Almanaque Raimundo Floriano
Fundado em 24.09.2016
(Cultural, sem fins comerciais, lucrativos ou financeiros)


Raimundo Floriano de Albuquerque e Silva, Editor deste Almanaque, também conhecido como Velho Fulô, Palhaço Seu Mundinho e Mundico Trazendowski, nascido em Balsas , Maranhão, a 3 de julho de 1936, Católico Apostólico Romano, Contador, Oficial da Reserva do Exército Brasileiro, Funcionário Público aposentado da Câmara dos Deputados, Titular da Cadeira nº 10 da Academia Passa Disco da Música Nordestina, cuja patrona é a cantora Elba Ramalho, Mestre e Fundador da Banda da Capital Federal, Pesquisador da MPB, especializado em Velha Guarda, Música Militar, Carnaval e Forró, Cardeal Fundador da Igreja Sertaneja, Pioneiro de Brasília, Xerife nos Mares do Caribe, Cordelista e Glosador, Amigo do Rio das Balsas, Inventor da Descida de Boia, em julho de 1952, Amigo da Fanfarra do 1° RCG, autor dos livros O Acordo PDS/PTB, coletânea de charges, Sinais de Revisão e Regras de Pontuação, normativo, Do Jumento ao Parlamento, com episódios da vida real, De Balsas para o Mundo, centrado na navegação fluvial Balsas/Oceano Atlântico, Pétalas do Rosa, saga da Família Albuquerque e Silva, Memorial Balsense, dedicado à história de sua terra natal, e Caindo na Gandaia, humorístico apimentado, é casado, tem quatro filhos, uma nora, dois genros e dois netos e reside em Brasília, Distrito Federal, desde dezembro de 1960.

Poemas e Poesias quinta, 28 de janeiro de 2021

ESCULTURA (POEMA DA CARIOCA ADALGISA NERY)

ESCULTURA 

Adalgisa Nery

 

Eu já te amava pelas fotografias.

Pelo teu ar triste e decadente dos vencidos,
Pelo teu olhar vago e incerto
Como o dos que não pararam no riso e na alegria.

Te amava por todos os teus complexos de derrota,
Pelo teu jeito contrastando com a glória dos atletas
E até pela indecisão dos teus gestos sem pressa.

Te falei um dia fora da fotografia
Te amei com a mesma ternura
Que há num carinho rodeado de silêncio
E não sentiste quantas vezes
Minhas mãos usaram meu pensamento,
Afagando teus cabelos num êxtase imenso.

E assim te amo, vendo em tua forma e teu olhar
Toda uma existência trabalhada pela força e pela angústia
Que a verdade da vida sempre pede
E que interminavelmente tens que dar!...


Poemas e Poesias quarta, 27 de janeiro de 2021

APAIXONADAMENTE (POEMA DA PORTUGUESA VIRGÍNIA VICTORINO)

APAIXONADAMENTE

Virgínia Victorino

 

Fui compondo estes versos, absorvida

no ritmo da minh´alma, sempre ansiosa,

para neles ficar, triste ou gloriosa,

uma existência inteira resumida.

 

Assim os fiz, pela paixão vencida,

— e, porque fui vencida, vitoriosa... —

nesta febre constante de ambiciosa,

mágoa e prazer de toda a minha vida!

 

Cada verso é uma pedra mais que eu ponho

Na catedral imensa do meu sonho,

... ria embora do Sonho toda a gente!

 

A vida humana, seja ou não tranquila,

profunda ou não, — só poderá senti-la

quem a sentir apaixonadamente.

 

 


Poemas e Poesias terça, 26 de janeiro de 2021

A ESTRELA POLAR (POEMA DO CARIOCA VINÍCIUS DE MORAES)

A ESTRELA POLAR

Vinícius de Moraes

 

 

Eu vi a estrela polar 
Chorando em cima do mar 
Eu vi a estrela polar 
Nas costas de Portugal! 
Desde então não seja Vênus 
A mais pura das estrelas 
A estrela polar não brilha 
Se humilha no firmamento 
Parece uma criancinha 
Enjeitada pelo frio 
Estrelinha franciscana 
Teresinha, mariana 
Perdida no Polo Norte 
De toda a tristeza humana.


Poemas e Poesias segunda, 25 de janeiro de 2021

DESILUDIDA (POEMA DO PAULISTA VICENTE DE CARVALHO)

DESILUDIDA

Vicente de Carvalho

 

 

Sou como a corça ferida
Que vai, sedenta e arquejante,
Gastando uns restos de vida
Em busca de água distante.

Bem sei que já me não ama,
E sigo, amorosa e aflita,
Essa voz que não me chama,
Esse olhar que não me fita.

E reconheço a loucura
Deste amor abandonado
Que se abre em flor, e procura
Viver de um sonho acabado;

E é como a corça ferida
Que vai, sedenta e arquejante,
Gastando uns restos de vida
Em busca da água distante.

Só, perdido no deserto,
Segue empós do seu carinho:
Vai se arrastando... e vai certo
Que morre pelo caminho.


Poemas e Poesias domingo, 24 de janeiro de 2021

AGORA NÃO SE FALA MAIS (POEMA DO PIAUIENSE TORQUATO NETO)

AGORA NÃO SE FALA MAIS

Torquado Neto

 

Agora não se fala mais
toda palavra guarda uma cilada
e qualquer gesto é o fim
do seu início:


Agora não se fala nada
e tudo é transparente em cada forma
qualquer palavra é um gesto
e em sua orla
os pássaros de sempre cantam
nos hospícios.


Você não tem que me dizer
o número de mundo deste mundo
não tem que me mostrar
a outra face
face ao fim de tudo:


só tem que me dizer
o nome da república do fundo
o sim do fim
do fim de tudo
e o tem do tempo vindo:


não tem que me mostrar
a outra mesma face ao outro mundo
(não se fala. não é permitido:
mudar de idéia. é proibido.
não se permite nunca mais olhares
tensões de cismas crises e outros tempos.
está vetado qualquer movimento


Poemas e Poesias sábado, 23 de janeiro de 2021

ALMAS DESOLADORAMENTE FRIAS (POEMA DO FLUMINENSE RAUL LEÔNI)

ALMAS DESOLADORAMENTE FRIAS

Raul Leôni

 

Almas desoladoramente frias

De uma aridez tristíssima de areia,

Nelas não vingam essas suaves poesias

Que a alma das cousas, ao passar, semeia…

.

Desesperadamente estéreis e sombrias,

Onde passam (triste aura que as rodeia!)

Deixam uma atmosfera amarga, cheia

De desencantos e melancolias…

.

Nessa árida rudeza de rochedo,

Mesmo fazendo o bem, sua mão é pesada,

Sua própria virtude mete medo…

.

Como são tristes essas vidas sem amor,

Essas sombras que nunca amaram nada,

Essas almas que nunca deram flor…

 


Poemas e Poesias sexta, 22 de janeiro de 2021

DEPEDE TEU PUDOR (POEMA DO MINEIRO PAULO MENDES CAMPOS)

DESPEDE TEU PUDOR

Paulo Mendes Campos

 

Despede teu pudor com a camisa
E deixa alada louca sem memória
Uma nudez nascida para a glória
Sofrer de meu olhar que te heroíza

Tudo teu corpo tem, não te humaniza
Uma cegueira fácil de vitória
E como a perfeição não tem história
São leves teus enredos como a brisa

Constante vagaroso combinado
Um anjo em ti se opõe à luta e luto
E tombo como um sol abandonado

Enquanto amor se esvai a paz se eleva
Teus pés roçando nos meus pés escuto
O respirar da noite que te leva.


Poemas e Poesias quinta, 21 de janeiro de 2021

O ROUXINOL E O ANCIÃO (POEMA DO CEARENSE PATATIVA DO ASSARÉ)

O ROUXINOL E O ANCIÃO

Patativa do Assaré

 

Meu filho querido escuta,
Com verdade absoluta
Quero dar-te uma lição.
Guarda na tua memória
Esta proveitosa história
Do Rouxinol e o ancião.

Um ancião imprevidente
Criava, muito contente,
Na gaiola o rouxinol.
E extasiado escutava
Quando o pássaro cantava
Nas horas do pôr-do-sol.

O bom velho estudou tanto,
Aquele sonoro canto
de melodia sem par,
Com tal cuidado e vantagem
Que daquela ave a linguagem
Aprendeu a decifrar.

Um certo dia ele lendo
Naquele canto e fazendo
Os seus estudos sutis,
Viu que o pobre, com saudade,
Reclamava a liberdade
Para poder ser feliz.

Cantava e fazia acenos,
Pedindo ao senhor, ao menos,
Um pouco de permissão.
Voar um pouco queria,
E de novo voltaria
Para dentro da prisão.

O dono, com muita pena
Daquela prisão pequena
Uma portinhola abriu,
E o preso, as asas abrindo,
Voou, subindo, subindo,
E no espaço se sumiu.

Mas ó, que fatalidade!
Nessa curta liberdade
Para voar na amplidão,
Foi cair tão inocente
Irremediavelmente
Nas garras de um gavião.

O garrancho esfomeado,
Segurando o desgraçado
Ligeiro a terra baixou,
E o ancião sem conforto,
Vendo o passarinho morto,
De arrependimento chorou.

Meu filho, és um passarinho
A quem paternal carinho
Envolve na santa paz.
Nessa poesia rasa,
A gaiola é nossa casa
Onde feliz viverás.

Enquanto os conselhos sábios
Escutares de meus lábios
Ouvindo minhas lições
Como filho obediente,
Não cairás facilmente
Nas garras das seduções.


Poemas e Poesias quarta, 20 de janeiro de 2021

O PALHAÇO (POEMA DO CEARENSE PADRE ANTÔNIO TOMÁS)

O PALHAÇO

Padre Antônio Tomás

 

 

Ontem, viu-se-lhe em casa a esposa morta

E a filhinha mais nova, tão doente!

Hoje, o empresário vai bater-lhe à porta,

Que a plateia o reclama, impaciente.

 

Ao palco, em breve surge... pouco importa

o seu pesar àquela estranha gente...

E ao som das ovações que os ares corta,

trejeita, canta e ri, nervosamente.

 

Aos aplausos da turba, ele trabalha

para esconder no manto em que se embuça

a cruciante angústia que o retalha.

 

No entanto, a dor cruel mais se lhe aguça

e enquanto o lábio trêmulo gargalha,

dentro do peito o coração soluça.


Poemas e Poesias terça, 19 de janeiro de 2021

VELHA PÁGINA (POEMA DO CARIOCA OLAVO BILAC)

VELHA PÁGINA

Olavo Bilac

 

Chove. Que mágoa lá fora!
Que mágoa! Embruscam-se os ares
Sobre este rio que chora
Velhos e eternos pesares.

E sinto o que a terra sente
E a tristeza que diviso,
Eu, de teus olhos ausente,
Ausente de teu sorriso...

As asas loucas abrindo,
Meus versos, num longo anseio,
Morrerão, sem que, sorrindo,
Possa acolhê-los teu seio!

Ah! quem mandou que fizesses
Minh'alma da tua escrava,
E ouvisses as minhas preces,
Chorando como eu chorava?

Por que é que um dia me ouviste,
Tão pálida e alvoroçada,
E, como quem ama, triste,
Como quem ama, calada?

Tu tens um nome celeste...
Quem é do céu é sensível!
Por que é que me não disseste
Toda a verdade terrível?

Por que, fugindo impiedosa,
Desertas o nosso ninho?
- Era tão bela esta rosa!...
Já me tardava este espinho!

Fora melhor, porventura,
Ficar no antigo degredo
Que conhecer a ventura
Para perdê-la tão cedo!

Por que me ouviste, enxugando
O pranto das minhas faces?
Viste que eu vinha chorando...
Antes assim me deixasses!

Antes! Menor me seria
O sofrimento, querida!
Antes! a mão que alivia
A dor, e cura a ferida,

Não deve depois, tranqüila,
Vendo sufocada a mágoa,
Encher de sangue a pupila
Que já vira cheia de água...

Mas junto a mim que te falta?
Que glória maior te chama?
Não sei de glória mais alta
Do que a glória de quem ama!

Talvez te chame a riqueza...
Despreza-a, beija-me, e fica!
Verás que assim, com certeza,
Não há quem seja mais rica!

Como é que quebras os laços
Com que prendi o universo,
Entre os nossos quatro braços,
Na jaula azul do meu verso?

Como hei de eu, de hoje em diante,
Viver, depois que partires?
Como queres tu que eu cante
No dia em que não me ouvires?

Tem pena de mim! tem pena
De alma tão fraca! Como há de
Minh'alma, que é tão pequena,
Poder com tanta saudade?!


Poemas e Poesias segunda, 18 de janeiro de 2021

GERMINAL - V (POEMA DO PAULISTA MENOTTI DEL PICCHIA)

GERMINAL - V

Menotti Del Picchia

 

Juca Mulato cisma. Olha a lua e estremece.
Dentro dele um desejo abre-se em flor e cresce
e ele pensa, ao sentir esses sonhos ignotos,
que a alma é como uma planta, os sonhos como brotos,
vão rebentando nela e se abrindo em floradas...
Franjam de ouro, o ocidente, as chamas das queimadas

Mal se pode conter de inquieto e satisfeito.
Adivinha que tem qualquer coisa no peito
e, às promessas do amor, a alma escancara ansiado
como os áureos portais de um palácio encantado!...

Mas a mágoa que ronda a alegria de perto
entra no coração sempre que o encontra aberto...

Juca Mulato sofre... Esse olhar calmo e doce
fulgiu-lhe como a luz, como luz apagou-se.
Feliz até então tinha a alma adormecida...
Esse olhar que o fitou o acordou para a vida!
A luz que nele viu deu-lhe a dor que ora o assombra
como o sol que traz a luz e, depois, deixa a sombra...


Poemas e Poesias domingo, 17 de janeiro de 2021

ESTÁTUA (POEMA DO PERNAMBUCANO MEDEIROS E ALBUQUERQUE)

ESTÁTUA

Medeiros e Albuquerque

 

Eu tenho muita vez a estranha pretensão
de me fundir em bronze e aparecer nas praças
para poder ouvir da voz das populaças
    a sincera explosão;

senti-la, quando, em festa, as grandes multidões
aclamam doidamente os fortes vencedores,
e febris, pelo ar, espalham-se os clamores
    das nobres ovações;

senti-la, quando o sopro aspérrimo da dor
nubla de escuro crepe o lúgubre horizonte
e curva para o chão a entristecida fronte
    do povo sofredor;

poder sempre pairar solenemente em pé,
sobre as mágoas cruéis do miserando povo,
e ter sempre no rosto, eternamente novo,
    uma expressão de fé.

E, quando enfim cair do altivo pedestal,
à sacrílega mão do bárbaro estrangeiro,
meu braço descrever no gesto derradeiro
    a maldição final.


Poemas e Poesias sábado, 16 de janeiro de 2021

DO AMOROSO ESQUECIMENTO (POEMA DO GAÚCHO MÁRIO QUINTANA)

DO AMOROSO ESQUECIMENTO 

Mário Quintana

 

 

Eu, agora - que desfecho!
Já nem penso mais em ti...
Mas será que nunca deixo
De lembrar que te esqueci?


Poemas e Poesias sexta, 15 de janeiro de 2021

ESQUECE-A (POEMA DA MARANHENSE MARIA FIRMINA DOS REIS

ESQUECE-A

Maria Firmina dos Reis

 

Amor é gozo ligeiro,

Mas é grato e lisonjeiro

Como o sorriso infantil;

Promessa doce, e mentida,

Alenta, destrói a vida;

É um delírio febril.

Muito te amei… minha lira,

Que triste agora suspira,

Nesta erma solidão,

Bem sabes ─ ricas de flores,

Cantava os ternos amores,

Do meu terno coração.

Minha afeição era pura.

Não era engano, cordura,

Não era afeto mentido;

Se ela assim te não cativa,

Esquece-a, que sou altiva,

Esquece-a, sim ─ fementido.


Poemas e Poesias quinta, 14 de janeiro de 2021

BELO BELO - II (POEMA DO PERNAMBUCANO MANUEL BANDEIRA)

BELO BELO - II

Manuel Bandeira

 

Belo belo minha bela
Tenho tudo que não quero
Não tenho nada que quero
Não quero óculos nem tosse
Nem obrigação de voto
Quero quero
Quero a solidão dos píncaros
A água da fonte escondida
A rosa que floresceu
Sobre a escarpa inacessível
A luz da primeira estrela
Piscando no lusco-fusco
Quero quero
Quero dar a volta ao mundo
Só num navio de vela
Quero rever Pernambuco
Quero ver Bagdá e Cusco
Quero quero
Quero o moreno de Estela
Quero a brancura de Elisa
Quero a saliva de Bela
Quero as sardas de Adalgisa
Quero quero tanta coisa
Belo belo
Mas basta de lero-lero
Vida noves fora zero.


Poemas e Poesias quarta, 13 de janeiro de 2021

FRAGMENTOS DE CANÇÕES POEMAS - 2 (POEMA DO MATO-GROSSENSE MANOEL DE BARROS)

FRAGMENTOS DE CANÇÕES E POEMAS - 2

Manoel de Barros

 

São mil coisas impressentidas 
Que me escutam:
O movimento das folhas 
O silêncio de onde acabas de voltar 
E a luz que divide o corpo do nascente

São mil coisas impressentidas 
Que me escutam: 
São os pássaros assustados, assustados, 
Tuas mãos que descobrem o convite da terra 
E os poemas como ilhas submersas…

São mil coisas impressentidas 
Que me escutam: 
Sou eu apreensivamente 
Solicitado pela inflorescência 
Redescoberto pelo bulir das folhas…

 


Poemas e Poesias terça, 12 de janeiro de 2021

TRAVESSA (POEMA DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

TRAVESSA

Machado de Assis

 

Ai; por Deus, por vida minha
Como és travessa e louquinha!
Gosto de ti — gosto tanto
Dessa tua travessura
Que não me dera o meu encanto,
Que não dera o meu gostar,
Nem por estrelas do céu.
Nem por pérolas ao mar!
Alma toda de quimeras
Que acordou no paraíso
Vinda do leito de Deus;
E que rivais de teus olhos
Só tens dois olhos — os teus!
Pareces mesmo criança
Que só vive e se alimenta
De luz, amor e esperança.
Ave sem medo à tormenta
Que salta e palpita e ri,
As travessas primaveras
Assentam tão bem em ti!
Assentam sim, como as asas
Assentam no beija-flor,
Como o delírio dos beijos

Em uma noite de amor;
Como no véu que se agita
De beleza adormecida
A brisa mole e sentida!

Foi por ver-te assim — travessa
Que eu pus a minha esperança
No imaginar de criança
Dessa formosa cabeça...
Foi por ver-te assim — Que os sonhos
Eu sei como os tens eu sei.
Puros, lindos e risonhos.
Um coração novo e calmo
Onde a lei do amor — é lei;
Foi por ver-te assim, que eu venho
Pôr em ti as fantasias
De meus peregrinos dias.
Como a esperança no céu:
Em ti só, que és tão louquinha,
Em ti só pôr a minha vida!


Poemas e Poesias segunda, 11 de janeiro de 2021

FALECIDO (POEMA DO PERNAMBUCANO LUÍS TURIBA)

FALECIDO

Luís Turiba

 

Pode ter medo
Até de barata
Menos de amor
Que é o grande barato
Do criador

Quando em mim
Morre um amor
Morro junto

Vou ao velório
Mando flores
Consolo a viúva
Faço missa de sétimo dia

Rei morto, rei posto
Vida que segue
Mesmo a contragosto

Se o falecido morreu
Antes ele, do que eu

Quando eu for
Quero ir como flor
Sorriso no peito
Leve perfume de dor


Poemas e Poesias domingo, 10 de janeiro de 2021

AMOR (POEMA DO CARIOCA LUÍS EDMUNDO)

AMOR

(Luís Edmundo)

 

Este é um carro triunfal, plaustro de rodas de ouro;
Arrasta-o sobre o mundo em fúria desabrida
Um estranho animal, que lembra na corrida
A bravura de um leão e os ímpetos de um touro.

Nada lhe embarga o passo; o abismo, o sorvedouro,
Tudo calca e subjuga e leva de vencida;
E os homens em tropel cheios de ardor e vida
Vão atrás dele como atrás de algum tesouro.

Triunfalmente altiva, o olhar forte, os cabelos
Irradiando como a luz de setestrelos,
No plaustro, uma mulher passa o mundo fitando;

Na mão esquerda, como um símbolo perfeito,
Leva um lírio que tem o cálice direito,
Na outra, fera e brutal, leva um punhal sangrando...


Poemas e Poesias sábado, 09 de janeiro de 2021

DESPEDIDA DA AMA (POEMA DO PORTUGUÊS JÚLIO DINIS)

 

A DESPEDIDA DA AMA

Júlio Dinis
(A meu primo e amigo J. J. Pinto
Coelho)

Adeus filho do meu peito, Que do meu peito nutri… Parto.
Vou deixar-te, filho, Ai, que farei eu sem ti? !

Adeus! Já quando acordares
Chorando não me verás;
As noites a acalentar-te
Outra voz escutarás.

Que amor te ganhei, meu filho I Que triste amor este meu!
Se assim tinha de deixar-te, Pra que tanto te quis eu ?

Os teus primeiros gemidos
Tua mãe não quis ouvir;
E a mim, que os calei com beijos,
Mandam-me agora partir!

Pus à volta do teu berço
Todo o amor que um seio tem,
E arrancam-te de meus braços,
Porque eu não sou tua mãe!

Os teus vagidos de infante Fui eu quem os sosseguei; Carinhos que semeava,
Para a outra os semeei !

Parto. Dentro em pouco, filho, Nem tu me hás-de conhecer;
E assim de pequenino
Te ensinam já a esquecer.

Adeus! Nesta despedida
A alma toda se me vai.
E, sem querer, o meu pranto
Sobre a tua fronte cai,

Que desse sono inocente
Te não vá ele acordar;
Que as forças me faltariam
Então, para te deixar.

Vamos, pobre mulher, vamos
Está finda a criação,
Deste vida a este menino,
Não lhe dês o coração.

O coração? Quem to pede ? Pedem-te o leite, não mais.
Vamos, pobre mulher, vamos, Que o acordas com teus ais!

Adeus filho da minha alma, Teus carinhos não são meus, O choro
corta-me a fala,
Mal posso dizer-te… adeus.


Poemas e Poesias sexta, 08 de janeiro de 2021

MEDITAÇÃO SOBRE A BACANGA (POEMA DO MARANHENSE JOSÉ SARNEY)

MEDITAÇÃO SOBRE A BACANGA

José Sarney

 

As águas passam
É lua e as casas aparecem.
Sou eu. Narciso que se olha
E fenece.

Tudo é sombra, sombra e nada,
água e silêncio nas folhas e vales
rompidos pelo Bacanga em sulcos
de madrugada.
Faixa de vento na montanha a encher e vazar:
címbalos onde o tédio geme.

É o gigante do não esquecer e as vozes do mangue.
Sangue correndo das imagens mordidas
pelos dentes estranguladores da noite.

Narciso se olha
Satanicamente o brilho dos olhares
buscam
o que não existe mais.

Ele vivia além e tinha fome, mas pensava.
Comeu os pensamentos devorando os dias
o nome e a noite.
Doce rio que vem e bóia
na enseada.
Águas barrentas, sujas,
Liberdade que morreu
e se afoga
no Mar.

Medito sobre mim que já sou morto:
as canções fúnebres que me pesam
como pedras no vazio do
lembrar.

— Barquinho de vela
que vai sobre o mar.
Boneca amarela
que me vem roubar.

meus olhos fenecem e o presságio dorme
no espelho das águas que
escorrem.


Poemas e Poesias quinta, 07 de janeiro de 2021

MADORNA DE IAIÁ (POEMA DO ALAGOANO JORGE DE LIMA)

MADORNA DE IAIÁ

Jorge de Lima

 

Iaiá está
na rede de tucum.
A mucama de Iaiá tange os piuns,
Balança a rede,
Canta um lundum
Tão bambo, tão molengo, tão dengoso,
Que Iaiá tem vontade de dormir

Com quem?

Rem-rem.

Que preguiça, que calor!
Iaiá tira a camisa,
Toma aluá
Prende o cocó,
Limpa o suor
Pula pra rede.

Mas que cheiro gostoso tem Iaiá!
Que vontade doida de dormir,,,

Com quem?

Cheiro de mel da casa das caldeiras!
O saguim de Iaiá dorme num coco.

Iaiá ferra no sono
Pende a cabeça,
Abre-se a rede
Como uma ingá.

Para a mucama de cantar,
Tange os piuns,
Cala o ram-rem,
Abre a janela,
Olha o curral:
- um bruto sossego no curral!

Muito longe uma peitica faz si-dó....
Si-dó.....si-dó......si-dó....

Antes que Iaiá corte a madorna
A moleca de Iaiá
Balança a rede,
Tange os piuns,
Canta um lundum
Tão bambo,
Tão molengo,
Tão dengoso,
Que Iaiá sem se acordar,
Se coça,
Se estira
E se abre toda, na rede de tucum.

Sonha com quem?

 


Poemas e Poesias quarta, 06 de janeiro de 2021

MORTE E VIDA SEVERINA - O RETIRANTE EXPLICA AO LEITOR QUEM É E A QUE VAI (TRECHO DO POEMA DO PERNAMBUCANO JOÃO CABRAL DE MELO NETO)

 

MORTE E VIDA SEVERINA - TRECHO

João Cabral de Melo Neto

 

 

O RETIRANTE EXPLICA AO LEITOR QUEM É E A QUE VAI

— O meu nome é Severino,
como não tenho outro de pia.
Como há muitos Severinos,
que é santo de romaria,
deram então de me chamar
Severino de Maria;
como há muitos Severinos
com mães chamadas Maria,
fiquei sendo o da Maria
do finado Zacarias.
Mas isso ainda diz pouco:
há muitos na freguesia,
por causa de um coronel
que se chamou Zacarias
e que foi o mais antigo
senhor desta sesmaria.
Como então dizer quem fala
ora a Vossas Senhorias?
Vejamos: é o Severino
da Maria do Zacarias,
lá da serra da Costela,
limites da Paraíba.
Mas isso ainda diz pouco:
se ao menos mais cinco havia
com nome de Severino
filhos de tantas Marias
mulheres de outros tantos,
já finados, Zacarias,
vivendo na mesma serra
magra e ossuda em que eu vivia.
Somos muitos Severinos
iguais em tudo na vida:
na mesma cabeça grande
que a custo é que se equilibra,
no mesmo ventre crescido
sobre as mesmas pernas finas,
e iguais também porque o sangue
que usamos tem pouca tinta.
E se somos Severinos
iguais em tudo na vida,
morremos de morte igual,
mesma morte severina:
que é a morte de que se morre
de velhice antes dos trinta,
de emboscada antes dos vinte,
de fome um pouco por dia
(de fraqueza e de doença
é que a morte severina
ataca em qualquer idade,
e até gente não nascida).
Somos muitos Severinos
iguais em tudo e na sina:
a de abrandar estas pedras
suando-se muito em cima,
a de tentar despertar
terra sempre mais extinta,
a de querer arrancar
algum roçado da cinza.

Neste trecho, Severino retirante se apresenta às pessoas e tenta, quando mais possa, logo de início individualizar-se. Para tanto, usa referências pessoais, de sobrenomes e nomes e geográficas. Inútil, ele é apenas um igual a tantos outros Severinos e, desse modo, difícil é desidentificar-se de maneira a distanciar-se deles, os seus iguais em sofrimento, dor, busca, no mesmo espaço geográfico da secura, fome, miséria e ignorância.

 

 


Poemas e Poesias terça, 05 de janeiro de 2021

ANGÚSTIA (POEMAS DO ACRIANO J. G. DE ARAÚJO JORGE)

ANGÚSTIA

J. G. de Araújo Jorge

 

Há uma estranha beleza na noite ! Há uma estranha beleza !
Oh, a transcendente poesia
que verso algum traduz...

A via-láctea, inteiramente acesa
parece a fotografia
de um tufão de luz !

- Quem seria,
quem seria
que pregou lá no céu aquela imensa cruz?

Que infinita serenidade...
Que infinita serenidade misteriosa
nesse infinito azul dos céus e em tudo mais:
nos telhados, nas ruas, na cidade...

( Só os gatos gritam na noite silenciosa
sensualíssimos ais !)

Meu Deus, que noite calma... E aquela trepadeira
feminina e ligeira
veio abrir bem na minha janela
uma flor - como uma boca rubra e bela
que não terei...

- E ainda sinto nos lábios um travo nauseante
do amor que faz bem pouco, há apenas um instante,
paguei...

E o céu azul assim... E essa serenidade!
Silêncio- A noite, o luar ... Tão claro o luar lá fora...
Juraria que há alguém, não sei onde que chora...

Oh, a angústia invencível que me prostra
invade
e me devorar ...


Poemas e Poesias segunda, 04 de janeiro de 2021

3 - DO DESEJO - EXISTE A NOITE, E EXISTE O BREU (POEMA DA PAULISTA HILDA HILST)

3 - DO DESEJO - EXISTE A NOITE, E EXISTE O BREU 

Hilda Hilst

 

Existe a noite, e existe o breu.
Noite é o velado coração de Deus
Esse que por pudor não mais procuro.
Breu é quando tu te afastas ou dizes
Que viajas, e um sol de gelo
Petrifica-me a cara e desobriga-me
De fidelidade e de conjura. O desejo
Esse da carne, a mim não me faz medo.
Assim como me veio, também não me avassala.
Sabes por quê? Lutei com Aquele.
E dele também não fui lacaia.


Poemas e Poesias domingo, 03 de janeiro de 2021

A CIGARRA (POEMA DO SERGIPANO HERMES FONTES)

A CIGARRA

Hermes Fontes

 

Não, orgulhosa! não, alma nobre e vadia,
nunca foste pedir migalha ao formigueiro!
Dessedenta-te o sol e te nutre a alegria
De viver e morrer cantando, o dia inteiro...

Que infâmia ires ao vizinho celeiro
tu, que tens o celeiro universal do Dia,
e preferes morrer queimada em teu braseiro
íntimo a renunciar a tua fantasia!

Não! tu és superior ao código e ao compêndio,
à Economia, ou à Moral. — Aristocrata,
crês que prever miséria é já um vilipêndio.

Primadona pagã do Jardim e da Mata,
trazes dentro em ti mesma, em teu constante incêndio,
a luz, que te alimenta e o fogo, que te mata...


Poemas e Poesias sábado, 02 de janeiro de 2021

A HÓSPEDE (POEMA DO PAULISTA GUILHERME DE ALMEIDA)

A HÓSPEDE

Guilherme de Almeida

 

Não precisa bater quando chegares.
Toma a chave de ferro que encontrares
sobre o pilar, ao lado da cancela,
e abre com ela
a porta baixa, antiga e silenciosa.
Entra. Aí tens a poltrona, o livro, a rosa,
o cântaro de barro e o pão de trigo.
O cão amigo
pousará nos teus joelhos a cabeça.
Deixa que a noite, vagarosa, desça.
Cheiram a relva e sol, na arca e nos quartos,
os linhos fartos,
e cheira a lar o azeite da candeia.
Dorme. Sonha. Desperta. Da colméia
nasce a manhã de mel contra a janela.
Fecha a cancela
e vai. Há sol nos frutos dos pomares.
Não olhes para trás quando tomares
o caminho sonâmbulo que desce.
Caminha – e esquece.


Poemas e Poesias sexta, 01 de janeiro de 2021

A. L. (POEMA DO PORTUGUÊS GUERRA JUNQUEIRO)

A. L.

Guerra Junqueiro

 

 

Não és a flor olímpica e serena
Que eu vejo em sonhos na amplidão distante;
Não tens as formas ideais de Helena,
As formas da beleza triunfante;

Não és também a mística açucena,
A alva e pura Beatriz do Dante;
És a artista gentil, a flor morena
Cheia de aroma casto e penetrante.

Não sei que graça, que esplendor, que arpejo
Eu sinto dentro d'alma quando vejo
Teu corpo aéreo, matinal, franzino...

Faz-me lembrar as vívidas napeias,
E as formas vaporosas das sereias
Rendilhadas num bronze florentino.


Poemas e Poesias quinta, 31 de dezembro de 2020

CONTRA A MORTE E O AMOR NÃO HÁ QUEM TENHA VALIA (POEMA DO PORTUGUÊS GIL VICENTE)

CONTRA A MORTE E O AMOR NÃO HÁ QUEM TENHA VALIA

Gil Vicente 

Era ainda o mês de abril,
de maio antes um dia,
quando lírios e rosas
mostram mais sua alegria;
pela noite mais serena
que fazer o céu podia,
quando Flérida, a formosa
infanta, já se partia,
ela na horta do pai
para as árvores dizia:
“Ficai, adeus, minhas flores,
em que glória ver soía.
Vou-me a terras estrangeiras,
a que ventura me guia.
Se meu pai me for buscar,
que grande bem me queria,
digam-lhe que amor me leva,
e que eu sem culpa o seguia;
que tanto por mim porfiava
que venceu sua porfia.
Triste, não sei aonde vou,
e a mim ninguém o dizia!”
Eis que fala Dom Duardos:
“Não choreis, minha alegria,
que nos reinos de Inglaterra
mais claras águas havia,
e mais formosos jardins,
e vossos, senhora, um dia:
tereis trezentas donzelas
de alta genealogia,
de prata são os palácios
para vossa senhoria;
de esmeraldas e jacintos,
de ouro fino da Turquia,
com letreiros esmaltados
que minha vida à porfia
vão contando, e as vivas cores
que vós me destes no dia
em que com Primaleão
fortemente combatia:
senhora, vós me matastes,
que eu a ele não temia.”
Os seus prantos consolava
Flérida, que tudo ouvia;
foram-se então às galeras
que Dom Duardos havia:
por cinqüenta se contavam,
todas vão em companhia.
Ao som de seus doces remos
a princesa se adormia
nos braços de Dom Duardos,
que bem já lhe pertencia.
Saibam quantos são nascidos
que sentença eu lhes diria:
que contra a morte e o amor
não há quem tenha valia.


Poemas e Poesias quarta, 30 de dezembro de 2020

A VIDA (POEMA DA PORTUGUESA FLORBELA ESPANCA)

VIDA

Florbela Espanca

 

É vão o amor, o ódio, ou o desdém;
Inútil o desejo e o sentimento...
Lançar um grande amor aos pés de alguém
O mesmo é que lançar flores ao vento!

Todos somos no mundo "Pedro Sem",
Uma alegria é feita dum tormento,
Um riso é sempre o eco dum lamento,
Sabe-se lá um beijo de onde vem!

A mais nobre ilusão morre... desfaz-se...
Uma saudade morta em nós renasce
Que no mesmo momento é já perdida...

Amar-te a vida inteira eu não podia,
A gente esquece sempre o bom de um dia.
Que queres, meu Amor, se é isto a vida!


 


Poemas e Poesias terça, 29 de dezembro de 2020

A VIDA BATE (POEMA DO MARANHENSE FERREIRA GULLAR)

A VIDA BATE

Ferreira Gullar

 

Não se trata do poema e sim do homem
e sua vida
– a mentida, a ferida, a consentida
vida já ganha e já perdida e ganha
outra vez.
Não se trata do poema e sim da fome
de vida,
o sôfrego pulsar entre constelações
e embrulhos, entre engulhos.
Alguns viajam, vão
a Nova York, a Santiago
do Chile. Outros ficam
mesmo na Rua da Alfândega, detrás
de balcões e de guichês.
Todos te buscam, facho
de vida, escuro e claro,
que é mais que a água na grama
que o banho no mar, que o beijo
na boca, mais
que a paixão na cama.
Todos te buscam e só alguns te acham. Alguns
te acham e te perdem.
Outros te acham e não te reconhecem
e há os que se perdem por te achar,
ó desatino
ó verdade, ó fome
de vida!
O amor é difícil
mas pode luzir em qualquer ponto da cidade.
E estamos na cidade
sob as nuvens e entre as águas azuis.
A cidade. Vista do alto
ela é fabril e imaginária, se entrega inteira
como se estivesse pronta.
Vista do alto,
com seus bairros e ruas e avenidas, a cidade
é o refúgio do homem, pertence a todos e a ninguém.
Mas vista
de perto,
revela o seu túrbido presente, sua
carnadura de pânico: as
pessoas que vão e vêm
que entram e saem, que passam
sem rir, sem falar, entre apitos e gases. Ah, o escuro
sangue urbano
movido a juros.
São pessoas que passam sem falar
e estão cheias de vozes
e ruínas . És Antônio?
És Francisco? És Mariana?
Onde escondeste o verde
clarão dos dias? Onde
escondeste a vida
que em teu olhar se apaga mal se acende?
E passamos
carregados de flores sufocadas.
Mas, dentro, no coração,
eu sei,
a vida bate. Subterraneamente,
a vida bate.

Em Caracas, no Harlem, em Nova Delhi,
sob as penas da lei,
em teu pulso,
a vida bate.
E é essa clandestina esperança
misturada ao sal do mar
que me sustenta
esta tarde
debruçado à janela de meu quarto em Ipanema
na América Latina.


Poemas e Poesias segunda, 28 de dezembro de 2020

CANSA SENTIR QUANDO SE PENSA (POEMA DO PORTUGUÊS FERNANDO PESSOA)

CANSA SENTIR QUANDO SE PENSA

Fernando Pessoa

TIR 

 

Cansa sentir quando se pensa.

No ar da noite a madrugar

Há uma solidão imensa

Que tem por corpo o frio do ar.

 

Neste momento insone e triste

Em que não sei quem hei-de ser,

Pesa-me o informe real que existe

Na noite antes de amanhecer.

 

Tudo isto me parece tudo.

E é uma noite a ter um fim

Um negro astral silêncio surdo

E não poder viver assim.

 

(Tudo isto me parece tudo.

Mas noite, frio, negro sem fim,

Mundo mudo, silêncio mudo —

Ah, nada é isto, nada é assim!)


Poemas e Poesias domingo, 27 de dezembro de 2020

E QUE SE PONHA A ROUPA DO VENTO (POEMA DO GAÚCHO FABRÍCIO CARPINEJAR)

E QUE SE PONHA A ROUPA DO VENTO

Fabrício Carpinejar 

 

 

O jogo é inventar a goleira
mais do que a bola.

Garagens são traves,
lápides são traves,
cercas são traves,
chinelos são traves.

O que pode ser levado
com uma mão,
adivinhado pelas pernas.

Postes de luz são traves,
placas são traves,
lixeiras são traves,
bancos são traves.

Marcar o chão numa linha imaginária,
daqui pra ali é o campo.
E o mundo não existe mais
fora do giz branco.

Um quarto está pronto a céu aberto.
Um quintal no meio da casa.
Uma rua cortando a praça.

Corra no jardim sonâmbulo,
pise a grama com raiva, raízes
são cadarços amarrados
nos tornozelos das árvores.

Há coices, quedas, uivos:
nada termina a vida,
essa explosão suspirada.

É um transe, a trave;
trânsito parado, feriado.
O defensor descansa
na tranca dos joelhos.
O pássaro voa de cabeça a cabeça,
descasca a chuva, espalha os cabelos.

A trave é montinho, formigueiro,
capuz de ciscos, ninhos.
Formigas transportam alimento
por dentro dos seus riscos.

Que seja capacete de moto,
um tijolo, um toco,
qualquer troco de mato e entulho.

Dez passos ao lado e uma altura infinita,
fazer endereço para receber cartas,
desenhar gol de letra.

Trave é o quadro-negro dos pés.
Caroço de brilho, queimadura de cometa.
Na praia, no calçadão, no descampado.
Tudo o que foi costurado pelo invisível
entre o corpo e uma porta.

Pedras são traves,
bambus são traves,
frutas são traves.
Até crianças são traves
para o adulto passar
de volta à infância.


Poemas e Poesias sábado, 26 de dezembro de 2020

A FLOR DO CÁRCERE (POEMA DO FLUMINENSE EUCLIDES DA CUNHA)

A FLOR DO CÁRCERE

Euclides da Cunha

 

Nascera ali – no limo viridente
Dos muros da prisão – como uma esmola
Da natureza a um coração que estiola –
Aquela flor imaculada e olente…

E ele que fora um bruto, e vil descrente,
Quanta vez, numa prece, ungido, cola
O lábio seco, na úmida corola
Daquela flor alvíssima e silente!…

E ele – que sofre e para a dor existe –
Quantas vezes no peito o pranto estanca!..
Quantas vezes na veia a febre acalma,

Fitando aquela flor tão pura e triste!…
– Aquela estrela perfumada e branca,
Que cintila na noite de sua alma…


Poemas e Poesias sexta, 25 de dezembro de 2020

TROVAS HUMORÍSTICAS - 07 - (POEMA DO PARANAENSE ENO TEODORO WANKE)

TROVA HUMORÍSTICA 07

Eno Teodoro Wanke

 

Lua de mel disse alguém

Depois de alguma cachaça

É o prefácio divertido

De um livro muito sem graça

 


Poemas e Poesias quarta, 23 de dezembro de 2020

A IDEIA CONSOLADORA (POEMA DO CARIOCA DOM PEDRO II)

A IDEIA CONSOLADORA

Dom Pedro II

 

Vendo as ondas correr para o ocidente,
Corre mais do que elas a saudade,
Mas espero que a minha enfermidade
O mesmo me consinta brevemente.

Com saúde mais lustre dar à mente
É cousa que enobrece a humanidade;
Contudo agora o paga a amizade
Da pátria, e da família, cruelmente;

Mas consola-me a idéia, — que mais forte
Lhes voltarei para melhor amá-los,
Pois mais anos assim até a morte

Eu mostrarei que sempre quis ligá-los
Na feliz, e também na infeliz sorte
Para, amando-os, ainda consolá-los.


Poemas e Poesias terça, 22 de dezembro de 2020

COMO UMA SOMBRA LUMINOSA (POEMA DO PIAUIENSE DA COSTA E SILVA)

COMO UMA SOMBRA LUMINOSA

Da Costa e Silva

 

Uma vida de flor ou borboleta
Foi-lhe a existência efêmera e enganosa;
Passou como uma sombra luminosa
De beleza e bondade no planeta.

Na minha solidão de anacoreta,
Surgiu como uma deusa misteriosa...
Era simples e bela como a rosa,
Modesta e singular como a violeta.

Só de vê-la senti toda a inquietude
Que, por encanto, o coração invade,
Quando o amor o desperta, enleva e ilude.

Tive-a a encarnar minha felicidade;
Quis detê-la comigo, mas não pude,
Porque a beleza aspira à eternidade.


Poemas e Poesias segunda, 21 de dezembro de 2020

A PÁTRIA (POEMA DO CARIOCA OLAVO BILAC)

A PÁTRIA

Olavo Bilac

 

Ama, com fé e orgulho, a terra em que nasceste!

Criança! não verás nenhum país como este!
Olha que céu! que mar! que rios! que floresta!
A Natureza, aqui, perpetuamente em festa,
E um seio de mãe a transbordar carinhos.
Vê que vida há no chão! vê que vida há nos ninhos,
Que se balançam no ar, entre os ramos inquietos!
Vê que luz, que calor, que multidão de insetos!
Vê que grande extensão de matas, onde impera
Fecunda e luminosa, a eterna primavera!

Boa terra! jamais negou a quem trabalha
O pão que mata a fome, o teto que agasalha …

Quem com o seu suor a fecunda e umedece,
Vê pago o seu esforço, e é feliz, e enriquece!

Criança! não verás país nenhum como este:
Imita na grandeza a terra em que nasceste!


Poemas e Poesias segunda, 21 de dezembro de 2020

AO AR LIVRE (POEMA DO CATARINENSE CRUZ E SOUSA)

 

AO AR LIVRE

Cruz e Sousa

 

A Virgílio Várzea





  Tu trazes agora o peito    
  como essas urnas sagradas,    
  repleto de gargalhadas,    
  sonoro, bom, satisfeito.    

  Por dentro cantam assombros    
  e causas esplendorosas    
  como latadas de rosas    
  dos muros entre os escombros.    

  Quando o ideal nos alaga,    
  embora as lutas do mundo,    
  levanta-se um sol fecundo    
  do peito em cada uma chaga.    

  Voltou-se a seiva de outrora,    
  de outro, mais forte e destro,    
  iluminado maestro,    
  das harmonias da aurora.    

  Fulgurem por isso as musas,    
  as belas musas, por isso...    
  Voltou-te o passado viço,    
  foram-se as mágoas, confusas.    

  Agora, quando eu dirijo    
  meus passos, à tua porta,    
  sinto-te um bem que conforta,    
  vejo-te alegre e mais rijo.    

  Porque afinal pela vida    
  nem tudo se desmorona    
  quando se vaga na zona    
  da mocidade florida.    

  Gostas de ver pelos ramos    
  das verdes árvores novas,    
  a chocalhar umas trovas,    
  coleiros e gaturamos.    

  Já podes bem comer frutas,    
  os teus simpáticos jambos,    
  e ouvir alguns ditirambos    
  da natureza nas grutas.    

  Podes olhar as esferas,    
  com ar direito e seguro,    
  de frente para o futuro,    
  de lado para as quimeras.    

  Não tenhas cofres avaros    
  de santos -na luz te afoga,    
  e a alma arremessa e joga    
  por esses páramos claros.    

  Reúne os sonhos dispersos    
  como andorinhas vivaces    
  e o colorido das faces    
  ao coberto dos versos.    

  Como uns lábaros vermelhos,    
  contente como os lilases,    
  as crenças dos bons rapazes    
  tem prismas como os espelhos.

Poemas e Poesias domingo, 20 de dezembro de 2020

MASCARADOS (POEMA DA GOIANA CORA CORALINA)

MASCARADOS

Cora Coralina

 

Saiu o Semeador a semear
Semeou o dia todo
e a noite o apanhou ainda
com as mãos cheias de sementes.
Ele semeava tranqüilo
sem pensar na colheita
porque muito tinha colhido
do que outros semearam.
Jovem, seja você esse semeador
Semeia com otimismo
Semeia com idealismo
as sementes vivas
da Paz e da Justiça.


Poemas e Poesias sábado, 19 de dezembro de 2020

TEMEI, PENHAS (POEMA DO CARIOCA CLÁUDIO MANUEL DA COSTA)

TEMEI, PENHAS

Cláudio Manuel da Costa

 

 

Destes penhascos fez a natureza
O berço em que nasci: oh! quem cuidara
Que entre penhas tão duras se criara
Uma alma terna, um peito sem dureza!

Amor, que vence os tigres, por empresa
Tomou logo render-me; ele declara
Contra meu coração guerra tão rara
Que não me foi bastante a fortaleza.

Por mais que eu mesmo conhecesse o dano
A que dava ocasião minha brandura,
Nunca pude fugir ao cego engano;

Vós que ostentais a condição mais dura,
Temei, penhas, temei: que Amor tirano
Onde há mais resistência mais se apura.

 


Poemas e Poesias sexta, 18 de dezembro de 2020

NOSSA TRUCULÊNCIA (POEMA DA UCRANIANA-BRASILEIRA CLARICE LISPECTOR)

NOSSA TRUCULÊNCIA

Clarice Lispector

 

Quando penso na alegria voraz
com que comemos galinha ao molho pardo,
dou-me conta de nossa truculência.
Eu, que seria incapaz de matar uma galinha,
tanto gosto delas vivas
mexendo o pescoço feio
e procurando minhocas.
Deveríamos não comê-las e ao seu sangue?
Nunca.
Nós somos canibais,
é preciso não esquecer.
E respeitar a violência que temos.
E, quem sabe, não comêssemos a galinha ao molho pardo,
comeríamos gente com seu sangue.

Minha falta de coragem de matar uma galinha
e no entanto comê-la morta
me confunde, espanta-me,
mas aceito.
A nossa vida é truculenta:
nasce-se com sangue
e com sangue corta-se a união
que é o cordão umbilical.
E quantos morrem com sangue.
É preciso acreditar no sangue
como parte de nossa vida.
A truculência.
É amor também.


Poemas e Poesias quinta, 17 de dezembro de 2020

ARROJOS (POEMA DO PORTUGUÊS CESÁRIO VERDE)

ARROJOS

Cesário Verde

 

Se a minha amada um longo olhar me desse
Dos seus olhos que ferem como espadas,
Eu domaria o mar que se enfurece
E escalaria as nuvens rendilhadas.


Se ela deixasse, extáctico e suspenso
Tomar-lhe as mãos "mignonnes" e aquecê-las,
Eu com um sopro enorme, um sopro imenso
Apagaria o lume das estrelas.


Se aquela que amo mais que a luz do dia,
Me aniquilasse os males taciturnos,
O brilho dos meus olhos venceria
O clarão dos relâmpagos nocturnos.


Se ela quisesse amar, no azul do espaço,
Casando as suas penas com as minhas,
Eu desfaria o Sol como desfaço
As bolas de sabão das criancinhas.


Se a Laura dos meus loucos desvarios
Fosse menos soberba e menos fria,
Eu pararia o curso aos grandes rios
E a terra sob os pés abalaria.


Se aquela por quem já não tenho risos
Me concedesse apenas dois abraços,
Eu subiria aos róseos paraísos
E a Lua afogaria nos meus braços.


Se ela ouvisse os meus cantos moribundos
E os lamentos das cítaras estranhas,
Eu ergueria os vales mais profundos
E abateria as sólidas montanhas.


E se aquela visão da fantasia
Me estreitasse ao peito alvo como arminho,
Eu nunca, nunca mais me sentaria
Às mesas espelhentas do Martinho.


Poemas e Poesias quarta, 16 de dezembro de 2020

INSCRIÇÃO NA AREIA (POEMA DA CARIOCA CECÍLIA MEIRELES)

INSCRIÇÃO NA AREIA

Cecília Meireles

 

O meu amor não tem
importância nenhuma.
Não tem o peso nem
de uma rosa de espuma
 
Desfolha-se por quem?
Para quem se perfuma?
 
O meu amor não tem
importância nenhuma.

Poemas e Poesias segunda, 14 de dezembro de 2020

LOUCURA DIVINA (31ª PARTE DO POEMA A CACHOEIRA DE PAULO AFONSO, DO BAIANO CASTRO ALVES)

LOUCURA DIVINA

Castro Alves

(Do poema A Cachoeira de Paulo Afonso)

 

 

—"SABES que voz é esta?"
Ela cismava!...
— "Sabes, Maria?
— "É uma canção de amores.
Que além gemeu!"
— "É o abismo, criança!..."
A moça rindo
Enlaçou-lhe o pescoço:
— "Oh! não! não mintas!
Bem sei que é o céu!"

—"Doida! Doida! É a voragem que nos chama!..."
—"Eu ouço a Liberdade!"
— "É a morte, infante!
— "Erraste. É a salvação!"
—Negro fantasma é quem me embala o esquife!"
—"Loucura! É tua Mãe ... O esquife é um berço,
Que bóia namplidão!..."

— "Não vês os panos dágua como alvejam
Nos penedos? Que gélido sudário
O rio nos talhou!"
— "Veste-me o cetim branco do noivado...
Roupas alvas de prata... albentes dobras...
Veste-me!... Eu aqui estou."

—JÁ na proa espadana, salta a espuma... "
—São as flores gentis da laranjeira
Que o pego vem nos dar...
Oh! névoa! Eu amo teu sendal de gaze!...
Abram-se as ondas como virgens louras,
Para a Esposa passar!...

"As estrelas palpitam! — São as tochas!
Os rochedos murmuram!... São os monges!
Reza um órgão nos céus!
Que incenso! — Os rolos que do abismo voam!
Que turíbulo enorme — Paulo Afonso!
Que sacerdote! — Deus..."


Poemas e Poesias domingo, 13 de dezembro de 2020

ASSIM! A M.*** (POEMA DO FLUMINENSE CASIMIRO DE ABREU)

ASSIM! AM.***

Casimiro de Abreu

 

 


Viste o lírio da campina? 
Lá s’inclina 
E murcho no hastil pendeu! 
- Viste o lírio da campina? 
Pois, divina, 
Como o lírio assim sou eu! 
Nunca ouviste a voz da flauta, 
A dor do nauta 
Suspirando no alto mar? 
- Nunca ouviste a voz da flauta? 
Como o nauta 
É tão triste o meu cantar! 
Não viste a rola sem ninho 
No caminho 
Gemendo, se a noite vêm? 
- Não viste a rola sem ninho? 
Pois, anjinho 

Assim eu gemo, também! 
Não viste a barca perdida, 
Sacudida 
Nas asas dalgum tufão? 
Não viste a barca fendida? 
Pois, querida, 
Assim vai meu coração! 


Poemas e Poesias sábado, 12 de dezembro de 2020

MEMÓRIAS DO BOI SERAPIÃO (POEMA DO PERNAMBUCANO CARLOS PENA FILHO)

MEMÓRIAS DO BOI SERAPIÃO

Carlos Pena Filho

 

Este campo,
vasto e cinzento,
não tem começo nem fim,
nem de leve desconfia
das coisas que vão em mim.

Deve conhecer, apenas
(porque são pecados nossos)
o pó que cega meus olhos
e a sede que rói meus ossos.

No verão, quando não há
capim na terra
e milho no paiol
solenemente mastigo
areia, pedras e sol.

Às vezes, nas longas tardes
do quieto mês de dezembro
vou a uma serra que sei
e as coisas da infância lembro:

instante azul em meus olhos
vazios de luz e fé
contemplando a festa rude
que a infância dos bichos é …

No lugar onde eu nasci
havia um rio ligeiro
e um campo verde e mais verde
de um janeiro a outro janeiro

havia um homem deitado
na rede azul do terraço
e as filhas dentro do rio
diminuindo o mormaço.

Não tinha as coisas daqui:
homens secos e compridos
e estas mulheres que guardam
o sol na cor dos vestidos

nem estas crianças feitas
de farinha e jerimum
e a grande sede que mora
no abismo de cada um.

Havia este céu de sempre
e, além disto, pouco mais
que as ondas nas superfícies
dos verdes canaviais.

Mas, os homens que moravam
na língua do litoral
falavam se desmanchando
das terras gordas e grossas
daquele canavial

e raras vezes guardavam
suas lembranças mofinas
as fumaças que sujavam
os claros céus que cobriam
as chaminés das usinas.

Às vezes, entre iguarias,
um comentário isolado:
a crônica triste e curta
de um engenho assassinado.

Mas logo à mesa voltavam
que a fome bem pouco espera
e os seus olhos descansavam
em porcelanas da China
e cristais da Baviera.

Naquelas terras da mata
bem poucos amigos fiz,
ou porque não me quiseram
ou então porque eu não quis.

Lembro apenas um boi triste
num lençol de margaridas
que era o encanto do menino
que alegre o tangia para
as colinas coloridas.

Um dia, naquelas terras
foi encontrado um boi morto
e os outros logo disseram
que o seu dono era o homem torto

que em vez de contar as coisas
daqueles canaviais
vivia de mexericos
“entre estas índias de leste
e as Índias Ocidentais”.

A verde flora da mata
(que é azul por ser da infância)
habita: os meus olhos com
serenidade e constância.

Este campo,
vasto e cinzento,
é onde às vezes me escondo
e envolto nestas lembranças
durmo o meu sono redondo,

que o que há de bom por aqui
na terra do não chover
é que não se espera a morte
pois se está sempre a morrer:

Em cada poço que seca
em cada árvore morta
em cada sol que penetra
na frincha de cada porta

em cada passo avançado
no leito de cada rio
por todo tempo em que fica
despido, seco, vazio.

Quando o sol doer nas coisas
da terra e no céu azul
e os homens forem em busca
dos verdes mares do sul,

só eu ficarei aqui
para morrer por completo,
para dar a carne à terra
e ao sol meu branco esqueleto,

nem ao menos tentarei
voltar ao canavial,
pra depois me dividir
entre a fábrica de couro
e o terrível matadouro
municipal.

E pensar que já houve um tempo
em que estes homens compridos
falavam de nós assim:
o meu boi morreu,
que será de mim?

Este campo,
vasto e cinzento,
não tem entrar nem sair
e nem de longe imagina
as coisas que estão por vir,

e enquanto o tempo não vem
nem chega o milho ao paiol
solenemente mastigo
areia, pedras e sol.


Poemas e Poesias sexta, 11 de dezembro de 2020

ALÉM DA TERRA, ALÉM DO CÉU (POEMA DO MINEIRO CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE)

ALÉM DA TERRA, ALÉM DO CÉU

Carlos Drummond de Andrade

 

Além da terra, além do céu
no trampolim do sem-fim das estrelas,
no rastros dos astros,
na magnólia das nebulosas.
Além, muito além do sistema solar
até onde alcançam o pensamento e o coração,
vamos!
vamos conjugar
o verbo fudamental essencial
o verbo transcendente, acima das gramáticas
e do medo e da moeda e da política,
o verbo sempreamar
o verbo pluriamar,
razão de ser e viver.

 


Poemas e Poesias quinta, 10 de dezembro de 2020

SONETO 043 - COMO QUANDO DO MAR TEMPESTUOSO (POEMA DO PORTUGUÊS LUÍS DE CAMÕES)

 

COMO QUANDO DO MAR TEMPESTUOSO

Soneto 043

Luís de Camões

 

 

 

Como quando do mar tempestuoso
o marinheiro, lasso e trabalhado,
de um naufrágio cruel já salvo a nado,
só ouvir falar nele o faz medroso,

e jura que, em que veja bonançoso
o violento mar e sossegado,
não entre nele mais, mas vai, forçado
pelo muito interesse cobiçoso;

assi, Senhora, eu, que da tormenta
de vossa vista fujo, por salvar-me,
jurando de não mais em outra ver-me:

minha alma, que de vós nunca se ausenta,
dá-me por preço ver-vos, faz tornar-me
donde fugi tão perto de perder-me.

 


Poemas e Poesias quarta, 09 de dezembro de 2020

OUTRO SONETO AO FRANÇA (POEMA DO PORTUGUÊS MANUEL MARIA BARBOSA DU BOCAGE)

OUTRO SONETO AO FRANÇA

Bocage

 

Rapada, amarelenta, cabeleira,

Vesgos olhos, que o chá, e o doce engoda,

Boca, que à parte esquerda se acomoda,

(Uns afirmam que fede, outros que cheira):

 

Japona, que da ladra andou na feira;

Ferrugento faim, que já foi moda

No tempo em que Albuquerque fez a poda

Ao soberbo Hidalcão com mão guerreira:

 

Ruço calção, que esporra no joelho

Meia e sapato, com que ao lodo avança,

Vindo a encontrar-se c'o esburgalhado artelho:

 

Jarra, com apetites de criança;

Cara com semelhança de besbelho;

Eis o bedel do Pindo, o doutor França.


Poemas e Poesias terça, 08 de dezembro de 2020

O SONHO (POEMA DA MINEIRA BÁRBARA HELIODORA)

O SONHO

Bárbara Heliodora

 

Oh que sonho! Oh! que sonho eu tive n'esta,

Feliz, ditosa e socegada sésta!

Eu vi o Pão de Assucar levantar-se

E no meio das ondas transformar-se

Na figura de um indio o mais gentil,

Representando só todo o Brazil.

Pendente ao tiracol de branco arminho

Concavo dente de animal marinho

As preciosas armas lhe guardava;

Era thesoiro e juntamente aljava.

De pontas de diamante eram as setas,

As hásteas d'oiro, mas as pennas pretas;

Que o indio valeroso altivo e forte

Não manda seta, em que não mande a morte,

Zona de pennas de vistosas côres

Guarnecida de barbaros lavores,

De folhetas e perolas pendentes,

Finos chrystaes, topazios transparentes,

Em recamadas pelles de sahiras,

Rubins, e diamantes e saphiras,

Em campo de esmeralda escurecia

A linda estrella, que nos traz o dia.

No cocar... oh que assombro! oh que riqueza!

Vi tudo quanto póde a natureza.

No peito em grandes letras de diamante

O nome da augustissima imperante.

De inteiriço coral novo instrumento

As mãos lhe occupa, em quanto ao doce accento

Das saudosas palhetas, que afinava,

Pindaro americano assim cantava.

 

Sou vassallo e sou leal,

Como tal,

Fiel constante,

Sirvo á glória da imperante,

Sirvo á grandeza real.

Aos elysios descerei

Fiel sempre a Portugal,

Ao famoso vice-rei,

Ao illustre general,

Ás bandeiras, que jurei,

Insultando o fado e a sorte,

E a fortuna desigual,

Qu'a quem morrer sabe, a morte

Nem é morte, nem é mal.


Poemas e Poesias segunda, 07 de dezembro de 2020

RICORDANZA DELLA MIA GIOVENTÚ (POEMA DO CAPIXABA AUGUSTO DOS ANJOS)

RICORDANZA DELLA MIA GIOVENTÚ

Augusto dos Anjos

 

 
 
A minha ama de leite Guilhermina
Furtava as moedas que o doutor me dava.
Sinhá-Mocinha, minha Mãe, ralhava...
Via naquilo a minha própria ruína!

Minha ama, então, hipócrita, afetava
Suscetibilidades de menina:
"- Não, não fora ela! -" E maldizia a sua sina,
Que ela absolutamente não furtava.

Vejo, entretanto, agora em minha cama,
Que a mim somente cabe o furto feito...
Tu só furtaste a moeda, o oiro que brilha...

Furtaste a moeda só, mas eu, minha ama,
Eu furtei mais, porque furtei o peito
Que dava leite para a tua filha!

Poemas e Poesias domingo, 06 de dezembro de 2020

POEMAS MINUTO (POEMA DO PERNAMBUCANO ASCENSO FERREIRA)

POEMAS MINUTO

Ascenso Ferreira

 

Filosofia

 

     Hora de comer, —comer!

     Hora de dormir, — dormir!

     Hora de vadiar, — vadiar!

     Hora de trabalhar?

     — pernas pro ar que ninguém é de ferro!

 

Sucessão de São Pedro

 

     — Seu vigário!

     Está aqui esta galinha gorda

     que eu trouxe pro mártir São Sebastião!

     — Está falando com ele!

     — Está falando com ele!


Poemas e Poesias sexta, 04 de dezembro de 2020

DÍSTICO (POEMA DO PARAIBANO ARIANO SUASSUNA)

DÍSTICO

Ariano Suassuna

 

Sob o Sol deste Pasto Incendiado,
montado para sempre num Cavalo
que a Morte lhe arreou,
vê-se, aqui, quem, na vida, bravo, ardente
e indeciso, sonhou.

Pelas cordas-de-prata da Viola,
os cantares-de-sangue e o doido riso
de seu Povo cantou.
Foi dono da Palavra de seu tempo,
Cavaleiro da gesta sertaneja,
Vaqueiro e caçador.

Se morreu moço e em sangue, teve tempo
de governar seus pastos e rebanhos,
e a feiosa velhice
jamais o degradou.

Glória, portanto, à Morte e a suas garras,
pois, ao sagrá-lo, assim, da vida ao meio,
do Desprezo o salvou:
poupou-lhe a Cinza triste, a Decadência,
gravou sua grandeza em pedra e fogo,
e assim a conservou.


Poemas e Poesias quinta, 03 de dezembro de 2020

DESALENTO (POEMA DO PAULISTA ÁLVARES DE AZEVEDO)

DESALENTO

Álvares de Azevedo

 

Feliz daquele que no livro d'alma
Não tem folhas escritas
E nem saudade amarga, arrependida,
Nem lágrimas malditas!
 
Feliz daquele que de um anjo as tranças
Não respirou sequer
E nem bebeu eflúvios descorando
Numa voz de mulher...
 
E não sentiu-lhe a mão cheirosa e branca
Perdida em seus cabelos,

Nem resvalou do sonho deleitoso
A reais pesadelos...
 
Quem nunca te beijou, flor dos amores,
Flor do meu coração,
E não pediu frescor, febril e insano
Da noite à viração!
 
Ah! feliz quem dormiu no colo ardente
Da huri dos amores,
Que sôfrego bebeu o orvalho santo
Das perfumadas flores...
 
E pôde vê-la morta ou esquecida
Dos longos beijos seus,
Sem blasfemar das ilusões mais puras
E sem rir-se de Deus!
 
Mas, nesse doloroso sofrimento
Do pobre peito meu,
Sentir no coração que à dor da vida
A esperança morreu!...
 
Que me resta, meu Deus? aos meus suspiros
Nem geme a viração...
E dentro, no deserto do meu peito,
Não dorme o coração!


Poemas e Poesias quarta, 02 de dezembro de 2020

AMADA FILHA, É JÁ CHEGADO O DIA (POEMA DO CARIOCA ALVARENGA PEIXOTO)

AMADA FILHA, É JÁ CHEGADO O DIA

Alvarenga Peixoto

 

Amada filha, é já chegado o dia,
em que a luz da razão, qual tocha acesa
vem conduzir a simples natureza,
é hoje que o teu mundo principia.

A mão que te gerou teus passos guia,
despreza ofertas de uma vã beleza,
e sacrifica as honras e a riqueza
às santas leis do filho de Maria.

Estampa na tua alma a caridade,
que amar a Deus, amar aos semelhantes,
são eternos preceitos da verdade.

Tudo o mais são idéias delirantes;
procura ser feliz na eternidade,
que o mundo são brevíssimos instantes.

 


Poemas e Poesias terça, 01 de dezembro de 2020

COMO SE MOÇO E NÃO BEM VELHO EU FOSSE (POEMA DO MINEIRO ALPHONSUS GUIMARAENS)

COMO SE MOÇO E NÃO BEM VELHO EU FOSSE

Alphonsus Guimaraens

 

 

Como se moço e não bem velho eu fosse,
Uma nova ilusão veio animar-me,
Na minh’alma floriu um novo carme,
O meu ser para o céu alcandorou-se.

Ouvi gritos em mim como um alarme.
E o meu olhar, outrora suave e doce,
Nas ânsias de escalar o azul, tornou-se
Todo em raios, que vinham desolar-me.

Vi-me no cimo eterno da montanha
Tentando unir ao peito a luz dos círios
Que brilhavam na paz da noite estranha.

Acordei do áureo sonho em sobressalto;
Do céu tombei ao caos dos meus martírios,
Sem saber para que subi tão alto…


Poemas e Poesias segunda, 30 de novembro de 2020

A TEMPESTADE (1828) - (POEMA DO PORTUGUÊS ALMEIDA GARRETT)

A TEMPESTADE (1828)

Almeida Garrett

 

Virgílio,
Coeco carpitur igni
I

Sobre um rochedo
Que o mar batia,
Triste gemia
Um desgraçado,
Terno amador.
Já nem lhe caem
Dos olhos lágrimas,
Suspiros férvidos
Apenas contam
Seu triste amor.

II

Ondas, clamava o mísero,
Ondas que assim bramais,
Ouvi meus tristes ais!
Horrível tempestade,
Medonho furacão,
Não é mais agitado
Do que o meu coração,
O vosso despregado,
Horrisonoo bramar!
Ancia que atropela
Meu lânguido peito,
É mais violenta
Que o tempo desfeito,
Que a onda encapela,
Que a agita a tormenta
No seio do mar.

III

Mas, ah! se o negrume
O sol dissipara
Calmara
Seu nume,
O horror do tufão.
Assim à minha alma
A calma
Daria
De Armia
Um sorriso:
Um raio de esprança
Do paraíso
Traria
A bonança
Ao meu coração.


Poemas e Poesias domingo, 29 de novembro de 2020

À MINHA FILHA (POEMA DO FLUMINENSE ALBERTO DE OLIVEIRA)

À MINHA FILHA

Alberto de Oliveira

 

Vejo em ti repetida,
A anos de distância,
A minha própria vida,
A minha própria infância.

É tal a semelhança,
É tal a identidade,
Que é só em ti, criança,
Que entendo a eternidade.

Todo o meu ser se exala,
Se reproduz no teu:
É minha a tua fala,
Quem vive em ti, sou eu.

Sorris como eu sorria,
Cismas do meu cismar,
O teu olhar copia,
Espelha o meu olhar.

És como a emanação,
Como o prolongamento,
Quer do meu coração,
Quer do meu pensamento.

Encarnas de tal modo
Minha alma fugitiva,
Que eu não morri de todo
Enquanto sejas viva!

Por que mistério imenso
Se fez a transmissão
De quanto sinto e penso
Para esse coração?

Foi como se eu andasse
Noutra alma a semear
Meu peito, minha face,
Meu riso, meu olhar...

Meus íntimos desejos,
Meus sonhos mais doirados,
Florindo com meus beijos
Os campos semeados.

Bendita é a colheita,
Deus confiou em nós...
Colhi-te, flor perfeita,
Eco da minha voz!

Foi o amor, foi o amor,
Ó filha idolatrada,
O sopro criador
Que te tirou do nada!

Deus bendito e louvado,
Ó filha estremecida,
Por te cá ter mandado
A reviver-me a vida!


Poemas e Poesias sábado, 28 de novembro de 2020

ARTE FINAL (POEMA DO MINEIRO AFFONSO ROMANO DE SANT,ANNA)

ARTE FINAL

Affonso Romano de Sant'Anna

 

Não basta um grande amor
para fazer poemas.
E o amor dos artistas, não se enganem,
não é mais belo
que o amor da gente.
O grande amante é aquele que silente
se aplica a escrever com o corpo
o que seu corpo deseja e sente.
Uma coisa é a letra,
e outra o ato,
quem toma uma por outra
confunde e mente.


Poemas e Poesias sexta, 27 de novembro de 2020

DIA (POEMA DA MINEIRA ADÉLIA PRADO)

DIA

Adélia Prado

As galinhas com susto abrem o bico
e param daquele jeito imóvel
- ia dizer imoral -
as barbelas e as cristas envermelhadas,
só as artérias palpitando no pescoço.
Uma mulher espantada com sexo:
mas gostando muito.


Poemas e Poesias quinta, 26 de novembro de 2020

DO FIM AO PRINCÍPIO (POEMA DA CARIOCA ADALGISA NERY)

DO FIM AO PRINCÍPIO

Adalgisa Nery

 

 

Nada mais acontecerá

Porque tudo Já aconteceu.

Amanhã é ontem e ontem é hoje.

Meu nascimento, minha vida,

Minha morte e meu julgamento

Já chegaram dentro de mim

Antes de chegar para todos.

Sei que ninguém mais nascerá,

Se alguém nasceu foi um instante

E os que vivem foram abafados

Antes de acabar como cosmos, como universo.

Em tudo e para tudo o mundo já começou por acabar dentro de

                                                                     [mim mesma.

Espero o princípio, porque o fim

Já está comigo desde a minha formação.


Poemas e Poesias quarta, 25 de novembro de 2020

AMOR (POEMA DA PORTUGUESA VIRGÍNIA VICTORINO)

AMOR

Virgínia Victorino

 

O amor! O amor! Ninguém o definiu.
É sempre o mesmo. Acaba onde começa.
Quem mais o sente menos o confessa,
e quem melhor o diz nunca o sentiu.

Conhece a todos mas ninguém o viu.
Se o procuramos, foge-nos depressa.
Se o desprezamos, todo se interessa,
só está presente quando já fugiu.

É homem feito sendo criança.
E quanto mais se quer menos se alcança,
ninguém o encontra, e em toda parte mora.

Mata a quem dele vive. É sempre assim.
Só principia quando chega o fim,
morreu há muito e nasce a cada hora.


Poemas e Poesias terça, 24 de novembro de 2020

A ESPOSA (POEMA DO CARIOCA VINÍCIUS DE MORAES)

 

A ESPOSA

Vinícius de Moraes

Às vezes, nessas noites frias e enevoadas
Onde o silêncio nasce dos ruídos monótonos e mansos
Essa estranha visão de mulher calma
Surgindo do vazio dos meus olhos parados
Vem espiar minha imobilidade.

E ela fica horas longas, horas silenciosas
Somente movendo os olhos serenos no meu rosto
Atenta, à espera do sono que virá e me levará com ele.
Nada diz, nada pensa, apenas olha — e o seu olhar é como a luz
De uma estrela velada pela bruma.
Nada diz. Olha apenas as minhas pálpebras que descem
Mas que não vencem o olhar perdido longe.
Nada pensa. Virá e agasalhará minhas mãos frias
Se sentir frias suas mãos.
Quando a porta ranger e a cabecinha de criança
Aparecer curiosa e a voz clara chamá-la num reclamo
Ela apontará para mim pondo o dedo nos lábios
Sorrindo de um sorriso misterioso
E se irá num passo leve
Após o beijo leve e roçagante...

Eu só verei a porta que se vai fechando brandamente...

Ela terá ido, a esposa amiga, a esposa que eu nunca terei.


Poemas e Poesias segunda, 23 de novembro de 2020

CARTA A V. S. (POEMA DO PAULISTA VICENTE DE CARVALHO)

CARTA A V. S.

Vicente de Carvalho

 

Artista, amigo, irmão, sê generoso e pio,
Perdoa a um pescador seus pecados mortais!
Eu, alma em turbilhão, corpo em cacos expio
Com remorsos cruéis e cólicas fatais
—Faltas em que reincido, erros em que porfio.

Ai, no fundo, não sou mais do que um bugre, eis tudo.
Corre abundante em mim sangue de guaianás.
Veste-me a pele branca o espírito desnudo,
Simples, rudimentar, insubmisso, incapaz,
Que porventura herdei de algum avô beiçudo.

Imagina que sou neto de algum cacique
Cuja vida feliz de nômade sem lar
Tinha a alegre feição de um grande piquenique;
E em cuja fronte altiva as plumas de um cocar
Eram como a expressão ritual do último chic.

Algum bugre feroz, cujo corpo bronzeado
Mantinha a liberdade inata da nudez;
Que dormia tranquilo um sonho descuidado
—Passivo, indiferente, enfarado talvez—
Sob o mistério azul do céu todo estrelado.

Ignorando o pavor da vida extra-terrena,
Tinha para o Futuro um olhar de imbecil;
E, passando na Terra, inútil, em pequena
Viagem através da natureza hostil,
Vivia sem cuidado e morria sem pena.

Vegetava feliz, sem lei, sem rei nem roque.
Sua única ambição era a fome vivaz,
Sua única riqueza, uma flecha e um bodoque;
E abria-se num riso eterno e contumaz
O seu lábio — fendido ao peso do batoque.

Imagina tu, pois, a alma do avô selvagem
Comprimida, esmagada, atônita, infeliz,
Metida numa vasta e complexa engrenagem
De deveres morais e tramoias sutis,
De apuros de dinheiro e apuros de linguagem;

Imagina esse filho inculto da floresta,
Que ama o céu porque é belo, e ama o sol porque luz,
—Perdido na cidade ignóbil e funesta,
Cheia de sombra e pó, caiada e desonesta,
Velha Aspásia, garrida, e a desfazer-se em pus;

Vê se esse humilde e tosco espírito imaginas,
Ao sabor de uma turba em grita e em confusão,
Pela prédica e o livro, os jornais e as mofinas,
Arrastado em tropel — disputado em leilão
Em nome de três mil Sistemas e Doutrinas;

Imagina cativa, entregue, submetida
Aos caprichos da Moda e à exigência das Leis,
Entre o encanto do Mal e a ideia da Outra Vida,
Entre o culto de Deus e o culto do Mil-réis,
Entre o padre e vendeiro, entre o Verso e a Comida;

Ai, imagina assim a alma do bugre bravo,
Meu avô — que, no mato, era dono feliz
Do seu tempo vazio e do seu gosto ignavo,
Que era, em suma, o senhor do seu próprio nariz...
—Alma livre que em mim reviveu num escravo!

Alma apenas capaz de adejar, fugidiça,
Em voos leves de uma asa de beija-flor;
E obrigada a pairar nas regiões da Justiça
Como um corvo que sobe ao céu todo esplendor
Para, do alto, melhor lobrigar a carniça...

Ai, a alma do tupi, bem mal domesticada
À macaqueação cabocla do europeu,
Conserva, forte e viva, a angustia de exilada,
A saudade fiel de tudo que perdeu,
Da floresta nativa, ausente e devastada.

Assim, de quando em quando assalta-me a cachola
Um furioso desejo — ou do mato, ou do mar,
Das vastas solidões onde ninguém me amola...
E, pássaro cativo, eu fujo, a me escapar
Da Civilização — como de uma gaiola.

Fujo, escapo, disparo através das vielas
Plenas de agitação, de atritos e de pó;
Salvo-me, aos esbarrões, dando cebo às canelas,
A ouvir a voz de algum descendente de Jó
Que apregoa Moral — coberto de mazelas.

Liberto, a salvo enfim, penetro na floresta
Como num templo augusto habitado por Deus;
E ante o vasto esplendor da natureza em festa,
Sob a auréola em que a cinge a abóbada dos céus
—Rendo-lhe a adoração que o meu olhar lhe presta.

Nem padres, nem altar, nem liturgia... Um coro
De aves canta a alegria ingênua de viver;
De longe em longe reza e resmunga um besouro,
E sobe, como incenso, o perfume, a se erguer
Da sombra em flor do chão que o sol polvilha de ouro.

E, por um dia ou dois, eis-me entregue, alma antiga
De bugre ressurreto, o olhar vago, os pés nus,
À doce Religião da Natureza amiga...
Erro à toa; o primeiro atalho me conduz,
Ver o céu me contenta; uma árvore me abriga.

Estendo-me na relva; e, na delícia absorto
De sentir a alma leve, ôca, vazia... assim
Gozo a beatitude inteira do conforto
De me deixar levar pelo tempo sem fim
Como um toco sem vida a boiar num mar morto.

Não pensar, não querer... A ambição e a saudade
Adormecidas; morta essa ilusão pueril
De fazer intervir no Destino a Vontade...
Ignorar o Minuto, inseto odioso e vil
Que rói a vida e vai tecendo a eternidade...

Na solidão do mato, esqueço, ignoro, em suma:
Sou feliz. Do sueto a esta alma de aluguel
Que vive, de auto em auto, a desfazer-se em espuma;
E, livre do canudo atroz de bacharel,
Passo orgulhosamente a ser coisa nenhuma.

E o mar então... O mar, o velho confidente
De sonhos que a mim mesmo hesito em confessar,
Atrai-me; a sua voz chama-me docemente,
Dá-me uma embriaguez como feita de luar...
O mar é para mim como o Céu para um crente.

Vê tu lá, Valdomiro, o bugre apenas manso
Que eu sou. Sob o verniz que me disfarça, está
O tapuia boçal, bravio como um ganso,
Devoto da Preguiça, amigo do descanso,
—Um neto do remoto avô Tibiriçá.

Ímpetos de voltar, fugido, para o mato,
De me fazer ao mar numa casca de noz:
Eis o vício do bugre, eis o meu vício inato,
Eis o que eu em remorso e em cólicas resgato,
Eis o crime de ser neto dos meus avós.

E agora, conhecendo a verdade inteiriça,
Perdoa a um pescador seus pecados mortais,
Perdoa a um preguiçoso os crimes da Preguiça,
E a um bugre como eu sou, não ter na alma insubmissa
O culto da Visita e dos Cartões Postais!

Falando agora a sério — e envergonhado o digo:
Não, desculpa, não há que ouse em prosa valer
Às mil faltas em que eu estou para contigo.
O verso diz... o que não há para dizer:
Pague, pois, o poeta as dívidas do amigo.

Paga-as; paga-as à vista, em rima numerosa;
Paga-as de rosto alegre e coração feliz,
Porque, na mesma estrofe exata e afetuosa,
Pôde, na mesma voz que o mesmo verso diz,
Saudar a um tempo o amigo e o príncipe da prosa.

Lida a defesa, que é tão extensa e tão crua,
Outorga ao réu confesso num perdão liberal...
Pai do céu! ainda aqui fiz uma falcatrua:
Sendo a defesa assim tão comprida — afinal
Os pecados são meus — e a penitência é tua...


Poemas e Poesias domingo, 22 de novembro de 2020

A RUA (POEMA DO PIAUIENSE TORQUATO NETO)

A RUA

Torquato Neto

 

Toda rua tem seu curso
Tem seu leito de água clara
Por onde passa a memória
Lembrando histórias de um tempo
Que não acaba
De uma rua, de uma rua
Eu lembro agora
Que o tempo, ninguém mais
Ninguém mais canta
Muito embora de cirandas
(Oi, de cirandas)
E de meninos correndo
Atrás de bandas
Atrás de bandas que passavam
Como o rio Parnaíba
Rio manso
Passava no fim da rua
E molhava seus Lajedos
Onde a noite refletia
O brilho manso
O tempo claro da lua
Ê, São João, é, Pacatuba
Ê, rua do Barrocão
Ê, Parnaíba passando
Separando a minha rua
Das outras, do Maranhão
De longe pensando nela
Meu coração de menino
Bate forte como um sino
Que anuncia procissão
Ê, minha rua, meu povo
Ê, gente que mal nasceu
Das Dores, que morreu cedo
Luzia, que se perdeu
Macapreto, Zê Velhinho
Esse menino crescido
Que tem o peito ferido
Anda vivo, não morreu

Ê, Pacatuba
Meu tempo de brincar já foi-se embora
Ê, Parnaíba
Passando pela rua até agora
Agora por aqui estou com vontade
E eu volto pra matar esta saudade
Ê, São João, é, Pacatuba
Ê, rua do Barrocão.


Poemas e Poesias sábado, 21 de novembro de 2020

A HORA CINZENTA (POEMA DO FLUMINENSE RAUL DE LEÔNI)

A HORA CINZENTA

Raul de Leôni

 

Desce um longo poente de elegia
Sobre as mansas paisagens resignadas;
Uma humaníssima melancolia
Embalsama as distancias desoladas…

Longe, num sino antigo, a Ave-Maria
Abençoa a alma ingênua das estradas;
Andam surdinas de anjos e de fadas,
Na penumbra nostálgica, macia…

Espiritualidades comoventes
Sobem da terra triste, em reticência
Pela tarde sonâmbula, imprecisa…

Os sentidos se esfumam, a alma é essência
E entre fugas de sombras transcendentes,
O pensamento se volatiliza…


Poemas e Poesias sexta, 20 de novembro de 2020

COPACABANA 1945 (POEMA DO MINEIRO PAULO MENDES CAMPOS)

COPACABANA  1945

Paulo Mendes Campos

 

I

As fichas finais do jogo
foram recolhidas; fecha-se
o cassino; abre-se em fogo

o coração que devora.
Vejo em vez de eternidade
no relógio minha hora.

E se quiser vejo a tua.
Às cinco tinhas encontro
num cotovelo de rua.

As cigarras do verão
tiniam quando sugavas
teu uísque com sifão.

Às onze no Wunder Bar
por meio acaso encontravas
a mulher que anda no ar.

Às três em Copacabana
uma torpeza uterina
pestana contra pestana.

As quatro e pouco saías,
comias um boi às cinco,
às seis e meia morrias.

Às duas ressuscitavas,
às cinco tinhas encontro,
às sete continuavas.


II

A mensagem abortada

de Copacabana perde-se
na viração: não é nada.

Morre um homem na polícia.
Tantos casos. Não é nada:
os jornais dão a notícia.

Uma criança que come
restos na lata de lixo
não é nada: mata a fome.

Não é nada. A favela
pega fogo. Não é nada:
faz-se um samba para ela.

Um moço mata a família
e se mata. Não é nada:
poupa o drama à tua filha.

Uma menina estuprada.
Uma virgem cai do céu.
Nada. Copacabanada.


VI

Copacabana, golfão
sexual: soma dois corpos
mas divide solidão.


VII

Pelas piscinas suspensas,
pelas gargantas dos galos,
pelas navalhas intensas,

pelas tardes comovidas,
pelos tamborins noturnos,
pelas pensões abatidas,


eu vou por onde vou; vou
pelas esquinas da treva:
Copacabana acabou.


Poemas e Poesias quinta, 19 de novembro de 2020

VISTA IGNOTA (POEMA DO CEARENSE QUINTINO CUNHA)

VISTA IGNOTA

Quintino Cunha

 

Há um ruído infernal, dentro do leito

Do rio. A lontra rosna. A capivara

Espavorida esconde-se no estreito

De um paraná, que a enchente ali formara.

 

O jacaré, levando tudo de eito,

Foge, estrugindo horrivelmente; e, para

Mais aumentar o grande ruído feito,

O rio inteiro se convulsionara...

 

E, enquanto em medo tudo se alvorota,

Nesta paisagem visualmente ignota,

Mas facilmente do índio percebida,

 

Uma anta firme, calma que arrebata,

Corta o fundo das águas, distraída,

Como se fosse andando pela mata!...


Poemas e Poesias quarta, 18 de novembro de 2020

A DOUTOR DO AIVÃO (POEMA DE PATATIVA DO ASSARÉ) DECLAMAÇÃO


Poemas e Poesias terça, 17 de novembro de 2020

NOITE DE NÚPCIAS (POEMA DO CEARENSE PADRE ANTÔNIO TOMÁS)

NOITE DE NÚPCIAS

Padre Antônio Tomás

 

Noite de gozo, noite de delícias,
Aquela em que a noiva carinhosa,
Vai do seu noivo receber carícias
No leito sobre a colcha cor de rosa.

Sonha acordada coisa fictícias,
Volvendo-se sobre o leito voluptuosa,
E o anjo de amor e de carícias
Fecha a cortina tênue e vaporosa.

Ouvem-se beijos tímidos, ardentes,
Por baixo da cortina assim velada,
Em suspiros tristes e dolentes.

Se fitássemos a noiva agora exangue,
Vê-la-íamos bem triste e descorada
E o leito nupcial banhado em sangue.


Poemas e Poesias segunda, 16 de novembro de 2020

BALADAS ROMÂNTICAS (POEMA DO CARIOCA OLAVO BILAC)

BALADAS ROMÂNTICAS

Olavo Bilac

 

I

 

Branca...

 

Vi-te pequena: ias rezando

Para a primeira comunhão:

Toda de branco, murmurando,

Na fronte o véu, rosas na mão.

Não ias só: grande era o bando...

Mas entre todas te escolhi:

Minh’alma foi te acompanhando,

A vez primeira em que te vi.

 

Tão branca e moça! o olhar tão brando!

Tão inocente o coração!

Toda de branco, fulgurando,

Mulher em flor! flor em botão!

Inda, ao lembrá-lo, a mágoa abrando,

Esqueço o mal que vem de ti,

E, o meu ranços estrangulando,

Bendigo o dia em que te vi!

Rosas na mão, brancas... E, quando

Te vi passar, branca visão,

Vi, com espanto, palpitando

Dentro de mim, esta paixão...

O coração pus ao teu mando...

E, porque escrevo me rendi,

Ando gemendo, aos gritos ando,

— Porque te amei! porque te vi!

 

Depois fugiste... E, inda te amando,

Nem te odiei, nem te esqueci:

— Toda de branco... Ias rezando...

Maldito o dia em que te vi!

 

II

 

Azul...

 

Lembra-te bem! Azul-celeste

Era essa alcova em que amei.

O último beijo que me deste

Foi nessa alcova que o tomei!

É o firmamento que a reveste

Toda de um cálido fulgor:

— Um firmamento, em que puseste

Como uma estrela, o teu amor.

 

Lembras-te? Um dia me disseste:

"Tudo acabou!" E eu exclamei:

"Se vais partir, por que vieste?"

E às tuas plantas me arrastei...

Beijei a fímbria à tua veste,

Gritei de espanto, uivei de dor:

"Quem há que te ame e te requeste

Com febre igual ao meu amor?"

 

Por todo o mal que me fizeste,

Por todo o pranto que chorei,

— Como uma casa em que entra a peste,

Fecha essa casa em que fui rei!

Que nada mais perdure e reste

Desse passado embriagador:

E cubra a sombra de um cipreste

A sepultura deste amor!

 

Desbote-a o inverno! o estio a creste!

Abale-a o vento com fragor!

— Desabe a igreja azul-celeste

Em que oficiava o meu amor!

 

III

 

Verde...

 

Como era verde este caminho!

Que calmo o céu! que verde o mar!

E, entre festões, de ninho em ninho,

A Primavera a gorjear!...

Inda me exalta, como um vinho,

Esta fatal recordação!

Secou a flor, ficou o espinho...

Como me pesa a solidão!

 

Órfão de amor e de carinho,

Órfão da luz do teu olhar,

— Verde também, verde-marinho,

Que eu nunca mais hei de olvidar!

Sob a camisa, alva de linho,

Ta palpitava o coração...

Ai! coração! peno e definho,

Longe de ti, na solidão!

 

Oh! tu, mais branca do que o arminho,

Mais pálida do que o luar!

— Da sepultura me avizinho,

Sempre que volto a este lugar...

E digo a cada passarinho:

"Não cantes mais! que essa canção

Vem me lembrar que estou sozinho,

No exílio desta solidão!"

 

No teu jardim, que desalinho!

Que falta faz a tua mão!

Como inda é verde este caminho...

Mas como o afeia a solidão!

 

IV

 

Negra...

 

Possas chorar, arrependida,

Vendo a saudade que aqui vai!

Vê que linda, negro, da ferida

Aos borbotões o sangue cai...

Que a nossa história, assim relida,

O nosso amor, lembrado assim,

Possam fazer-te, comovida,

Inda uma vez pensar em mim!

 

Minh’alma pobre e desvalida,

Órfã de mãe, órfã de pai,

Na escuridão vaga perdida,

De queda em queda e de ai em ai!

E ando a buscar-te. E a minha lida

Não tem descanso, não tem fim:

Quanto mais longe andas fugida,

Mais te vejo eu perto de mim!

 

Louco! e que lúgubre a descida

Para a loucura que me atrai!

— Terríveis páginas da vida,

Escuras páginas, — cantai!

Vim, ermitão, da minha ermida,

Morto, do meu sepulcro vim,

Erguer a lápida caída

Sobre a esperança que houve em mim!

 

Revivo a mágoa já vivida

E as velhas lágrimas... a fim

De que chorando, arrependida,

Possas lembrar-te inda de mim!


Poemas e Poesias domingo, 15 de novembro de 2020

GERMINAL I (POEMA DO PAULISTA MENOTTI DEL PICCHIA)

GERMINAL I

Menotti Del Picchia

 

Nuvens voam pelo ar como bandos de garças.
Artista boêmio, o sol, mescla na cordilheira pinceladas esparsas
de ouro fosco. Num mastro apruma-se a bandeira
de S. João desfraldando o seu alvo losango.
Juca Mulato cisma. A sonolência vence-o.

Vem na tarde que expira e na voz de um curiango
o narcótico do ar parado, esse veneno
que há no ventre da treva e na alma do silêncio.

Um sorriso ilumina o seu rosto moreno.

No piquete relincha um poldro; um galo álacre
tatala a asa triunfal, ergue a crista de lacre,
clarina a recolher entre varas de cerdos
mexem-se ruivos bois processionais e lerdos
e num magote escuro a manada se abisma
na treva.
Anoiteceu.
Juca Mulato cisma.


Poemas e Poesias sábado, 14 de novembro de 2020

DOMADORES (POEMA DO PERNAMBUCANO MEDEIROS E ALBUQUERQUE)

DOMADORES 

Medeiros e Albuquerqe

 

Há quem pasme dos fortes domadores.
Cujo esforço valente e decidido
faz que se curve, de pavor transido,
dorso de fera má, de olhos traidores. 

E, contudo, dominam-se os furores
e impõe seu jugo o braço destemido
com qualquer ferro em brasa enrubescido
e artifícios banais e enganadores.

Outros há, todavia, mais valentes,
que a populaça rude não conhece:
são os que domam, vultos imponentes,

esta fera: - a Palavra, que carece
para acalmar seus ímpetos insanos
- seiva e sangue de cérebros humanos.


Poemas e Poesias sexta, 13 de novembro de 2020

DAS UTOPIAS (POEMA DO GAÚCHO MÁRIO QUINTANA)

DAS UTOPIAS

Mário Quintana

 

Não desças os degraus do sonho
Para não despertar os monstros.
Não subas aos sótãos - onde
Os deuses, por trás das suas máscaras,
Ocultam o próprio enigma.

Não desças, não subas, fica.
O mistério está é na tua vida!
E é um sonho louco este nosso mundo...

Se as coisas são inatingíveis... ora!
Não é motivo para não querê-las...
Que tristes os caminhos, se não fora
A mágica presença das estrelas!


Tão bom viver dia a dia...
A vida assim, jamais cansa...

Viver tão só de momentos
Como estas nuvens no céu...

E só ganhar, toda a vida,
Inexperiência... esperança...

E a rosa louca dos ventos
Presa à copa do chapéu.

Nunca dês um nome a um rio:
Sempre é outro rio a passar.

Nada jamais continua,
Tudo vai recomeçar!

E sem nenhuma lembrança
Das outras vezes perdidas,
Atiro a rosa do sonho
Nas tuas mãos distraídas...


Poemas e Poesias quinta, 12 de novembro de 2020

EMBORA EU GOSTE (POEMA DA MARANHENSE MARIA FIRMINA DOS REIS, NA VOZ DE SOCORRO LIRA)

EMBORA EU GOSTE

Maria Firmina dos Reis 

 

Interpretação musical de Socorro Lira

 

 


Poemas e Poesias quarta, 11 de novembro de 2020

BELO BELO - I (POEMA DO PERNAMBUCANO MANUEL BANDEIRA)

BELO BELO - I

Manuel Bandeira

 

Belo belo belo,
Tenho tudo quanto quero.

Tenho o fogo de constelações extintas há milênios.
E o risco brevíssimo — que foi? passou — de tantas estrelas cadentes.

A aurora apaga-se,
E eu guardo as mais puras lágrimas da aurora.

O dia vem, e dia adentro
Continuo a possuir o segredo grande da noite.

Belo belo belo,
Tenho tudo quanto quero.

Não quero o êxtase nem os tormentos.
Não quero o que a terra só dá com trabalho.

As dádivas dos anjos são inaproveitáveis:
Os anjos não compreendem os homens.

Não quero amar,
Não quero ser amado.
Não quero combater,
Não quero ser soldado.

— Quero a delícia de poder sentir as coisas mais simples.


Poemas e Poesias terça, 10 de novembro de 2020

EXPERIMENTANDO A MANHÃ DOS GALOS (POEMA DO MATO-GROSSENSE MANOEL DE BARROS)

EXPERIMENTANDO A MANHÃ DOS GALOS

Manoel de Barros

... poesias, a poesia é

- é como a boca
dos ventos
na harpa

nuvem
a comer na árvore
vazia que
desfolha a noite

raíz entrando
em orvalhos...

os silêncios sem poro

floresta que oculta
quem aparece
como quem fala
desaparece na boca

cigarra que estoura o
crepúsculo
que a contém

o beijo dos rios
aberto nos campos
espalmando em álacres
os pássaros

- e é livre
como um rumo
nem desconfiado...


Poemas e Poesias segunda, 09 de novembro de 2020

SONETO DE NATAL (POEMA DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

SONETO DE NATAL

Machado de Assis

 

Um homem, — era aquela noite amiga,
Noite cristã, berço no Nazareno, —
Ao relembrar os dias de pequeno,
E a viva dança, e a lépida cantiga,

Quis transportar ao verso doce e ameno
As sensações da sua idade antiga,
Naquela mesma velha noite amiga,
Noite cristã, berço do Nazareno.

Escolheu o soneto... A folha branca
Pede-lhe a inspiração; mas, frouxa e manca,
A pena não acode ao gesto seu.

E, em vão lutando contra o metro adverso,
Só lhe saiu este pequeno verso:
"Mudaria o Natal ou mudei eu?"


Poemas e Poesias domingo, 08 de novembro de 2020

DESILUSÃO (POEMA DO PERNAMBUCANO LUÍS TURIBA)

DESILUSÃO

Luís Turiba

 

Quando tirou a roupa
Caiu tudo

Poemas e Poesias sábado, 07 de novembro de 2020

A CABREIRA (POEMA DO PORTUGUÊS JÚLIO DINIS)

A CABREIRA

Júlio Dinis

 

Andava a pobre cabreira

O seu rebanho a guardar

Desde que rompia o dia

Até a noite fechar.

De pequenina nos montes

Não tivera outro brincar.

Nas canseiras do trabalho

Seus dias vira passar.

Sentada no alto da serra
Pôs-se a cabreira a chorar.
Porque chorava a cabreira
Ides agora escutar:

«Ai! que triste a sina minha,

Ai! que triste o meu penar,

Que não sei d e pai nem mãe

Nem de irmãos a quem amar,

«De pequenina nos montes

Nunca tive outro brincar.

Nas canseiras do trabalho

Meus dias vejo passar.»

Mas, ao desviar seus olhos

Viu coisa que a fez pasmar:

Uma cabra toda branca
Se lhe fora aos pés deitar

Branca toda, como a neve,

Que nem se deixa fitar,

Coberta de finas sedas
Que era coisa singular!

Nunca a tinha visto antes
No seu rebanho a pastar,
E foi a fazer-lhe festa…
E foi para a afagar…

Eis vai a cabra fugindo

Pelos vales sem parar ;

Ia a cabreira atrás dela
Mas não a pôde alcançar.

E andaram assim três dias
E três noites, sempre a andar!
Até que às portas de uns paços
Afinal foram parar.

Chorava o’ rei e a rainha

Há dez anos, sem cessar,

Que lhe roubaram a filha

Numa noite de luar.

E dez anos são passados
Sem mais dela ouvir falar;
Eis chega a cabreira à porta
À porta se foi sentar.

«Ai que bonita cabreira
Que lá em baixo vejo estar!
E uma cabra toda branca
Que nem se deixa fitar.

«Meus criados e escudeiros,

Ide a cabreira buscar.»
Isto dizia a rainha,
Este foi o seu mandar.

Foram buscar a cabreira
E a cabra de a acompanhar
Até às salas do paço
Onde o rei a viu chegar.

«Pela minha c’roa de ouro

Eu quero agora apostar,

Que é esta a filha roubada

Numa noite de luar.»

Milagre! quem tal diria!

Quem tal pudera contar!

A cabrinha toda branca

Ali se pôs a falar:

«Esta é a filha roubada
Numa noite de luar,
Andou dez anos no monte
Quem nasceu para reinar!»

Que alegrias vão nos paços!

E que festas sem cessar!
A filha há tanto perdida
No trono os pais vão sentar.

E vêm damas pra vesti-la
E vêm damas pra calçar;
E as mais prendadas de todas
Para as trancas lhe enfeitar.

Vão procurar a cabrinha…

Ninguém a pôde encontrar;

Mas um anjo de asas brancas

Viram aos Céus a voar.


Poemas e Poesias sexta, 06 de novembro de 2020

CONVERSA DE CANOEIRO (POEMA DO MARANHENSE JOSÉ SARNEY)

CONVERSA DE CANOEIRO

José Sarney

 

- Nestes mares, Mestre João?
- Sim, cá e code.
- Por amor de quê?
- Para sofrer menos.
- Sofrer de menos ou sofrer de mais?
- Tanto faz.
- Andando que rumos donde?
- Caminhos do Norte.
- Do Norte ou da morte?
- Tanto faz.
- Norte de que?
- Das águas, compadre.
- Das águas de mais ou das águas de menos?
- Tanto faz.
- Águas ou éguas?
- Tanto faz.
- Êta Maranhão grande aberto sem porteira ...


Poemas e Poesias quinta, 05 de novembro de 2020

INVERNO (POEMA DO ALAGOANO JORGE DE LIMA)

 

INVERNO

Jorge de Lima

Zefa, chegou o inverno!
Formigas de asas e tanajuras!
Chegou o inverno!
Lama e mais lama
chuva e mais chuva, Zefa!
Vai nascer tudo, Zefa,
Vai haver verde,
verde do bom,
verde nos galhos,
verde na terra,
verde em ti, Zefa,
que eu quero bem!
Formigas de asas e tanajuras!
O rio cheio,
barrigas cheias,
mulheres cheias, Zefa!
Águas nas locas,
pitus gostosos,
carás, cabojés,
e chuva e mais chuva!
Vai nascer tudo
milho, feijão,
até de novo
teu coração, Zefa!
Formigas de asas e tanajuras!
Chegou o inverno!
Chuva e mais chuva!
Vai casar, tudo,
moça e viúva!
Chegou o inverno
Covas bem fundas
pra enterrar cana:
cana caiana e flor de Cuba!
Terra tão mole
que as enxadas
nelas se afundam
com olho e tudo!
Leite e mais leite
pra requeijões!
Cargas de imbu!
Em junho o milho,
milho e canjica
pra São João!
E tudo isto, Zefa...
E mais gostoso
que tudo isso:
noites de frio,
lá fora o escuro,
lá fora a chuva,
trovão, corisco,
terras caídas,
córgos gemendo,
os caborés gemendo,
os caborés piando, Zefa!
Os cururus cantando, Zefa!
Dentro da nossa
casa de palha:
carne de sol
chia nas brasas,
farinha dágua,
café, cigarro,
cachaça, Zefa...
...rede gemendo...
Tempo gostoso!
Vai nascer tudo!
Lá fora a chuva,
chuva e mais chuva,
trovão, corisco,
terras caídas
e vento e chuva,
chuva e mais chuva!
Mas tudo isso, Zefa,
vamos dizer,
só com os poderes
de Jesus Cristo!


Poemas e Poesias quarta, 04 de novembro de 2020

IMITAÇÃO DAS ÁGUAS (POEMA DO PERNAMBUCANO JOÃO CABRAL DE MELO NETO)

IMITAÇÃO DAS ÁGUAS

João Cabral de Melo Neto

 

De flanco sobre o lençol,
paisagem já tão marinha,
a uma onda deitada,
na praia, te parecias.

Uma onda que parava
ou melhor: que se continha;
que contivesse um momento
seu rumor de folhas líquidas.

Uma onda que parava
naquela hora precisa
em que a pálpebra da onda
cai sobre a própria pupila.

Uma onda que parava
ao dobrar-se, interrompida,
que imóvel se interrompesse
no alto de sua crista

e se fizesse montanha
(por horizontal e fixa),
mas que ao se fazer montanha
continuasse água ainda.

Uma onda que guardasse
na pária cama, finita,
a natureza sem fim
do mar de que participa,

e em sua imobilidade,
que precária se adivinha,
o dom de se derramar
que as águas faz femininas

mais o clima de águas fundas,
a intimidade sombria
e certo abraçar completo
que dos líquidos copias.


Poemas e Poesias terça, 03 de novembro de 2020

AMOR... E MORTE (POEMA DO ACRIANO J. G. DE ARAÚJO JORGE)

AMOR... E MORTE

J.G. de Araújo Jorge

 

O amor
é como a morte
ato banal de todo dia...

Emoção forte
de tristeza ou de alegria,
ele sempre nos surpreende, e a ele nunca nos acostumamos
talvez...

O amor é como a morte:
quando amamos
é sempre a primeira vez.

 


Poemas e Poesias segunda, 02 de novembro de 2020

2 - DO DESEJO - VERT-TE. TOCAR-TE. QUE FULGOR DE MÁSCARAS. (POEMA DE PAULISTA HILDA HILST)

II - VERT-TE. TOCAR-TE. QUE FULGOR DE MÁSCARAS.

Hilda Hilst

 

II
Ver-te. Tocar-te. Que fulgor de máscaras.
Que desenhos e rictus na tua cara
Como os frisos veementes dos tapetes antigos.
Que sombrio te tornas se repito
O sinuoso caminho que persigo: um desejo
Sem dono, um adorar-te vívido mas livre.
E que escura me faço se abocanhas de mim
Palavras e resíduos. Me vêm fomes
Agonias de grandes espessuras, embaçadas luas
Facas, tempestade. Ver-te. Tocar-te.
Cordura.
Crueldade.


Poemas e Poesias domingo, 01 de novembro de 2020

A MINHA FILHA (POEMA DO PORTUGUÊS GUERRA JUNQUEIRO)

A MINHA FILHA

Guerra Junqueiro

 

 

Que alma intacta e delicada!
Que argila pura e mimosa!
É a estrela d'alvorada
Dentro dum botão de rosa!

E, enquanto dormes tranquila,
Vejo o divino esplendor
Da alma a sair da argila,
Da estrela a sair da flor!

Anjos, no azul inocente,
Sobre o teu hálito leve
Desdobram candidamente,
Em pálio, as asas de neve...

E eu, urze má das encostas,
Eu sinto o dever sagrado
De te beijar— de mãos postas!
De te abençoar — ajoelhado!


Poemas e Poesias sábado, 31 de outubro de 2020

AMOR O QUIS ASSIM (POEMA DO PORTUGUÊS GIL VICENTE)

AMOR O QUIS ASSIM

Gil Vicente

 

 

 

Agravos de Colopêndio
Pois Amor o quis assi,
que meu mal tanto me dura,
não tardes triste ventura,
que a dor não se doi de mi,
e sem ti não tenho cura.

Foges-me, sabendo certo
que passo perigo marinho,
e sem ti vou tão deserto
que, quando cuido que acerto,
vou mais fora de caminho.
Porque tais carreiras sigo,
e com tal dita naci
nesta vida, em que não vivo,
que eu cuido que estou comigo,
e ando fora de mi.

Quando falo, estou calado;
quando estou, entonces ando;
quando ando, estou quedado;
quando durmo, estou acordado;
quando acordo, estou sonhando;
quando chamo, então respondo;
quando choro, entonces rio;
quando me queimo, hei frio;
quando me mostro, me escondo;
quando espero, desconfio.

Não sei se sei o que digo,
que cousa certa não acerto;
se fujo de meu perigo,
cada vez estou mais perto
de ter mor guerra comigo.
Prometem-me uns vãos cuidados
mil mundos favorecidos,
com que serão descansados;
e eu acho-os todos mudados
em outros mundos perdidos.

Já não ouso de cuidar,
nem posso estar sem cuidado;
mato-me por me matar,

onde estou não posso estar
sem estar desesperado.
Parece-me quanto vejo
Tudo triste com rezão:
cousas que não vem nem vão
essas são as que desejo,
e tôdas pena me dão.

Eu remédio não no espero,
porque aquela, em que me fundo,
pera mi, que tanto a quero,
tem o coração de Nero
pera me tirar do mundo.


Poemas e Poesias sexta, 30 de outubro de 2020

A TUA VOZ NA PRIMAVERA (POEMA DA PORTUGUESA FLORBELA ESPANCA)

A TUA VOZ NA PRIMAVERA

Florbela Espanca

 

Manto de seda azul, o céu reflete
Quanta alegria na minha alma vai!
Tenho os meus lábios úmidos: tomai
A flor e o mel que a vida nos promete!

Sinfonia de luz meu corpo não repete
O ritmo e a cor dum mesmo beijo... olhai!
Iguala o sol que sempre às ondas cai,
Sem que a visão dos poentes se complete!

Meus pequeninos seios cor-de-rosa,
Se os roça ou prende a tua mão nervosa,
Têm a firmeza elástica dos gamos...

Para os teus beijos, sensual, flori!
E amendoeira em flor, só ofereço os ramos,
Só me exalto e sou linda para ti!


Poemas e Poesias quinta, 29 de outubro de 2020

UMA VOZ (POEMA DO MARANHENSE FERREIRA GULLAR)

UMA VOZ

Ferreira Gullar

 

 

Sua voz quando ela canta
me lembra um pássaro mas
não um pássaro cantando:
lembra um pássaro voando
 

Poemas e Poesias quarta, 28 de outubro de 2020

CANÇÃO TRISTE (POEMA DO PORTUGUÊS FERNANDO PESSOA)

CANÇÃO TRISTE

Fernando Pessoa

 

Sol, que dá nas ruas, não dá

        No meu carinho.

A felicidade quando virá?

        Por que caminho?

 

Horas e horas por fim são meses

        De ansiado bem.

Eu penso em ti indecisas vezes,

        E tu ninguém!

Não tenho barco para a outra margem,

        Nem sei do rio

Ah! E envelheceu já tua imagem

        E eu sinto frio.

 

Não me resigno, não me decido,

        Choro querer...

Sempre eu! Ó sorte, dá-me o olvido

        De pertencer!

 

Enterrei hoje outra vez meu sonho

        Amanhã virá

Tornar-me triste por ser risonho,

        E não ser já.


Poemas e Poesias terça, 27 de outubro de 2020

DÉCIMA ELEGIA (POEMA DO GAÚCHO FABRÍCIO CARPINEJAR)

DÉCIMA ELEGIA

Fabrício Carpinejar

 

Só na velhice o vento não ressuscita.
A água dos olhos entra na surdez da neve
e escuta a oração do estômago, dos rins, do pulmão.

O sono desce com a marcha dos ratos no assoalho.
Tudo foi julgado e devemos durar nas escolhas.

Só na velhice os grilos denunciam o meio-dia.
O exílio é na carne.

Esmorece o esforço de conciliar a verdade
com a realidade.
A neblina nos enterra vivos.

Só na velhice o pó atravessa a parede da brasa,
o riso atravessa o osso.
Deciframos a descendência do vinho.

Os segredos não são contados
porque ninguém quer ouvi-los.
O lume raso do aposento é apanhado pela ave
a pousar o bule das penas na estante do mar.

Só na velhice acomodo a bagagem nos bolsos do casaco.
O suspiro é mais audível que o clamor.

Recusamos o excesso, basta uma escova e uma toalha.

Só na velhice os músculos são armas engatilhadas.
O nome passa a me carregar.

É penoso subir os andares da voz,
nos abrigamos no térreo de um assobio.
Pedimos desculpa às cadeiras e licença ao pão.

O ódio esquece sua vingança.
Amamos o que não temos.

Só na velhice digo bom-dia e recebo
a resposta de noite.
Convém dispor da cautela e se despedir aos poucos.

Só na velhice quantos sofrem à toa
para narrar em detalhes seu sofrimento.

O pesadelo impõe dois turnos de trabalho.
Investigo-me a ponto de ser meu inimigo.

Sustentamos o atrito com o céu, plagiando
com as pálpebras o voo anzolado, céreo, das borboletas.

Só na velhice há o receio em folhear edições raras
e rasgar uma página gasta do manuseio.
Embalo a espuma como um neto.

Confundimos a ordem do sinal da cruz.
O luto não é trégua e descanso, mas a pior luta.

Só na velhice a forma está na força do sopro.
Respeito Lázaro, que a custo de um milagre
faleceu duas vezes.

O medo é de dormir na luz.
Lamento ter sido indiscreto
com minha dor e discreto com minha alegria.

Só na velhice a mesa fica repleta de ausências.
Chego ao fim, uma corda que aprende seu limite
após arrebentar-se em música.
Creio na cerração das manhãs.
Conforto-me em ser apenas homem.

Envelheci,
tenho muita infância pela frente.


Poemas e Poesias segunda, 26 de outubro de 2020

A CRUZ DA ESTRADA (POEMA DO FLUMINENSE EUCLIDES DA CUNHA)

A CRUZ DA ESTRADA

Euclides da Cunha

 

A meu amigo E. Jary Monteiro
 

 

Se vagares um dia nos sertões,
Como hei vagado – pálido, dolente,
Em procura de Deus – da fé ardente

 


 
Em meio das soidões…
Se fores, como eu fui, lá onde a flor
Tem do perfume a alma inebriante,
Lá onde brilha mais que o diamante
A lágrima da dor…
Se sondares da selva e entranha fria
Aonde dos cipós na relva extensa
Noss’alma embala a crença.
Se nos sertões vagares algum dia…
Companheiro! Hás de vê-la.
Hás de sentir a dor que ela derrama
Tendo um mistério, aos pés, de um negro drama,
Tendo na fronte o raio de uma estrela!…
Que vezes a encontrei!… Medrando calma
A Deus, entre os espaços
No desgraçado, ali tombado, a alma
Que tirita, quem sabe?, entre os seus braços.
Se a onça vê, lhe oculta a asp'ra, ferrenha
Garra, estremece, para, fita-a, roja-se,
Recua trêmula, e fascinada arroja-se,
Entre as sombras da brenha!…
E a noite, a treva, quando aos céus ascende
E acorda lá a luz,
Sobre os seus braços frios, frios, nus,
– Tecido de astros em brial estende…
Nos gélidos lugares
Em que ela se ergue, nunca o raio estala,
Nem pragueja o tufão… Hás de encontrá-la
Se acaso um dia nos sertões vagares…


Poemas e Poesias domingo, 25 de outubro de 2020

TROVAS HUMORÍSTICAS - 06 - (POEMA DO PARANAENSE ENO TEODORO WANKE)

 

TROVA HUMORÍSTICA - 06

Eno Teodoro Wanke

 

Barulho na copa. A moça

Com modos nada serenos:

– Que foi, Maria? Mais louça?
– Qual o quê, patroa! Menos!

 


Poemas e Poesias sábado, 24 de outubro de 2020

AS HORAS (POEMA DO PIAUIENSE DA COSTA E SILVA)

AS HORAS

Da Costa e Silva

 

As Horas cismam no ar parado:
— Passado.

As Horas bailam no ar fremente:
— Presente.

As Horas sonham no ar obscuro:
— Futuro.


Publicado no livro Verônica (1927). Poema integrante da série Imagens da Vida e do Sonho.


Poemas e Poesias sexta, 23 de outubro de 2020

CAMPONESA, CAMPONESA (POEMA DO CATARINENSE CRUZ E SOUSA)

CAMPONESA, CAMPONESA

Cruz e Sousa

 

Camponesa, camponesa,
Ah! quem contigo vivesse
Dia e noite e amanhecesse
Ao sol da tua beleza.

Quem livre, na natureza,
Pelos campos se perdesse
E apenas em ti só cresse
E em nada mais, camponesa.

Quem contigo andasse à toa
Nas margens duma lagoa,
Por vergéis e por desertos,

Beijando-te o corpo airoso,
Tão fresco e tão perfumoso,
Cheirando a figos abertos.


Poemas e Poesias quinta, 22 de outubro de 2020

MÃE (POEMA DA GOIANA CORA CORALINA)

MÃE

Cora Coralina

 

Renovadora e reveladora do mundo
A humanidade se renova no teu ventre.
Cria teus filhos,
não os entregues à creche.
Creche é fria, impessoal.
Nunca será um lar
para teu filho.
Ele, pequenino, precisa de ti.
Não o desligues da tua força maternal.

Que pretendes, mulher?
Independência, igualdade de condições...
Empregos fora do lar?
És superior àqueles
que procuras imitar.
Tens o dom divino
de ser mãe
Em ti está presente a humanidade.

Mulher, não te deixes castrar.
Serás um animal somente de prazer
e às vezes nem mais isso.
Frígida, bloqueada, teu orgulho te faz calar.
Tumultuada, fingindo ser o que não és.
Roendo o teu osso negro da amargura.


Poemas e Poesias quarta, 21 de outubro de 2020

SONETO XIII (SONETOS) NISE, NISE, ONDE ESTÁS, AONDE ESPERA (POEMA DO CARIOCA CLÁUDIO MANUEL DA COSTA)

XIII (SONETOS) [NISE? NISE? ONDE ESTÁS? AONDE ESPERA

Cláudio Manuel da Costa


Nise? Nise? onde estás? Aonde espera
Achar-te uma alma, que por ti suspira,
Se quanto a vista se dilata, e gira,
Tanto mais de encontrar-te desespera!

Ah se ao menos teu nome ouvir pudera
Entre esta aura suave, que respira!
Nise, cuido, que diz; mas é mentira.
Nise, cuidei que ouvia; e tal não era.

Grutas, troncos, penhascos da espessura,
Se o meu bem, se a minha alma em vós se esconde,
Mostrai, mostrai-me a sua formosura.

Nem ao menos o eco me responde!
Ah como é certa a minha desventura!
Nise? Nise? onde estás? aonde? aonde?

 


Poemas e Poesias terça, 20 de outubro de 2020

NÃO TE AMO MAIS (POEMA DA UCRANIANA-BRASILEIRA CLARICE LISPECTOR)

 

NÃO TE AMO MAIS

Clarice Lispector

Não te amo mais.

Estarei mentindo dizendo que

Ainda te quero como sempre quis.

Tenho certeza que

Nada foi em vão.

Sinto dentro de mim que

Você não significa nada.

Não poderia dizer jamais que

Alimento um grande amor.

Sinto cada vez mais que

Já te esqueci!

E jamais usarei a frase

EU TE AMO!

Sinto, mas tenho que dizer a verdade

É tarde demais...

 


Poemas e Poesias segunda, 19 de outubro de 2020

ESTE É O LENÇO (POEMA DA CARIOCA CECÍLIA MEIRELES)

ESTE É O LENÇO

Cecília Meireles

 

Este é o lenço de Marília,
pelas suas mãos lavrado,
nem a ouro nem a prata,
somente a ponto cruzado.
Este é o lenço de Marília
para o Amado.

Em cada ponta, um raminho,
preso num laço encarnado;
no meio, um cesto de flores,
por dois pombos transportado.
Não flores de amor-perfeito,
mas de malogrado!

Este é o lenço de Marília:
bem vereis que está manchado:
será do tempo perdido?
será do tempo passado?
Pela ferrugem das horas?
ou por molhado
em águas de algum arroio
singularmente salgado?

Finos azuis e vermelhos
do largo lenço quadrado,
- quem pintou nuvens tão negras
neste pano delicado,
sem dó de flores e de asas
nem do seu recado?

Este é o lenço de Marília,
por vento de amor mandado.
Para viver de suspiros
foi pela sorte fadado:
breves suspiros de amante,
- longos, de degredado!

Este é o lenço de Marília
nele vereis retratado
o destino dos amores
por um lenço atravessado:
que o lenço para os adeuses
e o pranto foi inventado.

Olhai os ramos de flores
de cada lado!
E os tristes pombos, no meio,
com o seu cestinho parado
sobre o tempo, sobre as nuvens
do mau fado!

Onde está Marília, a bela?
E Dirceu, com a lira e o gado?
As altas montanhas duras,
letra a letra, têm contado
sua história aos ternos rios,
que em ouro a têm soletrado...

E as fontes de longe miram
as janelas do sobrado.

Este é o lenço de Marília
para o Amado.

Eis o que resta dos sonhos:
um lenço deixado.

Pombos e flores, presentes.
Mas o resto, arrebatado.

Caiu a folha das árvores,
muita chuva tem gastado
pedras onde houvera lágrimas.
Tudo está mudado.

Este é o lenço de Marília
como foi bordado.
Só nuvens, só muitas nuvens
vêm pousando, têm pousado
entre os desenhos tão finos
de azul e encarnado.
Conta já século e meio
de guardado.

Que amores como este lenço
têm durado,
se este mesmo está durando?
mais que o amor representado?


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