Almanaque Raimundo Floriano
Fundado em 24.09.2016
(Cultural, sem fins comerciais, lucrativos ou financeiros)


Raimundo Floriano de Albuquerque e Silva, Editor deste Almanaque, também conhecido como Velho Fulô, Palhaço Seu Mundinho e Mundico Trazendowski, nascido em Balsas , Maranhão, a 3 de julho de 1936, Católico Apostólico Romano, Contador, Oficial da Reserva do Exército Brasileiro, Funcionário Público aposentado da Câmara dos Deputados, Titular da Cadeira nº 10 da Academia Passa Disco da Música Nordestina, cuja patrona é a cantora Elba Ramalho, Mestre e Fundador da Banda da Capital Federal, Pesquisador da MPB, especializado em Velha Guarda, Música Militar, Carnaval e Forró, Cardeal Fundador da Igreja Sertaneja, Pioneiro de Brasília, Xerife nos Mares do Caribe, Cordelista e Glosador, Amigo do Rio das Balsas, Inventor da Descida de Boia, em julho de 1952, Amigo da Fanfarra do 1° RCG, autor dos livros O Acordo PDS/PTB, coletânea de charges, Sinais de Revisão e Regras de Pontuação, normativo, Do Jumento ao Parlamento, com episódios da vida real, De Balsas para o Mundo, centrado na navegação fluvial Balsas/Oceano Atlântico, Pétalas do Rosa, saga da Família Albuquerque e Silva, Memorial Balsense, dedicado à história de sua terra natal, e Caindo na Gandaia, humorístico apimentado, é casado, tem quatro filhos, uma nora, dois genros e dois netos e reside em Brasília, Distrito Federal, desde dezembro de 1960.

Poemas e Poesias domingo, 19 de setembro de 2021

COMO SE MOÇO E NÃO BEM VELHO EU FOSSE (POEMA DO MINEIRO ALPHONSUS GUIMARAENS)
COMO SE MOÇO E NÃO BEM VELHO EU FOSSE

Alphonsus Guimaraens

 

 

Como se moço e não bem velho eu fosse,
Uma nova ilusão veio animar-me,
Na minh’alma floriu um novo carme,
O meu ser para o céu alcandorou-se.

Ouvi gritos em mim como um alarme.
E o meu olhar, outrora suave e doce,
Nas ânsias de escalar o azul, tornou-se
Todo em raios, que vinham desolar-me.

Vi-me no cimo eterno da montanha
Tentando unir ao peito a luz dos círios
Que brilhavam na paz da noite estranha.

Acordei do áureo sonho em sobressalto;
Do céu tombei ao caos dos meus martírios,
Sem saber para que subi tão alto…


Poemas e Poesias sábado, 18 de setembro de 2021

ANJO ÉS (POEMA DO PORTUGUÊS ALMEIDA GARRETT)

ANJO ÉS

Almeida Garrett

 

 

 

Anjo és tu, que esse poder
Jamais o teve mulher,
Jamais o há-de ter em mim.
Anjo és, que me domina
Teu ser o meu ser sem fim;
Minha razão insolente
Ao teu capricho se inclina,
E minha alma forte, ardente,
Que nenhum jugo respeita,
Covardemente sujeita
Anda humilde a teu poder.
Anjo és tu, não és mulher.

Anjo és. Mas que anjo és tu?
Em tua fronte anuviada
Não vejo a c'roa nevada
Das alvas rosas do céu.
Em teu seio ardente e nu
Não vejo ondear o véu
Com que o sôfrego pudor
Vela os mistérios d'amor.
Teus olhos têm negra a cor,
Cor de noite sem estrela;
A chama é vivaz e é bela,
Mas luz não têm. - Que anjo és tu?
Em nome de quem vieste?
Paz ou guerra me trouxeste
De Jeová ou Belzebu?

Não respondes - e em teus braços
Com frenéticos abraços
Me tens apertado, estreito!...
Isto que me cai no peito
Que foi?... - Lágrima? - Escaldou-me...
Queima, abrasa, ulcera... Dou-me,
Dou-me a ti, anjo maldito,
Que este ardor que me devora
É já fogo de precito,
Fogo eterno, que em má hora
Trouxeste de lá... De donde?
Em que mistérios se esconde
Teu fatal, estranho ser!
Anjo és tu ou és mulher?


Poemas e Poesias sexta, 17 de setembro de 2021

BOCAGE (POEMA DO GAÚCHO ALCEU WAMOSY)

BOCAGE

Alceu Wamosy

(Grafia original)

 

 

 

Pelo teu vérso, ó pallido devasso,

Verso tecido à lagrimas e flôres,

Vou lendo na tua alma, traço a traço,

O inédito poêma das tuas dores.

 

Nize, tua amante, a do febril regaço,

Por quem viveste a palpitar de amores,

Anda a buscar-te, ali, com o seu abraço

E a delicia dos beijos tentadores...

 

E tu, mizero Elmano desgraçado.

Passas assim, como uma sombra escura,

Ao clarão do teu vèrso illuminado...

 

Vaes bêbedo de vinho e de desejos,

E na tua alma corrompida, impura,

Vibram estròphes e palpitam beijos!...


Poemas e Poesias quinta, 16 de setembro de 2021

ASPIRAÇÃO (POEMA DO FLUMINENSE ALBERTO DE OLIVEIRA)

ASPIRAÇÃO

Alberto de Oliveira

 

 

 

Ser palmeira! existir num píncaro azulado,
Vendo as nuvens mais perto e as estrelas em bando;
Dar ao sopro do mar o seio perfumado,
Ora os leques abrindo, ora os leques fechando;

Só de meu cimo, só de meu trono, os rumores
Do dia ouvir, nascendo o primeiro arrebol,
E no azul dialogar com o espírito das flores,
Que invisível ascende e vai falar ao sol;

Sentir romper do vale e a meus pés, rumorosa,
Dilatar-se e cantar a alma sonora e quente
Das árvores, que em flor abre a manhã cheirosa,
Dos rios, onde luz todo o esplendor do Oriente;

E juntando a essa voz o glorioso murmúrio
De minha fronde e abrindo ao largo espaço os véus,
Ir com ela através do horizonte purpúreo
E penetrar nos céus;


Ser palmeira, depois de homem ter sido! est’alma
Que vibra em mim, sentir que novamente vibra,
E eu a espalmo a tremer nas folhas, palma a palma,
E a distendo, a subir num caule, fibra a fibra;

E à noite, enquanto o luar sobre os meus leques treme,
e estranho sentimento, ou pena ou mágoa ou dó,
Tudo tem e, na sombra, ora ou soluça ou geme,
E, como um pavilhão, velo lá em cima eu só

Que bom dizer então bem alto ao firmamento
O que outrora jamais — homem — dizer não pude,
Da menor sensação ao máximo tormento
Quanto passa através minha existência rude!

E, esfolhando-me ao vento, indômita e selvagem,
Quando aos arrancos vem bufando o temporal,
— Poeta — bramir então à noturna bafagem
Meu canto triunfal!

E isto que aqui não digo então dizer: — que te amo,
Mãe natureza! mas de modo tal que o entendas,
Como entendes a voz do pássaro no ramo
E o eco que têm no oceano as borrascas tremedas;

E pedir que, ou no sol, a cuja luz referves,
Ou no verme do chão ou na flor que sorri,
Mais tarde, em qualquer tempo, a minh’alma conserves,
Para que eternamente eu me lembre de ti!


Poemas e Poesias quarta, 15 de setembro de 2021

CENA FAMILIAR (POEMA DO MINEIRO AFFONSO ROMANO DE SANT,ANNA

CENA FAMILIAR

Affonso Romano de Sant'Anna

 

 

 

Densa e doce paz na semiluz da sala.
Na poltrona, enroscada e absorta, uma filha
desenha patos e flores.
Sobre o couro, no chão, a outra viaja silenciosa
nas artimanhas do espião.
Ao pé da lareira a mulher se ilumina numa gravura
flamenga, desenhando, bordando pontos de paz.
Da mesa as contemplo e anoto a felicidade
que transborda da moldura do poema.
A sopa fumegante sobre a mesa, vinhos e queijos,
relembranças de viagens e a lareira acesa.
Esta casa na neblina, ancorada entre pinheiros,
é uma nave iluminada.
Um oboé de Mozart torna densa a eternidade.


Poemas e Poesias terça, 14 de setembro de 2021

ENSINAMENTO (POEMA DA MINEIRA ADÉLIA PRADO)

ENSINAMENTO

Adélia Prado

 

 

 

Minha
mãe achava estudo
a coisa mais fina do mundo.

Não é
A coisa mais fina do mundo é o sentimento.
Aquele dia de noite, o pai fazendo serão,
ela falou comigo:
"Coitado, até essa hora no serviço pesado".
Arrumou pão e café , deixou tacho no fogo com água
quente.
Não me falou em amor.
Essa palavra de luxo.


Poemas e Poesias segunda, 13 de setembro de 2021

EU TE AMO (POEMA DA CARIOCA ADALGISA NERY)

EU TE AMO

Adalgisa Nery

 

 

 

Eu te amo
Antes e depois de todos os acontecimentos,
Na profunda imensidade do vazio
E a cada lágrima dos meus pensamentos.
Eu te amo
Em todos os ventos que cantam,
Em todas as sombras que choram,
Na extensão infinita dos tempos
Até a região onde os silêncios moram.
Eu te amo
Em todas as transformações da vida,
Em todos os caminhos do medo,
Na angústia da vontade perdida
E na dor que se veste em segredo.
Eu te amo
Em tudo que estás presente,
No olhar dos astros que te alcançam
E em tudo que ainda estás ausente.
Eu te amo
Desde a criação das águas,
desde a idéia do fogo
E antes do primeiro riso e da primeira mágoa.
Eu te amo perdidamente
Desde a grande nebulosa
Até depois que o universo cair sobre mim
Suavemente.


Poemas e Poesias domingo, 12 de setembro de 2021

DIFERENTES (POEMA DA PORTUGUESA VIRGÍNIA VICTORINO)

DIFERENTES 

Virgínia Victorino

 

 

 

"Fala comigo, amor. Conta-me tudo:"
Assim dizia a tua linda carta.
As saudades que sofre quem se aparta!
E como eu sou feliz, porque me iludo!

Custou-me que partisses. E, contudo,
murmurei ao sabê-lo: "Pois que parta.
Se o cansei, também eu me sinto farta.
E, se mudar, então também eu mudo."

Foste... Escreves... São raras as verdades...
E contas-me sem sombra de saudades:
"Passeio... mato o tempo, assim... assim..."

Comigo quase o mesmo se está dando:
mas, em. vez de ser eu que o vou matando,
o tempo é que me vai matando a mim...


Poemas e Poesias sábado, 11 de setembro de 2021

A GALINHA D,ANGOLA (POEMA DO CARIOCA VINÍCIUS DE MORAES)

A GALINHA D'ANGOLA

Vinícius de Moraes

 

 


Da galinha-d'Angola
Não anda ultimamente
Regulando da bola

Ela vende confusão
E compra briga
Gosta muito de fofoca
E adora intriga
Fala tanto
Que parece que engoliu uma matraca
E vive reclamando
Que está fraca

Tou fraca! Tou fraca!
Tou fraca! Tou fraca! Tou fraca!

Coitada, coitadinha
Da galinha-d'Angola
Não anda ultimamente
Regulando da bola

Come tanto
Até ter dor de barriga
Ela é uma bagunceira
De uma figa
Quando choca, cocoroca
Come milho e come caca
E vive reclamando
Que está fraca

Tou fraca! Tou fraca! Tou fraca!


Poemas e Poesias sexta, 10 de setembro de 2021

FOLHA SOLTA (POEMA DO PAULISTA VICENTE DE CARVALHO)

FOLHA SOLTA

Vicente de Carvalho

 

 

 

Eis o ninho abandonado
Dos sonhos do nosso amor...
É o mesmo o chão onde oscila
A mesma sombra tranquila
Dos arvoredos em flor.

É o mesmo o banco de pedra
Onde assentados nós dois
Falamos de amor um dia...
Lembras-te? Então, que alegria!
E que tristeza depois!...

Falamos de amor... E sobre
Minh'alma arqueava-se o azul
Do teu olhar transparente
Como o céu alvorecente
Das nossas manhãs do sul.

Quanta loucura sonhamos!
Quanta ilusão multicor!
Quanta risonha esperança
Nessas almas de criança
Iluminadas de amor!

.........................

Quando eu partia, choramos...
Toda a alma se me desfez.
Cada lágrima caída
Era uma folha da vida
Que eu desfolhava a teus pés.

Então amávamos tanto!
Tanto esquecemos após!
E de minh'alma, alto e doce,
Foi-se afastando... e calou-se
O último som de tua voz...

Passaram-se os anos — sombras
Que iam crescendo em redor
Daquele sol afundado
Nos abismos do passado:
— A estrela do nosso amor.

Hoje volto... É tudo o mesmo
Que quando amamos aqui:
Sombra, pássaros, fragrância,
Tudo me fala da infância,
Tudo me fala de ti.

Abril desenrola em torno
Seu esplendor festival;
Tudo é júbilo... No entanto
Não mesclas teu doce encanto
A este encanto matinal.

Não voltas, pomba emigrante,
Ao ninho de onde se ergueu
Teu vôo, abrindo caminho
Em busca de um outro ninho
Sob o azul de um outro céu...

Encontro o ninho deserto;
Volto, o seio imerso em dor,
Em pranto os olhos submersos...

............................

E aqui deixo nestes versos
o último sonho de amor.


Poemas e Poesias quinta, 09 de setembro de 2021

DEUS VOS SALVE A CASA SANTA (POEMA DO PIAUIENSE TORQUATO NETO)

DEUS VOS SALVE A CASA SANTA

Torquato Neto

 

 

 

um bom menino perdeu-se um dia
entre a cozinha e o corredor
o pai deu ordem a toda família
que o procurasse e ninguém achou
a mãe deu ordem a toda polícia
que o perseguisse e ninguém achou

ô Deus vos salve esta casa santa
onde a gente janta com nossos pais
ô Deus vos salve essa mesa farta
feijão verdura ternura e paz

no apartamento vizinho ao meu
que fica em frente ao elevador
mora uma gente que não se entende
que não entende o que se passou
maria amélia, filha da casa,
passou da idade e não se casou

ô Deus vos salve esta casa santa (refrão)

um trem de ferro sobre o colchão
a porta aberta na escuridão
a luz mortiça ilumina a mesa
e a brasa acesa queima o porão
os pais conversam na sala e a moça
olha em silêncio pro seu irmão

ô Deus vos salve esta casa santa (refrão)

 


Poemas e Poesias quarta, 08 de setembro de 2021

DEIXE-ME IR (POEMA DO BAIANO RICARDO LIMA)

DEIXE-ME IR

Ricardo Lima

 

 

Deixe-me ir...

 

O que está por vir?

O ir!

-- Ir? Sim, ir!

Oh céus!

-- Deixe-me ir...


Poemas e Poesias terça, 07 de setembro de 2021

ARTISTA (POEMA DO FLUMINENSE RAUL DE LEÔNI)

ARTISTA

Raul de Leôni

 

 

 

Por um destino acima do teu Ser,
Tens que buscar nas coisas inconscientes
Um sentido harmonioso, o alto prazer
Que se esconde entre as formas aparentes.

Sempre o achas, mas ao tê-lo em teu poder
Nem no pões na tua alma, nem no sentes
Na tua vida, e o levas, sem saber,
Ao sonho de outras almas diferentes...

Vives humilde e inda ao morrer ignoras
O Ideal que achaste... (Ingratidão das musas!)
Mas não faz mal, meu bômbix inocente:

Fia na primavera, entre as amoras.
A tua seda de ouro, que nem usas
Mas que faz tanto bem a tanta gente...


Poemas e Poesias segunda, 06 de setembro de 2021

O SUICIDA (POEMA DO MINEIRO PAULO MENDES CAMPOS

O SUICIDA

Paulo Mendes Campos

 

 

 

Quando subiu do mar a luz ferida,
Ao coração desceu a sombra forte,

Um homem triste foi buscar a morte
Nas ondas, flor do mal aos pés da vida.

Com lucidez tremeu olhando tudo
Como um falcão de súbito no alto

Estremece sentindo o sobressalto
Do abismo que lhe fala porque é mudo.

Às vezes vou ali, fico a pensar
Na paz que lhe faltou e que me falta

E no confuso alarme do meu fim.

O infinito silêncio me diz –– “salta”,
Enquanto faz-me a brisa respirar

O fumo da cidade atrás de mim.


Poemas e Poesias domingo, 05 de setembro de 2021

AO LOCUTOR DA RÁDIO ARARIPE – ELÓI TELES

AO LOCUTOR DA RÁDIO ARARIPE – ELÓI TELES

Patativa do Assaré

 

 

 

Eu sou de uma terra que o povo padece
Mas nunca esmorece, procura vencê,
Da terra adorada, que a bela caboca
De riso na boca zomba no sofrê.

Não nego meu sangue, não nego meu nome,
Olho para fome e pergunto: o que há?
Eu sou brasilêro fio do Nordeste,
Sou cabra da peste, sou do Ceará.

Tem munta beleza minha boa terra,
Derne o vale à serra, da serra ao sertão.
Por ela eu me acabo, dou a própria vida,
É terra querida do meu coração.

Meu berço adorado tem bravo vaquêro
E tem jangadêro que domina o má.
Eu sou brasilêro fio do Nordeste,
Sou cabra da peste, sou do Ceará.

Ceará valente que foi munto franco
Ao guerrêro branco Soare Moreno,
Terra estremecida, terra predileta
Do grande poeta Juvená Galeno.

Sou dos verde mare da cô da esperança,
Que as água balança pra lá e pra cá.
Eu sou brasilêro fio do Nordeste,
Sou cabra da peste, sou do Ceará.

Ninguém me desmente, pois, é com certeza,
Quem qué vê beleza vem ao Cariri,
Minha terra amada pissui mais ainda,
A muié mais linda que tem o Brasí.

Terra da jandaia, berço de Iracema,
Dona do poema de Zé de Alencá.
Eu sou brasilêro fio do Nordeste,
Sou cabra da peste, sou do Ceará.


Poemas e Poesias sexta, 03 de setembro de 2021

A MÃE D,ÁGUA (POEMA DO PERNAMBUCANO OLEGÁRIO MARIANO)

A MÃE D'ÁGUA

Olegário Mariano

 

 

 

A MÃE-D'ÁGUA

Num recanto de parque onde a melancolia

Da tarde estende um véu de saudade e de dor,

Uma água morta jaz, na última luz do dia,

Imota e triste, em seu perpétuo dissabor.

 

Ninféias a oscilar bóiam à tona fria

E do leito lodoso, em súbito rumor,

Sobe, de quando em quando, um choro de agonia

Que vai de folha em folha, e vai de flor em flor.

 

Quando a noite se estende, essa voz continua ...

Cresce cada vez mais e, alongada e comprida,

 Como o vento que encrespa os cabelos da lua,

 

Corre à tona na luz tênue que a sombra espanca ...

— É a Mãe-d'água que chora a saudade da vida

Dentro do coração de um ninféia branca.


Poemas e Poesias quinta, 02 de setembro de 2021

AS VOZ DO AMOR (POEMA DO CARIOCA OLAVO BILAC)

A VOZ DO AMOR

Olavo Bilac

 

 

 

Nessa pupila rútila e molhada,
Refúgio arcano e sacro da Ternura,
A ampla noite do gozo e da loucura
Se desenrola, quente e embalsamada.

E quando a ansiosa vista desvairada
Embebo às vezes nessa noite escura,
Dela rompe uma voz, que, entrecortada
De soluços e cânticos, murmura...

É a voz do Amor, que, em teu olhar falando,
Num concerto de súplicas e gritos
Conta a história de todos os amores;

E vêm por ela, rindo e blasfemando,
Almas serenas, corações aflitos,
Tempestades de lágrimas e flores...


Poemas e Poesias quarta, 01 de setembro de 2021

LÍNGUA BRASILEIRA (POEMA DO PAULISTA MENOTTI DEL PICCHIA)

LÍNGUA BRASILEIRA

Menotti Deo Picchia

 

 

O povo menino

no seu presépio de palmeiras

aguardou as oferendas de Natal.

 

A nau primeira

trouxe o Rei do Ocidente

que lhe deu o tesouro sem-par

do Cantar de Amigo,

dos Autos de Gil Vicente

e, depois, a epopeia de Camões.

 

No navio negreiro

veio o Melchior do mocambo

talhado em azeviche como um ídolo benguela,

com a oferta abracadabrante e gutural

dos monossílabos de cabala.

 

Nos transatlânticos e cargueiros,

o Rei Cosmopolita,

que tem as cores do arco-íris

e os ritmos de todos os idiomas,

trouxe-lhe o régio presente

das articulações universais.

 

Os três reis fizeram um acampamento das raças

e ensinaram o povo menino

a falar a língua misturada

de Babel e da América.

 

E assim nasceste,

ágil, acrobática, sonora, rica e fidalga,

ó minha língua brasileira!


Poemas e Poesias terça, 31 de agosto de 2021

SILÊNCIO (POEMA DO PERNAMBUCANO MEDEIROS E ALBUQUERQUE)

SILÊNCIO

Medeiros e Albuquerque

 

 

 

Cala. Qualquer que seja esse tormento
que te lacera o coração transido,
guarda-o dentro de ti, sem um gemido,
sem um gemido, sem um só lamento!

Por mais que doa e sangre o ferimento,
não mostres a ninguém, compadecido,
a tua dor, o teu amor traído:
não prostituas o teu sofrimento!

Pranto ou Palavra - em nada disso cabe
todo o amargor de um coração enfermo
profundamente vilipendiado.

Nada é tão nobre como ver quem sabe,
trancado dentro de uma dor sem termo,
mágoas terríveis suportar calado!


Poemas e Poesias segunda, 30 de agosto de 2021

EMERGÊNCIA (POEMA DO GAÚCHO MÁRIO QUINTANA)

 

 

EMERGÊNCIA

Mário Quintana

 

 

 

Quem faz um poema abre uma janela.

Respira, tu que estás numa cela abafada, 

esse ar que entra por ela.

Por isso é que os poemas têm ritmo

- para que possas profundamente respirar.

Quem faz um poema salva um afogado.


Poemas e Poesias domingo, 29 de agosto de 2021

NO ÁLBUM DE UMA AMIGA (POEMA DA MARANHENSE MARIA FIRMINA DOS REIS)

NO ÁLBUM DE UMA AMIGA

Maria Firmina dos Reis

 

 

 

D'amiga a existência tão triste, e cansada,
De dor tão eivada, não queiras provar;
Se a custo um sorriso desliza aparente,
Que máguas não sente, que busca ocultar!?...

Os crus dissabores que eu sofro são tantos,
São tantos os prantos, que vivo a chorar,
É tanta a agonia, tão lenta e sentida,
Que rouba-me a vida, sem nunca acabar.

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D'amiga a existência
Não queiras provar,
Há nelas tais dores,
Que podem matar.

O pranto é ventura,
Que almejo gozar;
A dor é tão funda,
Que estanca o chorar.

Se intento um sorriso,
Que duro penar!
Que chagas não sinto
No peito sangrar!...

Não queiras a vida
Que eu sofro - levar,
Resume tais dores
Que podem matar.

E eu as sofro todas, e nem sei
Como posso existir!
Vaga sombra entre os vivos, - mal podendo
Meus pesares sentir.

Talvez assim deus queira o meu viver
Tão cheio de amargura.
P'ra que não ame a vida, e não me aterre
A fria sepultura.


Poemas e Poesias sábado, 28 de agosto de 2021

CANÇÃO DA PARADA DO LUCAS (POEMA DO PERNAMBUCANO MANUEL BANDEIRA)

CANÇÃO DA PARADA DO LUCAS

Manuel Bandeira

 

 

 

Parada do Lucas
— O trem não parou.

Ah, se o trem parasse
Minha alma incendida
Pediria à Noite
Dois seios intactos.

Parada do Lucas
— O trem não parou.

Ah, se o trem parasse
Eu iria aos mangues
Dormir na escureza
Das águas defuntas.

Parada do Lucas
— O trem não parou.

Nada aconteceu
Senão a lembrança
Do crime espantoso
Que o tempo engoliu.

 


Poemas e Poesias sexta, 27 de agosto de 2021

INSTANTE ANUNCIADO (POEMA DO MATO-GROSSENSE MANOEL DE BARROS)

INSTANTE ANUNCIADO

Manoel de Barros

 

 

 

Um chapéu velho!
Eu não via seu rosto, que um velho chapéu,
Esmaecido pelo sol, cobria.
Mas sei que não chorava
E nem tinha desejo de falar.
Porque sabia que alguma coisa vinha chegando
De manso, alguma coisa vinha chegando…
Eu não via seu rosto,
Seu rosto sombreado que um velho chapéu,
Esmaecido pelo sol, cobria.
Mas sei como ele amou aquele instante
Mas sei com que prazer ele esperou
Aquela que viria com os lábios úmidos para ele
A que havia de vir passar as mãos
Pelos seus joelhos feridos.

Poemas e Poesias quinta, 26 de agosto de 2021

VAI-TE (POEMA DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

VAI-TE

Machado de Assis

 

 

 

Por que voltaste? Esquecidos
Meus sonhos, e meus amores
Frios, pálidos morreram
Em meu peito. Aquelas flores
Da grinalda da ventura
Tão de lágrimas regada,
Nesta fronte apaixonada
Cingida por tua mão,
Secaram, mortas estão.
Pobre pálida grinalda!
Faltou-lhe um orvalho eterno
De teu belo coração.
Foi de curta duração
Teu amor: não compreendeste
Quanto amor esta alma tinha...
Vai, leviana andorinha,
A outro clima, outro céu:
Meu coração? Já morreu
Para ti e teus amores,
E não pode amar-te — vai!
O hino das minhas dores
Dir-to-á a brisa, à noite,
Num terno, saudoso — ai —
Vai-te — e possa a asa do vento
Que pelas selvas murmura,
Da grinalda da ventura
Que em mim outrora cingiste,
Inda um perfume levar-te,
Morta assim: como um remorso
Do teu olvido... eu amar-te?
Não, não posso; esquece, parte;
Eu não posso amar-te... vai!


Poemas e Poesias quarta, 25 de agosto de 2021

FLAGRANTE (POEMA DO PERNAMBUCANO LUÍS TURIBA)

FLAGRANTE

Luís Turiba

 

 

 

Lágrima na floresta
Testemunha sexo selvagem
Entre a motosserra e a árvore

 


Poemas e Poesias terça, 24 de agosto de 2021

FIM DE UM POEMA (POEMA DO CARIOCA LUÍS EDMUNDO)

FIM DE UM POEMA

Luís Edmundo

 

 

 

Termina a nossa história aqui neste soneto.

Senhora, o meu amor tinha a expressão sincera

Que os corações abala e as almas dilacera,

E não fostes Ofélia e hoje eu sou como Hamleto.

 

Esquecer vossa graça e o vosso amor prometo;

Que eu sinto dentro em mim esse poder que gera

As firmes convicções, ó flor da primavera,

De lábio cor-de-rosa e de cabelo preto!

 

Punge-me, é certo, a dor que inda em vossa alma existe,

Que também eu não sou um satã de maldade

Para rir da expressão do vosso olhar tão triste!

 

Mas, enfim, é a razão, e eu me curvo e submeto...

E, crede, deste amor só me resta a saudade.

Termina a nossa história aqui neste soneto.


Poemas e Poesias segunda, 23 de agosto de 2021

A MEU IRMÃO - JOSÉ JOAQUIM GOMES COELHO (POEMA DO PORTUGUÊS JÚLIO DINIS)

A MEU IRMÃO
(JOSÉ JOAQUIM GOMES COELHO)

Júlio Dinis

 

Também tu, meu irmão, inda aos vinte anos, Dizes ao mundo teu extremo adeus!
Deixas-me só e partes! os arcanos
Vais da vida sondar aos pés de Deus?

Inda há bem pouco aspirações ridentes, Despertadas ao sol da juventude,
Te apontavam futuros resplendentes
De mil glórias, de amor e de virtude.

Há pouco em devaneios tão risonhos, Cantavas em sentida poesia
As meigas ilusões, dourados sonhos
Que te adejavam sempre à fantasia.

Há pouco tu julgavas do horizonte
Ver dum belo porvir sorrir-te a aurora,
Bem como a áurea luz c’roando o monte,
Do Sol preced e a chama animadora.

Tudo isso era ilusão, simples quimera, Que aos vinte anos sonhamos acordados; Curta página a sorte te escrevera
No grande livro incógnito dos fados

E enquanto descuidado te entregavas
Aos sonhos da exaltada fantasia,
Sob a florea vereda que trilhavas
A morte, a fria morte, se escondia!

Tu viste uma por uma emurchecerem
As mais viçosas flores da tua vida;
E as esperanças seu verdor perderem
Com a aridez da existência desflorida.

E a vida te pareceu áspero deserto, Assim desguarnecida de ilusões,
De laços materiais cedo liberto
Remontaste às celestes regiões.

Não te lamento, irmão; a tua sorte, Ao que padece, inveja só produz;
Porque às trevas finais da hora da morte
Seguem-se anos sem fim de imensa luz.

Eras justo, no Céu gozas a palma,
Que ao mundo, aqui debalde pedirias,
E os anjos acolheram a tua alma
Num coro de suaves harmonias.

Mas eu, que te amei, pra quem tu eras
Mais que irmão, mais que pai, mais que amigo,
Eu, a quem desde infante ofereceras,
Pra suprir o de mãe fraterno abrigo.

Mais infeliz fui eu;

Junto a meu lado

Vago está o lugar que abandonaste.

Vivo só, com as saudades do passado,

Do tempo que de encantos povoaste.

Nesta acerba aridez do meu presente
Recordo-me da vida que passou,
E bem vejo que a sorte fatalmente
Na vida do infortúnio me lançou.

Como a do nauta desditosa sorte,
Que o mar arrosta em tormentosa viagem,
E viu nas ondas que enfurece a morte
Sucumbir todo o resto da equipagem;

Tal o destino meu; entrei no mundo
E saudei-o com hinos de alegria;
Nos êxtases dum júbilo profundo,
O dom da vida a Deus agradecia.

Em ambiente de amor desabrocharam
Na infância as flores da existência minha.
Amor de pai, de mãe, de irmãos, douraram
A amena senda, que ante mim eu tinha.

E depois… ai, irmão!
Que acerbas dores Juntos sofremos!
Murchas, ressequidas,
Desfolharam-se as mais viçosas flores,
Ceifou a dura morte aquelas vidas.

O belo céu, que nos sorriu na infância,

Em brev e se mostrou turbado e triste;

A terna mãe pedira a outra estância
A paz, que neste mundo não existe.

E ai daquele, que no alvor da vida

Perdeu pra sempre maternais afagos,

Ai, que bem cedo a vê ser consumida

Por mil anelos, mil desejos vagos.

Ai, bem cedo o sentimos! Separados
Do sol que a infância em luz nos envolvia,
Quais estioladas plantas, assombrados,
A fronte inda infantil, já nos pendia.

E assim viveste! e quando a idade ardente
De mil aspirações te enchia o peito,
Olhaste, e vendo a isolação somente,
Cansado, te deitaste em frio leito.

E eu, em vão no ataúde me curvava,

Em vão hei procurado a tua campa;
A morte de mistérios te falava,
Mas nos lábios do morto o dedo estampa.

Em vão te perguntei: Nessa morada
Outros fúlgidos sonhos imaginas?
Ao sair da vida deparaste o nada?
Ou acordaste em regiões divinas?

Mudo ficaste.

Os ventos perpassaram,

Soltando queixas no volver das folhas,

E teus lábios imóveis não falaram,
Nem sequer o irmão saudoso olhas.

Meu Deus! permite que através da lousa
Possa ele ouvir a minha voz ainda,
E desse leito, onde afinal repousa,
Me diga: A vida neste pó não finda;

Me diga: A crença que na leda infância
Aprendemos da mãe é verdadeira;
Há outra vida, há uma outra estância,
Tão feliz, quanto esta é passageira;

Que se encontram os entes mais queridos,
E em eterno amplexo a Deus se humilham;
Oue os prazeres em sonhos concebidos
Só há no espaço onde as estrelas brilham.

E então, ó Senhor, com a fé mais pura
Eu ansiarei pelo supremo instante
Em que, livre da humana desventura,
Demandar tua estância radiante.

Deixa que o amigo ao amigo só revele Os segredos que a morte lhe confia, Esta incerteza… em vão a fé repele,
A dúvida cruel continuo a cria.

Porque negas, Senhor, ao peregrino
Que vai cumprindo só esta romagem ,
Um raio ao menos do saber divino,
Que lhe brade na dúvida: Coragem !?

Porque não ha-de a lousa funerária

Erguer-se à voz saudosa da amizade,

Para falar à alma solitária
Que anela por saber toda a verdade ?

Porquê?…

Mas, Deus, perdoa! eu creio! eu creio!

No seu leito de morte o conheci:
Sim, nesse instante de tormentos cheio,

No peito a voz da crença bem ouvi!

E por isso prostrei-me de joelhos,

E os lábios murmuravam a oração,
E cri então no Deus dos Evangelhos,

E a dúvida deixou-me o coração.

Repousa, irmão, à sombra do cipreste;

Não repousar na terra é desventura.

Dorme no mundo e acorda à luz celeste,

Cruzando o limiar da sepultura.

Dezembro de 1859.

Nota do Autor. – Duvidar da verdade desta poesia, era duvidar dos meus sentimentos mais puros, dos meus mais queridos afectos e nesse caso, não sei de palavras que me pudessem justificar.


Poemas e Poesias domingo, 22 de agosto de 2021

O ACENDEDOR DE LAMPIÕES (POEMA DO ALAGOANO JORGE DE LIMA)

O ACENCEDOR DE LAMPIÕES 

Jorge de Lima

 

 

 

Lá vem o acendedor de lampiões da rua!

Este mesmo que vem infatigavelmente,

Parodiar o sol e associar-se à lua

Quando a sombra da noite enegrece o poente!

Um, dois, três lampiões, acende e continua

Outros mais a acender imperturbavelmente,

À medida que a noite aos poucos se acentua

E a palidez da lua apenas se pressente.

Triste ironia atroz que o senso humano irrita: —

Ele que doira a noite e ilumina a cidade,

Talvez não tenha luz na choupana em que habita.

Tanta gente também nos outros insinua

Crenças, religiões, amor, felicidade,

Como este acendedor de lampiões da rua!


Poemas e Poesias sábado, 21 de agosto de 2021

O CÃO SEM PLUMAS (POEMA DO PERNAMBUCANO JOÃO CABRAL DE MELO NETO)

O CÃO SEM PLUMAS

João Cabral de Melo Neto

 

 

 

A cidade é passada pelo rio
como uma rua
é passada por um cachorro;
uma fruta
por uma espada.

O rio ora lembrava
a língua mansa de um cão,
ora o ventre triste de um cão,
ora o outro rio
de aquoso pano sujo
dos olhos de um cão.

Aquele rio
era como um cão sem plumas.
Nada sabia da chuva azul,
da fonte cor-de-rosa,
da água do copo de água,
da água de cântaro,
dos peixes de água,
da brisa na água.

Sabia dos caranguejos
de lodo e ferrugem.
Sabia da lama
como de uma mucosa.
Devia saber dos polvos.
Sabia seguramente
da mulher febril que habita as ostras.

Aquele rio
jamais se abre aos peixes,
ao brilho,
à inquietação de faca
que há nos peixes.
Jamais se abre em peixes.

Abre-se em flores
pobres e negras
como negros.
Abre-se numa flora
suja e mais mendiga
como são os mendigos negros.
Abre-se em mangues
de folhas duras e crespos
como um negro.

Liso como o ventre
de uma cadela fecunda,
o rio cresce
sem nunca explodir.
Tem, o rio,
um parto fluente e invertebrado
como o de uma cadela.

E jamais o vi ferver
(como ferve
o pão que fermenta).
Em silêncio,
o rio carrega sua fecundidade pobre,
grávido de terra negra.

Em silêncio se dá:
em capas de terra negra,
em botinas ou luvas de terra negra
para o pé ou a mão
que mergulha.

Como às vezes
passa com os cães,
parecia o rio estagnar-se.
Suas águas fluíam então
mais densas e mornas;
fluíam com as ondas
densas e mornas
de uma cobra.

Ele tinha algo, então,
da estagnação de um louco.
Algo da estagnação
do hospital, da penitenciária, dos asilos,
da vida suja e abafada
(de roupa suja e abafada)
por onde se veio arrastando.

Algo da estagnação
dos palácios cariados,
comidos
de mofo e erva-de-passarinho.
Algo da estagnação
das árvores obesas
pingando os mil açúcares
das salas de jantar pernambucanas,
por onde se veio arrastando.

(É nelas,
mas de costas para o rio,
que “as grandes famílias espirituais” da cidade
chocam os ovos gordos
de sua prosa.
Na paz redonda das cozinhas,
ei-las a revolver viciosamente
seus caldeirões
de preguiça viscosa).

Seria a água daquele rio
fruta de alguma árvore?
Por que parecia aquela
uma água madura?
Por que sobre ela, sempre,
como que iam pousar moscas?

Aquele rio
saltou alegre em alguma parte?
Foi canção ou fonte
Em alguma parte?
Por que então seus olhos
vinham pintados de azul
nos mapas?


Poemas e Poesias sexta, 20 de agosto de 2021

BAZAR DE RITMOS (POEMA DO ACRIANO J. G. DE ARAÚJO JORGE)

BAZAR DE RITMOS

J. G. de Araújo Jorge

 

 

 

Nas vitrinas há luz!... Está em festa o bazar
de ritmos, de sons, estranhos e diversos,
- onde canta a minha alma dentro dos meus versos
como num búzio canta e ecoa a voz do mar!
Quantos versos compus!... E que diversidade
de momentos... de estado de alma... nos meus sons!
- traduz bem um bazar, a minha mocidade
na confusão febril das suas sensações...
Sensações que são minhas, por meu Ser sentidas,
mesmo aquelas talvez mais rubras... mais bizarras...
- sinfonia de uma alma onde há notas perdidas
de violinos, pardais, pandeiros e cigarras!
Violinos, - nos meus poemas vagos, doloridos...
pardais, - nos meus trinados de alegria e amor...
pandeiros, - na cadencia ruim de meus sentidos,
e cigarras, nos versos cheios de calor!
Há dentro do bazar a estranha sinfonia
que escrevi para o mundo em toda orquestração,
- é a música da vida, um ser de cada dia
a desdobrar os "eus" da minha multidão...
Há ritmos que riem! Ritmos que gritam!
- vibrações como guizos finos e estridentes...
- emoções como sinos brônzeos e soturnos...
E, assim, nessa alternância, no meu Ser se agitam
- pedaços de rapsódias vivas e contentes...
- trechos emocionais e tristes de noturnos!...
Nas vitrinas há luz!... Está em festa o bazar!
Há sonhos... ilusões... lembranças... e segredos...
Tudo isto para a vida criança vir comprar,
e insensível destruir meus últimos brinquedos!

Poemas e Poesias quinta, 19 de agosto de 2021

6 - DO DESEJO - QUE AS BARCAÇAS DO TEMPO ME DEVOLVAM (POEMA DA PAULISTA HILDA HILST)

6 - DO DESEJO - QUE AS BARCAÇAS DO TEMPO ME DEVOLVAM

 

 

 

Que as barcaças do Tempo me devolvam
A primitiva urna de palavras.
Que me devolvam a ti e o teu rosto
Como desde sempre o conheci: pungente
Mas cintilando de vida, renovado
Como se o sol e o rosto caminhassem
Porque vinha de um a luz do outro.

Que me devolvam a noite, o espaço
De me sentir tão vasta e pertencida
Como se as águas e madeiras de todas as barcaças
Se fizessem matéria rediviva, adolescência e mito.

Que eu te devolva a fome do meu primeiro grito.


Poemas e Poesias quarta, 18 de agosto de 2021

A GUERRA (POEMA DO SERGIPANO HERMES FONTES)

A GUERRA

Hermes Fontes

 

 

 

Todas as puras, máximas conquistas
dos Atletas, dos Sábios, dos Artistas,
todos os vôos para a Perfeição,
todas as lutas imortais da Terra
— esforço ingênuo! sacrifício vão! —
entre os rubros tentáculos da Guerra
as gerações desaparecerão.

Ícaro pôs sua Asa ao serviço da Morte;
ao serviço da Morte, a vela de Jasão
leva de leste a oeste,
leva de sul a norte,
as forças com que excede a cólera celeste
e se iguala ao Relâmpago e ao Trovão:
Último doloroso anátema da Terra!
Último crime, a Guerra!
Último eclipse da Alma e da Razão!

Mata, em dias, a Fome;
a Peste mata, em horas.
Mas, a guerra, em momentos,
desfaz cidades e devasta as floras,
milhares de homens válidos consome,
afronta os céus, arrasa os monumentos,
e vai, de aldeia a aldeia, a todos os países,
enche a Terra, enche o Céu com seu hálito impuro,
revolve a crosta, desce aos báratros do Oceano
e a cinza dos heróis e a dor dos infelizes
espalha no horizonte do Futuro,
para incentivo de ódio ao Coração humano,
para semente negra às guerras porvindouras
que pulverizarão apriscos e lavouras,
templos em esplendor, vales em floração:
Último doloroso anátema da Terra!
Último crime — a Guerra!
Último eclipse da Alma e da Razão!


Poemas e Poesias terça, 17 de agosto de 2021

ARCO-ÍRIS: 2-AZUL (POEMA DO PAULISTA GUILHERME DE ALMEIDA)

ARCO-ÍRIS: 2-AZUL

Guilherme de Almeida

 

 

Primavera.
Um pedaço de céu caiu na terra:
em tufos fofos de flocos frouxos frívolas hortênsias
volantes como crinolinas fúteis
desmancham-se em reverências
ou passeiam como sombrinhas lindamente inúteis
ou pousam empoadas de ar como pompons. O céu
é um grande linho muito passado no anil
que o vento enfuna num varal de vidro. Ele é o
toldo azul de um bazar
onde brinca vestido de ar
um clown elástico, ágil e sutil.


Poemas e Poesias segunda, 16 de agosto de 2021

A ESCOLA PORTUGUESA (POEMA DO PORTUGUÊS GUERRA JUNQUEIRO)

A ESCOLA PORTUGUESA

Guerra Junqueiro

 

 

 

Eis as crianças vermelhas
Na sua hedionda prisão:
Doirado enxame de abelhas!
O mestre-escola é o zangão.

Em duros bancos de pinho
Senta-se a turba sonora
Dos corpos feitos de arminho,
Das almas feitas d'aurora.

Soletram versos e prosas
Horríveis; contudo, ao lê-las
Daquelas bocas de rosas
Saem murmúrios de estrela.

Contemplam de quando em quando,
E com inveja, Senhor!
As andorinhas passando
Do azul no livre esplendor.

Oh, que existência doirada
Lá cima, no azul, na glória,
Sem cartilhas, sem tabuada,
Sem mestre e sem palmatória!

E como os dias são longos
Nestas prisões sepulcrais!
Abrem a boca os ditongos,
E as cifras tristes dão ais!

Desgraçadas toutinegras,
Que insuportáveis martírios!
João Félix co'as unhas negras,
Mostrando as vogais aos lírios!

Como querem que despontem
Os frutos na escola aldeã,
Se o nome do mestre é — Ontem
E o do discíp'lo — Amanhã!

Como é que há-de na campina
Surgir o trigal maduro,
Se é o Passado quem ensina
b a ba ao Futuro!

Entregar a um tarimbeiro
Um coração infantil!
Fazer o calvo Janeiro
Preceptor do loiro Abril!

Barbaridade irrisória,
Estúpido despotismo!
Meter uma palmatória
Nas mãos dum anacronismo!

A palmatória, o açoite,
A estupidez decretada!
A lei incumbindo a Noite
Da educação da Alvoradal

Gravai na vossa lembrança
E meditai com horror,
Que o homem sai da criança
Como o fruto sai da flor.

Da pequenina semente,
Que a escola régia destrói,
Pode fazer-se igualmente
Ou o assassino ou o herói.

Desta escola a uma prisão
Vai um caminho agoireiro:
A escola produz o grão
De que a enxovia é o celeiro.

Deixai ver o Sol doirado
À infância, eis o que eu vos peço.
Esta escola é um atentado,
Um roubo feito ao progresso.

Vamos, arrancai a infância
Da lama deste paul;
Rasgai no muro Ignorância
Trezentas portas de azul!

O professor asinino,
Segundo entre nós ele é,
Dum anjo extrai um cretino,
Dum cretino um chimpanzé.

Empunhando as rijas férulas
Vós esmagais e partis
As crianças — essas pérolas
Na escola — esse almofariz.

Isto escolas!... que índecência
Escolas, esta farsada!
São açougues de inocência,
São talhos d'anjos, mais nada.


Poemas e Poesias domingo, 15 de agosto de 2021

NÓS SOMOS VIDA DAS GENTES (POEMA DO PORTUGUÊS GIL VICENTE)

NÓS SOMOS VIDA DAS GENTES

Gil Vicente

 

 

 

Sempre é morto quem do arado
há-de viver.

Nós somos vida das gentes,
e morte de nossas vidas;
a tiranos pacientes
que a unhas e a dentes
nos têm as almas roídas.
Pera que é parouvelar?
Que queira ser pecador
o lavrador,
não tem tempo nem lugar
nem somente d'alimpar
as gotas do seu suor.

N'ergueija bradam co'ele,
porque assoviou a um cão;
e logo excomunhão na pele,
o fidalgo, maçar nele,
atá o mais triste rascão.
Se não levam torta a mão,
não lhe acham nenhum dereito.
Muito atribulados são!
Cada um pela o vilão
per seu jeito.

Trago a prepósito isto,
perque veio a bem de fala.
Manifesto está e visto
que o bento Jesu Cristo
deve ser homem de gala.
E é rezão que nos valha
neste serão glorioso,
que é gram refúgio sem falha.
Isto me faz forçoso,
e não estou temeroso
nemigalha.


Poemas e Poesias sábado, 14 de agosto de 2021

A FONTE DE JACÓ (POEMA DA PAULISTA FRANCISCA JÚLIA)

A FONTE DE JACÓ

Francisca Júlia

 

 

Na velha Samaria era Sicar situada;

Ora, em Sicar, Jacó, filho de Isac, um dia,

Velho já, tarda a mão, à sua gente amada

Uma fonte rasgou d'água límpida e fria.

 

O Mestre, certa vez, a essa borda abençoada,

(No tempo de Jesus a fonte inda existia)

À hora sexta quedou-se, a fronte angustiada

De dor, a ver passar gentes de Samaria.

 

Uma Samaritana, acaso, à fonte veio;

E ao passar por Jesus, com seu cântaro cheio,

O alto busto ondulou numa graça lasciva.. .

 

— Água! pediu Jesus, mata-me a sede e a mágoa!

Do cântaro, que tens, dá-me uma pouca d'água

Que, em troca, eu te darei da fonte d'água, viva.


Poemas e Poesias sexta, 13 de agosto de 2021

AMAR (POEMA DA PORTUGUESA FLORBELA ESPANCA)

AMAR

Florbela Espanca

 

 

 

Eu quero amar, amar perdidamente!
Amar só por amar: Aqui, além
Mais este e aquele, o outro e toda a gente
Amar! Amar! E não amar ninguém!

Recordar? Esquecer? Indiferente!
Prender ou desprender? É mal? É bem?
Quem disser que se pode amar alguém
Durante a vida inteira é porque mente!

Há uma primavera em cada vida
É preciso cantá-la assim Florida
Pois se Deus nos deu voz, foi pra cantar!

E se um dia hei de ser pó, cinza e nada
Que seja a minha noite uma alvorada
Que me saiba perder, pra me encontrar


Poemas e Poesias quinta, 12 de agosto de 2021

VENDO A NOITE (POEMA DO MARANHENSE FERREIRA GULLAR)

VENDO A NOITE

Ferreira Gullar

 

 

 

Júpiter, Saturno.
De dentro de meu corpo
estou vendo
o universo noturno.

Velhas explosões de gás
que meu corpo não ouve:
vejo a noite que houve
e não existe mais –

a mesma, veloz, em Troia,
no rosto de Heitor
– hoje na pele de meu rosto
no Arpoador.


Poemas e Poesias quarta, 11 de agosto de 2021

CESSA O TEU CANTO (POEMA DO PORTUGUÊS FERNANDO PESSOA)

CESSA O TEU CANTO

Fernando Pessoa

 

 

 

 

Cessa o teu canto!

Cessa, que, enquanto

O ouvi, ouvia

Uma outra voz

Como que vindo

Nos interstícios

Do brando encanto

Com que o teu canto

Vinha até nós.

 

Ouvi-te e ouvi-a

No mesmo tempo

E diferentes

Juntas a cantar.

E a melodia

Que não havia,

Se agora a lembro,

Faz-me chorar.

 

Foi tua voz

Encantamento

Que, sem querer,

Nesse momento

Vago acordou

Um ser qualquer

Alheio a nós

Que nos falou?

 

Não sei. Não cantes!

Deixa-me ouvir

Qual o silêncio

Que há a seguir

A tu cantares!

 

Ah, nada, nada!

Só os pesares

De ter ouvido,

De ter querido

Ouvir para além

Do que é o sentido

Que uma voz tem.

 

Que anjo, ao ergueres

A tua voz

Sem o saberes

Veio baixar

Sobre esta terra

Onde a alma erra

E com as asas

Soprou as brasas

De ignoto lar?

 

Não cantes mais!

Quero o silêncio

Para dormir

Qualquer memória

Da voz ouvida,

Desentendida,

Que foi perdida

Por eu a ouvir...


Poemas e Poesias terça, 10 de agosto de 2021

MINHA PARTE FELIZ NÃO ERA FIEL (POEMA DO GAÚCHO FABRÍCIO CARPINEJAR)

MINHA PARTE FELIZ NÃO ERA FIEL

Fabrício Carpinejar

 

 

 

Estou conspirando
sem me dar conta,
na conversa do trem, ao telefone,
no bar, escrevendo.
Num canto da rua, existe alguém sob suspeita.
Do outro, à espreita.
Sobram enganos para incinerar o que me cerca.


Poemas e Poesias segunda, 09 de agosto de 2021

COMPARAÇÃO (POEMA DO FLUMINENSE EUCLIDES DA CUNHA)

COMPARAÇÃO

Euclides da Cunha

 

 

 

"Eu sou fraca e pequena..."
Tu me disseste um dia.
E em teu lábio sorria
Uma dor tão serena,

Que em mim se refletia
Amargamente amena,
A encantadora pena
Quem em teus olhos fulgia.

Mas esta mágoa, o tê-la
É um engano profundo.
Faze por esquecê-la:
Dos céus azuis ao fundo
É bem pequena a estrela...
E no entretanto é um mundo!


Poemas e Poesias domingo, 08 de agosto de 2021

TROVAS HUMORÍSTICAS - 10 - (POEMA DO PARANAENSE ENO TEODORO WANKE)

 

TROVA HUMORÍSTICA - 10

Eno Teodoro Wanke

 

A galinha é nada menos

Que a maneira de alguns ovos

Se transformarem, serenos

Em outros ovos mais novos

 


Poemas e Poesias sábado, 07 de agosto de 2021

A PASSIFLORA (POEMA DO CARIOCA DOM PEDRO II)

A PASSIFLORA

Dom Pedro II

 

 

 

Neste meu declinar é minha flor querida.
Chamem-na outros embora só flor da Paixão,
Eu a chamo flor da vida;
Há pois diferença? Não.
D'espinhos tem a coroa,
E escada aos céus s'elevando;
Divinas gotas escoa,
Hissope ou mel destilando.
Tem o verde da esperança;
Tem do luto o arroxado,
É alegria, ou dor que causa;
Berço ou tumba de finado.
É pois em meu declínio a minha flor querida;
Do dia que enlanguece tem o claro-escuro.
É ela a imagem da vida;
É o passado; é o futuro.


Poemas e Poesias sexta, 06 de agosto de 2021

ELOGIO À MORTE (POEMA OD PIAUIENSE DA COSTA E SILVA)

ELOGIO À MORTE

Da Costa e Silva

 

 

 

A morte não me assombra, nem me assusta,
Não me causa arrepio, medo ao menos,
Pois, vendo-a como os mártires, não custa 
Vê-la também como os heróis helenos.

É a mesma deusa redentora e augusta
De sorriso velado e olhos serenos, 
Impassível e fria, porque é justa, 
Mas amável e bela como Vênus.

Sob o véu de mistério em que se encobre, 
Para dos homens se tornar temida,
Vêem-na o rude, o mau, o triste, o pobre...

Mas eu a vejo em mármore esculpida,
Com o eterno semblante calmo e nobre,
Que não muda de aspecto como a vida.


Poemas e Poesias quinta, 05 de agosto de 2021

A BORBOLETA AZUL (POEMA DO CATARINENSE CRUZ E SOUSA)

A BORBOLETA AZUL

Cruz e Sousa

 

 

 

No alegre sol de então
De uma manhã de amor,
A borboleta solta no fulgor
Da luz, lembrava um leve coração.
 
Ia e vinha e a voar
Gentil e trêfega, azul,
Sonoramente a percorrer pelo ar,
Como um silfo tenuíssimo e taful.
 
Sobre os frescos rosais
Pousava débil, sutil,
Doirando tudo de um risonho abril
Feito de beijos e de madrigais.
 
Que doce embriaguez
O vôo assim seguir
Da borboleta azul, correndo, a vir
Do espaço pela Etérea candidez!
 
Fazendo, tal e qual,
O mesmo giro assim,
O mesmo vôo límpido, sem fim,
Nos mundos virgens de qualquer ideal.
 
Ir como ela também
Em busca das loucas
E tropicais e fulgidas manhãs
Cheias de colibris e sol, além...
 
Ir com ela na luz
De mundos através,
Sem abrolhos nas mãos, cardos nos pés,
Ó alma, minha, que alegria a flux!...
 
No alegre sol de então
De uma manhã de amor
A borboleta solta no fulgor
Da luz, lembrava um leve coração.


Poemas e Poesias quarta, 04 de agosto de 2021

MEU VINTÉM PERDIDO (POEMA DA GOIANA CORA CORALINA)

MEU VINTÉM PERDIDO

Cora Coralina

 

 

“Que procura você, Aninha?

Que força a fez despedaçar correntes de afeto

e trazê-la de volta às pedras lapidares do passado?

Sozinha, sem medo, vinte e sete anos já passados…

Meu vintém perdido, meu vintém de felicidade.

Capacidade maior de ser eu mesma, minha afirmação constante.

Caminheira, caminhando sempre.

Nos meus pés pequenos,

meus chinelinhos furados.

Tão escura a noite da minha vida…

Indiferentes ou vigilantes.

Tanto tropeço.

Na frente, marcando o caminho a candeia apagada.

Procuro minha escola primária e a sombra da velha mestra,

com seu imenso saber, infinita sabedoria, sua arte de ensinar.

(…)

Quando eu morrer, não morrerei de tudo.

Estarei sempre nas páginas deste livro, criação mais viva

da minha vida interior em parto solitário.”


Poemas e Poesias terça, 03 de agosto de 2021

XLVII - QUE INFLEXÍVEL SE MOSTRA, QUE CONSTANTE (POEMA DO CARIOCA CLÁUDIO MANUEL DA COSTA)

XLVII - QUE INFLEXÍVEL SE MOSTRA, QUE CONSTANTE 

Cláudio Manuel da Costa

 

 

Que inflexível se mostra, que constante
Se vê este penhasco! já ferido
Do proceloso vento, e já batido
Do mar, que nele quebra a cada instante!

Não vi; nem hei de ver mais semelhante
Retrato dessa ingrata, a que o gemido
Jamais pode fazer, que enternecido
Seu peito atenda às queixas de um amante.

Tal és, ingrata Nise: a rebeldia,
Que vês nesse penhasco, essa dureza
Há de ceder aos golpes algum dia:

Mas que diversa é tua natureza!
Dos contínuos excessos da porfia,
Recobras novo estímulo à fereza.


Poemas e Poesias segunda, 02 de agosto de 2021

QUERO ESCREVER BORRÃO VERMELHO DE SANGUE (POEMA DA UCRANIANA-BRASILEIRA CLARICE LISPECTOR)

 

QUERO ESCREVER BORRÃO VERMELHO DE SANGUE

Clarice Lispector

 

 

 

Quero escrever o borrão vermelho de sangue
com as gotas e coágulos pingando
de dentro para dentro.
Quero escrever amarelo-ouro
com raios de translucidez.
Que não me entendam
pouco-se-me-dá.
Nada tenho a perder.
Jogo tudo na violência
que sempre me povoou,
o grito áspero e agudo e prolongado,
o grito que eu,
por falso respeito humano,
não dei.

Mas aqui vai o meu berro
me rasgando as profundas entranhas
de onde brota o estertor ambicionado.
Quero abarcar o mundo
com o terremoto causado pelo grito.
O clímax de minha vida será a morte.

Quero escrever noções
sem o uso abusivo da palavra.
Só me resta ficar nua:
nada tenho mais a perder.

 


Poemas e Poesias domingo, 01 de agosto de 2021

CONTRARIEDADES (POEMA DO PORTUGUÊS CESÁRIO VERDE)

CONTRARIEDADES

Cesário Verde

 

 

 

Eu hoje estou cruel, frenético, exigente;
Nem posso tolerar os livros mais bizarros.
Incrível! Já fumei três maços de cigarros
Consecutivamente.

Dói-me a cabeça. Abafo uns desesperos mudos:
Tanta depravação nos usos, nos costumes!
Amo, insensatamente, os ácidos, os gumes
E os ângulos agudos.

Sentei-me à secretária. Ali defronte mora
Uma infeliz, sem peito, os dois pulmões doentes;
Sofre de faltas de ar, morreram-lhe os parentes
E engoma para fora.

Pobre esqueleto branco entre as nevadas roupas!
Tão lívida! O doutor deixou-a. Mortifica.
Lidando sempre! E deve a conta na botica!
Mal ganha para sopas...

O obstáculo estimula, torna-nos perversos;
Agora sinto-me eu cheio de raivas frias,
Por causa dum jornal me rejeitar, há dias,
Um folhetim de versos.

Que mau humor! Rasguei uma epopéia morta
No fundo da gaveta. O que produz o estudo?
Mais duma redação, das que elogiam tudo,
Me tem fechado a porta.

A crítica segundo o método de Taine
Ignoram-na. Juntei numa fogueira imensa
Muitíssimos papéis inéditos. A imprensa
Vale um desdém solene.

Com raras exceções merece-me o epigrama.
Deu meia-noite; e em paz pela calçada abaixo,
Soluça um sol-e-dó. Chuvisca. O populacho
Diverte-se na lama.

Eu nunca dediquei poemas às fortunas,
Mas sim, por deferência, a amigos ou a artistas.
Independente! Só por isso os jornalistas
Me negam as colunas.

Receiam que o assinante ingênuo os abandone,
Se forem publicar tais coisas, tais autores.
Arte? Não lhes convêm, visto que os seus leitores
Deliram por Zaccone.

Um prosador qualquer desfruta fama honrosa,
Obtém dinheiro, arranja a sua coterie;
E a mim, não há questão que mais me contrarie
Do que escrever em prosa.

A adulação repugna aos sentimentos finos;
Eu raramente falo aos nossos literatos,
E apuro-me em lançar originais e exatos,
Os meus alexandrinos...

E a tísica? Fechada, e com o ferro aceso!
Ignora que a asfixia a combustão das brasas,
Não foge do estendal que lhe umedece as casas,
E fina-se ao desprezo!

Mantém-se a chá e pão! Antes entrar na cova.
Esvai-se; e todavia, à tarde, fracamente,
Oiço-a cantarolar uma canção plangente
Duma opereta nova!

Perfeitamente. Vou findar sem azedume.
Quem sabe se depois, eu rico e noutros climas,
Conseguirei reler essas antigas rimas,
Impressas em volume?

Nas letras eu conheço um campo de manobras;
Emprega-se a réclame, a intriga, o anúncio, a blague,
E esta poesia pede um editor que pague
Todas as minhas obras

E estou melhor; passou-me a cólera. E a vizinha?
A pobre engomadeira ir-se-á deitar sem ceia?
Vejo-lhe luz no quarto. Inda trabalha. É feia...
Que mundo! Coitadinha!


Poemas e Poesias sábado, 31 de julho de 2021

LEVEZA (POEMA DA CARIOCA CECÍLIA MEIRELES)

LEVEZA

Cecília Meireles

 

 

 

Leve é o pássaro: 
e a sua sombra voante, 
mais leve. 
 
E a cascata aérea 
de sua garganta, 
mais leve. 
 
E o que se lembra, ouvindo-se 
deslizar seu canto, 
mais leve. 
 
E o desejo rápido 
desse mais antigo instante, 
mais leve. 
 
E a fuga invisível 
do amargo passante, 
mais leve. 

Poemas e Poesias quinta, 29 de julho de 2021

HEBREIA (POEMA DO BAIANO CASTRO ALVES)

HEBREIA

Castro Alves

 

 

 

Pomba d'esp'rança sobre um mar d'escolhos!
Lírio do vale oriental, brilhante!
Estrela vésper do pastor errante!
Ramo de murta a recender cheirosa!...

Tu és, ó filha de Israel formosa...
Tu és, ó linda, sedutora Hebréia...
Pálida rosa da infeliz Judéia
Sem ter o orvalho, que do céu deriva!

Por que descoras, quando a tarde esquiva
Mira-se triste sobre o azul das vagas?
Serão saudades das infindas plagas,
Onde a oliveira no Jordão se inclina?

Sonhas acaso, quando o sol declina,
A terra santa do Oriente imenso?
E as caravanas no deserto extenso?
E os pegureiros da palmeira à sombra?!...

Sim, fora belo na relvosa alfombra,
Junto da fonte, onde Raquel gemera,
Viver contigo qual Jacó vivera
Guiando escravo teu feliz rebanho...

Depois nas águas de cheiroso banho
— Como Susana a estremecer de frio —
Fitar-te, ó flor do babilônio rio,
Fitar-te a medo no salgueiro oculto...

Vem pois!... Contigo no deserto inculto,
Fugindo às iras de Saul embora,
Davi eu fora, — se Micol tu foras,
Vibrando na harpa do profeta o canto...

Não vês?... Do seio me goteja o pranto
Qual da torrente do Cédron deserto!...
Como lutara o patriarca incerto
Lutei, meu anjo, mas caí vencido.

Eu sou o lótus para o chão pendido.
Vem ser o orvalho oriental, brilhante!...
Ai! guia o passo ao viajor perdido,
Estrela vésper do pastor errante!...


Poemas e Poesias quarta, 28 de julho de 2021

O PARAÍSO (POEMA DO CARIOCA OLAVO BILAC)

O PARAÍSO

Olavo Bilac

 

 

A pálida Ramona
É uma formosa dona,
Moça e cheia de encantos:
Tem a graça e a malícia do Demônio...
E, aos vinte anos, uniu-se em matrimônio
Ao Chilperico Santos.

Ornou-lhe a fronte de gentis galhadas...
E, quando ele, entre as gentes assustadas,
Passava assim, — que sustos e que espantos!
Por fim, morreu... foi pena!
— E a viúva, serena,
Casou de novo... com Silvério Santos.

Fez o mesmo ao segundo que ao primeiro,
E, louca, ao mundo inteiro
Andava namorando pelos cantos...
Ele morreu. E a pálida senhora,
Serena como outrora,
Casou... com Hermes Santos.

Fez ao terceiro o mesmo que ao segundo...
Depois dele, casou com Segismundo
Santos... Depois, sem lutos e sem prantos,
Sem se lembrar dos pobres falecidos,
Foi tendo por maridos
Uns onze ou doze Santos!




Ninguém jamais teve maridos tantos!
Mulher nenhuma teve menos siso!
E, por ter enganado a tantos Santos,
Quase, com seus encantos,
Converteu num curral o Paraíso...

 


Poemas e Poesias terça, 27 de julho de 2021

O QUE É SIMPATIA - A UMA MENINA (POEMA DO FLUMINENSE CASIMIRO DE ABREU)

O QUE É - SIMPATIA
(A uma menina)

Casimiro de Abreu

(Grafia original)

 



Simpatia - é o sentimento
Que nasce num só momento,
Sincero, no coração;
São dois olhares acesos
Bem juntos, unidos, presos
Numa mágica atração.

Simpatia - são dois galhos
Banhados de bons orvalhos
Nas mangueiras do jardim;
Bem longe às vezes nascidos,
Mas que se juntam crescidos
E que se abraçam por fim.

São duas almas bem gêmeas
Que riem no mesmo riso,
Que choram nos mesmos ais;
São vozes de dois amantes,
Duas liras semelhantes,
Ou dois poemas iguais.

Simpatia - meu anjinho,
É o canto do passarinho,
É o doce aroma da flor;
São nuvens dum céu d'Agôsto,
É o que m'inspira teu rosto...
- Simpatia - é - quase amor!


Poemas e Poesias segunda, 26 de julho de 2021

O INÍCIO (DO POEMA GUIA PRÁTICO DA CIDADE DO RECIFE, DO PERNAMBUCANO CARLOS PENA FILHO)

O INÍCIO

(Do poema Guia Prático do Recife)

Carlos Pena Filho

 

 


No ponto onde o mar se extingue
e as areias se levantam
cavaram seus alicerces
na surda sombra da terra
e levantaram seus muros
do frio sono das pedras.
Depois armaram seus flancos:
trinta bandeiras azuis
plantadas no litoral.
Hoje, serena, flutua,
metade roubada ao mar,
metade à imaginação,
pois é do sonho dos homens
que uma cidade se inventa.


Poemas e Poesias domingo, 25 de julho de 2021

AMIZADE (POEMA DO MINEIRO CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE)

AMIZADE

Carlos Drummond de Andrade

 

 

Certas amizades comprometem a idéia de amizade.
O amigo que se torna inimigo fica incompreensível;
o inimigo que se torna amigo é um cofre aberto.
Um amigo íntimo — de si mesmo.
É preciso regar as flores sobre o jazigo de amizades extintas.
Como as plantas, a amizade não deve ser muito nem pouco regada.
A amizade é um meio de nos isolarmos da humanidade cultivando algumas pessoas.


Poemas e Poesias sábado, 24 de julho de 2021

SONETO 052 - DAIME UMA LEI, SENHORA, DE QUERER-VOS (POEMA DO PORTUGUÊS LUÍS DE CAMÕES)

DAI-ME UJMA LEI, SENHORA, DE QUERER-VOS

Soneto 052

Luís de Camões

 

 

Dai-me uma lei, Senhora, de querer-vos,
Que a guarde, sob pena de enojar-vos;
Que a fé, que me obriga a tanto amar-vos,
Fará que fique em lei de obedecer-vos.
Tudo me defendei, senão só ver-vos
E dentro na minh' alma contemplar-vos;
Que, se assi não chegar a contentar-vos,
Ao menos que não chegue a aborrecer-vos.
E se essa condição cruel e esquiva
Que me deis lei de vida não consente,
Dai-ma, Senhora, já, seja de morte.
Se nem essa me dais, é bem que viva
Sem saber como vivo tristemente,
Mas contente porém de minha sorte.

Poemas e Poesias sexta, 23 de julho de 2021

SONETO ANTICLERICAL (POEMA DO PORTUGUÊS MANOEL MARIA DU BOCAGE)

SONETO ANTICLERICAL

Bocage

 

 

Se quereis, bom Monarca, ter soldados
Para compòr lustrosos regimentos,
Mandai desentulhar esses conventos
Em favor da preguiça edificados:

Nos Bernardos lambões, e asselvajados
Achareis mil guerreiros corpulentos;
Nos Vicentes, nos Neris, e nos Bentos
Outros tantos, não menos esforçados;

Tudo extingui, senhor: fiquem somente
Os Franciscanos, Loios, e Torneiros,
Do Centimano asperrima semente:

Existam estes lobos carniceiros.
Para não arruinar inteiramente
Putas, pivias, cações, e alcoviteiros.


Poemas e Poesias quinta, 22 de julho de 2021

CONTRARIEDADE (POEMA DO MINEIRO BELMIRO BRAGA)

CONTRARIEDADE

Belmiro Braga

 

 

 

- A um certo cinema fui
e
 me assentei junto ao Rui.

 

E a sua cabeça - um mundo
de tanto saber profundo _

não me deixou ver o rosto

do meu amor... Que desgôsto!

 

Amo ao grande Rui com ânsia,
mas naquela circunstância ...
Que nunca tal me aconteça!
Porque a verdade 
é verdade :

eu cheguei a ter vontade

de ver o Rui... sem cabeça ...


Poemas e Poesias quarta, 21 de julho de 2021

CONTRASTES (POEMA DO CAPIXABA AUGUSTO DOS ANJOS)

CONTRASTES

Augusto dos Anjos

 

 

A antítese do novo e do obsoleto,
O Amor e a Paz, o ódio e a Carnificina,
O que o homem ama e o que o homem abomina,
Tudo convém para o homem ser completo!

O ângulo obtuso, pois, e o ângulo reto,
Uma feição humana e outra divina
São como a eximenina e a endimenina
Que servem ambas para o mesmo feto!

Eu sei tudo isto mais do que o Eclesiastes!
Por justaposição destes contrastes,
Junta-se um hemisfério a outro hemisfério,

As alegrias juntam-se as tristezas,
E o carpinteiro que fabrica as mesas
Faz também os caixões do cemitério!...


Poemas e Poesias segunda, 19 de julho de 2021

O AMOR E A MORTE (POEMA DO PARAIBANO ARIANO SUASSUNA)

O AMOR E E MORTE

Ariano Suassuna

 

 

Com tema de Augusto dos Anjos

Sobre essa estrada ilumineira e parda
dorme o Lajedo ao sol, como uma Cobra.
Tua nudez na minha se desdobra
— ó Corça branca, ó ruiva Leoparda.

O Anjo sopra a corneta e se retarda:
seu Cinzel corta a pedra e o Porco sobra.
Ao toque do Divino, o bronze dobra,
enquanto assolo os peitos da javarda.

Vê: um dia, a bigorna desses Paços
cortará, no martelo de seus aços,
e o sangue, hão de abrasá-lo os inimigos.

E a Morte, em trajos pretos e amarelos,
brandirá, contra nós, doidos Cutelos
e as Asas rubras dos Dragões antigos.


Poemas e Poesias domingo, 18 de julho de 2021

DINHEIRO (POEMA DO PAULISTA ÁLVARES DE AZEVEDO)

DINHEIRO

Álvares de Azevedo

 

 

Oh! argent! Avec toi on est beau, jeune,
adoré; on a considération, honneurs, qualités, vertus.
Quand on n’a point d’argent on est dans la dépendance
de toutes choses et de tout le monde.
CHATEAUBRIAND

Sem ele não há cova! quem enterra
Assim grátis, a Deo? O batizado
Também custa dinheiro. Quem namora
Sem pagar as pratinhas ao Mercúrio?
Demais, as Danáes também o adoram...
Quem imprime seus versos, quem passeia,
Quem sobe a deputado, até ministro,
Quem é mesmo eleitor, embora sábio,
Embora gênio, talentosa fronte,
Alma romana, se não tem dinheiro?
Fora a canalha de vazios bolsos!
O mundo é para todos... Certamente
Assim o disse Deus, mas esse texto
Explica-se melhor e d’outro modo...
Houve um erro de imprensa no Evangelho:
O mundo é um festim, concordo nisso,
Mas não entra ninguém sem ter as louras


Poemas e Poesias sábado, 17 de julho de 2021

DE AÇUCENAS E ROSAS MISTURADAS (POEMA DO CARIOCA ALVARENGA PEIXOTO)

DE AÇUCENAS E ROSAS MISTURADAS

Alvarenga Peixoto

 

 

De açucenas e rosas misturadas
não se adornam as vossas faces belas,
nem as formosas tranças são daquelas
que dos raios do sol foram forjadas.

As meninas dos olhos delicadas,
verde, preto ou azul não brilha nelas;
mas o autor soberano das estrelas
nenhumas fez a elas comparadas.

Ah, Jônia, as açucenas e as rosas,
a cor dos olhos e as tranças d'oiro
podem fazer mil Ninfas melindrosas;

Porém quanto é caduco esse tesoiro:
vós, sobre a sorte toda das formosas,
inda ostentais na sábia frente o loiro!


Poemas e Poesias sexta, 16 de julho de 2021

ADEUS (POEMA DO PORTUGUÊS ALMEIDA GARRETT)

ADEUS

Almeida Garrett

 

 

Adeus!, para sempre adeus!,
Vai-te, oh!, vai-te, que nesta hora
Sinto a justiça dos Céus
Esmagar-me a alma que chora.
Choro porque não te amei,
Choro o amor que me tiveste;
O que eu perco, bem no sei,
Mas tu... tu nada perdeste:
Que este mau coração meu
Nos secretos escaninhos
Tem venenos tão daninhos
Que o seu poder só sei eu.

Oh!, vai... para sempre adeus!
Vai, que há justiça nos Céus.
Sinto gerar na peçonha
Do ulcerado coração
Essa víbora medonha
Que por seu fatal condão
Há-de rasgá-lo ao nascer:
Há-de, sim, serás vingada,
E o meu castigo há-de ser
Ciúme de ver-te amada,
Remorso de te perder.

Vai-te, oh!, vai-te, longe, embora,
Que sou eu capaz agora
De te amar - Ai!, se eu te amasse!
Vê se no árido pragal
Deste peito se ateasse
De amor o incêndio fatal!
Mais negro e feio no Inferno
Não chameja o fogo eterno.

Que sim? Que antes isso? – Ai, triste!
Não sabes o que pediste.
Não te bastou suportar
o cepo-rei; impaciente
Tu ousas a deus tentar
Pedindo-lhe o rei-serpente!

E cuidas amar-me ainda?
Enganas-te: é morta, é finda,
Dissipada é a ilusão.
Do meigo azul de teus olhos
Tanta lágrima verteste,
Tanto esse orvalho celeste
Derramado o viste em vão
Nesta seara de abrolhos,
Que a fonte secou. Agora
Amarás... sim, hás-de amar,
Amar deves... Muito embora...
Oh!, mas noutro hás-de sonhar
Os sonhos de oiro encantados
Que o mundo chamou amores.

E eu réprobo... eu se o verei?
Se em meus olhos encovados
Der a luz de teus ardores...
Se com ela cegarei?
Se o nada dessas mentiras
Me entrar pelo vão da vida...
Se, ao ver que feliz deliras,
Também eu sonhar ...Perdida,
Perdida serás - perdida.

Oh!, vai-te, vai, longe, embora!
Que te lembre sempre e agora
Que não te amei nunca... ai!, não:
E que pude a sangue-frio,
Covarde, infame, vilão,
Gozar-te – mentir sem brio,
Sem alma, sem dó, sem pejo,
Cometendo em cada beijo
Um crime... Ai!, triste, não chores,
Não chores, anjo do Céu,
Que o desonrado sou eu.

Perdoar-me, tu?... Não mereço.
A imundo cerdo voraz
Essas pérolas de preço
Não as deites: é capaz
De as desprezar na torpeza
De sua bruta natureza.
Irada, te há-de admirar,
Despeitosa, respeitar,
Mas indulgente... Oh!, o perdão
É perdido no vilão,
Que de ti há-de zombar.

Vai, vai... para sempre adeus!
Para sempre aos olhos meus
Sumido seja o clarão
De tua divina estrela.
Faltam-me olhos e razão
Para a ver, para entendê-la:
Alta está no firmamento
De mais, e de mais é bela
Para o baixo pensamento
Com que em má hora a fitei;
Falso e vil o encantamento
Com que a luz lhe fascinei.
Que volte a sua beleza
Do azul do céu à pureza,
E que a mim me deixe aqui
Nas trevas em que nasci,
Trevas negras, densas, feias,
Como é negro este aleijão
Donde me vem sangue às veias,
Este que foi coração,
Este que amar-te não sabe
Porque é só terra - e não cabe
Nele uma ideia dos Céus ...
Oh!, vai, vai; deixa-me adeus!


Poemas e Poesias quinta, 15 de julho de 2021

ÁRIA ANTIGA (POEMA DO GAÚCHO ALCEU WAMOSY)

ÁRIA ANTIGA

Alceu Wamosy

 

Chora o orvalho da luz sobre a rosa do dia
que se fecha. O jardim todo lembra um altar
para o qual sobe o incenso azul da nostalgia,
e onde os lírios estão de joelhos, a rezar.

Tu cantas para mim. Tua voz, triste e mansa,
vem trazendo, a gemer, dos confins da lembrança,
qualquer coisa de velho, onde a vida se esfume.

Quando a voz adormece um fantasma desperta.
A tua boca é como uma rosa entreaberta
que a saudade acalante e o passado perfume.

E essa velha canção que o teu lábio cicia,
no momento em que a tarde adormece no olhar,
enche o meu coração de uma vaga harmonia,
de um desejo pueril de ser bom, e chorar…


Poemas e Poesias quarta, 14 de julho de 2021

AFRODITE (POEMA DO FLUMINENSE ALBERTO DE OLIVEIRA)

AFRODITE

Alberto de Oliveira

 

I

Móvel, festivo, trépido, arrolando,
À clara voz, talvez da turba iriada
De sereias de cauda prateada,
Que vão com o vento os carmes concertando,

O mar, — turquesa enorme, iluminada,
Era, ao clamor das águas, murmurando,
Como um bosque pagão de deuses, quando
Rompeu no Oriente o pálio da alvorada.

As estrelas clarearam repentinas,
E logo as vagas são no verde plano
Tocadas de ouro e irradiações divinas;

O oceano estremece, abrem-se as brumas,
E ela aparece nua, à flor de oceano,
Coroada de um círculo de espumas.

II

Cabelo errante e louro, a pedraria
Do olhar faiscando, o mármore luzindo
Alvirróseo do peito, — nua e fria,
Ela é a filha do mar, que vem sorrindo.

Embalaram-na as vagas, retinindo,
Ressoantes de pérolas, — sorria
Ao vê-la o golfo, se ela adormecia
Das grutas de âmbar no recesso infindo.

Vede-a: veio do abismo! Em roda, em pêlo
Nas águas, cavalgando onda por onda
Todo o mar, surge um povo estranho e belo;

Vêm a saudá-la todos, revoando,
Golfinhos e tritões, em larga ronda,
Pelos retorsos búzios assoprando.


Poemas e Poesias terça, 13 de julho de 2021

CARTA AOS MORTOS (POEMA DO MINEIRO AFFONSO ROMANO DE SANT,ANNA)

CARTA AOS MORTOS

Affonso Romano de Sant'Anna

 

 

Amigos, nada mudou 

        em essência. 

        Os salários mal dão para os gastos, 

        as guerras não terminaram 

        e há vírus novos e terríveis,
        embora o avanço da medicina.
        Volta e meia um vizinho
        tomba morto por questão de amor.
        Há filmes interessantes, é verdade,
        e como sempre, mulheres portentosas
        nos seduzem com suas bocas e pernas,
        mas em matéria de amor
        não inventamos nenhuma posição nova.
        Alguns cosmonautas ficam no espaço
        seis meses ou mais, testando a engrenagem
        e a solidão.
        Em cada olimpíada há récordes previstos
        e nos países, avanços e recuos sociais.
        Mas nenhum pássaro mudou seu canto
        com a modernidade.


        Reencenamos as mesmas tragédias gregas,
        relemos o Quixote, e a primavera
        chega pontualmente cada ano.


        Alguns hábitos, rios e florestas
        se perderam.
        Ninguém mais coloca cadeiras na calçada
        ou toma a fresca da tarde,
        mas temos máquinas velocíssimas
        que nos dispensam de pensar.


        Sobre o desaparecimento dos dinossauros
        e a formação das galáxias
        não avançamos nada.
        Roupas vão e voltam com as modas.
        Governos fortes caem, outros se levantam,
        países se dividem
        e as formigas e abelhas continuam
        fiéis ao seu trabalho. 

 

 

        Nada mudou em essência. 

 



        Cantamos parabéns nas festas,
        discutimos futebol na esquina
        morremos em estúpidos desastres
        e volta e meia
        um de nós olha o céu quando estrelado
        com o mesmo pasmo das cavernas.
        E cada geração , insolente,
        continua a achar
        que vive no ápice da história.


Poemas e Poesias segunda, 12 de julho de 2021

ENREDO PARA UM TEMA (POEMA DA MINEIRA ADÉLIA PRADO)

ENREDO PARA UM TEMA

Adélia Prado

 

Ele me amava, mas não tinha dote,
só os cabelos pretíssimos e um beleza
de príncipe de estórias encantadas.
Não tem importância, falou a meu pai,
se é só por isto, espere.
Foi-se com uma bandeira
e ajuntou ouro pra me comprar três vezes.
Na volta me achou casada com D. Cristóvão.
Estimo que sejam felizes, disse.
O melhor do amor é sua memória, disse meu pai.
Demoraste tanto, que...disse D. Cristóvão.
Só eu não disse nada,
nem antes, nem depois.


Poemas e Poesias domingo, 11 de julho de 2021

EU ME MELDIGO (POEMA DA CARIOCA ADALGISA NERY)

EU ME MALDIGO

Adalgisa Nery

 

 

Que estalem nos céus os trovões, os relâmpagos,

Que as nuvens se estilhacem

E as montanhas se rachem.

Que as estrelas se embaciem

E o sol se apague para que meu corpo não tenha sombra.

Que as correntes marítimas

Carreguem meus braços para as praias fétidas

E o vento impeça meus joelhos de se dobrarem.

Que o raio fulmine a única palavra boa que eu tinha.

Que meus olhos se apodreçam

E se transformem em água

Para que não se levantem além das raízes.

Que a gosma dos vulcões

Soterre meu sexo,

Que os vermes fujam da minha carne

E o pó se levante fugindo antes de eu passar.

Que o cheiro de minha boca

Resseque o grão embaixo da terra

E meus cabelos sirvam de corda para os enforcados.

Que minha língua se enrole enegrecida dentro de minha garganta

E me diga as maiores injúrias.

Que a terra seja fendida como um ventre de mulher,

Que a destruição absoluta

Desça sobre meu corpo, meus sentidos,

Meu espírito, meu passado,

Meu presente, meu futuro

E liberte minha origem

Da lembrança dos homens.


Poemas e Poesias sábado, 10 de julho de 2021

DESPEITO (POEMA DA PORTUGUESA VIRGÍNIA VICTORINO)

DESPEITO

Virgínia Victorino

 

Digo o que noutro tempo não diria:
Foi tudo um grande sonho enganador.
Nego o passado, e juro que esse amor
só existiu na tua fantasia.

Sinto a volúpia da mentira. A dor
não transparece. Nego. Que alegria!
Fiz crer ao mundo inteiro, por magia,
que és de todos os homens o pior...

Nunca me entonteceu esse sorriso
e, vê lá tu! se tanto for preciso,
nego também as cartas que escrevi.

Quero humilhar-te, enfim! Mas não compreendo
porque me exalto e choro e te defendo,

se alguém, a não ser eu, diz mal de ti.

 


Poemas e Poesias sexta, 09 de julho de 2021

A FOCA (POEMA DO CARIOCA VINÍCIUS DE MORAES)

A FOCA

Vinícius de Moraes

 

 

Quer ver a foca
Ficar feliz?
É pôr uma bola
No seu nariz.

Quer ver a foca
Bater palminha?
É dar a ela
Uma sardinha.

Quer ver a foca
Fazer uma briga?
É espetar ela
Bem na barriga!


Poemas e Poesias sexta, 09 de julho de 2021

O LUAR (POEMA DO CARIOCA OLAVO BILAC)

O LUAR

Olavo Bilac

 

Insone, a moça Luísa
Salta do leito, em camisa...
Verão! verão de rachar!
Calor! calor que devora!
Luísa vai dormir fora,
Ao luar...

Ardente noite estrelada...
Entre as plantas, descansada,
Põe-se Luísa a roncar.
Dorme toda a Natureza...
E que esplendor! que beleza
No luar!

Olha-a o luar com ciúmes...
E sabem vivos perfumes
Do jardim e do pomar:
E ela, em camisa, formosa,
Repousa, como uma rosa,
Ao luar!

Mas alguém (um fantasma ou gente?)
Chega-se prudentemente,
Para o seu sono espreitar...
— Alguém que, ardendo em desejo,
Lhe põe nos lábios um beijo,
Ao luar...

Ela dorme... coitadinha!
Nem o perigo adivinha,
Pobre! a dormir e a sonhar...
Sente o beijo... mas parece
Que é um beijo quente que desce
Do luar...

A lua (dizem-no os sábios...)
Também tem boca, tem lábios,
Lábios que sabem beijar.
Luísa dorme, em camisa...
Como é formosa a Luísa
Ao luar!

Vão depois correndo os meses,
Entre risos e revezes...
— Começa a moça a engordar...
Vai engordando, engordando...
E chora, amaldiçoando
O luar...

Já todo o povo murmura
E, na sua desventura,
Ela só sabe chorar;
Chora e diz que não sabia
Que tanto mal lhe faria
O luar...

O pai, que é homem sisudo,
Homem que percebe tudo,
Pergunta-lhe a praguejar:
" Que é que tu tens, rapariga?!"
E ela: " Eu tenho na barriga...
O luar!"


Poemas e Poesias quinta, 08 de julho de 2021

FELICIDADE (POEMA DO PAULISTA VICENTE DE CARVALHO)

FELICIDADE

Vicente de Carvalho

 

 

 

Só a leve esperança, em toda a vida,
Disfarça a pena de viver, mais nada:
Nem é mais a existência, resumida,
Que uma grande esperança malograda.

O eterno sonho da alma desterrada,
Sonho que a traz ansiosa e embevecida,
É uma hora feliz, sempre adiada
E que não chega nunca em toda a vida.

Essa felicidade que supomos,
Árvore milagrosa, que sonhamos
Toda arreada de dourados pomos,

Existe, sim : mas nós não a alcançamos
Porque está sempre apenas onde a pomos
E nunca a pomos onde nós estamos.


Poemas e Poesias quarta, 07 de julho de 2021

A COISA MAIS LINDA QUE EXISTE (POEMA DO PIAUIENSE TORQUATO NETO)

 

A COISA MAIS LINDA QUE EXISTE

Torquato Neto

 

Coisa mais linda nesse mundo 
É sair por um segundo 
E te encontrar por aí 
E ficar sem compromisso 
Pra fazer festa ou comício 
Com você perto de mim

Na cidade em que me perco 
Na praça em que me resolvo 
Na noite da noite escura 
É lindo ter junto ao corpo 
Ternura de um corpo manso 
Na noite da noite escura

A coisa mais linda que existe 
É ter você perto de mim

O apartamento, o jornal 
O pensamento, a navalha 
A sorte que o vento espalha 
Essa alegria, o perigo 
Eu quero tudo contigo 
Com você perto de mim

 


Poemas e Poesias terça, 06 de julho de 2021

FLOR DE Ô (POEMA DO BAIANO RICARDO LIMA)

FLOR DE Ô

Ricardo Lima

 

 

 

Ô de flor!

De cor, indolor.

Aô, ô, ô.

 

Amor?

Ô amor!

Ô de flor, flor de ô...


Poemas e Poesias segunda, 05 de julho de 2021

ARGILA (POEMA DO FLUMINENSE RAUL DE LEÔNI)

ARGILA

Ral de Leôni

 

 

Nascemos um para o outro, dessa argila
De que são feitas as criaturas raras;
Tens legendas pagãs nas carnes claras
E eu tenho a alma dos faunos na pupila...

Às belezas heróicas te comparas
E em mim a luz olímpica cintila,
Gritam em nós todas as nobres taras
Daquela Grécia esplêndida e tranquila...

É tanta a glória que nos encaminha
Em nosso amor de seleção, profundo,
Que (ouço ao longe o oráculo de Elêusis)

Se um dia eu fosse teu e fosses minha,
O nosso amor conceberia um mundo
E do teu ventre nasceriam deuses...


Poemas e Poesias domingo, 04 de julho de 2021

NESTE SONETO (POEMA DO MINEIRO PAULO MENDES CAMPOS)

NESTE SONETO

Paulo Mendes Campos

 

Neste soneto, meu amor, eu digo,
Um pouco à moda de Tomás Gonzaga,
Que muita coisa bela o verso indaga
Mas poucos belos versos eu consigo.


Igual à fonte escassa no deserto,
Minha emoção é muita, a forma é pouca.
Se o verso errado sempre vem-me à boca,
Só no meu peito vive o verso certo.


Ouço uma voz soprar à frase dura
Umas palavras brandas, entretanto,
Não sei caber as falas de meu canto


Dentro de forma fácil e segura.
E louvo aqui aqueles grandes mestres
Das emoções do céu e das terrestres.


Poemas e Poesias sábado, 03 de julho de 2021

BRASI DE CIMA E BRASI DE BAXO (POEMA DO CEARENSE PATATIVA DO ASSARÉ)

BRASI DE CIMA E BRASI DE BAXO

Patativa do Assaré

 

Meu compadre Zé Fulô,

Meu amigo e companhêro,

Faz quage um ano que eu tou

Neste Rio de Janêro;

Eu saí do Cariri

Maginando que isto aqui

Era uma terra de sorte,

Mas fique sabendo tu

Que a miséra aqui no Su

É esta mesma do Norte.

 

Tudo o que procuro acho.

Eu pude vê neste crima,

Que tem o Basi de Baxo

E tem o Brasi de Cima.

Brasi de Baxo, coitado!

É um pobre abandonado;

O de Cima tem cartaz,

Um do ôtro é bem deferente:

Brasi de Cima é pra frente,

Brasil de Baxo é pra trás.

 

Aqui no Brasil de Cima,

Não há dô nem indigença,

Reina o mais soave crima

De riqueza e de opulença;

Só de fala de progresso,

Riqueza e novo processo

De grandeza e produção.

Porém, no Brasi de Baxo

Sofre a feme e sofre o macho

 

A mais dura privação.

Brasi de Cima festeja

Com orquestra e com banquete,

De uísque dréa e cerveja

Não tem quem conte os rodete.

Brasi de Baxo, coitado!

Vê das casa despejado

Home, menino e muié

Sem achá onde morá

Proque não pode pagá

 

O dinhêro do alugué.

No Brasi de Cima anda

As trombeta em arto som

Ispaiando as propaganda

De tudo aquilo que é bom.

No Brasi de Baxo a fome

Matrata, fere e consome

Sem ninguém lhe defendê;

O desgraçado operaro

Ganha um pequeno salaro

 

Que não dá pra vivê.

Inquanto o Brasi de Cima

Fala de transformação,

Industra, matéria-prima,

Descobertas e invenção,

No Brasi de Baxo isiste

O drama penoso e triste

Da negra necissidade;

É uma cousa sem jeito

E o povo não tem dereito

 

Nem de dizê a verdade.

No Brasi de Baxo eu vejo

Nas ponta das pobre rua

O descontente cortejo

De criança quage nua.

Vai um grupo de garoto

Faminto, doente e roto

Mode caçá o que comê

Onde os carro põe o lixo,

Como se eles fosse bicho

 

Sem direito de vivê.

Estas pequenas pessoa,

Estes fio do abandono,

Que veve vagando vagando à toa

Como objeto sem dono,

De manêra que horroriza,

Deitado pela marquiza,

Dromindo aqui e aculá

No mais penoso relaxo,

É deste Brasi de Baxo

 

A crasse dos marginá.

Meu Brasi de Baxo amigo,

Pra onde é que vai?

Nesta vida do mendigo

Que não tem mãe nem tem pai?

Não se afrija, nem se afobe,

O que com o tempo sobe,

O tempo mesmo derruba;

Talvez ainda aconteça

Que o Brasi de Cima desça

 

E o Brasi de Baxo suba.

Sofre o povo privação

Mas não pode recramá,

Ispondo suas razão

Nas coluna do jorná.

mas, tudo na vida passa,

Antes que a grande desgraça

Deste povo que padece

Se istende, creça e redobre,

O Brasi de Baxo sobe

E o Brasi de Cima desce.

 

Brasi de Baxo subindo,

Vai havê transformação

Para os que veve sintindo

Abandono e sujeição.

Se acaba a dura sentença

E a liberdade de imprensa

Vai sê legá e comum,

Em vez deste grande apuro,

Todos vão tê no futuro

um Brasi de cada um.

Brasi de paz e prazê,

De riqueza todo cheio,

Mas, que dono do podê

Respeite o dereito aleio.

Um grande e rico país

Munto ditoso e feliz,

Um Brasi dos brasilêro,

Um Brasi de cada quá,

Um Brasi nacioná

Sem monopolo istrangêro.


Poemas e Poesias sexta, 02 de julho de 2021

VIÇOSA (POEMA DO CEARENSE PADRE ANTÔNIO TOMÁS)

VIÇOSA

Padre Antônio Tomás

 

 

Nos alcantis da Ibiapaba erguida,

Lá se ostenta risonha entre a verdura

Dos seus vergéis regados de água pura

Da fria pedra aos borbotões nascida.

 

Ali, sobre um outeiro construída

Na viva rocha, há séculos perdura

A sua igreja — berço de cultura

De uma raça valente hoje esquecida. ..

 

Quando a gente, volvendo na memória

Desse templo lendário a antiga história,

Os umbrais lhe transpõe a vez primeira.

 

Julga estar vendo, a percorrer-lhe a nave

A passos lentos, silenciosa e grave,

A sombra augusta do imortal Vieira.


Poemas e Poesias quinta, 01 de julho de 2021

A CIGARRA MORTA (POEMA DO PERNAMBUCANO OLEGÁRIO MARIANO)

A CIGARRA MORTA

Olegário Mariano 

 

Ontem, Cigarra, quando veio a aurora,
acordei a vibrar com a tua vinda.
A tua voz tinha, de espaço fora,
notas tão claras que eu a escuto ainda....


Poemas e Poesias quarta, 30 de junho de 2021

TÉDIO (POEMA DO CARIOCA OLAVO BILAC)

TÉDIO

Olavo Bilac

 

Sobre minh'alma, como sobre um trono,
Senhor brutal, pesa o aborrecimento.
Como tardas em vir, último outono,
Lançar-me as folhas últimas ao vento!


Oh! dormir no silêncio e no abandono,
Só, sem um sonho, sem um pensamento,
E, no letargo do aniquilamento,
Ter, ó pedra, a quietude do teu sono!


Oh! deixar de sonhar o que não vejo!
Ter o sangue gelado, e a carne fria!
E, de uma luz crepuscular velada,


Deixar a alma dormir sem um desejo,
Ampla, fúnebre, lúgubre, vazia
Como uma catedral abandonada!...


Poemas e Poesias terça, 29 de junho de 2021

RESSURREIÇÃO (DO POEMA JUCA MULATO, DO PAULISTA MENOTTI DEL PICCHIA)

RESSURREIÇÃO

(Do poema Juca Mulato)

Menotti Del Picchia 

 

        1

        Coqueiro! Eu te compreendo o sonho inatingível:
        queres subir ao céu, mas prende-te a raiz...
        O destino que tens de querer o impossível
        é igual a este meu de querer ser feliz.

        Por mais que bebas a seiva e que as forças recolhas,
        que os verdes braços teus ergas aos céus risonhos,
        no último esforço vão, caem-te murchas as folhas
        e a mim, murchos, os sonhos!
        Ai! coqueiro do mato!  Ai! coqueiro do mato!
        Em vão tentas os céus escalar na investida...
        Tua sorte é tal qual a de Juca Mulato...
        Ai! tu sempre serás um coqueiro do mato...
        Ai! Eu sempre serei infeliz nesta vida!"

        2

        "Ser feliz! Ser feliz estava em mim, Senhora...
        este sonho que ergui, o poderia por
        onde quisesse, longe até da minha dor,
        em um lugar qualquer onde a ventura mora;

        onde, quando o buscasse, o encontrasse a toda hora,
        tivesse-o em minhas mãos... Mas, louco sonhador,
        eu coloquei muito alto o meu sonho de amor...
        Guardei-o em vosso olhar e me arrependo agora.
        O homem foi sempre assim... Em sua ingenuidade
        teme levar consigo o próprio sonho, a esmo,
        e oculta-o sem saber se depois o achará...

        E quando vai buscar sua felicidade,
        ele, que poderia encontrá-la em si mesmo,
        escondeu-a tão bem que nem sabe onde está!"

        3

        E Mulato parou.
        Do alto daquela serra,
        cismando, o seu olhar era vago e tristonho:
        "Se minha alma surgiu para a glória do sonho,
        o meu braço nasceu para a faina da terra."

        Reviu o cafezal, as plantas alinhadas,
        todo o heróico labor que se agita na empreita,
        palpitou na esperança imensa das floradas,
        pressentiu a fartura enorme da colheita...

        Consolou-se depois: "O Senhor jamais erra...
        Vai! Esquece a emoção que na alma tumultua.
        Juca Mulato volta outra vez para a terra,
        procura o teu amor numa alma irmã da tua.

        Esquece calmo e forte. O destino que impera
        um recíproco amor às almas todas deu.
        Em vez de desejar o olhar que te exaspera,
        procura esse outro olhar que te espreita e te espera,
        que há, por certo, um olhar que espera pelo teu..."


Poemas e Poesias segunda, 28 de junho de 2021

A VOZ DAS COISAS (DO POEMA CHICO MULATO, DO PAULISTA MENOTTI DEL PICCHIA)

A VOZ DAS COISAS

(Do poema Chico Mulato)

Menotti Del Picchia

 

 

E Juca ouviu a voz das coisas. Era um brado:
"Queres tu nos deixar, filho desnaturado?"

E um cedro o escarneceu: "Tu não sabes, perverso,
que foi de um galho meu que fizeram teu berço?"

E a torrente que ia rolar para o abismo:
"Juca, fui eu quem deu a água do teu batismo".

Uma estrela, a fulgir, disse da etérea altura:
"Fui eu que iluminei a tua choça escura
no dia em que nasceste. Eras franzino e doente.
E teu pai te abraçou chorando de contente...
— Será doutor! — a mãe disse, e teu pai, sensato:
— Nosso filho será um caboclo do mato,
forte como a peroba e livre como o vento! —
Desde então foste nosso e, desde esse momento, nós
te amamos, seguindo o teu incerto trilho,
com carinhos de mãe que defende seu filho!"

Juca olhou a floresta: os ramos, nos espaços,
pareciam querer apertá-lo entre os braços:

"Filho da mata, vem! Não fomos nós, ó Juca,
o arco do teu bodoque, as grades da arapuca,
o varejão do barco e essa lenha sequinha
que de noite estalou no fogo da cozinha?
Depois, homem já feito, a tua mão ansiada
não fez, de um galho tosco, um cabo para a enxada?"

"Não vás" — lhe disse o azul. "Os meus astros ideais
num forasteiro céu tu nunca os verás mais.
Hostis, ao teu olhar, estrelas ignoradas
hão de relampejar como pontas de espadas.
Suas irmãs daqui, em vão, ansiosas, logo,
irão te procurar com seus olhos de fogo...
Calcula, agora, a dor destas pobres estrelas
correndo atrás de quem anda fugindo delas..."

Juca olhou para a terra e a terra muda e fria
pela voz do silêncio ela também dizia:
"Juca Mulato, és meu! Não fujas que eu te sigo...
Onde estejam teus pés, eu estarei contigo.
Tudo é nada, ilusão! Por sobre toda a esfera
há uma cova que se abre, há meu ventre que espera...
Nesse ventre há uma noite escura e ilimitada,
e nela o mesmo sono e nele o mesmo nada.

Por isso o que vale ir fugitivo e a esmo
buscar a mesma dor que trazes em ti mesmo?
Tu queres esquecer? Não fujas ao tormento...
Só por meio da dor se alcança o esquecimento.
Não vás. Aqui serão teus dias mais serenos,
que, na terra natal, a própria dor dói menos...
E fica, que é melhor morrer (ai, bem sei eu!)
no pedaço de chão em que a gente nasceu!"

 


Poemas e Poesias domingo, 27 de junho de 2021

A MANDINGA (DO POEMA JUCA MULATO, DO PAULISTA MENOTTI DEL PICCHIA)

 

A MANDINGA

(Do poema Juca Mulato)

Menotti Del Picchia

1

Juca Mulato apeia.
É macabro o pardieiro.
Junto à porta cochila o negro feiticeiro.
A pele molambenta o esqueleto disfarça.
Há uma faísca má nessa pupila garça,
quieta, dormente, como as águas estagnadas. 

Fuma: a fumaça o envolve em curvas 
                                                   [baforadas.
Cuspinha; coça a perna onde a sarna esfarinha
a pele; pachorrento inda uma vez cuspinha. 

Com o seu sinistro olhar o feiticeiro mede-o.
- Olha, Roque, você me vai dar um remédio.
Eu quero me curar do mal que me atormenta.

- Tenho ramos de arruda, urtigas, água benta,
uma infusão que cura a espinhela e a maleita,
figas para evitar tudo que é coisa feita...
Com uma agulha e um cabelo, enrolado a
                                                      [ capricho,
à mulher sem amor faço criar rabicho. 

Olho um rasto, depois de rezar um bocado
vou direitinho atrás do cavalo roubado.
Com umas ervas que sei, eu faço, de repente,
do caiçara mais mole, um caboclo valente!
Dize, Juca Mulato, o mal que te tortura.
- Roque, eu mesmo não sei de este mal tem 
                                                        [cura... 

- Sei rezas com que venço a qualquer mau 
                                                        [olhado,
breves para deixar todo o corpo fechado.
Não há faca que o vare e nem ponta de 
                                                        [espinho:
fica o corpo tal qual o corpo do Dioguinho...
Mas de onde vem o mal que tanto de abateu? 

- Ele vem de um olhar que nunca será meu...
Como está para o sol a luz morta da estrela
a luz do próprio sol está para o olhar dela... 

Parece o seu fulgor quando o fito direito,
uma faca que alguém enterra no meu peito,
veneno que se bebe em rútilos cristais
e, sabendo que mata, eu quero beber mais... 

- Eu já compreendo o mal que teu peito povoa.
Dize Juca Mulato, de quem é esse olhar?
- Da filha da patroa. 

- Juca Mulato! Esquece o olhar inatingível!
Não há cura, ai de ti, para o amor impossível.
Arranco a lepra do corpo, estirpo da alma o 
                                                   [tédio,
só para o mal de amor nunca encontrei 
remédio...
Como queres possuir o límpido olhar dela ?

Tu és qual um sapo a querer uma estrela...

A peçonha da cobra eu curo... Quem souber
cure o veneno que há no olhar de uma mulher!
Vencendo o teu amor, tu vences teu tormento.
Isso conseguirás só pelo esquecimento.
Esquecer um amor dói tanto que parece
que a gente vai matando um filho que 
                                                    [estremece
ouvindo, com terror, no peito, este estribilho:
"Tu não sabes, cruel, que matas o teu filho?" 

E, quando se estrangula, aos seus gemidos 
                                                     [loucos,
a gente quer que viva e vai matando aos 
                                                     [poucos!
Foge! Arrasta contigo essa tortura imensa
que o remédio é pior do que a própria doença,
pois, para se curar um amor tal qual esse...

- Que me resta fazer ?

- Juca Mulato: esquece!


Poemas e Poesias sábado, 26 de junho de 2021

PRESSÁGIOS (DO POEMA JUCA MULATO, DO PAULISTA MENOTTI DEL PICCHIA)

PRESSÁGIOS

(Do poema Juca Mulato)
Menotti Del Picchia

 

 
Juca Mulato sofre. Em cismas se aquebranta.
Uma viola geme, uma voz triste canta:
 
"Antes de amar eu dizia:
para cortar na raiz
esta constante agonia
preciso amar algum dia,
amando serei feliz".
 
"Amei... desventura minha!
Quis curar-me e piorei.
O amor só mágoas continha
e aos tormentos que já tinha,
novos tormentos juntei".
 
A cantiga, a gemer, nos ecos agoniza.
 
A vaga sugestão dessa angústia imprecisa
contamina-lhe a dor que o tortura sem pausa.
 
Juca sofre... Por que? Não advinha a causa.
Só sabe que, em seu peito, o olhar amado e langue,
deixa um rastro de luz como um rastro de sangue...
 
Tornou-o, pouco a pouco, a imensa dor que o oprime,
pálido como a cera e magro como um vime.
Tem olheiras cercando os grandes olhos lassos
cor do manto que traz Nosso Senhor dos Passos
quando carrega a cruz na procissão das Dores
no mais tristonho andor de todos os andores...
Mas por que sofre assim? Talvez mesmo ande nisso
artimanhas do Demo e coisas de feitiço...
 
Precisa, sem demora, ir uma sexta-feira,
à tapera do Roque, abrir sua alma inteira,
contar-lhe o mal que sofre e do peito arrancar
essa mágoa, essa luz, esse olhar!

Poemas e Poesias sexta, 25 de junho de 2021

LAMENTAÇÃO (DO POEMA JUCA MULATO, DE MENOTTI DEL PICCHIA)

LAMENTAÇÃO

(Do poema Juca Mulato)

Menotti Del Picchia)

 

         1

        "Amor?
        Receios, desejos,
        promessas de paraísos,
        depois sonhos, depois risos,
        depois beijos!

        Depois...
        E depois, amada?
        Depois dores sem remédio,
        depois pranto, depois tédio,
        depois... nada!"

        2

        "Também como esse bosque eu tive outrora
        na alma um bosque cerrado de emoções.
        As palmeiras das minhas ilusões
        iam levando o fuste espaço afora.

        Floriam sonhos; era uma pletora
        de crenças, de desejos, de ambições...
        Não havia por todos os sertões
        mais luxuriante e mais violenta flora.

        Ai! Bosque real, é o tempo das queimadas!...
        É agosto, é agosto! O fogo arde o que existe
        em turbilhões sinistros e medonhos.

        Ai de nós!... Somos almas desgraçadas,
        pois na luz de um olhar lânguido e triste
        também ardeu o bosque dos meus sonhos..."

        3

        "Água cantante, soluçante, esse gemente
        marulho triste, quantas tristes cismas trás...

        E fica incerta, ao ouvir-te a voz, a dor da gente,
        se vais cantando por ansiar o que há na frente
        ou soluçando pelo que deixaste atrás...

        Água cantante, água estuante, é singular
        a semelhança em que te iguala à minha sorte:
        vais para a frente e nunca mais hás de voltar,
        vens da montanha e vais correndo para o mar,
        venho da vida e vou correndo para a morte.

        Água cantante, ai, como tu, esta alma embrenho
        nas incertezas de caminhos que não sei...
        E, na inconstância em que me agito, só obtenho
        essa ânsia imensa de deixar o que já tenho,
        depois a dor de não ter mais o que deixei!"

        4

        Tenho uma santa em casa; o seu olhar encanta.
        O olhar dela é, porém, igualzinho ao da santa.

        Quando rezo, nem sei, é como o olhar da corça,
        tem, na própria fraqueza, a sua própria força.

        Quando o fito minha alma enche-se da incerteza
        que há na canoa sem dono á flor da correnteza.

        Ele é tal qual o sol, indiferente e mudo,
        sem saber quem aclara anda aclarando tudo...

        Mas no olhar que o fitou brilha,
        constantemente,
        um reflexo de luz ambicionada e ausente.

        Eu nunca vi o mar, mas vendo esse olhar penso
        num barco que se afasta onde se agita um lenço...

        Ou no doido terror que, em meio de procelas,
        há num casco sem leme ou num barco sem velas...

        Creio ver o meu vulto em teus olhos, tão vago
        como as sombras que espelham a água morta 
        de um lago.
        Eu bem sei que, tal qual na líquida planície,
        o meu vulto não vai além da superfície.

        Fica à tona, a boiar nessa pupila absorta
        como na água parada alguma folha morta..."

        5

        "Pigarço: a dor me aquebranta...
        Quando lembro o olhar que adoro
        e que nunca esquecerei,
        ah! Sinto um nó na garganta
        e choro, pigarço, choro,
        eu que até chorar não sei...

        Quando, a trote, ela nos via,
        debruçada na janela,
        nós levávamos, após,
        com o pó que do chão se erguia
        o nosso olhar cheio dela
        e o dela cheio de nós...

        Então, pouco me importava
        que seu olhar nos seguisse...
        Galopava-se a valer...
        Quando esse olhar eu olhava
        era como se não o visse
        tanto o olhava sem ver!

        Hoje pago essa ousadia...
        Ela os olhos de mi tolhe.
        Queixar-me disso por que ?
        Antes era eu que não o via,
        agora, por mais que me olhe,
        é ela que não me vê.

        Sou um caboclo do mato
        que ronda a luz de uma estrela...
        Já viste uma coisa assim?
        E o pobre Juca Mulato
        morrerá por causa dela
        e tu, por causa de mim...

        Eu da luz desse olhar garço,
        tu da dor que te machuca,
        morreremos e, depois,
        eu fico sem meu pigarço,
        meu pigarço sem seu Juca
        e o olhar dela... sem nós dois!"


Poemas e Poesias quarta, 23 de junho de 2021

ALMA ALHEIA (DO POEMA JUCA MULATO, DO PAULISTA MENOTTI DEL PICCHIA)

ALMA ALHEIA

(Do poema Juca Mulato)

Menotti Del Picchia 

 

        Que tens, Juca Mulato ?
        Uma tristeza mansa
        embaça-lhe o fulgor dos olhos de criança.
        Ele é outro... Um langor anda a abrasar-lhe a pele.
        Não sabe definir o que há de novo nele.
        Fuma e segue pelo ar uma espiral que esvoaça,
        pensa que seu destino é igual a essa fumaça...
        "A vida é mesmo assim..."   ele cisma tristonho.
        "Sai do fogo da dor a fumaça do sonho"...

        Da cocheira, um nitrir, de intervalo a intervalo,
        vibra no ar... É o pigarço.  Esse pobre cavalo
        anda esquecido e há muito que, sozinho,
        sente a falta que faz o calor de um carinho.
        Juca Mulato todo o dia vinha vê-lo...
        Afagava-lhe o dorso, acamava-lhe o pelo,
        e ele, baixando, quieto, as pálpebras vermelhas,
        nitrindo e resfolgando, espetava as orelhas...
        Juca Mulato, então, numa voz doce e calma,
        dizia-lhe baixinho o que ele tinha n’alma.
        Coisa de pouca monta: umas fanfarronadas,
        uns receios pueris, façanhas de caçadas,
        desafios na viola em noites de luar;
        coisas que tinha pejo até de lhe contar,
        que sussurrava a custo, onde, por entre os dentes,
        a gente advinhava  umas frases ardentes:
        bocas mordendo um seio em que os bicos quentinhos
        tinham a cor da rosa e a ponta dos espinhos...
        Ele ria e a risada espoucava-lhe aos pinchos
        e o pigarço sisudo explodia em relinchos
        que diriam, talvez, traduzido em frases:
        "Toma tento, Mulato! Olha bem o que fazes..."

        Juca afagando-o, então, murmurava contente:
        "Pigarço, você tem uma alma como a gente!"

        Hoje, anda abandonado e pesa-lhe o abandono.
        Há no seu manso olhar saudades de seu dono.
        Quem não vê nesse olhar úmido e cor de enxofre
        que esse cavalo sofre ?

        2

        Vê uma ave voar na tarde calma e suave,
        vem-lhe o desejo absurdo e doido de ser ave.
        Quando junto a uma fonte acaso se debruça,
        se a corrente soluça, ele também soluça...
        Depois, envergonhado, encolhe-se, procura
        no seu imo o porquê dessa vaga ternura.
        Até vendo uma flor, comove-se, suspira...
        "Juca: toma cuidado... Estás ficando gira...
        Deixa de te arrastar, como um doido qualquer,
        atrás da tentação de uns olhos de mulher!"

        E resolve, consigo, ir altivo e insolente,
        fingir que não padece e mostrar que não sente,
        montar o seu pigarço, atacar a restinga
        às foiçadas, beber um cálice de pinga
        na venda do caminho e, entre parvos caipiras,
        de mistura, contar três ou quatro mentiras
        onde lampeja a faca, onde, aos uivos e aos brados
        põe em fuga, triunfante, um bando de soldados!

        Revive a ilusão! Ele é outro! Salvou-se!

        Insidioso, de novo, um olhar meigo e doce
        o alucina, o subjuga, o domina, o amolece...

        E nem sabe porque humilhado  obedece
        à sugestão da luz que cintila naquele
        lânguido e triste olhar que nunca olhou para ele.


Poemas e Poesias terça, 22 de junho de 2021

A SERENATA (DO POEMA JUCA MULATO, DO PAULISTA MENOTTI DEL PICCHIA)

A SERENATA

(Do poema Juca Mulato)

Menotti Del Picchia

 

 

 

Canta, Juca Mulato...
Ele pega na viola:
seu dedo nervoso os machetes esfrola.
Solta um gemido o aço vibrado
como um grito de dor de um peito esfaqueado.
É tão suave a canção, tão dolente e tão langue
que cada nota lembra uma gota de sangue
a fluir e a pingar dos lábios de uma chaga.
É noite. A brisa sopra uma carícia vaga.

 

 

A turba espera. O terreiro tem brilhos
quando, de chapa, a lua esplende nos ladrilhos
e, sentindo a paixão estuar-lhe a garganta,
Juca Mulato canta:
"Veio coleante, essa mágoa
arrastas triste e submisso;
também choro, veio dágua,
sem que ninguém dê por isso...

 

 

Saltas nos seixos de chofre.
Choras. No mundo inclemente,
só não chora quem não sofre
só não sofre quem não sente...

 

 

Procuras dentre os abrolhos
ver o céu que astros povoaram.
Eu também procuro uns olhos
que nunca me procuraram...

 

 

Os céus não vêem tua mágoa,
nem estas ela advinha...
Veio d’água, veio d’água,
Tua sorte é igual à minha.

 

 

Ora em bolhas vãs tu medras,
eu em sonhos bem mesquinhos,
Teu leito é cheio de pedras,
minha alma é cheia de espinhos...

 

 

Se uma rama se desfolha
sobre teu dorso e resvala,
corres doido atrás da folha
sem poder nunca alcançá-la.

 

 

Às vezes, também, risonho,
um sonho minh’alma junca,
Corro doido atrás do sonho
Sem poder tocá-lo nunca.

 

 

Ventura... doida corrida
de uma folha sobre um veio.
Folha... Esperança perdida
de um bem que nunca me veio.

 

 

Assim vou, sangrando mágoa
e doido, para onde for
veio d’água, veio d’água
corro atrás da minha dor!"


Poemas e Poesias segunda, 21 de junho de 2021

QUESTÃO DE ESTÉTICA (POEMA DO PERNAMBUCANO MEDEIROS E ALBUQUERQUE)

QUESTÃO DE ESTÉTICA

Medeiros e Abuquerque

 

Eu assistia à eterna discussão
de uns que querem a Forma e outros a Ideia,
mas a minh’alma, inteiramente alheia
cismava numa íntima visão.

Cismava em ti... Pensava na expressão
do teu lânguido olhar, que em nós ateia
um rasto de volúpia e em cada veia
coa as lavas ardentes da paixão.

Pensava no teu corpo, maravilha
como igual certamente outra não brilha,
e lembrei - argumento capital –

que não tens, animando-te o portento
da imperecível Forma triunfal,
nem um nobre e sublime pensamento!


Poemas e Poesias domingo, 20 de junho de 2021

DOS NOSSOS MALES (POEMA DO GAÚCHO MARIO QUINTANA)

DOS NOSSOS MALES

Mário Quintana

 

 

A nós bastem nossos próprios ais,

Que a ninguém sua cruz é pequenina.

Por pior que seja a situação da China,

Os nossos calos doem muito mais...


Poemas e Poesias sábado, 19 de junho de 2021

NAS PRAIAS DO CUMÃ - SOLIDÃO (POEMA DA MARANHENSE MARIA FIRMINA DOS REIS)

NAS PRAIAS DO CUMÃ/SOLIDÃO

Maria Firmina dos Reis

 

Aqui na solidão minh'alma dorme;
Que letargo profundo!... Se no leito,
A horas mortas me revolvo em dores,
Nem ela acorda, nem me alenta o peito.

No matutino albor a nívea garça
Lá vai tão branca doudejando errante;
E o vento geme merencório - além
Como chorosa, abandonada amante.

E lá se arqueia em ondulação fagueira
O brando leque do gentil palmar;
E lá nas ribas pedregosas, ermas,
De noite - a onda vem de dor chorar.

Mas, eu não choro, lhe escutando o choro;
Nem sinto a brisa, que na praia corre:
Neste marasmo, neste lento sono,
Não tenho pena; - mas, meu peito morre.

Que displicência! não desperta um'hora!
Já não tem sonhos, nem já sofre dor...
Quem poderia despertá-lo agora?
Somente um ai que revelasse - amor.


Poemas e Poesias sexta, 18 de junho de 2021

CABEDELO (POEMA DO PERNAMBUCANO MANUEL BANDEIRA)

CABEDELO

Manuel Bandeira 

 

Viagem. roda do mundo
Numa casquinha de noz:
Estive em Cabedelo.
O macaco me ofereceu cocos.
Ó maninha, ó, maninha,
Tu não estavas comigo!...

- Estavas?...


Poemas e Poesias quinta, 17 de junho de 2021

FRAGMENTOS DE CANÇÕES POEMAS - 16 (POEMA DO MATO-GROSSENSE MANOEL DE BARROS)

 

16 - FRAGMENTO DE CANÇÕES E POEMAS 

Manoel de Barros

 


Ai, sossego de terras pisadas por mim… 
E os silêncios caídos como folhas 
Nos limites de uma tarde aberta… 
Que importa que a criatura se surpreenda 
Sem paisagem, e presa à sua carne? 
Se esta rosa pousada em tua boca 
Tão molhada de chuvas! se abandone 
Ao esquecimento. 
E se refaz em caule, 
Em beijo, em sono. 
Ou se corrompe 
Como um homem exposto numa mesa — 
Como um rio cria o seu lodo e o afoga.


Poemas e Poesias quarta, 16 de junho de 2021

ESPINOSA (POEMA DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

ESPINOSA

Machado de Assis

 

 

Gosto de ver-te, grave e solitário,
Sob o fumo de esquálida candeia,
Nas mãos a ferramenta de operário,
E na cabeça a coruscante idéia.

E enquanto o pensamento delineia
Uma filosofia, o pão diário
A tua mão a labutar granjeia
E achas na independência o teu salário.

Soem cá fora agitações e lutas,
Sibile o bafo aspérrimo do inverno,
Tu trabalhas, tu pensas, e executas

Sóbrio, tranqüilo, desvelado e terno,
A lei comum, e morres, e transmutas
O suado labor no prêmio eterno.


Poemas e Poesias terça, 15 de junho de 2021

FILOSOFIA DE FLANELINHA (POEMA DO PERNAMBUCANO LUÍS TURIBA)

FILOSOFIA DE FLANELINHA

Luís Turiba

 

 

fecha e
deixa solto

Poemas e Poesias segunda, 14 de junho de 2021

CLAUSTROS (POEMA DO CARIOCA LUÍS EDMUNDO)

CLAUSTROS

Luís Edmundo

 

Pelas arcadas altas e sombrias

Destes claustros sinistros e tristonhos,

Anda o segredo místico dos sonhos

Das brancas monjas pela morte frias.

 

E o som dos passos, que nas galerias

Rolam numa cadência combalida,

Não acordam jamais a história e a vida

Dessas que foram como a luz dos dias.

 

Pois, como os claustros, esses claustros, onde

O misticismo que domina esconde

Dos monges tudo que a sonhar levaram,

 

Há corações tristonhos e doridos

Que guardam de outros tempos, tempos idos,

O segredo de tudo que sonharam.


Poemas e Poesias domingo, 13 de junho de 2021

À LUZ DO SON NASCENTE (POEMA DO PORTUGUÊS JÚLIO DINIS)

À LUZ DO SOL NASCENTE 

Júlio Dinis

 

 

À luz do sol nascente
Resplendem pelas selvas
Mil pérolas nas relvas
Nos ares mil rubis;
No azul do céu nevoado
Não brilham as estrelas,
Mas são imagens delas
As flores do tapiz.
 
As aves perpassando
Agitam a ramagem,
E a perfumada aragem
Nos bosques se introduz;
Aí mil vozes falam
Ao céu sereno e mudo;
No bosque é sombra, tudo,
No céu é tudo luz.
 
Ridente madrugada,
Hora em que do oriente
Com o gládio refulgente
O arcanjo da luz vem;
E as trevas se dissipam,
Com as trevas a tristeza,
Que em toda a natureza
A noite eivado tem. 
 
Oh! vinde, vinde ao prado
Que o orvalho ainda umedece;
Ali tudo parece
A vida ressurgir
Em vórtices contínuos,
Em doudejantes valsas
Elevam-se das balsas
Insetos a zumbir.
 
Subi do prado ao vértice
Da florida colina,
Então pela campina,
Os olhos prolongai:
Ao longe, ao longe as vagas,
Lutando nos fraguedos;
Mais perto os arvoredos
Que o arroio banhar vai.
 
A tudo anima a esperança
No monte e vale e praia;
No céu Vésper desmaia
Ao matutino alvor.
O cântico das aves,
Das flores o aroma
Nos diz: – O dia assoma!
Hossana ao Criador! –

Poemas e Poesias sábado, 12 de junho de 2021

MULHER PROLETÁRIA (POEMA DO ALAGOANO JORGE DE LIMA)

MULHER PROLETÁRIA

Jorge de Lima

 

 

Mulher proletária — única fábrica
que o operário tem, (fabrica filhos)
tu
na tua superprodução de máquina humana
forneces anjos para o Senhor Jesus,
forneces braços para o senhor burguês.

Mulher proletária,
o operário, teu proprietário
há de ver, há de ver:
a tua produção,
a tua superprodução,
ao contrário das máquinas burguesas
salvar o teu proprietário.

 


Poemas e Poesias sexta, 11 de junho de 2021

O ARSENAL DE SEVILHA (POEMA DO PERNAMBUCANO JOÃO CABRAL DE MELO NETO)

O ARSENAL DE SEVILHA

João Cabral de Melo Neto

 

 

á nada resta do Arenal
de que contou Lope de Vega.
A Torre do Ouro é sem ouro
senão na cúpula amarela.

Já não mais as frotas das Índias,
e esta hoje se diz América;
nem a multidão de mercado
que se armava chegando elas.

Já Riconete e Cortadilho
dormem no cárcere dos clássicos
e é ponte mesmo, de concreto,
a antiga Ponte de Barcos.

Urbanizaram num Passeio
o formigueiro que antes era;
só, do outro lado do rio,
ainda Triana e suas janelas.

 


Poemas e Poesias terça, 08 de junho de 2021

ASSIM (POEMA DO ACRIANO J. G. DE ARAÚJO JORGE)

ASSIM

J. G. de Araújo Jorge

 

 

Assim foi nosso amor… um sonho que viveu
de um sonho, e despertou na realidade um dia…
Um pouco de quimera ao léu da fantasia…
Um flor que brotou e num botão morreu…

Embora sendo nosso, este amor foi só meu,
porque o teu, não foi mais que pura hipocrisia,
– no fundo, há muito tempo, a minha alma sentia
este fim que o destino afinal já lhe deu…

Não podes, bem o sei – sendo mulher como és,
saber quanto sofri, vendo esta flor desfeita
e as pétalas no chão, pisadas por teus pés…

Que importa ? Hás de sofrer mais tarde – a vida é assim…
Esse mesmo sorrir que agora te deleita
é o mesmo que depois há de amargar teu fim!…


Poemas e Poesias segunda, 07 de junho de 2021

DO DESEJO - 5 - I (DE CIGARRAS E PEDRAS, QUEREM NASCER PALAVRAS) - (POEMA DA PAULISTA HILDA HILST)

 

DO DESEJO 5 - I (DE CIGARRAS E PEDRAS, QUEREM NASCER PALAVRAS)

Hilda Hilst

 

 

5- I (De cigarras e pedras, querem nascer palavras)

De cigarras e pedras, querem nascer palavras.
Mas o poeta mora
A sós num corredor de luas, uma casa de águas.
De mapas-múndi, de atalhos, querem nascer viagens.
Mas o poeta habita
O campo de estalagens da loucura.

Da carne das mulheres, querem nascer os homens.
E o poeta preexiste, entre a luz e o sem-nome.

 


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