBANO ARIANO SUASSUNA)
ABERTURA SOB PELE DE OVELHA
Ariano Suassuna
Falso Profeta, insone, Extraviado, vivo, Cego, a sondar o Indecifrável: e, jaguar da Sibila — inevitável, meu Sangue traça a rota deste Fado.
Eu, forçado a ascender, eu, Mutilado, busco a Estrela que chama, inapelável. E a Pulsação do Ser, Fera indomável, arde ao sol do meu Pasto — incendiado.
Por sobre a Dor, a Sarça do Espinheiro que acende o estranho Sol, sangue do Ser, transforma o sangue em Candelabro e Veiro.
Por isso, não vou nunca envelhecer: com meu Cantar, supero o Desespero, sou contra a Morte e nunca hei de morrer.
Poemas e Poesias terça, 23 de junho de 2020
CANTO PRIMEIRO (POEMA DO PAULISTA ÁLVARES DE AZEVEDO)
CANTO PRIMEIRO
Álvares de Azevedo
XIV
Escutai-me, leitor, a minha história, E'fantasia sim, porém amei-a. Sonhei-a em sua palidez marmórea Como a ninfa que volve-se na areia Co'os lindos seios nus... Não sonho glória; Escrevi porque a alma tinha cheia — Numa insônia que o spleen entristecia — De vibrações convulsas de ironia!
XV
Mas não vos pedirei perdão contudo Se não gostais desta canção sombria Não penseis que me enterre longo estudo Por vossa alma fartar de outra harmonia! Se vario no verso e idéias mudo E'que assim me desliza a fantasia... Mas a crítica, não ... eu rio dela... Prefiro a inspiração de noite bela!
XVI
A crítica é uma bela desgraçada Que nada cria nem jamais criara; Tem entranhas de areia regelada: E'a esposa de Abrão, a pobre Sara Que nunca foi por Anjo fecundada: Qual a mãe que por ela assassinara Por sua inveja e vil desesperança Dos mais santos amores a criança!
(...)
XXIV
Meu herói é um moço preguiçoso Que viveu e bebia porventura Como vós, meu leitor... se era formoso Ao certo não o sei. Em mesa impura Esgotara com lábio fervoroso Como vós e como eu a taça escura. Era pálido sim... mas não d'estudo: No mais... era um devasso e disse tudo!
XXV
Dizer que era poeta — é cousa velha: No século da luz assim é todo. O que herói de novelas assemelha. Vemos agora a poesia a rodo! Nem há nos botequins face vermelha, Amarelo caixeiro, alma de lodo, Nem Bocage d'esquina, vate imundo, Que não se creia um Dante vagabundo!
XXVI
O meu não era assim: não se imprimia, Nem versos no teatro declamava! Só quando o fogo do licor corria Da fronte no palor que avermelhava, Com as convulsas mãos a taça enchia. Então a inspiração lhe afervorava E do vinho no eflúvio e nos ressábios Vinha o fogo do gênio à flor dos lábios!
(...)
XXXII
Olvidei a canção: só lembro dela Que d'alma a languidez a estremecia: Como um anjo num sonho de donzela Sobre o peito a guitarra lhe gemia! E quando à frouxa lua, da janela, Cheia a face de lágrimas erguia, Como as brisas do amor lhe palpitavam Os lábios no palor que bafejavam!
XXXIII
Amar, beber, dormir, eis o que amava: Perfumava de amor a vida inteira, Como o cantor de Don Juan pensava Que é da vida o melhor a bebedeira... E a sua filosofia executava... Com Alfredo Musset, a tanta asneira Acrescento porém... juro o que digo! Não se parece Jônatas comigo.
XXXIV
Prometi um poema, e nesse dia Em que a tanto obriguei a minha idéia Não prometi por certo a biografia Do sublime cantor desta Epopéia Consagro a outro fim minha harmonia... Por favor cantarei nesta Odisséia De Jônatas a glória não sabida... Mas não quero contar a minha vida.
XXXV
Basta! foi longo o prólogo! confesso! Mas é preciso à casa uma fachada, À fronte da mulher um adereço, No muro um lampião à torta escada! E agora desse canto me despeço Com a face de lágrimas banhada, Qual o moço Don Juan no enjôo rola Chorando sobre a carta da Espanhola.
Poemas e Poesias segunda, 22 de junho de 2020
A MARIA IFIGÊNIA (POEMA DO CARIOCA ALVARENGA PEIXOTO)
A MARIA IFIGÊNIA
Alvarenga Peixoto
A MARIA IFIGÊNIA
Em 1786, quando completava sete anos.
Amada filha, é já chegado o dia, Em que a luz da razão, qual tocha acesa, Vem conduzir a simples natureza: — É hoje que teu mundo principia.
A mão que te gerou, teus passos guia; Despreza ofertas de uma vã beleza, E sacrifica as honras e a riqueza Às santas leis do Filho de Maria.
Estampa na tu alma a Caridade, Que amar a Deus, amar aos semelhantes, São eternos preceitos de verdade;
Tudo o mais são idéias delirantes; Procura ser feliz na Eternidade, Que o mundo são brevíssimos instantes.
Poemas e Poesias domingo, 21 de junho de 2020
SALDOS DA NOITE (POEMA DO MINEIRO ALPHONSUS GUIMARAENS)
SALDOS DA NOITE
Alphonsus Guimaraens
Ó minha amante, eu quero a volúpia vermelha Nos teus braços febris receber sobre a boca; Minh'alma, que ao calor dos teus lábios se engelha E morre, há de cantar perdidamente louca.
O peito, que a uma furna escura se assemelha, De mágicos florões o teu olhar me touca; Ao teu lábio que morde e tem mel como a abelha, Dei toda a vida... e eterna ela seria pouca.
Ao teu olhar, oceano ora em calma ora em fúria, Canta a minha paixão um salmo fundo e terno, Como o ganido ao luar de uma cadela espúria...
— Salmo de tédio e dor, hausteante, negro e eterno, E no entanto eu te sigo, ó verme da luxúria, E no entanto eu te adoro, ó céu do meu inferno!
Poemas e Poesias sábado, 20 de junho de 2020
A CANCELA DA ESTRADA (POEMA DO FLUMINENSE ALBERTO DE OLIVEIRA)
A CANCELA DA ESTRADA
Alberto de Oliveira
Bate a cancela da estrada Constantemente.
Cavaleiro, à disparada, Lá vai no cavalo ardente. Cavaleiro em descuidada Marcha, lá vem indolente.
Passa, ondeia levantada A poeira, toldando o ambiente.
Bate a cancela da estrada Constantemente.
Bate, e exaspera-se e brada Ou chora contra o batente: (Ninguém lhe ouve na arrastada, Roufenha voz o que sente)
— "Minha vida desgraçada Repouso não me consente; Vivo a bater nesta estrada Constantemente."
Moços, moças, de tornada De alguma festa, em ridente Chusma inquieta e alvoroçada, Passaram ruidosamente.
Desta inda se ouve a risada, Daquele o beijo... Plangente
Bate a cancela da estrada Constantemente.
Agora, é noiva coroada De capela alvinitente; Segue o noivo a sua amada, Um carro atrás, outro à frente.
Agora, é uma cruz alçada... Um enterro. Quanta gente!
Bate a cancela da estrada Constantemente.
Bate ao vir a madrugada, Bate, ao ir-se o sol no poente; (Das sombras pela calada Seu bater é mais dolente)
Bate, se é noite enluarada, Se escura é a noite e silente;
Bate a cancela da estrada Constantemente.
Nossa vida é aquela estrada, Com os que passam diariamente E após si da caminhada A poeira deixam somente.
Coração, como a cansada Cancela de som gemente,
Bates a tua pancada Constantemente.
Poemas e Poesias sexta, 19 de junho de 2020
A PRIMEIRA VEZ QUE ENTENDI (POEMA DO MINEIRO AFFONSO ROMANO DE SANT,ANNA
A PRIMEIRA VEZ QUE ENTENDI
Affonso Romano de Sant'Anna
A primeira vez que entendi do mundo alguma coisa foi quando na infância cortei o rabo de uma lagartixa e ele continuou se mexendo.
De lá pra cá fui percebendo que as coisas permanecem vivas e tortas que o amor não acaba assim que é difícil extirpar o mal pela raiz.
A segunda vez que entendi do mundo alguma coisa foi quando na adolescência me arrancaram do lado esquerdo três certezas e eu tive que seguir em frente.
De lá pra cá aprendi a achar no escuro o rumo e sou capaz de decifrar mensagens seja nas nuvens ou no grafite de qualquer muro.
Poemas e Poesias quinta, 18 de junho de 2020
CASAMENTO (POEMA D AMINEIRA ADÉLIA PRADO)
CASAMENTO
Adélia Prado
Há mulheres que dizem: Meu marido, se quiser pescar, pesque, mas que limpe os peixes. Eu não. A qualquer hora da noite me levanto, ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar. É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha, de vez em quando os cotovelos se esbarram, ele fala coisas como “este foi difícil” “prateou no ar dando rabanadas” e faz o gesto com a mão. O silencio de quando nos vimos a primeira vez atravessa a cozinha como um rio profundo. Por fim, os peixes na travessa, vamos dormir. Coisas prateadas espocam: somos noivo e noiva.
Poemas e Poesias quarta, 17 de junho de 2020
ABANDONO (POEMA DA CARIOCA ADALGISA NERY)
ABANDONO
Adalgisa Nery
A exaustão faminta Procura elementos ainda vivos no meu ser Talvez guardados em escuros vácuos Que carrego sem saber. Alimenta-se do sopro das imagens Desenhadas pela minha imaginação Pelo tato dos meus sentimentos, Pelo pânico do desconhecido. Aparece como febre constante dilatando as minhas carnes Descoloridas e sem sabor de vida. A exaustão sobre pelos meus pés, Cobre os meus gestos incipientes, Prende a minha língua, Suga o meu cérebro, ninho de aranhas em fogo, Pousa no meu cabelo como morcego. Exaustão que funga o ar, que saqueia o meu silêncio, Último repouso nos meus vácuos devassados.
Poemas e Poesias terça, 16 de junho de 2020
A CIDADE EM PROGRESSO (POEMA DO CARIOCA VINÍCIUS DE MORAES)
A CIDADE EM PROGRESSO
Vinícius de Moraes
A cidade mudou. Partiu para o futuro Entre semoventes abstratos Transpondo na manhã o imarcescível muro Da manhã na asa dos DC-4s
Comeu colinas, comeu templos, comeu mar Fez-se empreiteira de pombais De onde se vêem partir e para onde se vêem voltar Pombas paraestatais.
Alargou os quadris na gravidez urbana Teve desejos de cúmulos
A cidade mudou. Partiu para o futuro Entre semoventes abstratos Transpondo na manhã o imarcescível muro Da manhã na asa dos DC-4s
Comeu colinas, comeu templos, comeu mar Fez-se empreiteira de pombais De onde se vêem partir e para onde se vêem voltar Pombas paraestatais.
Alargou os quadris na gravidez urbana Teve desejos de cúmulos
Poemas e Poesias segunda, 15 de junho de 2020
CAIR DAS FOLHAS (POEMA DO PAULISTA VICENTE DE CARVALHO)
CAIR DAS FOLHAS
Vicente de Carvalho
“Deixa-me, fonte”! Dizia A flôr, tonta de terror. E a fonte, sonora e fria, Cantava, levando a flor.
“Deixa-me, deixa-me, fonte!”” Dizia a flor a chorar: “Eu fui nascida no monte... “Não me leves para o mar”.
E a fonte, rapida e fria, Com um sussurro zombador, Por sobre a areia corria, Corria levando a flôr.
“Ai, balanços do meu galho, “Balanços do berço meu; “Ai, claras gotas de orvalho “Caídas do azul do céu!...”
Chorava a flor, e gemia, Branca, branca de terror, E a fonte sonora e fria, Rolava, levando a flor.
“Adeus, sombra das ramadas, “Cantigas do rouxinol; “Ai, festa das madrugadas, “Doçuras do pôr do sol;
“Caricia das brizas leves “Que abrem rasgões de luar... “Fonte, fonte, não me leves, “Não me leves para o mar!...”
* As correntezas da vida E os restos do meu amor Resvalam numa descida Como a da fonte e da flor...
Poemas e Poesias domingo, 14 de junho de 2020
AMOR CONDUSSE NOI AD NADA (POEMA DO MINEIRO PAULO MENDES CAMPOS)
AMOR CONDUSSE NOI AD NADA
Paulo Mendes Campos
Quando o olhar adivinhando a vida Prende-se a outro olhar de criatura O espaço se converte na moldura O tempo incide incerto sem medida
As mãos que se procuram ficam presas Os dedos estreitados lembram garras Da ave de rapina quando agarra A carne de outras aves indefesas
A pele encontra a pele e se arrepia Oprime o peito o peito que estremece O rosto a outro rosto desafia
A carne entrando a carne se consome Suspira o corpo todo e desfalece E triste volta a si com sede e fome.
Poemas e Poesias sábado, 13 de junho de 2020
SACRIFÍCIO (POEMA DO CEARENSE QUINTINO CUNHA)
SACRIFÍCIO
Quintino Cunha
Do alto andar de um arranha-céu fraqueja
E rui um andaime que se despedaça
Todo infortúnio por maior que ele seja
Não será pior que essa desgraça
E vê-se então: Oh, santa maravilha!
Dois operários presos deste modo:
Ambos seguros por um cabo de manilha
Fraco, ameaçando rebentar-se todo.
Um pelo menos salvar-se-ia à vinda
De um socorro qualquer nesse transporte
Mas o heroísmo não esqueceu ainda
Quem com amor e coragem enfrenta a morte.
E assim nesse dilema derradeiro
Onde só um podia salvar-se extraordinário...
João – pergunta, resoluto o companheiro
- Qual de nós dois será mais necessário?
Eu tenho quatro filhos é o que João murmura.
- Oh, camarada, então eu te consolo!
E deixou-se cair da imensa altura
Na aspereza sepulcral do solo.
Poemas e Poesias sexta, 12 de junho de 2020
O PAU D,ARCO (POEMA DO CEARENSE PATATIVA DO ASSARÉ) VÍDEO
Poemas e Poesias quarta, 10 de junho de 2020
SÓ (POEMA DO CARIOCA OLAVO BILAC)
SÓ
Olavo Bilac
Este, que um deus cruel arremessou à vida, Marcando-o com o sinal da sua maldição, - Este desabrochou como a erva má, nascida Apenas para aos pés ser calcada no chão.
De motejo em motejo arrasta a alma ferida... Sem constância no amor, dentro do coração Sente, crespa, crescer a selva retorcida Dos pensamentos maus, filhos da solidão.
Longos dias sem sol! noites de eterno luto! Alma cega, perdida à toa no caminho! Roto casco de nau, desprezado no mar!
E, árvore, acabará sem nunca dar um fruto; E, homem, há de morrer como viveu: sozinho! Sem ar! sem luz! sem Deus! sem fé! sem pão! sem lar!
Poemas e Poesias terça, 09 de junho de 2020
CHUVA DE PEDRA (POEMA DO PAULISTA MENOTTI DEL PICCHIA)
CHUVA DE PEDRA
Menotti Del Picchia
O granizo salpica o chão como se as mãos das nuvens quebrassem com estrondo um pedaço de gelo para a salada de frutas do pomares…
O cafezal, numa carreira alucinada, grimpa as lombas de ocre apedrejada matilha de cães verdes… fremem, gotejam eriçadas suas copas como pelos de um animal todo molhado.
O céu é uma pedreira cor de zinco onde estoura dinamite dos coriscos. Rola de fraga em fraga a lasca retumbante de um trovão.
Os riachos correm com seus pés invisíveis e líquidos para o abrigo das furnas. No terreiro, as roupas penduradas nos varais dançam, funambulescas, com as pedradas, numa fila macabra de enforcados!
Poemas e Poesias segunda, 08 de junho de 2020
ARTISTAS (POEMA DO PERNAMBUCANO MEDEIROS E ALBUQUERQUE)
ARTISTAS
Medeiros e Albuquerque
Senhora, eu não conheço a frase almiscarada dos formosos galãs que vão aos teus salões nem conheço também a trama complicada que envolve, que seduz e prende os corações...
Sei que Talma dizia aos juvenis atores que o Sentimento é mau, se é verdadeiro e são... e quem menos sentir os ódios e os rancores mais pode simular das almas a paixão.
E, por isto talvez, eu, que não sou artista, nem nestes versos meus posso infundir calor, desvio-me de ti, fujo de tua vista, porque não sei dizer-te o meu imenso amor.
Poemas e Poesias domingo, 07 de junho de 2020
DA FELICIDADE (POEMA DO GAÚCHO MÁRIO QUINTANA)
DA FELICIDADE
Mário Quintana
Quantas vezes a gente, em busca da ventura, Procede tal e qual o avozinho infeliz: Em vão, por toda parte, os óculos procura Tendo-os na ponta do nariz!
Poemas e Poesias sábado, 06 de junho de 2020
CISMAR (POEMA DA MARANHENSE MARIA FIRMINA DOS REIS)
CISMAR
Maria Firmina dos Reis
À MINHA QUERIDA PRIMA ― BALDUÍNA N. B.
Quando meus olhos lanço sobre o mar,
Augusto ─ o seu império contemplando;
Quer tranquilo murmure ─ ou rebramando,
Expande-se meu peito extasiado.
Corre minh’alma pelo céu vagando,
Sobre seres criados ─ Deus buscando…
E fundo, e deleitoso é meu cismar.
Se ronca a tempestade enegrecida,
Pavoroso trovão rouqueja incerto;
As nuvens se constrangem, o céu aberto
Elétrico clarão vomita escuro:
Ao Deus da criação, ao rei da vida
Elevo o pensamento, e o coração…
Cresce, avulta, e aumenta a cerração
E em meu vago cismar só Deus procuro;
Se plácida no céu correndo vejo
─ A lua ─ o mar, as serras prateando,
Qual áureo diadema cintilando
Em casta fronte de pudica virgem,
Em meu grato cismar só Deus almejo…
Bendiz minh’alma seu poder imenso!
Bendiz o Criador do Orbe extenso,
Que os outros rege ─ que seu trono cingem.
E bendigo depois a minha dor,
Meu duro sofrimento, ─ o meu viver…
Porque pode apagar, fundo sofrer
As feias culpas do existir da terra.
Oh! sim minh’alma te bendiz Senhor.
Quando cismando se recolher triste…
Bendiz o eterno amor, que em ti existe,
O imenso poder que em ti se encerra!!…
Poemas e Poesias sexta, 05 de junho de 2020
AUTORRETRATO (POEMA DO PERNAMBUCANO MANUEL BANDEIRA)
AUTORRETRATO
Manuel Bandeira
Provinciano que nunca soube Escolher bem uma gravata; Pernambucano a quem repugna A faca do pernambucano; Poeta ruim que na arte da prosa Envelheceu na infância da arte, E até mesmo escrevendo crônicas Ficou cronista de província; Arquiteto falhado, músico Falhado (engoliu um dia Um piano, mas o teclado Ficou de fora); sem família, Religião ou filosofia; Mal tendo a inquietação de espírito Que vem do sobrenatural, E em matéria de profissão Um tísico profissional.
Poemas e Poesias quinta, 04 de junho de 2020
DIFÍCIL FOTOGRAFAR O SILÊNCIO (POEMA DO MATO-GROSSENSE MANOEL DE BARROS)
DIFÍCIL FOTOGRAFAR O SILÊNCIO
MANOEL DE BARROS
Difícil fotografar o silêncio. Entretanto tentei. Eu conto: Madrugada, a minha aldeia estava morta. Não se via ou ouvia um barulho, ninguém passava entre as casas. Eu estava saindo de uma festa,. Eram quase quatro da manhã. Ia o silêncio pela rua carregando um bêbado. Preparei minha máquina. O silêncio era um carregador? Estava carregando o bêbado. Fotografei esse carregador. Tive outras visões naquela madrugada. Preparei minha máquina de novo. Tinha um perfume de jasmim no beiral do sobrado. Fotografei o perfume. Vi uma lesma pregada na existência mais do que na pedra. Fotografei a existência dela. Vi ainda um azul-perdão no olho de um mendigo. Fotografei o perdão. Olhei uma paisagem velha a desabar sobre uma casa. Fotografei o sobre. Foi difícil fotografar o sobre. Por fim eu enxerguei a nuvem de calça. Representou pra mim que ela andava na aldeia de braços com Maiakoviski – seu criador. Fotografei a nuvem de calça e o poeta.Ninguém outro poeta no mundo faria uma roupa Mais justa para cobrir sua noiva. A foto saiu legal.
Poemas e Poesias quarta, 03 de junho de 2020
REFLEXO (POEMA DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)
REFLEXO
Machado de Assis
Olha: vem sobre os olhos Tua imagem contemplar, Como as madonas do céu Vão refletir-se no mar Pelas noites de verão Ao transparente luar! Olha e crê que a mesma imagem Com mais ardente expressão Como as madonas no mar Pelas noites de verão, Vão refletir-se bem fundo, Bem fundo — no coração!
Poemas e Poesias terça, 02 de junho de 2020
BORBOLETRAS, BORBOLETREM (POEMA DO PERNAMBUCANO LUÍS TURIBA)
BORBOLETRAS, BORBOLETREM
Luís Turiba
Quando você borboleta Eu te aero o porto Quando você bicicleta Eu me arco e flecha Quando você me poeta Eu te arreio rimas Quando você se planeta Eu te arejo o cosmos Quando você me soletra Eu te armo pousos Quando você se escopeta Eu te arte em balas Quando você biblioteca Eu te aço as bíblias Quando você m’encapeta Eu te a eros gozos
Poemas e Poesias segunda, 01 de junho de 2020
AUTORRETRATO (POEMA DO MARANHENSE JOSÉ SARNEY)
AUTORRETRATO
José Sarney
Bigode, indevassável, eterno, ausente, habita intocável o latifúndio de minha solidão. Menino, moço e velho superpostos, me olho e não me vejo.
Poemas e Poesias domingo, 31 de maio de 2020
ESTE POEMA DE AMOR NÃO É LAMENTO (POEMA DO ALAGOANO JORGE DE LIMA)
ESTE POEMA DE AMOR NÃO É LAMENTO
Jorge de Lima
Este poema de amor não é lamento nem tristeza distante, nem saudade, nem queixume traído nem o lento perpassar da paixão ou pranto que há-de
transformar-se em dorido pensamento, em tortura querida ou em piedade ou simplesmente em mito, doce invento, e exaltada visão da adversidade.
É a memória ondulante da mais pura e doce face (intérmina e tranquila) da eterna bem-amada que eu procuro;
mas tão real, tão presente criatura que é preciso não vê-la nem possuí-la mas procurá-la nesse vale obscuro.
Poemas e Poesias sábado, 30 de maio de 2020
DISCURSO DO CAPIBARIBE (POEMA DO PERNAMBUCANO JOÃO CABRAL DE MELO NETO)
DISCURSO DO CAPIBARIBE
Jõão Cabral de Melo Neto
Aquele rio está na memória como um cão vivo dentro de uma sala. Como um cão vivo dentro de um bolso. Como um cão vivo debaixo dos lençóis, debaixo da camisa, da pele.
Um cão, porque vive, é agudo. O que vive não entorpece. O que vive fere. O homem, porque vive, choca com o que vive. Viver é ir entre o que vive.
O que vive incomoda de vida o silêncio, o sono, o corpo que sonhou cortar-se roupas de nuvens. O que vive choca, tem dentes, arestas, é espesso. O que vive é espesso como um cão, um homem, como aquele rio.
Como todo o real é espesso. Aquele rio é espesso e real. Como uma maçã é espessa. Como um cachorro é mais espesso do que uma maçã. Como é mais espesso o sangue do cachorro do que o próprio cachorro. Como é mais espesso um homem do que o sangue de um cachorro. Como é muito mais espesso o sangue de um homem do que o sonho de um homem.
Espesso como uma maçã é espessa. Como uma maçã é muito mais espessa se um homem a come do que se um homem a vê. Como é ainda mais espessa se a fome a come. Como é ainda muito mais espessa se não a pode comer a fome que a vê.
Aquele rio é espesso como o real mais espesso. Espesso por sua paisagem espessa, onde a fome estende seus batalhões de secretas e íntimas formigas.
E espesso por sua fábula espessa; pelo fluir de suas geleias de terra; ao parir suas ilhas negras de terra.
Porque é muito mais espessa a vida que se desdobra em mais vida, como uma fruta é mais espessa que sua flor; como a árvore é mais espessa que sua semente; como a flor é mais espessa que sua árvore, etc. etc.
Espesso, porque é mais espessa a vida que se luta cada dia, o dia que se adquire cada dia (como uma ave que vai cada segundo conquistando seu voo).
Poemas e Poesias sexta, 29 de maio de 2020
AMO! (POEMA DO ACRIANO J. G. DE ARAÚJO JORGE) - DECLAMAÇÃO
Poemas e Poesias quinta, 28 de maio de 2020
DE TANTO TE PENSAR, SEM NOME, ME VEIO A ILUSÃO. A MESMA ILUSÃO (POEMA DA PAULISTA HILDA HILST)
DE TANTO TE PENSAR, SEM NOME, ME VEIO A ILUSÃO. A MESMA ILUSÃO.
Hilda Hilst
Da égua que sorve a água pensando sorver a lua. De te pensar me deito nas aguadas E acredito luzir e estar atada Ao fulgor do costado de um negro cavalo de cem luas. De te sonhar, Sem Nome, tenho nada Mas acredito em mim o ouro e o mundo. De te amar, possuída de ossos e de abismos Acredito ter carne e vadiar Ao redor dos teus cimos. De nunca te tocar Tocando os outros Acredito ter mãos, acredito ter boca Quando só tenho patas e focinho. Do muito desejar altura e eternidade
Me vem a fantasia de que Existo e Sou. Quando sou nada: égua fantasmagórica Sorvendo a lua n’água”.
Poemas e Poesias quarta, 27 de maio de 2020
A MULHER - I (POEMA DA PORTUGUESA FLORBELA ESPANCA)
A MULHER - I
Florbela Espanca
Um ente de paixão e sacrifício, De sofrimento cheio, eis a mulher! Esmaga o coração dentro do peito, E nem te doas coração, sequer!
Sê forte, corajoso, não fraquejes Na luta: sê em Vénus sempre Marte; Sempre o mundo é vil e infame e os homens Se te sentem gemer hão-de pisar-te!
Se à vezes tu fraquejas, pobrezinho, Essa brancura ideal de puro arminho Eles deixam pra sempre maculada;
E gritam então vis: “Olhem, vejam É aquela a infame!” e apedrejam a pobrezita, a triste, a desgraçada!
Poemas e Poesias terça, 26 de maio de 2020
COISAS DA TERRA (POEMA DO MARANHENSE FERREIRA GULLAR) VÍDEO
Poemas e Poesias segunda, 25 de maio de 2020
BATE A LUZ NO CIMO (POEMA DO PORTUGUÊS FERNANDO PESSOA)
BATE A LUZ NO CIMO
Fernando Pessoa
Bate a luz no cimo
Da montanha, vê...
Sem querer, eu cismo
Mas não sei em quê...
Não sei que perdi
Ou que não achei...
Vida que vivi,
Que mal eu a amei!...
Hoje quero tanto
Que o não posso ter.
De manhã há o pranto
E ao anoitecer.
Tomara eu ter jeito
Para ser feliz...
Como o mundo é estreito,
E o pouco que eu quis!
Vai morrendo a luz
No alto da montanha...
Como um rio a flux
A minha alma banha.
Mas não me acarinha,
Não me acalma nada...
Pobre criancinha
Perdida na estrada!...
Poemas e Poesias domingo, 24 de maio de 2020
A CHUVA É A ÚNICA CHAMA (POEMA DO GAÚCHO FABRÍCIO CARPINEJAR)
A CHUVA É A ÚNICA CHAMA
Fabrício Carpineja
A chuva é a única chama que caminha contra o vento. Refaço seu lastro com a insônia dos sapatos.
Enlouqueço de ternura, indeciso entre o furor e o fulgor. Desperto amarrado em alguma estrela, servindo de referência para o alinhamento das esferas.
Poemas e Poesias sábado, 23 de maio de 2020
TROVAS HUMORÍSTICAS - 03 - (POEMA DO PARANAENSE ENO TEODORO WANKE)
TROVA HUMORÍSTICA - 03
Eno Teodoro Wanke
Para o cliente perplexo
Declara, enfim, o doutor:
"O senhor não tem compexo
Pois e mesmo inferior!"
Poemas e Poesias sexta, 22 de maio de 2020
ADEUS À VIDA (POEMA DO PIAUIENSE DA COSTA E SILVA)
ADEUS À VIDA
Da Costa e Silva
É, então, isso a vida: a nau perdida, Sem bússola e sem leme, aos temporais? A flórea escarpa, de íngreme subida, Da montanha dos risos e dos ais?
É, então, isso a vida: a flor colhida Sobre abismos ocultos e fatais? A quimera da Terra Prometida, No êxodo eterno para o Nunca-Mais?
É, então, isso a vida: o sonho obscuro Dos Ícaros, Jasões e Prometeus, Perdido na celagem do futuro?
É, então, isso a vida? — Vida, adeus! Não é esse o caminho que procuro... Mas seja tudo pelo amor de Deus.
Poemas e Poesias quinta, 21 de maio de 2020
Ó ALZIRA, ALZIRA, ALZIRA (POEMA DO CATARINENSE CRUZ E SOUZA)
Ó ALZIRA, ALZIRA, ALZIRA
Cruz e Sousa
Ó Alzira, Alzira, Alzira, Estrela resplandecente, Resplandecente safira, Ó Alzira, Alzira, Alzira, As vibrações desta lira, Acorda do sono ardente, Ó Alzira, Alzira, Alzira, Estrela resplandecente.
Poemas e Poesias quarta, 20 de maio de 2020
MAS HÁ VIDA (POEMA DA UCRANIANA-BRASILEIRA CLARICE LISPECTOR)
MAS HÁ VIDA
Clarice Lispector
Mas há a vida que é para ser intensamente vivida, há o amor.
Que tem que ser vivido até a última gota. Sem nenhum medo. Não mata.
Poemas e Poesias terça, 19 de maio de 2020
DESPEDIDA (POEMA DA CARIOCA CECÍLIA MEIRELES)
DESPEDIDA
Cecília Meireles
Por mim, e por vós, e por mais aquilo que está onde as outras coisas nunca estão deixo o mar bravo e o céu tranqüilo: quero solidão.
Meu caminho é sem marcos nem paisagens. E como o conheces ? – me perguntarão. – Por não Ter palavras, por não ter imagens. Nenhum inimigo e nenhum irmão.
Que procuras ? Tudo. Que desejas ? – Nada. Viajo sozinha com o meu coração. Não ando perdida, mas desencontrada. Levo o meu rumo na minha mão.
A memória voou da minha fronte. Voou meu amor, minha imaginação… Talvez eu morra antes do horizonte. Memória, amor e o resto onde estarão?
Deixo aqui meu corpo, entre o sol e a terra. (Beijo-te, corpo meu, todo desilusão ! Estandarte triste de uma estranha guerra…) Quero solidão.
Poemas e Poesias domingo, 17 de maio de 2020
A CANOA FANTÁSTICA (27ª PARTE DO POEMA A CACHOEIRA DE PAULO AFONSO, DO BAIANO CASTRO ALVES)
A CANOA FANTÁSTICA
Castro Alves
(Do poema A Cachoeira de Paulo Afonso)
Pelas sombras temerosas Onde vai esta canoa? Vai tripulada ou perdida? Vai ao certo ou vai à toa?
Semelha um tronco gigante De palmeira, que sescoa... No dorso da correnteza, Como bóia esta canoa! ...
Mas não branqueja-lhe a velar Nágua o remo não ressoa! Serão fantasmas que descem Na solitária canoa?
Que vulto é este sombrio Gelado, imóvel, na proa? Dir-se-ia o gênio das sombras Do inferno sobre a canoa! ...
Foi visão? Pobre criança! À luz, que dos astros coa, É teu, Maria, o cadáver, Que desce nesta canoa?
Caída, pálida, branca!... Não há quem dela se doa?!... Vão-lhe os cabelos a rastos Pela esteira da canoa!...
E as flores róseas dos golfos, — Pobres flores da lagoa, Enrolam-se em seus cabelos E vão seguindo a canoa! ...
"
Poemas e Poesias sábado, 16 de maio de 2020
CANTO DE AMOR (POEMA DO FLUMINENSE CASIMIRO DE ABREU)
CANTO DE AMOR
Casimiro de Abreu
A M.***
I Eu vi-a e minha alma antes de vê-la Sonhara-a linda como agora a vi; Nos puros olhos e na face bela, Dos meus sonhos a virgem conheci.
Era a mesma expressão, o mesmo rosto, Os mesmos olhos só nadando em luz, E uns doces longes, como dum desgosto. Toldando a fronte que de amor seduz!
E seu talhe era o mesmo, esbelto, airoso Como a palmeira que se ergue ao ar, Como a tulipa ao pôr-do-sol saudoso, Mole vergando à viração do mar.
Era a mesma visão que eu dantes via, Quando a minha alma transbordava em fé; E nesta eu creio como na outra eu cria, Porque é a mesma visão, bem sei que é!
No silêncio da noite a virgem vinha Soltas as tranças junto a mim dormir; E era bela, meu Deus, assim sozinha No seu sono d'infante inda a sorrir!...
........................
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II Vi-a e não vi-a! Foi num só segundo, Tal como a brisa ao perpassar na flor, Mas nesse instante resumi um mundo De sonhos de ouro e de encantado amor.
O seu olhar não me cobriu d'afago, E minha imagem nem sequer guardou, Qual se reflete sobre a flor dum lago A branca nuvem que no céu passou.
A sua vista espairecendo vaga, Quase indolente, não me viu, ai, não! Mas eu que sinto tão profunda a chaga Ainda a vejo como a vi então.
Que rosto d'anjo, qual estátua antiga No altar erguida, já cabido o véu! Que olhar de fogo, que a paixão instiga? Que níveo colo prometendo um céu.
Vi-a e amei-a, que a minha alma ardente Em longos sonhos a sonhara assim; O ideal sublime, que eu criei na mente, Que em vão buscava e que encontrei por fim!
III P'ra ti, formosa, o meu sonhar de louco E o dom fatal, que desde o berço é meu; Mas se os cantos da lira achares pouco, Pede-me a vida, porque tudo é teu.
Se queres culto - como um crente adoro, Se preito queres - eu te caio aos pés, Se rires - rio, se chorares - choro, E bebo o pranto que banhar-te a tez.
Dá-me em teus lábios um sorrir fagueiro, E desses olhos um volver, um só; E verás que meu estro, hoje rasteiro, Cantando amores s'erguerá do pó!
Vem reclinar-te, como a flor pendida, Sobre este peito cuja voz calei: Pede-me um beijo... e tu terás, querida, Toda a paixão que para ti guardei.
Do morto peito vem turbar a calma, Virgem, terás o que ninguém te dá; Em delírios d'amor dou-te a minha alma, Na terra, a vida, a eternidade - lá!
IV Se tu, oh linda, em chama igual te abrasas, Oh! não me tardes, não me tardes, - vem! Da fantasia nas douradas asas Nós viveremos noutro mundo - além!
De belos sonhos nosso amor povôo, Vida bebendo nos olhares teus; E como a garça que levanta o vôo, Minha alma em hinos falará com Deus!
Juntas, unidas num estreito abraço, As nossas almas uma só serão; E a fronte enferma sobre o teu regaço Criará poemas d'imortal paixão!
Oh! vem, formosa, meu amor é santo, É grande e belo como é grande o mar, E doce e triste como d'harpa um canto Na corda extrema que já vai quebrar!
Oh! vem depressa, minha vida foge... Sou como o lírio que já murcho cai! Ampara o lírio que inda é tempo hoje! Orvalha o lírio que morrendo vai!...
Poemas e Poesias sexta, 15 de maio de 2020
A ALMA DOS VINTE ANOS (POEMA DO FLUMINENSE ALBERTO DE OLIVEIRA)
A ALMA DOS VINTE ANOS
Alberto de Oliveira
A alma dos meus vinte anos noutro dia Senti volver-me ao peito, e pondo fora A outra, a enferma, que lá dentro mora, Ria em meus lábios, em meus olhos ria.
Achava-me ao teu lado então, Luzia, E da idade que tens na mesma aurora; A tudo o que já fui, tornava agora, Tudo o que ora não sou, me renascia.
Ressenti da paixão primeira e ardente A febre, ressurgiu-me o amor antigo Com os seus desvarios e com os seus enganos…
Mas ah! quando te foste, novamente A alma de hoje tornou a ser comigo, E foi contigo a alma dos meus vinte anos.
Poemas e Poesias quinta, 14 de maio de 2020
O DESMANTELO AZUL (POEMA DO PERNAMBUCANO CARLOS PENA FILHO)
SONETO DO DESMANTELO AZUL
Carlos Pena Filho
Então, pintei de azul os meus sapatos por não poder de azul pintar as ruas, depois, vesti meus gestos insensatos e colori as minhas mãos e as tuas,
Para extinguir em nós o azul ausente e aprisionar no azul as coisas gratas, enfim, nós derramamos simplesmente azul sobre os vestidos e as gravatas.
E afogados em nós, nem nos lembramos que no excesso que havia em nosso espaço pudesse haver de azul também cansaço.
E perdidos de azul nos contemplamos e vimos que entre nós nascia um sul vertiginosamente azul. Azul.
Poemas e Poesias quarta, 13 de maio de 2020
A RUA DIFERENTE (POEMA DO MINEIRO CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE )
A RUA DIFERENTE
Carlos Drummond de Andrade
Na minha rua estão cortando árvores Botando trilhos Construindo casas. Minha rua acordou mudada.
Os vizinhos não se conformam. Eles não sabem que a vida tem dessas exigências brutas.
Só minha filha goza o espetáculo e se diverte com os andaimes, a luz da solda autógena e o cimento escorrendo nas formas
Poemas e Poesias terça, 12 de maio de 2020
SONETO 103 - CANTANDO ESTAVA UM DIA BEM SEGURO (POEMA DO PORTUGUÊS LUÍS DE CAMÕES)
CANTANDO ESTAVA UM UM DIA BEM SEGURO
Soneto 103
Luís de Camões
Cantando estava hum dia bem seguro, Quando passava Sylvio, e me dizia: (Sylvio, pastor antiguo que sabia Por o canto das aves o futuro)
Liso, quando quizer o fado escuro, A opprimir-te virão em hum só dia Dous lobos; logo a voz e a melodia Te fugirão, e o som suave e puro.
Bem foi assi; porque hum me degolou Quanto gado vacum pastava e tinha, De que grandes soldadas esperava.
E por mais damno o outro me matou A cordeira gentil, qu'eu tanto amava, Perpétua saudade da alma minha.
Poemas e Poesias segunda, 11 de maio de 2020
SONETO DO RETRATO MAL FALADO (POEMA DO PORTUGUÊS MANUEL MARIA DU BOCAGE)
SONETO DO RETRATO MAL FALADO
Bocage
Esqueleto animal, cara de fome, De Timão, e chapéu à holandesa, Olhos espantadiços, boca acesa, D'onde o fumo, que sai, a todos some:
Milagre do Parnaso em fama e nome, Em corpo galicado alma francesa, Com voz medonha, língua portuguesa, Que aos bocados a honra e brio come:
Toda a moça, que dele se confia, É virgem no serralho do seu peito; Janela, que se fecha, putaria!
Neste esboço o retrato tenho feito; Eis o grande e fatal Manoel Maria, Que até pintado perde o bom conceito.
Poemas e Poesias domingo, 10 de maio de 2020
O MARTÍRIO DO ARTISTA (POEMA DO CAPIXABA AUGUSTO DOS ANJOS)
O MARTÍRIO DO ARTISTA
Augusto dos Anjos
Arte ingrata! E conquanto, em desalento, A órbita elipsoidal dos olhos lhe arda, Busca exteriorizar o pensamento Que em suas fronetais células guarda!
Tarda-lhe a Idéia! A inspiração lhe tarda! E ei-lo a tremer, rasga o papel, violento, Como o soldado que rasgou a farda No desespero do último momento!
Tenta chorar e os olhos sente enxutos!... É como o paralítico que, à míngua Da própria voz e na que ardente o lavra
Febre de em vão falar, com os dedos brutos Para falar, puxa e repuxa a língua, E não lhe vem à boca uma palavra!
Poemas e Poesias sábado, 09 de maio de 2020
MISTICISMO Nº 2 (POEMA DO PERNAMBUCANO ASCENSO FERREIRA)
MISTICISMO N° 2
Ascenso Ferreira
O espirito-mau entrou no meu couro! Entrou no meu couro algum mangangá E eu quero mulheres… Mulheres… Mulheres…
Curibocas! Mamelucas! Cafussus…
Caboclas viçosas de bocas pitangas! Mulatas dengosas caju e cajá!
Mulheres brancas como assucar de primeira! Mulheres macias como a penugem do ingá! Mas sempre mulheres… Mulheres… Mulheres…
(Ou lêlê) Todas formosas, todas belas, todas novas…
(Ou lala)
Deitadas molengas em folhas macias! Na sombra rajada das bananeiras lentas Iluminadas por um sol-das-almas!
Só para eu, devagarinho, fazer com elas!
“Pinicainho da barra do 25 mingorra mingorra tire esta mão que já está forra…”
Poemas e Poesias sexta, 08 de maio de 2020
MILAGRE (POEMA DO MARANHENSE ARTHUR AZEVEDO)
MILAGRE
Arthur Azevedo
Com cinco pães o Cristo Deu de comer a cinco mil pessoas! Eu não me assombro disto, Pois tu, que o meu espírito magoas, Tens um só coração, E amas, contudo, uma população!
Poemas e Poesias quinta, 07 de maio de 2020
A VIAGEM (POEMA DO PARAIBANO ARIANO SUASSUNA)
A VIAGEM
Ariano Suassuna
Meu sangue, do pragal das Altas Beiras, boiou no Mar vermelhas Caravelas: À Nau Catarineta e à Barca Bela late o Potro castanho de asas Negras.
E aportou. Rosas de ouro, azul Chaveira, Onça malhada a violar Cadelas, Depôs sextantes, Astrolábios, velas, No planalto da Pedra sertaneja.
Hoje, jogral Cigano e tresmalhado, Vaqueiro de seu couro cravejado. Com Medalhas de prata, a faiscar,
bebendo o Sol de fogo e o Mundo oco, meu coração é um Almirante louco Que abandonou a profissão do Mar.
Poemas e Poesias quarta, 06 de maio de 2020
NA MÃO DE DEUS (POEMA DO PORTUGUÊS ANTERO DE QUENTAL)
NA MÃO DE DEUS
Antero de Quental
Na mão de Deus, na sua mão direita, Descansou afinal meu coração. Do palácio encantado da Ilusão Desci a passo e passo a escada estreita.
Como as flores mortais, com que se enfeita A ignorância infantil, despojo vão, Depois do Ideal e da Paixão A forma transitória e imperfeita.
Como criança, em lôbrega jornada, Que a mãe leva ao colo agasalhada E atravessa, sorrindo vagamente,
Selvas, mares, areias do deserto... Dorme o teu sono, coração liberto, Dorme na mão de Deus eternamente!
Poemas e Poesias terça, 05 de maio de 2020
CANTIGA DE VIOLA (POEMA DO PAULISTA ÁLVARES DE AZEVEDO)
CANTIGA DE VIOLA
Álvares Azevedo
A existência dolorida Cansa em meu peito: eu bem sei Que morrerei... Contudo da minha vida Podia alentar-se a flor No teu amor!
Do coração nos refolhos Solta um ai! num teu suspiro Eu respiro... Mas fita ao menos teus olhos Sobre os meus... eu quero-os ver Para morrer!
Guarda contigo a viola onde teus olhos cantei... E suspirei! Só a idéia me consola Que morro como vivi... Morro por ti!
Se um dia tu'alma pura Tiver saudades de mim, Meu serafim! Talvez notas de ternura Inspirem o doudo amor Do trovador!
Poemas e Poesias segunda, 04 de maio de 2020
CISNES BRANCOS (POEMA DO MINEIRO ALPHONSUS GUIMARAENS)
CISNES BRANCOS
Alphonsus Guimaraens
Ó cisnes brancos, cisnes brancos, Porque viestes, se era tão tarde? O sol não beija mais os flancos Da Montanha onde mora a tarde.
Ó cisnes brancos, dolorida Minh’alma sente dores novas. Cheguei à terra prometida: É um deserto cheio de covas.
Voai para outras risonhas plagas, Cisnes brancos! Sede felizes... Deixai-me só com as minhas chagas, E só com as minhas cicatrizes.
Venham as aves agoireiras, De risada que esfria os ossos... Minh’alma, cheia de caveiras, Está branca de padre-nossos.
Queimando a carne como brasas, Venham as tentações daninhas, Que eu lhes porei, bem sob asas, A alma cheia de ladainhas.
Ó cisnes brancos, cisnes brancos, Doce afago da alva plumagem! Minh’alma morre aos solavancos Nesta medonha carruagem...
Quando chegaste, os violoncelos Que andam no ar cantaram no hinos. Estrelaram-se todos os castelos, E até nas nuvens repicaram sinos.
Foram-se as brancas horas sem rumo, Tanto sonhadas! Ainda, ainda Hoje os meus pobres versos perfumo Com os beijos santos da tua vinda.
Quando te foste, estalaram cordas Nos violoncelos e nas harpas... E anjos disseram: — Não mais acordas, Lírio nascido nas escarpas!
Sinos dobraram no céu e escuto Dobres eternos na minha ermida. E os pobres versos ainda hoje enluto Com os beijos santos da despedida.
Poemas e Poesias domingo, 03 de maio de 2020
A IMPLOSÃO DA MENTIRA, OU O EPISÓDIO DO RIOCENTRO (POEM DO MINEIRO AFFONSO ROMANO DE SANT,ANNA)
A IMPLOSÃO DA MENTIRA, OU O EPISÓDIO DO RIOCENTRO
Affonso Romano de Sant'Anna
Mentiram-me. Mentiram-me ontem e hoje mentem novamente. Mentem de corpo e alma, completamente. E mentem de maneira tão pungente que acho que mentem sinceramente.
Mentem, sobretudo, impune/mente. Não mentem tristes. Alegremente mentem. Mentem tão nacional/mente que acham que mentindo história afora vão enganar a morte eterna/mente.
Mentem. Mentem e calam. Mas suas frases falam. E desfilam de tal modo nuas que mesmo um cego pode ver a verdade em trapos pelas ruas.
Sei que a verdade é difícil e para alguns é cara e escura. Mas não se chega à verdade pela mentira, nem à democracia pela ditadura.
Poemas e Poesias sexta, 01 de maio de 2020
BILHETE EM PAPEL ROSA (POEMA DA MINEIRA ADÉLIA PRADO)
BILHETE EM PAPEL ROSA
Adélia Prado
Quantas loucuras fiz por teu amor, Antônio. Vê estas olheiras dramáticas, este poema roubado: "o cinamomo floresce em frente ao teu postigo. Cada flor murcha que desce, morro de sonhar contigo". Ó bardo, eu estou tão fraca e teu cabelo tão é negro, eu vivo tão perturbada, pensando com tanta força meu pensamento de amor, que já nem sinto mais fome, o sono fugiu de mim. Me dão mingaus, caldos quentes, me dão prudentes conselhos, eu quero é a ponta sedosa do teu bigode atrevido, a tua boca de brasa, Antônio, as nossas vias ligadas. Antônio lindo, meu bem, ó meu amor adorado, Antônio, Antônio. Para sempre tua.
Poemas e Poesias quinta, 30 de abril de 2020
A UM HOMEM (POEMA DA CARIOCA ADALGISA NERY)
A UM HOMEM
Adalgisa Nery
Quando numa rocha porosa Cansado te encostares E dela vires surgir a umidade e depois a gota, Pensa, amado meu, com carinho, Que aí está a minha boca. Se teus olhos ficarem nas praias E vires o mar ensalivando a areia Com alegria pensa, amado meu, Num corpo feliz Porque é só teu. Se descansares sob uma árvore frondosa
E além da sombra ela te envolver de ar resinoso Lembra-te com entorpecência, amado meu, Da delícia do meu ventre amoroso. Quando olhares o céu E vires a andorinha tonta na amplidão Pensa, amado meu, que assim sou eu Perdida na infindável solidão. A noite quando as trevas chegarem E vires do firmamento Uma estrela cair e se afundar É sinal, amado meu, Que o teu amor vai me abandonar. Na morte, quando perderes o último sentido E a tua própria voz Em forma de pensamento Te subir ao ouvido Deixa escorrer a derradeira lágrima pelo teu rosto Nascida do extremo alento do coração E pensa então, amado meu, Que ainda é um suave carinho da minha mão!
Poemas e Poesias quarta, 29 de abril de 2020
A CIDADE ANTIGA (POEMA DO CARIOCA VINÍCIUS DE MORAES)
A CIDADE ANTIGA
Vinícius de Moraes
Houve tempo em que a cidade tinha pêlo na axila E em que os parques usavam cinto de castidade As gaivotas do Pharoux não contavam em absoluto Com a posterior invenção dos kamikazes De resto, a metrópole era inexpugnável Com Joãozinho da Lapa e Ataliba de Lara.
Houve tempo em que se dizia: LU-GO-LI-NA U, loura; O, morena; I, ruiva; A, mulata! Vogais! tônico para o cabelo da poesia Já escrevi, certa vez, vossa triste balada Entre os minuetos sutis do comércio imediato As portadoras de êxtase e de permanganato!
Houve um tempo em que um morro era apenas um morro E não um camelô de colete brilhante Piscando intermitente o grito de socorro Da livre concorrência: um pequeno gigante Que nunca se curvava, ou somente nos dias Em que o Melo Maluco praticava acrobacias.
Houve tempo em que se exclamava: Asfalto! Em que se comentava: Verso livre! com receio... Em que, para se mostrar, alguém dizia alto: "Então às seis, sob a marquise do Passeio..." Em que se ia ver a bem-amada sepulcral Decompor o espectro de um sorvete na Paschoal
Houve tempo em que o amor era melancolia E a tuberculose se chamava consumpção De geométrico na cidade só existia A palamenta dos ioles, de manhã... Mas em compensação, que abundância de tudo! Água, sonhos, marfim, nádegas, pão, veludo!
Houve tempo em que apareceu diante do espelho A flapper cheia de it, a esfuziante miss A boca em coração, a saia acima do joelho Sempre a tremelicar os ombros e os quadris Nos shimmies: a mulher moderna... Ó Nancy! Ó Nita! Que vos transformastes em dízima infinita...
Houve tempo... e em verdade eu vos digo: havia tempo Tempo para a peteca e tempo para o soneto Tempo para trabalhar e para dar tempo ao tempo Tempo para envelhecer sem ficar obsoleto... Eis por que, para que volte o tempo, e o sonho, e a rima Eu fiz, de humor irônico, esta poesia acima.