CANTO PRIMEIRO
Sousândrade
Eia, imaginação divina!
Os Andes
Vulcânicos elevam cumes calvos,
Circundados de gelos, mudos, alvos,
Nuvens flutuando — que espetac'los grandes!
Lá, onde o ponto do condor negreja,
Cintilando no espaço como brilhos
D'olhos, e cai a prumo sobre os filhos
Do lhama descuidado; onde lampeja
Da tempestade o raio; onde deserto,
O azul sertão, formoso e deslumbrante,
Arde do sol o incêndio, delirante
Coração vivo em céu profundo aberto!
.............................................
"Nos áureos tempos, nos jardins da América
Infante adoração dobrando a crença
Ante o belo sinal, nuvem ibérica
Em sua noite a envolveu ruidosa e densa.
"Cândidos Incas! Quando já campeiam
Os heróis vencedores do inocente
Índio nu; quando os templos s'incendeiam,
Já sem virgens, sem ouro reluzente,
"Sem as sombras dos reis filhos de Manco,
Viu-se... (que tinham feito? e pouco havia
A fazer-se...) num leito puro e branco
A corrupção, que os braços estendia!
"E da existência meiga, afortunada,
O róseo fio nesse albor ameno
Foi destruído. Como ensanguentada
A terra fez sorrir ao céu sereno!
"Foi tal a maldição dos que caídos
Morderam dessa mãe querida o seio,
A contrair-se aos beijos, denegridos,
O desespero se imprimi-los veio, —
"Que ressentiu-se, verdejante e válido,
O floripôndio em flor; e quando o vento
Mugindo estorce-o doloroso, pálido,
Gemidos se ouvem no amplo firmamento!
"E o Sol, que resplandece na montanha
As noivas não encontra, não se abraçam
No puro amor; e os fanfarrões d'Espanha,
Em sangue edêneo os pés lavando, passam.
"Caiu a noite da nação formosa;
Cervais romperam por nevado armento,
Quando com a ave a corte deliciosa
Festejava o purpúreo nascimento."
Assim volvia o olhar o Guesa Errante
Às meneadas cimas qual altares
Do gênio pátrio, que a ficar distante
S`eleva a alma beijando-o além dos ares.
E enfraquecido coração, perdoa
Pungentes males que lhe estão dos seus —
Talvez feridas setas abençoa
Na hora saudosa, murmurando adeus.
TREZE HORAS
José Chagas
Aqui onde um gato conclui
seu abandono, cria-se a tarde
e o seu vento. O sol
ilumina o secreto ofício
das cousas, o mar está longe
mas seu existir nos banha. E naves
de silêncio iniciam viagens para trás
para dentro de mim e do tempo.
A paisagem se cumpre sobre
velhas casas que sustentam
séculos no ar.
CORRIDA
Dagmar Destêrro
No avanço do tempo corre a vida,
mas nesse tempo há pedras espalhadas,
pedras agudas, carnes esfarrapadas,
sangue jorrando de cada ferida.
o tempo açoita a vida noite e dia
e ele chora, tropeça, levanta e continua.
Só e esperança anima a travessia;
e a alma corre, descabelada e nua.
E a vida não tem tempo, ao tempo, em meio,
de ver o belo existente no caminho;
não perder na corrida é o seu anseio;
sua atenção conserva em desalinho.
No embrião da vida, no tempo, avanço.
Subidas e descidas — tantas conheço:
e na vertigem do correr me canso.
Procuro, em vão, meu horizonte do começo.
E, ENORME, NESTA MASSA IRREGULAR
Cesário Verde
E, enorme, nesta massa irregular
De prédios sepulcrais, com dimensões de montes,
A Dor humana busca os amplos horizontes,
E tem marés de fel como um sinistro mar!
MARCHA
Cecília Meireles
As ordens da madrugada
romperam por sobre os montes:
nosso caminho se alarga
sem campos verdes nem fontes.
Apenas o sol redondo
e alguma esmola de vento
quebraram as formas do sono
com a idéia do movimento.
Vamos a passo e de longe;
entre nós dois anda o mundo,
com alguns vivos pela tona,
com alguns mortos pelo fundo.
As aves trazem mentiras
de países sem sofrimento.
Por mais que alargue as pupilas,
mais minha dúvida aumento.
Também não pretendo nada
senão ir andando à toa,
como um número que se arma
e em seguida se esboroa,
-- e cair no mesmo poço
de inércia e de esquecimento,
onde o fim do tempo soma
pedras, águas, pensamento.
Gosto da minha palavra
pelo sabor que lhe deste:
mesmo quando é linda, amarga
como qualquer fruto agreste.
Mesmo assim amarga,
é tudo que tenho,
entre o sol e o vento:
meu vestido, minha musica,
meu sonho, meu alimento.
Quando penso no teu rosto,
fecho os olhos de saudades;
tenho visto muita coisa,
menos a felicidade.
Soltam-se os meus dedos tristes,
dos sonhos claros que invento.
Nem aquilo que imagino
já me dá contentamento.
Como tudo sempre acaba,
oxalá seja bem cedo!
A esperança que falava
tem lábios brancos de medo.
O horizonte corta a vida
isento de tudo, isento...
Não há lagrima nem grito:
apenas consentimento.
AHASVERUS E O GÊNIO
Castro Alves
ao poeta e amigo J. Felizardo Júnior
Sabes quem foi Ahasverus?...— o precito,
O mísero Judeu, que tinha escrito
Na fronte o selo atroz!
Eterno viajor de eterna senda...
Espantado a fugir de tenda em tenda,
Fugindo embalde à vingadora voz!
Misérrimo! Correu o mundo inteiro,
E no mundo tão grande... o forasteiro
Não teve onde... pousar.
Coa mão vazia — viu a terra cheia.
O deserto negou-lhe — o grão de areia,
A gota dágua — rejeitou-lhe o mar.
DÁsia as florestas — lhe negaram sombra
A savana sem fim — negou-lhe alfombra.
O chão negou-lhe o pó!...
Tabas, serralhos, tendas e solares...
Ninguém lhe abriu a porta de seus lares
E o triste seguiu só.
Viu povos de mil climas, viu mil raças,
E não pôde entre tantas populaças
Beijar uma só mão ...
Desde a virgem do Norte à de Sevilhas,
Desde a inglesa à crioula das Antilhas
Não teve um coração! ...
E caminhou!... E as tribos se afastavam
E as mulheres tremendo murmuravam
Com respeito e pavor.
Ai! Fazia tremer do vale à serra...
Ele que só pedia sobre a terra
— Silêncio, paz e amor! —
No entanto à noite, se o Hebreu passava,
Um murmúrio de inveja se elevava,
Desde a flor da campina ao colibri.
"Ele não morre", a multidão dizia...
E o precito consigo respondia:
— "Ai! mas nunca vivi!" —
O Gênio é como Ahasverus... solitário
A marchar, a marchar no itinerário
Sem termo do existir.
Invejado! a invejar os invejosos.
Vendo a sombra dos álamos frondosos...
E sempre a caminhar... sempre a seguir...
Pede ua mão de amigo — dão-lhe palmas:
Pede um beijo de amor — e as outras almas
Fogem pasmas de si.
E o mísero de glória em glória corre...
Mas quando a terra diz: — "Ele não morre"
Responde o desgraçado: — "Eu não vivi!..."
QUEIXUMES
Casimiro de Abreu
Olho e vejo... tudo é gala,
Tudo canta e tudo fala,
Só minh'alma
Não se acalma,
Muda e triste não se ri!
Minha mente já delira,
E meu peito só suspira
Por ti! Por ti!
Ai! quem me dera essa vida
Tão bela e doce vivida
Nos meus lares
Sem pesares
No sossego só dali!
Não tinha-te visto as tranças,
Nem rasgado as esperanças
Por ti! Por ti!
Perdi as flores da idade,
E na flor da mocidade
É meu canto
- Todo pranto -
Qual a voz da juriti!
No teu sorriso embebido
Deixei meu sonho querido
Por ti! Por ti!
Ai! se eu pudesse, formosa,
Roçar-te os lábios de rosa
Como às flores
- Seus amores -
Faz o louco colibri;
Esta minh'alma nos hinos
Erguera cantos divinos
Por ti! Por ti!
Ai! assim viver não posso!
Morrerei, meu Deus, bem moço,
- Qual n'aurora
Que descora,
Desfolhado bogari;
Mas lá da campa na beira
Será a voz derradeira
Por ti! Por ti!
Ai! não m'esqueças já morto!
À minh'alma dá conforto,
Diz na lousa:
- "Ele repousa,
"Coitado! descansa aqui!" -
Ai! não t'esqueças, senhora,
Da flor pendida n'aurora
Por ti! Por ti!...
OLINDA, DO ALTO DO MOSTEIRO
Carlos Pena Filho
De limpeza e claridade
é a paisagem defronte.
Tão limpa que se dissolve
a linha do horizonte.
As paisagens muito claras
não são paisagens, são lentes.
São íris, sol, aguaverde
ou claridade somente.
Olinda é só para os olhos,
não se apalpa, é só desejo.
Ninguém diz: é lá que eu moro.
Diz somente: é lá que eu vejo.
Tem verdágua e não se sabe,
a não ser quando se sai.
Não porque antes se visse,
mas porque não se vê mais.
As claras paisagens dormem
no olhar, quando em existência.
Diluídas, evaporadas,
só se reúnem na ausência.
Limpeza tal só imagino
que possa haver nas vivendas
das aves, nas áreas altas,
muito além do além das lendas.
Os acidentes, na luz,
não são, existem por ela.
Não há nem pontos ao menos,
nem há mar, nem céu, nem velas.
Quando a luz é muito intensa
É quando mais frágil é:
planície, que de tão plana
parecesse em pé
AMOR E SEU TEMPO
Carlos Drummond de Andrade
Amor é privilégio de maduros
Estendidos na mais estreita cama,
Que se torna a mais larga e mais relvosa,
Roçando, em cada poro, o céu do corpo.
É isto, amor: o ganho não previsto,
O prêmio subterrâneo e coruscante,
Leitura de relâmpago cifrado,
Que, decifrado, nada mais existe
Valendo a pena e o preço do terrestre,
Salvo o minuto de ouro no relógio
Minúsculo, vibrando no crepúsculo.
Amor é o que se aprende no limite,
Depois de se arquivar toda a ciência
Herdada, ouvida. amor começa tarde.
DEPOIS QUE VIU CIBELE O CORPO HUMANO
Soneto 152
Luís de Camões
Despois que vio Cibele o corpo humano
Do formoso Atys seu verde pinheiro,
Em piedade o vão furor primeiro
Convertido, chorava o grave dano.
E, á sua dor fazendo illustre engano,
A Jupiter pedio, que o verdadeiro
Preço da nobre palma e do loureiro
Ao seu pinheiro désse, soberano.
Mais lhe concede o filho poderoso
Que, crescendo, as estrellas tocar possa,
Vendo os segredos lá do ceo superno.
Oh ditoso pinheiro! oh mais ditoso
Quem se vir coroar da rama vossa,
Cantando á vossa sombra verso eterno!
SONETO DA DAMA CAGANDO
Bocage
Cagando estava a dama mais formosa,
E nunca se viu cu de tanta alvura;
Porém o ver cagar a formosura
Mete nojo à vontade mais gulosa!
Ela a massa expulsou fedentinosa
Com algum custo, porque estava dura;
Uma carta d'amores de alimpadura
Serviu àquela parte malcheirosa:
Ora mandem à moça mais bonita
Um escrito d'amor que lisonjeiro
Afetos move, corações incita:
Para o ir ver servir de reposteiro
À porta, onde o fedor, e a trampa habita,
Do sombrio palácio do alcatreiro!
CEM TROVAS
Belmiro Braga
TROVA 002
Em ti, minha mãe, se encerra
Todo o meu maior troféu:
Guardas num corpo de terra
Uma alma feita de céu
SONETOS
Augusto dos Anjos
(Declamação)
SONETO DE BABILÔNIA E SERTÃO
Ariano Suassuna
ESPERANÇAS
Álvares de Azevedo
Se a ilusão de minh'alma foi mentida
E, leviana, da árvore da vida,
As flores desbotei...
Se por sonhos do amor de uma donzela
Imolei meu porvir e o ser por ela
Em prantos esgotei...
Se a alma consumi na dor que mata
E banhei de uma lágrima insensata
A última esperança,
Oh! não me odeies, não! eu te amo ainda,
Como dos mares pela noite infinda
A estrela da bonança!
Como nas folhas do Missal do templo
Os mistérios de Deus em ti contemplo
E na tu'alma os sinto!
Às vezes, delirante, se eu maldigo
As esperanças que sonhei contigo,
Perdoa-me, que minto!
Oh! não me odeies, não! eu te amo ainda,
Como do peito a aspiração infinda
Que me influi o viver...
E como a nuvem de azulado incenso...
Como eu amo esse afeto único, imenso
Que me fará morrer!
Rompeste a alva túnica luzente
Que eu doirava por ti de amor demente
E aromei de abusões...
Deste-me em troco lágrimas aspérrimas...
Ah! que morreram a sangrar misérrimas
As minhas ilusões!
Nos encantos das fadas da ventura
Podes dormir ao sol da formosura
Sempre bela e feliz!
Irmã dos anjos, sonharei contigo:
A alma a quem negaste o último abrigo
Chora... não te maldiz!
Chora e sonha e espera: a negra sina
Talvez no céu se apague em purpurina
Alvorada de amor...
E eu acorde no céu num teu abraço
E repouse tremendo em teu regaço
Teu pobre sonhador!
SONHO POÉTICO
Alvarenga Peixoto
Oh, que sonho, oh, que sonho eu tive nesta
feliz, ditosa, sossegada sesta!
Eu vi o Pão d'Açúcar levantar-se,
e no meio das ondas transformar-se
na figura do Índio mais gentil,
representando só todo o Brasil.
Pendente a tiracol de branco arminho,
côncavo dente de animal marinho
as preciosas armas lhe guardava:
era tesouro e juntamente aljava.
De pontas de diamante eram as setas,
as hásteas de ouro, mas as penas pretas;
que o Índio valeroso, ativo e forte,
não manda seta em que não mande a morte.
Zona de penas de vistosas cores,
guarnecida de bárbaros lavores,
de folhetas e pérolas pendentes,
finos cristais, topázios transparentes,
em recamadas peles de saíras,
rubins, e diamantes e safiras,
em campo de esmeralda escurecia
a linda estrela que nos traz o dia.
No cocar... oh! que assombro, oh! que riqueza!
Vi tudo quanto pode a natureza:
no peito, em grandes letras de diamante,
o nome da Augustíssima Imperante.
De inteiriço coral novo instrumento
as mãos lhe ocupa, enquanto ao doce acento
das saudosas palhetas, que afinava,
Píndaro Americano assim cantava:
"Sou vassalo, sou leal;
como tal,
fiel constante,
sirvo à glória da imperante,
sirvo à grandeza real.
Aos Elísios descerei,
fiel sempre a Portugal,
ao famoso vice-rei,
ao ilustre general,
às bandeiras que jurei.
Insultando o fado e a sorte
e a fortuna desigual,
a quem morrer sabe, a morte
nem é morte nem é mal."
BARCA BELA
Almeida Garrett
Pescador da barca bela,
Onde vais pescar com ela.
Que é tão bela,
Oh pescador?
Não vês que a última estrela
No céu nublado se vela?
Colhe a vela,
Oh pescador!
Deita o lanço com cautela,
Que a sereia canta bela...
Mas cautela,
Oh pescador!
Não se enrede a rede nela,
Que perdido é remo e vela,
Só de vê-la,
Oh pescador.
Pescador da barca bela,
Inda é tempo, foge dela
Foge dela
Oh pescador!
CÍTARA
Alceu Wamosy
Firo-te as cordas, cítara dormente,
Velha cítara poenta, abandonada,
Que um régio artista fez vibrar, pulsada
Pela divina mão, antigamente.
E assim, por um instante despertada,
Na mesma vibração profunda e ardente
De outrora freme, cítara dolente,
Toda a tua alma, trêmula, acordada.
Nessa maviosa música embebido,
Escuto as notas, múrmuras, chegando
Como um coro celeste, ao meu ouvido.
E eu julgo, então, sentir, no derradeiro,
No último som que morre, a alma, chorando,
Desse que as cordas te tangeu primeiro.
CÉU FLUMINENSE
Alberto de Oliveira
Chamas-me a ver os céus de outros países,
Também claros, azuis ou de ígneas cores,
Mas não violentos, não abrasadores
Como este, bárbaro e implacável – dizes.
O céu que ofendes e de que maldizes,
Basta-me no entanto; amo-o com os seus fulgores,
Amam-no poetas, amam-no pintores,
Os que vivem do sonho, e os infelizes.
Desde a infância, as mãos postas, ajoelhado,
Rezando ao pé de minha mãe, que o vejo.
Segue-me sempre… E ora da vida ao fim,
Em vindo o último sono, é o meu desejo
Tê-lo sereno assim, todo estrelado,
Ou todo sol, aberto sobre mim.
CONFLUÊNCIA
Affonso Romano de Sant'Anna
Ter-te amado, a fantasia exata se cumprindo
sem distância.
Ter-te amado convertendo em mel
o que era ânsia.
Ter-te amado a boca, o tato, o cheiro:
intumescente encontro de reentrâncias.
Ter-te amado
fez-me sentir:
no corpo teu, o meu desejo
– é ancorada errância.
FOTOGRAFIA
Adélia Prado
Quando a minha mãe posou
para este que foi seu único retrato,
mal consentiu em ter as têmporas curvas.
Contudo, há um desejo de beleza no seu rosto
que uma doutrina dura fez contido.
A boca é conspícua,
mas as orelhas se mostram.
O vestido é preto e fechado.
O temor de Deus circunda seu semblante,
como cadeia. Luminosa. Mas cadeia.
Seria um retrato triste
se não visse em seus olhos um jardim.
Não daqui. Mas jardim.
MISTÉRIO
Adalgisa Nery
Há vozes dentro da noite que clamam por mim,
Há vozes nas fontes que gritam meu nome.
Minha alma distende seus ouvidos
E minha memória desce aos abismos escuros
Procurando quem chama.
Há vozes que correm nos ventos clamando por mim.
Há vozes debaixo das pedras que gemem meu nome
E eu olho para as árvores tranqüilas
E para as montanhas impassíveis
Procurando quem chama.
Há vozes na boca das rosas cantando meu nome
E as ondas batem nas praias
Deixando exaustas um grito por mim
E meus olhos caem na lembrança do paraíso
Para saber quem chama.
Há vozes nos corpos sem vida,
Há vozes no meu caminhar,
Há vozes no sono de meus filhos
E meu pensamento como um relâmpago risca
O limite da minha existência...
na ânsia de saber quem grita.
ÊXTASE
Virgínia Victorino
Não sofras mais, amor, não digas nada!
Vem comigo; eu te levo. A noite é densa
e agora a voz do mar ficou suspensa,
dolorida, vibrante, apaixonada!
Não tarda muito a luz da madrugada...
Vem comigo! Não penses! Não se pensa!
Vem à conquista da aventura imensa,
vê, como eu vou, feliz e deslumbrada!
Um grande sonho me enlouquece e invade!
Vem procurar comigo a Eternidade
esse país tão vago, tão distante...
Vem, que eu busco o palácio da quimera,
lá, onde seja eterna a primavera,
e a voz divina das estrelas cante!
A FRUTA ABERTA
Thiago de Mello
Agora sei quem sou.
Sou pouco, mas sei muito,
porque sei o poder imenso
que morava comigo,
mas adormecido como um peixe grande
no fundo escuro e silencioso do rio
e que hoje é como uma árvore
plantada bem alta no meio da minha vida.
Agora sei as coisas como são.
Sei porque a água escorre meiga
e porque acalanto é o seu ruído
na noite estrelada
que se deita no chão da nova casa.
Agora sei as coisas poderosas
que valem dentro de um homem.
Aprendi contigo, amada.
Aprendi com a tua beleza,
com a macia beleza de tuas mãos,
teus longos dedos de pétalas de prata,
a ternura oceânica do teu olhar,
verde de todas as cores
e sem nenhum horizonte;
com a tua pele fresca e enluarada,
a tua infância permanente,
tua sabedoria fabulária
brilhando distraída no teu rosto.
Grandes coisas simples aprendi contigo,
com o teu parentesco com os mitos mais terrestres,
com as espigas douradas no vento,
com as chuvas de verão
e com as linhas da minha mão.
Contigo aprendi
que o amor reparte
mas sobretudo acrescenta,
e a cada instante mais aprendo
com o teu jeito de andar pela cidade
como se caminhasses de mãos dadas com o ar,
com o teu gosto de erva molhada,
com a luz dos teus dentes,
tuas delicadezas secretas,
a alegria do teu amor maravilhado,
e com a tua voz radiosa
que sai da tua boca
inesperada como um arco-íris
partindo ao meio e unindo os extremos da vida,
e mostrando a verdade
como uma fruta aberta.
A HORA ÍNTIMA
Vinícius de Moraes
Quem pagará o enterro e as flores
Se eu me morrer de amores?
Quem, dentre amigos, tão amigo
Para estar no caixão comigo?
Quem, em meio ao funeral
Dirá de mim: - Nunca fez mal...
Quem, bêbedo, chorará em voz alta
De não me ter trazido nada?
Quem virá despetalar pétalas
No meu túmulo de poeta?
Quem jogará timidamente
Na terra um grão de semente?
Quem elevará o olhar covarde
Até a estrela da tarde?
Quem me dirá palavras mágicas
Capazes de empalidecer o mármore?
Quem, oculta em véus escuros
Se crucificará nos muros?
Quem, macerada de desgosto
Sorrirá: - Rei morto, rei posto...
Quantas, debruçadas sobre o báratro
Sentirão as dores do parto?
Qual a que, branca de receio
Tocará o botão do seio?
Quem, louca, se jogará de bruços
A soluçar tantos soluços
Que há de despertar receios?
Quantos, os maxilares contraídos
O sangue a pulsar nas cicatrizes
Dirão: - Foi um doido amigo...
Quem, criança, olhando a terra
Ao ver movimentar-se um verme
Observará um ar de critério?
Quem, em circunstância oficial
Há de propor meu pedestal?
Quais os que, vindos da montanha
Terão circunspecção tamanha
Que eu hei de rir branco de cal?
Qual a que, o rosto sulcado de vento
Lançará um punhado de sal
Na minha cova de cimento?
Quem cantará canções de amigo
No dia do meu funeral?
Qual a que não estará presente
Por motivo circunstancial?
Quem cravará no seio duro
Uma lâmina enferrujada?
Quem, em seu verbo inconsútil
Há de orar: - Deus o tenha em sua guarda.
Qual o amigo que a sós consigo
Pensará: - Não há de ser nada...
Quem será a estranha figura
A um tronco de árvore encostada
Com um olhar frio e um ar de dúvida?
Quem se abraçará comigo
Que terá de ser arrancada?
Quem vai pagar o enterro e as flores
Se eu me morrer de amores?
HORAS DE AMOR
Vicente de Carvalho
Só vivo as horas que passo
Junto de ti, meu amor,
Tua cintura em meu braço,
Meu beijo em tua bocca em flor...
Só assim vivo, querida,
Pois tudo mais não é vida.
Ventura que mal gotteja,
Triste do amor que se esconde,
E só acha de onde em onde
Um acaso que o proteja;
Só alcanço o teu carinho
Nesta sombra de folhagem,
Onde, como ave selvagem,
Nosso amor tem o seu ninho.
Por entre as moitas vagueio,
Caminho, paro, indeciso...
Virás ou não? E agoniso
Entre a esperança e o receio.
Por toda a floresta, cheia
De um rumor vago e perdido,
Cuido escutar o ruido
Dos teus pésinhos na areia.
Volto-me sobresaltado
Só porque uma ave deteve
O vôo, e um ramo, de leve,
Estremeceu ao meu lado.
E emquanto na sombra curto
Essa impaciencia hesitante
Por ternuras de um instante,
Por beijos dados a furto,
Cheio de inveja reparo
Nas borboletas que em bando
Passam felizes, amando
Na plena luz do sol claro...
Ventura que mal gotteja,
Triste do amor que se esconde,
E só acha de onde em onde
Um acaso que o proteja.
Amor que a sombra encarcera,
E foge ao sol e ás estradas...
Fossemos nós de mãos dadas
Pela vida e a primavera!
De subito, ouço teus passos:
D’entre folhagens de arbusto
Olhas, tremula de susto,
Caes palpitante em meus braços.
E como a cançada abelha
Que suga a flor, e adormece,
Meu beijo poisa, e se esquece
Em tua bocca vermelha...
Logro só de espaço a espaço
Algum momento de amor,
Tua cintura em meu braço,
Meu beijo em tua bocca em flor.
Ai, eu só vivo, querida,
Pedaços da minha vida...
GO BACK
Torquato Neto
Você me chama
Eu quero ir pro cinema
Você reclama
Meu coração não contenta
Você me ama
Mas de repente
A madrugada mudou
E certamente
Aquele trem já passou
E se passou, passou
Daqui pra melhor, foi
Só quero saber do que pode dar certo
Não tenho tempo a perder
A TAÇA D'ÁGUUA
Ricardo Lima
A taça d’água
Como pode o amor em água?
-- a taça d’água.
Que desagua, a água...
A taça d’água...
CIGANOS
Raul de Leôni
Lá vêm os saltimbancos, às dezenas
Levantando a poeira das estradas.
Vêm gemendo bizarras cantilenas,
No tumulto das danças agitadas.
Vêm num rancho faminto e libertino,
Almas estranhas, seres erradios,
Que tem na vida um único destino,
O Destino das aves e dos rios.
Ir mundo a mundo é o único programa,
A disciplina única do bando;
O cigano não crê, erra, não ama,
Se sofre, a sua dor chora cantando.
Nunca pararam desde que nasceram.
São da Espanha, da Pérsia ou da Tartária?
Eles mesmos não sabem; esqueceram
A sua antiga pátria originária...
Quando passam, aldeias, vilarinhos
Maldizem suas almas indefesas,
E a alegria que espalham nos caminhos
É talvez um excesso de tristezas...
Quando acampam de noite, é no relento,
Que vão sonhar seu Sonho aventureiro;
Seu teto é o vácuo azul do Firmamento,
Lar? o lar do cigano é o mundo inteiro.
Às vezes, em vigílias ambulantes,
A noite em fora, entre canções dalmatas,
Vão seguindo ao luar, vão delirantes,
Alados no langor das serenatas.
Gemem guzlas e vibram castanholas,
E este rumor de errantes cavatinas
Lembra coisas das terras espanholas,
Nas saudades das terras levantinas.
E, então, seus vultos tredos envolvidos
Em vestes rotas, sórdidas, imundas.
Vão passando por ermos esquecidos,
Como um grupo de sombras vagabundas.
Lá vem os saltimbancos, às dezenas,
Levantando a poeira das estradas,
Vêm gemendo bizarras cantilenas,
No tumulto das danças agitadas.
Povo sem Fé, sem Deus e sem Bandeira!
Todos o temem como horrível gente,
Mas ele na existência aventureira,
Ri-se do medo alheio, indiferente.
E, livres como o Vento e a Luz volante,
Sob a aparência de Infelicidade,
Realizam, na sua vida errante,
O poema da eterna Liberdade.
PARA UM MENINO FELINO
Paulo Mendes Campos
O gato pensa um bocado!
Pensa de frente e de lado!
Esticado ou enrolado!
Satisfeito ou chateado!
Brincalhão ou preocupado!
Sem jantar ou já jantado!
Com saúde ou constipado!
O gato pensa um bocado!
Pensa no império chinês!...
Pensa no irmão siamês!...
Mas um gato sem talento
só tem um pensamento:
CAMUNDONGO! CAMUNDONGO!
Se te pego, te viro assim: OGNODNUMAC!...
MINHA VIOLA
Patativa do Assaré
Minha viola querida,
Certa vez, na minha vida,
De alma triste e dolorida
Resolvi te abandonar.
Porém, sem as notas belas
De tuas cordas singelas,
Vi meu fardo de mazelas
Cada vez mais aumentar.
Vaguei sem achar encosto,
Correu-me o pranto no rosto,
O pesadelo, o desgosto,
E outros martírios sem fim
Me faziam, com surpresa,
Ingratidão, aspereza,
E o fantasma da tristeza
Chorava junto de mim.
Voltei desapercebido,
Sem ilusão, sem sentido,
Humilhado e arrependido,
Para te pedir perdão,
Pois tu és a joia santa
Que me prende, que me encanta
E aplaca a dor que quebranta
O trovador do sertão.
Sei que, com tua harmonia,
Não componho a fantasia
Da profunda poesia
Do poeta literato,
Porém, o verso na mente
Me brota constantemente,
Como as águas da nascente
Do pé da serra do Crato.
Viola, minha viola,
Minha verdadeira escola,
Que me ensina e me consola,
Neste mundo de meu Deus.
Se és a estrela do meu norte,
E o prazer da minha sorte,
Na hora da minha morte,
Como será nosso adeus?
Meu predileto instrumento,
Será grande o sofrimento,
Quando chegar o momento
De tudo se esvaecer,
Inspiração, verso e rima.
Irei viver lá em cima,
Tu ficas com tua prima,
Cá na terra, a padecer.
Porém, se na eternidade,
A gente tem liberdade
De também sentir saudade,
Será grande a minha dor,
Por saber que, nesta vida,
Minha viola querida
Há de passar constrangida
Às mãos de outro cantor.
A PRIMEIRA ESTRELA
Olegário Mariano
Pus-me na sombra para surpreendê-la :
Era a primeira estrela que surgia
Na minha noite e da amplidão dizia
Frases sábias.. . Quem era aquela estrela ?
Quem era aquela que me aparecia
Quando em penas penava por não vê-la ?
Era a felicidade que eu pedia
Em troca do que fiz por merecê-la.
Tenho-a afinal comigo e para tê-la
Fiz todo bem no mundo que podia.
Deu-me a vida o condão de compreendê-la
E ela me deu, bendita aquela estrela !
Coragem calma e indiferença fria
De alcançar a ventura e de perdê-la
Sem saber se a alcançava ou se a perdia.
MALDIÇÃO
Olavo Bilac
Se por vinte anos, nesta furna escura,
Deixei dormir a minha maldição,
– Hoje, velha e cansada da amargura,
Minh’alma se abrirá como um vulcão.
E, em torrentes de cólera e loucura,
Sobre a tua cabeça ferverão
Vinte anos de silêncio e de tortura,
Vinte anos de agonia e solidão…
Maldita sejas pelo Ideal perdido!
Pelo mal que fizeste sem querer!
Pelo amor que morreu sem ter nascido!
Pelas horas vividas sem prazer!
Pela tristeza do que eu tenho sido!
Pelo esplendor do que eu deixei de ser!…
O BECO
Menotti Del Picchia
O BECO ao crepúsculo é uma paisagem de limbo
um carvão de Steinlein.
Mulheres endomingadas atravancam as calçadas
onde homens sisudos de braços peludos fumam cachimbo.
Um rancho infantil o silêncio desmancha
e a canção se desata:
—Senhora D. Sancha
coberta de ouro e prata ...
Salta de uma janela um gramofone rouco
que rasca range ri parece louco.
Brusco cessa. O silêncio desce pelas
almas. Nos céus ardem constelações.
Passa o acendedor de lampiões
como um mágico doido que andasse a semear estrelas
O ESPELHO
(Mário Quintana)
Por acaso, surpreendo-me no espelho: quem é esse
Que me olha e é tão mais velho do que eu?
Porém, seu rosto...é cada vez menos estranho...
Meu Deus, Meu Deus...Parece
Meu velho pai - que já morreu!
Como pude ficarmos assim?
Nosso olhar - duro - interroga:
"O que fizeste de mim?!"
Eu, Pai?! Tu é que me invadiste,
Lentamente, ruga a ruga...Que importa? Eu sou, ainda,
Aquele mesmo menino teimoso de sempre
E os teus planos enfim lá se foram por terra.
Mas sei que vi, um dia - a longa, a inútil guerra!-
Vi sorrir, nesses cansados olhos, um orgulho triste...
O PEDIDO
Maria Firmina dos Reis
Oh! dessas flores que te adornam
virgem, Embora esposa de um momento,
atende! Uma somente, eu te suplico
dá ─ m’a; Dos seios dela meu sossego pende.
Assim dizia adolescente belo,
Cuja afeição o conduzia a ela,
E com uma rosa perfumada, e leda
Brincava a jovem, festival donzela.
Ela fitou-o com um sorriso mago,
Cheio de encanto, de afeição singela,
E deu-lhe grata ─ desfolhando a rosa,
As meigas pétalas dessa flor tão bela!
Não sei, se a jovem estremeceu beijando-a;
Sei que guardou-as: ─ fraternal abraço!
Era essa rosa desfolhada ─ as notas
Últimas d’harpa, que se esvai no espaço
CANTIGA
Manuel Bandeira
Nas ondas da praia
Nas ondas do mar
Quero ser feliz
Quero me afogar.
Nas ondas da praia
Quem vem me beijar?
Quero a estrela-d’alva
Rainha do mar.
Quero ser feliz
Nas ondas do mar
Quero esquecer tudo
Quero descansar.
MUNDO PEQUENO
Manoel de Barros
O mundo meu é pequeno, Senhor.
Tem um rio e um pouco de árvores.
Nossa casa foi feita de costas para o rio.
Formigas recortam roseiras da avó.
Nos fundos do quintal há um menino e suas latas
maravilhosas.
Todas as coisas deste lugar já estão comprometidas
com aves.
Aqui, se o horizonte enrubesce um pouco, os
besouros pensam que estão no incêndio.
Quando o rio está começando um peixe,
Ele me coisa
Ele me rã
Ele me árvore.
De tarde um velho tocará sua flauta para inverter
os ocasos.
GRITO DE GUERRA DO CLUBE
Luís Turiba
Sete e sete são catorze
Três vez sete, vinte e um
Tive sete sonhos eróticos
Mas não gozei em nenhum
Zum zum zum
Parara tim pum
Ócio
Ócio
Ócio
NESTA VIDA DE ÁSPEROS CAMINHOS
Luís Edmundo
Nesta vida de ásperos caminhos,
A Ventura, querida, é como a rosa:
Nasce cercada de cruéis espinhos.
E é por isso que a vida é tormentosa.
Punhais agudos, ríspidos, daninhos,
Servem de escudo à nossa mão nervosa.
Ventura, tu que embriagas como os vinhos,
Por que és, assim, tal falsa e caprichosa?
Meu amor, tu que a buscas, tem cuidado;
Que o teu gesto não seja desastrado
A erguer, assim, a tua mão formosa.
Não imaginas como sofreria,
Se te visse chorar, descrente, um dia!
A Ventura, querida, é como rosa...
A NOIVA
Júlio Dinis
(Grafia original)
Mal as regiões do oriente
A luz da manhã tingia,
Já ao cristalino espelho
A linda noiva sorria,
E a alva flor da laranjeira
Ao véu de neve prendia.
A noite passara à vela
E que noiva a dormiria?
E ao desmaiar das estrelas,
Alvoroçada se erguia.
E a alva flor da laranjeira
Ao véu de neve prendia.
Depois, ligeira, impaciente, Chegava-se à gelosia
A ver se o sol já dourava
Os cimos da serrania,
E a alva flor da laranjeira
Ao véu de neve prendia.
De quando em quando chorava… E o que chorar a fazia?
Saudades do que passara? Terrores do que viria?
E a alva flor da laranjeira
Ao véu de neve prendia.
Mas são lágrimas de noiva, Um só beijo as secaria,
São como gotas de orvalho
Quando o Sol as alumia;
E a alva flor da laranjeira
Ao véu de neve prendia.
Que longo porvir d’amores, Que futuro de poesia,
Que palácios encantados
Lhe pintava a fantasia,
Quando a flor da laranjeira
Ao véu de neve prendia!
E ao casto leito de virgem
Dentro da alcova sombria,
A noiva, de quando em quando,
Inquieta os olhos volvia;
E a alva flor da laranjeira
Ao véu de neve prendia.
Por entre o rosai florido, Que o balcão lhe entretecia As avezinhas
cantavam
Com festiva melodia.
E ela a flor da laranjeira
Ao véu de neve prendia.
Alto ia o Sol, resplendente
Na manhã daquele dia,
Cuja noite… Esta lembrança
Da noiva as faces tingia;
E a alva flor da laranjeira
Ao véu de neve prendia
A mãe, vendo-a tão formosa, Julgava um sonho o que via, Que
o vestido de noivado
As graças lhe encarecia,
E a alva flor da laranjeira
Do véu de neve pendia.
Vêm as irmãs, que a contemplam
Com inveja, eu juraria: Ela baixa os olhos, cora,
O que mais bela a fazia,
E a alva flor da laranjeira
Do véu de neve pendia.
Junto delas, perturbada, Quase nem falar podia;
So as mães bem compreendem O que a noiva então sentia, Quando
a flor da laranjeira
Do véu de neve pendia.
As horas passam tão lentas! E o coração lhe batia,
A mãe chorava, coitada, Com saudades o fazia;
E a alva flor da laranjeira
Do véu de neve pendia.
A sala já estava cheia; A noiva achava-a vazia,
Que entre tantos convidados
Ainda o noivo se não via;
E a alva flor da laranjeira
Há muito do véu pendia!
Passa a manhã, e não chega! Não chega, e é já
meio-dia! Nas varandas, nos eirados,
Se dispersa a companhia; E a alva flor da laranjeira Há tanto do véu
pendia!
O rosto da bela noiva
Cada vez mais se anuvia,
Não sei que voz misteriosa
Desgraças lhe pressagia;
E a alva flor da laranjeira
Inda do véu pendia.
Fenece a tarde. Eis a noite, Hora de melancolia.
No rosto dos convidados
Desassossego se lia,
E a alva flor da laranjeira
No véu da noiva tremia.
Tudo é silêncio. A coitada
Uma estátua parecia…
Tão pálida como mármore,
Como ele imóvel, fria;
Só a flor da laranjeira
No véu da noiva tremia.
Abrem-se as portas. «É ele!» Disse toda a companhia:
Porém ilusória esperança! Um pajem só aparecia:
E a alva flor da laranjeira
Do véu da noiva caía.
Tristes novas traz o pajem, Que triste o rosto trazia;
Fêz-se um silêncio profundo
Entanto que ele as dizia,
E a alva flor da laranjeira
Inda por terra jazia.
Dispam-se as galas da festa, Calem-se os sons da alegria, Que morto em cruel
combate O noivo… Um grito se ouvia, Junto à flor da laranjeira,
A noiva no chão caía..
Cercam-na todos… debalde, O seio já não batia;
Aquela mimosa planta
Sem alentos sucumbia,
Como a flor da laranjeira,
Derrubada ali jazia.
Mal sabia a pobre noiva Pra que bodas se vestia! Mal sonhava a desposada
Que a morte esposar devia! Quando a flor da laranjeira Ao véu da neve
prendia.
Com as vestes do noivado Para o sepulcro ela se ia; Em vez do rubor da noiva
A palidez da agonia
E a alva flor da laranjeira
Do véu de neve pendia.
Tantos sonhos que sonhara!… Tanta esp’rança que nutria!… Por
esposo tinha a morte,
Por tálamo, a lousa fria, E a flor da laranjeira
Com ela à campa descia.
O RELÓGIO
Jorge de Lima
Relógio, meu amigo, és a Vida em Segundos…
Consulto-te: um segundo! E quem sabe se agora,
Como eu próprio, a pensar, pensará doutros mundos
Alma que filosofa e investiga e labora?
Há de a morte ceifar somas de moribundos.
O relógio trabalha… E um sorri e outro chora,
Nas cavernas, no mar ou nos antros profundos
Ou no abismo que assombra e que assusta e apavora…
Relógio, meu amigo, és o meu companheiro,
Que aos vencidos, aos réus, aos párias e ao morfético
Tem posturas de algoz e gestos de coveiro…
Relógio, meu amigo, as blasfêmias e a prece,
Tudo encerra o segundo, insólito – sintético:
A volúpia do beijo e a mágoa que enlouquece!
O FIM DO MUNDO
João Cabral de Melo Neto
No fim de um mundo melancólico os homens leem
jornais.
Homens indiferentes a comer laranjas que ardem como o sol.
Me deram uma maça para lembrar a morte.
Sei que cidades telegrafam pedindo querosene.
O véu que olhei voar caiu no deserto. O poema final ninguém
escreverá desse mundo particular de doze horas.
Em vez de juízo final a mim
me preocupa o sonho final.
CANTO RESIGNADO
J. G. de Araújo Jorge
Sou um poeta
dionisíaco,
visionário,
resignado em seu destino
sedentário.
Sonho, como os pássaros
que se vão a cada alvorada
e adormecem, à música da aragem,
com seus violinos
na folhagem.
Envelheço
diante dos mesmos horizontes,
braços estendidos a abrigar
o cansaço dos viajantes
invejando-lhes o destino
sem coragem de ver
seus passaportes.
Um poeta
cumprindo sua missão: desabrochar
versos (como flores)
e encher de sons o espaço
como as ramagens
ao arco do vento.
DESPEDIDA
Hilda Hilst
Isso de mim que anseia despedida
(Para perpetuar o que está sendo)
Não tem nome de amor. Nem é celeste
Ou terreno. Isso de mim é marulhoso
E tenro. Dançarino também. Isso de mim
É novo: Como quem come o que nada contém.
A impossível oquidão de um ovo.
Como se um tigre
Reversivo,
Veemente de seu avesso
Cantasse mansamente.
Não tem nome de amor. Nem se parece a mim.
Como pode ser isto? Ser tenro, marulhoso
Dançarino e novo, ter nome de ninguém
E preferir ausência e desconforto
Para guardar no eterno o coração do outro.
A PULGA
Hermes Fontes
Um sinalzinho preto em teu colo de neve:
Examino se é próprio, ou fingido a nanquim…
Mas o pontinho escuro anima-se; e, ágil, breve,
Salta aqui, salta ali e vem pousar em mim.
Sinto-o no corpo: o inseto, a mais e mais se atreve.
Põe-me um ardor de urtiga em cada poro, e, assim,
Fervo e salto, eu também… Ao seu contacto, leve,
A epiderme é um incêndio, o sangue é um torvelim.
É uma pulga! Tirou-me o bom humor e o agrado!
– Serena perfeição em que a gente se julga,
Morre num sopro: é grão de pó, miga qualquer…
Quanto orgulho se tem despido e desmanchado,
Por um nada, um nadinha, uma pulga!? É que a pulga
Em astúcia é igual à raposa e à mulher…
CANÇÃO DO EXPEDICIONÁRIO
Guilherme de Almeida
Você sabe de onde eu venho?
Venho do morro, do engenho,
das selvas, dos cafezais,
da choupana onde um é pouco,
dois é bom, três é demais.
Venho das praias sedosas,
das montanhas alterosas,
do pampa, do seringal,
das margens crespas dos rios,
dos verdes mares bravios,
de minha terra natal.
Por mais terras que eu percorra,
não permita Deus que eu morra
sem que eu volte para lá
sem que leve por divisa
esse "V" que simboliza
a vitória que virá:
Nossa Vitória final,
que é a mira do meu fuzil,
a ração do meu bornal,
a água do meu cantil,
as asas do meu ideal,
a glória do meu Brasil!
Eu venho da minha terra,
da casa branca da serra
e do luar do sertão;
venho da minha Maria
cujo nome principia
na palma da minha mão.
Braços mornos de Moema,
lábios de mel de Iracema
estendidos para mim!
Ó minha terra querida
da Senhora Aparecida
e do Senhor do Bonfim!
Você sabe de onde eu venho?
É de uma pátria que eu tenho
no bojo do meu violão;
que de viver em meu peito
foi até tomando um jeito
de um enorme coração.
Deixei lá atrás meu terreiro
meu limão meu limoeiro,
meu pé de jacarandá,
minha casa pequenina
lá no alto da colina
onde canta o sabiá.
Venho de além desse monte
que ainda azula no horizonte,
onde o nosso amor nasceu;
do rancho que tinha ao lado
um coqueiro que, coitado,
de saudade já morreu.
Venho do verde mais belo,
do mais dourado amarelo,
do azul mais cheio de luz,
cheio de estrelas prateadas
que se ajoelham, deslumbradas,
fazendo o sinal da cruz
CARTA (A UM AMIGO QUE ME PEDIU VERSOS)
Guerra Junqueiro
Como hei-de ser um Petrarca,
Cantar como um rouxinol,
Se o meu termómetro marca
Quarenta e dois graus ao sol!
Da lira bárbara e tosca
Nem saem trovas d'Alfama.
Enxota o Pégaso a mosca,
E eu durmo a sesta na cama.
A hipocondria maciça
Conduzo-a, não há remédio,
Na jumenta da preguiça
Pelas charnecas do tédio.
Eu trago a inspiração oca,
Ando abatido, ando mono;
Meus versos abrem a boca,
Como os porteiros com sono.
Não tenho a rima imprevista,
Os guizos d'oiro ou de opala,
Que à asa da estrofe o artista
Sublime prende ao largá-la.
P'ra lapidar à vontade
Um belo verso radiante,
Falta-me a tenacidade,
Que é como o pó do diamante.
A musa foi-se-me embora;
Para onde foi nem me lembro;
Só a torno a ver agora
Lá para os fins de Setembro.
Anda talvez nas florestas
Fazendo orgias pagãs,
Entre os aromas das giestas
E os braços dos Egipãs.
Deixá-la andar lá dois meses
Colhendo imagens e flores,
Para espanto dos burgueses
E ruína dos editores.
Enfim, o calor achata-nos.
Vamos aos bosques pacíficos
Onde os guarda-sóis — os plátanos —
Têm forros novos, magníficos!
POIS CASEI MÁ HORA
Gil Vicente
(Grafia original)
Pois casei má hora, e nela,
e com tal marido, prima...
Comprarei cá üa gamela,
par'ò ter debaixo dela,
e um grão penedo em cima.
Porque vai-se-me às figueiras,
e come verde e maduro;
e quantas uvas penduro
jeita nas gorgomeleiras:
parece negro monturo.
Vai-se-me às ameixieiras,
antes que sejam maduras.
Ele quebra as cereijeiras,
ele vendima as parreiras,
e não sei que faz das uvas.
Ele não vai à lavrada,
ele todo o dia come,
ele toda a noite dorme,
ele não faz nunca nada,
e sempre me diz que há fome!
Jesu! Jesu! Posso-te dizer,
e jurar e tresjurar,
e provar e reprovar,
e andar e revolver,
que é milhor pera beber,
que não pera maridar.
O demo que o fez marido!
Que assi seco como é
beberá a torre da Sé:
então arma um arruído
assi debaixo do pé!...
CHUVA DE CINZAS
Gilka Machado
Chuva de cinzas...Cai a tarde lá por fora
na estática mudez da Terra triste e viúva;
e, da tarde ao cair, sinto, minha alma, agora,
embuça-se na cisma e no torpor se enluva.
Hora crepuscular, hora de névoas, hora
em que de bem ignoto o humano ser enviúva;
e, enquanto em cinza todo o espaço se colora,
o tédio, em nós, é como uma cinérea chuva.
Hora crepuscular - concepção e agonia,
hora em que tudo sente uma incerteza imensa,
sem saber se desponta ou se fenece o dia;
hora em que a alma, a pensar na inconstância da sorte,
fica dentro de nós oscilando, suspensa
entre o ser e o não ser, entre a existência e a morte.
A ONDINA
Francisca Júlia
Rente ao mar que soluça e lambe a praia, a Ondina,
Solto, ás brizas da noite, o aureo cabello, núa,
Pela praia passeia. A opalica neblina
Tem reflexos de prata á refracção da lua.
Uma velha goleta encalhada, a bolina
Rôta, pompeia no ar a vela, que fluctua.
E, de onda em onda, o mar, soluçando em surdina,
Empola-se espumante, á praia vem, recúa...
E, surdindo da treva, um monstro negro, fito
O olhar na Ondina, avança, embargando-lhe o passo...
Ella tenta fugir, suffoca o choro, o grito...
Mas o mar, que, espreitando-a, as ondas avoluma,
Roja-se aos pés da Ondina e esconde-a no regaço,
Envolvendo-lhe o corpo em turbilhões de espuma.
AMIGA
Florbela Espanca
Deixa-me ser a tua amiga, Amor,
A tua amiga só, já que não queres
Que pelo teu amor seja a melhor,
A mais triste de todas as mulheres.
Que só, de ti, me venha mágoa e dor
O que me importa a mim?! O que quiseres
É sempre um sonho bom! Seja o que for,
Bendito sejas tu por mo dizeres!
Beija-me as mãos, Amor, devagarinho ...
Como se os dois nascêssemos irmãos,
Aves cantando, ao sol, no mesmo ninho ...
Beija-mas bem! ... Que fantasia louca
Guardar assim, fechados, nestas mãos
Os beijos que sonhei prà minha boca! ...
NOTÍCIA DA MORTE DE ALBERTO SILVA
Ferreira Gullar
CHOVE. HÁ SILÊNCIO, PORQUE A MESMA CHUVA
Fernando Pessoa
Chove. Há silêncio, porque a mesma chuva
Não faz ruído senão com sossego.
Chove. O céu dorme. Quando a alma é viúva
Do que não sabe, o sentimento é cego.
Chove. Meu ser (quem sou) renego...
Tão calma é a chuva que se solta no ar
(Nem parece de nuvens) que parece
Que não é chuva, mas um sussurrar
Que de si mesmo, ao sussurrar, se esquece.
Chove. Nada apetece...
Não paira vento, não há céu que eu sinta.
Chove longínqua e indistintamente,
Como uma coisa certa que nos minta,
Como um grande desejo que nos mente.
Chove. Nada em mim sente...
O MUNDO APARECE DEMASIADO EXPLICADO
Fabrício Carpinejar
O mundo aparece demasiado explicado.
Teu jeito calado indica esperança,
mas quem diz que não é remorso?
Sou fiel aos hábitos; tu, aos mistérios.
Não coincidimos nossa lealdade.
Suporto, sobrevives.
O que adianta transbordar
se não dás conta do mínimo?
O que adianta me retrair
se não percebo o invisível?
* * *
Não ter sido compreendido
condenou-me a assumir verdades
que desconhecia, filhos que
não eram de minha boca,
compromissos que não quis ir.
Ao longo da fala,
abri correspondências alheias.
A ausência de clareza
me perturbou a viver de favor
em meu corpo.
* * *
Não me inquieto
quando não recebo as respostas
das perguntas que não fiz.
Eu me conformei
em reservar alguma coisa
de ti para saber depois.
Um pouco de nosso amor
será póstumo.
É recomendável
não descobrir todos os segredos.
* * *
Para a morte, sofre de um problema.
Não estou todo em um único lugar.
* * *
Os dias no verão
são cadeiras
para fora da casa.
Armar o ar,
desempalhar
a luz e deslizar
na esponja noturna da grama.
Ponha esse sol de janeiro
em minha conta.
* * *
Alguém dentro de mim
mente para me proteger.
Não sei quem tem razão
sobre meus desastres.
Se permaneci em excesso
e não varei a outra margem.
Se me deixei fora por muito tempo
e esqueci o endereço.
Quando estamos próximos de dizer
é que não estamos mais aqui.
* * *
Não conto meus pesadelos ao acordar.
Não termino mais uma frase inteira.
O começo de uma conversa é difícil
Depois mais difícil se toma
quando ela aconteceu
sem começar.
DOM QUIXOTE
Euclides da Cunha
Assim à aldeia volta o da triste figura
Ao tardo caminhar do Rocinante lento;
No arcabouço dobrado um grande desalento,
No entristecido olhar uns laivos de loucura.
Sonhos, a glória, o amor, a alcantilada altura,
Do ideal e da fé, tudo isto num momento,
A rolar, a rolar, num desmoronamento,
Entre risos boçais do bacharel e o cura.
Mas certo, ó D. Quixote, ainda foi clemente,
Contigo a sorte ao pôr neste teu cérebro oco,
O brilho da ilusão do espírito doente;
Porque há cousa pior: é o ir-se pouco a pouco
Perdendo qual perdeste um ideal ardente
E ardentes ilusões e não se ficar louco.
TROVA HUMORÍSTICA 11
Eno Teodoro Wanke
A dívida é aborrecida
Pois, seja pequena ou grande
Quando mais é contraída
Tanto mais ela se expande
ASPIRAÇÃO
Dom Pedro II
Deus, que os orbes regulas, esplendentes,
Em número e medida poderados,
Neles abrigo dás aos desterrados
Que se vão suspirosos e plangentes.
Assim, dos céus às vastidões silentes
Ergo os meus pobre olhos fatigados,
Indagando em que mundos apartados
Lenitivo à saudade nos consentes.
Breve, Senhor, do cárcere da argila
Hei de evolar-me, murmurando ansioso
Tímida prece; digna-te a ouví-la!
Põe-me ao pé do Cruzeiro majestoso
Que ao antártico céu vivo cintila,
Fitando sempre o meu Brasil saudoso!
EU SOU TAL QUAL O PARNAÍBA: EXISTE...
Da Costa e Silva
Eu sou tal qual o Parnaíba: existe
Dentro em meu ser uma tristeza inata,
Igual, talvez, à que no rio assiste
Ao refletir as árvores, na mata…
O seu destino em retratar consiste;
Porém o ri todo que retrata,
Alegre que era, vai tornando triste
No fluído espelho móvel de ouro e prata…
Parece até que o rio tem saudade
Como eu, que também sou dessa maneira,
Saudoso e triste em plena mocidade.
Dá-se em mim o fenômeno sombrio
Da refração das árvores da beira
Na superfície trêmula do rio…
ABELHAS
Cruz e Sousa
Gotas de luz e perfume,
Leves, tênues, delicadas,
Acesas no doce lume
De purpúreas alvoradas.
Pingos de ouro cristalinos
Alados na esfera, ondeando,
Dispersos por entre os hinos,
Da natureza vibrando.
Sorrisos aéreos, soltos,
Flavas asas radiantes,
Que levam consigo envoltos
Da aurora os sóis fecundantes.
Da aurora que a primavera
Faz cantar, brota no peito
E floresce em folhas de hera
O coração satisfeito.
Essa aurora produtiva
Do amor soberano e eterno,
Que é nas almas força viva
E nas abelhas falerno.
Nas doudejantes abelhas
Que dentre flores volitam
E do sol entre as centelhas
Resplendem, fulgem, palpitam.
Zumbem, fervem nas colméias
E rumorejam no enxame
Pelas flóridas aléias
Onde um prado se derrame.
Assim mesmo pequeninas
E quase invisíveis, quase,
Com as suas asitas finas,
De etérea de fluida gaze.
Ah! quanto são adoráveis
Os favos que elas fabricam!
Com que graças inefáveis
Se geram, se multiplicam.
Nos afãs industriosos
Que enlevo, que encanto vê-las
Com seus corpos luminosos
D'iriante brilho d'estrelas.
E nas ondas murmurosas
Dos peregrinos adejos
Vão dar ao lábio das rosas
O mel doirado dos beijos.
MULHHER DA VIDA
Cora Coralina
Mulher
da Vida, minha Irmã.
De todos os tempos.
De todos os povos.
De todas as latitudes.
Ela vem do fundo imemorial das idades e
carrega a carga pesada dos mais
torpes sinônimos,
apelidos e apodos:
Mulher da zona,
Mulher da rua,
Mulher perdida,
Mulher à-toa.
Mulher da Vida, minha irmã.
Pisadas, espezinhadas, ameaçadas.
Desprotegidas e exploradas.
Ignoradas da Lei, da Justiça e do Direito.
Necessárias fisiologicamente.
Indestrutíveis.
Sobreviventes.
Possuídas e infamadas sempre por
aqueles que um dia as lançaram na vida.
Marcadas. Contaminadas,
Escorchadas. Discriminadas.
Nenhum direito lhes assiste.
Nenhum estatuto ou norma as protege.
Sobrevivem como erva cativa dos caminhos,
pisadas, maltratadas e renascidas.
Flor sombria, sementeira espinhal
gerada nos viveiros da miséria, da
pobreza e do abandono,
enraizada em todos os quadrantes da Terra.
Um dia, numa cidade longínqua, essa
mulher corria perseguida pelos homens que
a tinham maculado. Aflita, ouvindo o
tropel dos perseguidores e o sibilo das pedras,
ela encontrou-se com a Justiça.
A Justiça estendeu sua destra poderosa e
lançou o repto milenar:
Aquele que estiver sem pecado
atire a primeira pedra.
As pedras caíram
e os cobradores deram s costas.
O Justo falou então a palavra de eqüidade:
Ninguém te condenou, mulher...
nem eu te condeno.
A Justiça pesou a falta pelo peso
do sacrifício e este excedeu àquela.
Vilipendiada, esmagada.
Possuída e enxovalhada,
ela é a muralha que há milênios detém
as urgências brutais do homem para que
na sociedade possam coexistir a inocência,
a castidade e a virtude.
Na fragilidade de sua carne maculada
esbarra a exigência impiedosa do macho.
Sem cobertura de leis
e sem proteção legal,
ela atravessa a vida ultrajada
e imprescindível, pisoteada, explorada,
nem a sociedade a dispensa
nem lhe reconhece direitos
nem lhe dá proteção.
E quem já alcançou o ideal dessa mulher,
que um homem a tome pela mão,
a levante, e diga: minha companheira.
Mulher da Vida, minha irmã.
No fim dos tempos.
No dia da Grande Justiça
do Grande Juiz.
Serás remida e lavada
de toda condenação.
E o juiz da Grande Justiça
a vestirá de branco em
novo batismo de purificação.
Limpará as máculas de sua vida
humilhada e sacrificada
para que a Família Humana
possa subsistir sempre,
estrutura sólida e indestrurível
da sociedade,
de todos os povos,
de todos os tempos.
Mulher da Vida, minha irmã.
Declarou-lhe Jesus: Em verdade vos digo que publicanos e meretrizes vos precedem
no Reino de Deus.
Evangelho de São Mateus 21, ver.31.
I (SONETOS) PRA CANTAR DE AMOR TENROS CUIDADOS
Cláudio Manuel da Costa
Para cantar de amor tenros cuidados,
Tomo entre vós, ó montes, o instrumento;
Ouvi pois o meu fúnebre lamento;
Se é, que de compaixão sois animados:
Já vós vistes, que aos ecos magoados
Do trácio Orfeu parava o mesmo vento;
Da lira de Anfião ao doce acento
Se viram os rochedos abalados.
Bem sei, que de outros gênios o Destino,
Para cingir de Apolo a verde rama,
Lhes influiu na lira estro divino;
O canto, pois, que a minha voz derrama,
Porque ao menos o entoa um peregrino,
Se faz digno entre vós também de fama.
SONHE
Clarice Lispector
Seja o que você quer ser,
porque você possui apenas uma vida
e nela só se tem uma chance de fazer aquilo que quer.
Tenha felicidade bastante para fazê-la doce.
Dificuldades para fazê-la forte.
Tristeza para fazê-la humana.
E esperança suficiente para fazê-la feliz.
As pessoas mais felizes não têm as melhores coisas.
Elas sabem fazer o melhor das oportunidades que aparecem em seus caminhos.
A felicidade aparece para aqueles que choram.
Para aqueles que se machucam.
Para aqueles que buscam e tentam sempre.
E para aqueles que reconhecem a importância das pessoas que passam por suas vidas.
DESLUMBRAMENTOS
Cesário Verde
Milady, é perigoso contemplá-la
Quando passa aromática e normal,
Com seu tipo tão nobre e tão de sala,
Com seus gestos de neve e de metal.
Sem que nisso a desgoste ou desenfade,
Quantas vezes, senguindo-lhes as passadas,
Eu vejo-a, com real solenidade,
Ir impondo toilettes complicadas!…
Em si tudo me atrai como um tesoiro:
O seu ar pensativo e senhoril,
A sua voz que tem um timbre de oiro
E o seu nevado e lúcido perfil!
Ah! Como me estonteia e me fascina…
E é, na graça distinta do seu porte,
Como a Moda supérflua e feminina,
E tão alta e serena como a Morte!…
Eu ontem encontrei-a, quando vinha,
Britânica, e fazendo-me assombrar;
Grande dama fatal, sempre sozinha,
E com firmeza e música no andar!
O seu olhar possui, num jogo ardente,
Um arcanjo e um demónio a iluminá-lo;
Como um florete, fere agudamente,
E afaga como o pêlo dum regalo!
Pois bem. Conserve o gelo por esposo,
E mostre, se eu beijar-lhe as brancas mãos,
O modo diplomático e orgulhoso
Que Ana de Áustria mostrava aos cortesãos.
E enfim prossiga altiva como a Fama,
Sem sorrisos, dramática, cortante;
Que eu procuro fundir na minha chama
Seu ermo coração, como a um brilhante.
Mas cuidado, milady, não se afoite,
Que hão-de acabar os bárbaros reais;
E os povos humilhados, pela noite,
Para a vingança aguçam os punhais.
E um dia, ó flor do Luxo, nas estradas,
Sob o cetim do Azul e as andorinhas,
Eu hei-de ver errar, alucinadas,
E arrastando farrapos - as rainhas!
MÁQUINA BREVE
Cecília Meireles
O pequeno vaga-lume
com sua verde lanterna,
que passava pela sombra
inquietando a flor e a treva
— meteoro da noite, humilde,
dos horizontes da relva;
o pequeno vaga-lume,
queimada a sua lanterna,
jaz carbonizado e triste
e qualquer brisa o carrega:
mortalha de exíguas franjas
que foi seu corpo de festa.
Parecia uma esmeralda
e é um ponto negro na pedra.
Foi luz alada, pequena
estrela em rápida seta.
Quebrou-se a máquina breve
na precipitada queda.
E o maior sábio do mundo
sabe que não a conserta.
O LAÇO DE FITA
Casto Alves
Não sabes, criança? ′stou louco de amores...
Prendi meus affectos, formosa Pepita.
Mas onde? No templo, no espaço, nas nevoas?!
Não rias, prendi-me
N′um laço de fita.
Na selva sombria de tuas madeixas,
Nos negros cabellos da moça bonita,
Fingindo a serpente qu′enlaça a folhagem,
Formoso enroscava-se
O laço de fita.
Meu ser que voava nas luzes da festa,
Qual passaro bravo, que os ares agita,
Eu vi de repente captivo, submisso
Rolar prisioneiro
N′um laço de fita.
E agora enleiada na tenue cadêa
Debalde minh′alma se embate, se irrita...
O braço que rompe cadêas de ferro,
Não quebra teus élos,
Ó laço de fita!
Meu Deus! As phalenas têm azas de opala,
Os astros se libram na plaga infinita.
Os anjos repousam nas pennas brilhantes...
Mas tu... tens por azas
Um laço de fita!
Ha pouco voaras na célere walsa,
Na walsa que anceia, que estúa e palpita.
Por que é que tremeste? Não eram meus labios...
Beijava-te apenas...
Teu laço de fita.
Mas ai! findo o baile, despindo os adornos
N′alcova onde a vela ciosa... crepita,
Talvez da cadêa libertes as tranças,
Mas eu... fico preso
No laço de fita.
Pois bem! Quando um dia, na sombra do valle
Abrirem-me a cova... formosa Pepita!
Ao menos arranca meus louros da fronte,
E dá-me por c′ròa...
Teu laço de fita.
VISÃO
Casimiro de Abreu
Uma noite, meu Deus, que noite aquela!
Por entre as galas, no fervor da dança,
Vi passar, qual num sonho vaporoso,
O rosto virginal duma criança.
Sorri-me - era o sonho de minh'alma
Esse riso infantil que o lábio tinha:
- Talvez que essa alma dos amores puros
Pudesse um dia conversar co'a minha!
Eu olhei, ela olhou... doce mistério!
Minh'alma despertou-se à luz da vida,
E as vozes duma lira e dum piano
Juntas se uniram na canção querida.
Depois eu indolente descuidei-me
Da planta nova dos gentis amores,
E a criança, correndo pela vida,
Foi colher nos jardins mais lindas flores.
Não voltou; - talvez ela adormecesse
Junto à fonte, deitada na verdura,
E - sonhando - a criança se recorde
Do moço que ela viu e que a procura!
Corri pelas campinas noite e dia
Atrás do berço d'ouro dessa fada;
Rasguei-me nos espinhos do caminho...
Cansei-me a procurar e não vi nada!
Agora como um louco eu fito as turbas
Sempre a ver se descubro a face linda...
- Os outros a sorrir passam cantando,
Só eu a suspirar procuro ainda!...
Onde foste, visão dos meus amores!
Minh'alma sem te ver louca suspira!
- Nunca mais unirás, sombra encantada,
O som do teu piano à voz da lira?!...
OLINDA
Carlos Pena Filho
De limpeza e claridade
é a paisagem defronte.
Tão limpa que se dissolve
a linha do horizonte.
As paisagens muito claras
não são paisagens, são lentes.
São íris, sol, aguaverde
ou claridade somente.
Olinda é só para os olhos,
não se apalpa, é só desejo.
Ninguém diz: é lá que eu moro.
Diz somente: é lá que eu vejo.
Tem verdágua e não se sabe,
a não ser quando se sai.
Não porque antes se visse,
mas porque não se vê mais.
As claras paisagens dormem
no olhar, quando em existência.
Diluídas, evaporadas,
só se reúnem na ausência.
Limpeza tal só imagino
que possa haver nas vivendas
das aves, nas áreas altas,
muito além do além das lendas.
Os acidentes, na luz,
não são, existem por ela.
Não há nem pontos ao menos,
nem há mar, nem céu, nem velas.
Quando a luz é muito intensa
é quando mais frágil é:
planície, que de tão plana
parecesse em pé.
AMOR É BICHO INSTRUÍDO
Carlos Drummond de Andrade
Olha: o amor pulou o muro
o amor subiu na árvore
em tempo de se estrepar.
Pronto, o amor se estrepou.
Daqui estou vendo o sangue
que escorre do corpo andrógino.
Essa ferida, meu bem
às vezes não sara nunca
às vezes sara amanhã.
DEPOIS QUE QUIS AMOR QUE QUE EU SÓ PASSASE
Soneto 150
Luís de Camões
Despois que quiz Amor que eu só passasse
Quanto mal ja por muitos repartio,
Entregou-me á Fortuna, porque vio
Que não tinha mais mal que em mi mostrasse.
Ella, porque do Amor se avantajasse
Na pena a que elle só me reduzio,
O que para ninguem se consentio,
Para mim consentio que se inventasse.
Eis-me aqui vou com vário som gritando.
Copioso exemplario para a gente
Que destes dous tyrannos he sujeita;
Desvarios em versos concertando.
Triste quem seu descanso tanto estreita,
Que deste tão pequeno está contente!
SONETO DA ESMOLA DESVIRTUADA
Bocage
Padre Frei Cosme, vossa reverencia
Se enganna, ou engannar-nos talvez tenta:
Quem as riquezas dá, quem nos sustenta,
Não é de Deus a summa providencia?
Pois logo com que cara ou consciencia
Esmola pede, e arrepanhar intenta
Para o Senhor da Paz, ou da Tormenta?
Tem Deus do homem acaso dependencia?
Tire a mascara pois, largue a saccola,
E deixe o povo, a quem impunemente
Em nome do Senhor escorcha, e exfolla:
À viuva deixe a esmola, e ao indigente;
E não queira, hypocrita farsola
Foder à custa da devota gente.
CEM TROVAS
Belmiro Braga
TROVA 001
As almas de muita gente
são como o rio profundo:
-a face tão transparente,
e quanto lodo no fundo!.
VERSOS DE AMOR
Augusto dos Anjos
A um poeta erótico
Parece muito doce aquela cana.
Descasco-a, provo-a, chupo-a . . ilusão treda!
O amor, poeta, é como a cana azeda,
A toda a boca que o não prova engana.
Quis saber que era o amor, por experiência,
E hoje que, enfim, conheço o seu conteúdo,
Pudera eu ter, eu que idolatro o estudo,
Todas as ciências menos esta ciência!
Certo, este o amor não é que, em ânsias, amo
Mas certo, o egoísta amor este é que acinte
Amas, oposto a mim. Por conseguinte
Chamas amor aquilo que eu não chamo.
Oposto ideal ao meu ideal conservas.
Diverso é, pois, o ponto outro de vista
Consoante o qual, observo o amor, do egoísta
Modo de ver, consoante o qual, o observas.
Porque o amor, tal como eu o estou amando,
E Espírito, é éter, é substância fluida,
É assim como o ar que a gente pega e cuida,
Cuida, entretanto, não o estar pegando!
É a transubstanciação de instintos rudes,
Imponderabilíssima, e impalpável,
Que anda acima da carne miserável
Como anda a garça acima dos açudes!
Para reproduzir tal sentimento
Daqui por diante, atenta a orelha cauta,
Como Marsias — o inventor da flauta —
Vou inventar também outro instrumento!
Mas de tal arte e espécie tal faze-lo
Ambiciono, que o idioma em que te eu falo
Possam todas as línguas decliná-lo
Possam todos os homens compreendê-lo!
Para que, enfim, chegando à última calma
Meu podre coração roto não role,
Integralmente desfibrado e mole,
Como um saco vazio dentro d’alma!
O SOL DE DEUS
Ariano Suassuna
Mas eu enfrentarei o Sol divino,
o Olhar sagrado em que a Pantera arde.
Saberei porque a teia do Destino
não houve quem cortasse ou desatasse.
Não serei orgulhoso nem covarde,
que o sangue se rebela ao som do Sino.
Verei o Jaguapardo e a luz da Tarde,
Pedra do Sonho e cetro do Divino.
Ela virá-Mulher- aflando as asas,
com o mosto da Romã, o sono, a Casa,
e há de sagrar-me a vista o Gavião.
Mas sei, também, que só assim verei
a coroa da Chama e Deus, meu Rei,
assentado em seu trono do Sertão.
EPITÁFIO
Álvares de Azevedo
Perdão, meu Deus, se a túnica da vida...
Insano profanei-a nos amores!
Se da c'roa dos sonhos perfumados
Eu próprio desfolhei as róseas flores!
No vaso impuro corrompeu-se o néctar,
A argila da existência desbotou-me...
O sol de tua gloria abriu-me as pálpebras,
Da nódoa das paixões purificou-me!
E quantos sonhos na ilusão da vida!
Quanta esperança no futuro ainda!
Tudo calou-se pela noite eterna...
E eu vago errante e só na treva infinda...
Alma em fogo, sedenta de infinito,
Num mundo de visões o vôo abrindo,
Como o vento do mar no céu noturno
Entre as nuvens de Deus passei dormindo!
A vida é noite! o sol tem véu de sangue...
Tateia a sombra a geração descrida!...
Acorda-te, mortal! é no sepulcro
Que a larva humana se desperta à vida!
Quando as harpas do peito a morte estala,
Um treno de pavor soluça e voa...
E a nota divinal que rompe as fibras
Nas dulias angélicas ecoa!
LIRAS
Alvarenga Peixoto
(A Bárbara Heleodora, sua esposa, remetidas
do cárcere da Ilha das Cobras)
Bárbara bela,
Do norte estrela,
Que o meu destino
Sabes guiar,
De ti ausente,
Triste, somente
As horas passo
A suspirar.
Por entre as penhas
De incultas brenhas,
Cansa-me a vista
De te buscar;
Porém não vejo
Mais que o desejo
Sem esperança
De te encontrar.
Eu bem queria
A noite e o dia
Sempre contigo
Poder passar;
Mas orgulhosa
Sorte invejosa
Desta fortuna
Me quer privar.
Tu, entre os braços,
Ternos abraços
Da filha amada
Podes gozar;
Priva-me a estrela
De ti e dela,
Busca dois modos
De me matar!
CANTEM OUTROS A CLARA COR VIRENTE
Alphonsus Guimaraens
Cantem outros a clara cor virente
Do bosque em flor e a luz do dia eterno...
Envoltos nos clarões fulvos do oriente,
Cantem a primavera: eu canto o inverno.
Para muitos o imoto céu clemente
É um manto de carinho suave e terno:
Cantam a vida, e nenhum deles sente
Que decantando vai o próprio inferno.
Cantem esta mansão, onde entre prantos
Cada um espera o sepulcral punhado
De úmido pó que há de abafar-lhe os cantos...
Cada um de nós é a bússola sem norte.
Sempre o presente pior do que o passado.
Cantem outros a vida: eu canto a morte..
AS MINHAS ASAS
Almeida Garrett
Eu tinha umas asas brancas,
Asas que um anjo me deu,
Que, em me eu cansando da terra,
Batia-as, voava ao céu.
— Eram brancas, brancas, brancas,
Como as do anjo que mas deu:
Eu inocente como elas,
Por isso voava ao céu.
Veio a cobiça da terra,
Vinha para me tentar;
Por seus montes de tesouros
Minhas asas não quis dar.
— Veio a ambição, coas grandezas,
Vinham para mas cortar,
Davam-me poder e glória;
Por nenhum preço as quis dar.
Porque as minhas asas brancas,
Asas que um anjo me deu,
Em me eu cansando da terra,
Batia-as, voava ao céu.
Mas uma noite sem lua
Que eu contemplava as estrelas,
E já suspenso da terra,
Ia voar para elas,
— Deixei descair os olhos
Do céu alto e das estrelas...
Vi entre a névoa da terra,
Outra luz mais bela que elas.
E as minhas asas brancas,
Asas que um anjo me deu,
Para a terra me pesavam,
Já não se erguiam ao céu.
Cegou-me essas luz funesta
De enfeitiçados amores...
Fatal amor, negra hora
Foi aquela hora de dores!
— Tudo perdi nessa hora
Que provei nos seus amores
O doce fel do deleite,
O acre prazer das dores.
E as minhas asas brancas,
Asas que um anjo me deu,
Pena a pena me caíram...
Nunca mais voei ao céu.
CARNES
Alceu Wamosy
Pulcras liriais, bizarramente claras,
Carnes divinas, virginais e puras,
Na ostentação de correções preclaras
E de preclaras pompas e brancuras...
Carnes que sois as sacrossantas aras,
De vagas e de ignotas formosuras...
Ó carnes esquisitas carnes, carnes raras,
De esquisitas e raras contexturas!...
Carnes dadas, sem mancha, em holocausto
Ao amor, e do amor florindo ao fausto,
Virgens da tentação, salvas do vício!
Carnes extraordinárias e perfeitas,
Eleitas para um alto gozo — eleitas
Para o prazer e para o sacrifício!...
BEIJA-FLORES
Alberto de Oliveira
Os beija-flores, em festa,
Com o sol, com a luz, com os rumores,
Saem da verde floresta,
Como um punhado de flores.
E abrindo as asas formosas,
As asas aurifulgentes,
Feitas de opalas ardentes
Com coloridos de rosas,
Os beija-flores, em bando,
Boêmios enfeitiçados,
Vão como beijos voando
Por sobre os virentes prados;
Sobem às altas colinas,
Descem aos vales formosos,
E espraiam-se após ruidosos
Pela extensão das campinas.
Depois, sussurrando a flux
Dos cactos ensanguentados,
Bailam nos prismas da luz,
De solto pólen dourados.
Ah! como a orquídea estremece
Ao ver que um deles, mais vivo,
Até seu gérmen lascivo
Mergulha, interna-se, desce...
E não haver uma rosa
De tantas, uma açucena,
Uma violeta piedosa,
Que quando a morte sem pena
Um destes seres fulmina,
Abra-se em férvido enleio,
Como a alma de uma menina,
Para guardá-lo no seio!
CHEGANDO EM CASA
Affonso Romano de Sant'Anna
Chegando em casa
com a alma amarfanhada
e escura
das refregas burocráticas
leio sobre a mesa
um bilhete que dizia :
-hoje, 22 de agosto de 1994
Meu marido perdeu, deste terraço :
Mais um pôr do sol no Dois Irmãos
o canto de um bem-te-vi
e uma orquídea que entardecia
sobre o mar.
EXAUSTO
Adélai Prado
Eu quero uma licença de dormir,
perdão pra descansar horas a fio,
sem ao menos sonhar
a leve palha de um pequeno sonho.
Quero o que antes da vida
foi o sono profundo das espécies,
a graça de um estado.
Semente.
Muito mais que raízes.
INSTANTE
Adalgisa Nery
O espanto abriu meu pensamento
Com idioma vindo do delírio,
Dos receios indefesos, dos louvores sem raízes,
No perdão oferecido sem razão.
O espanto abriu meu pensamento
Na noite carregada de lamentos
Em linguagem universal
Fluindo do eco perdido
Com passos de presságio amanhecendo.
Corpos florindo na pele da terra
Acendendo vida nas rosas e nos vermes,
Aumentando a potência do limo,
Preparando a primavera nos campos,
Ventres irrigando secas raízes,
Cogumelos róseos crescendo
Na umidade das faces.
Coagulação de prantos na semente
Das constelações adivinhadas.
E no faminto inconsciente, o tempo
Sorvendo com fúria o seu sustento
No insondável silêncio de mim mesma.
ETERNO AMOR
Virgínia Victorino
Pedro, o grande amoroso, o eterno amante,
Aos pés d’ Inês, sozinho e triste diz:
Fez-me Cruel o muito que te quis,
e acho ainda que não te quis bastante.
Não me viste morrer. Partiste adiante
nem me viste chorar; foste feliz.
Subiste ao céu – formosa flor de liz,
sempre tão perto, embora tão distante!
O leito que te dei não te merece.
Devia tê-lo feito de uma prece,
De saudades, de rendas, ou luar...
Vai-me esperando. – A expiação redime. –
tenho na vida a expiação dum crime.
– O Santíssimo crime de te amar.
A GRANDE VOZ
Vinícius de Moraes
É terrível, Senhor! Só a voz do prazer cresce nos ares.
Nem mais um gemido de dor, nem mais um clamor de heroísmo
Só a miséria da carne, e o mundo se desfazendo na lama da carne.
É terrível, Senhor. Desce teus olhos.
As almas sãs clamam a tua misericórdia.
Elas creem em ti. Creem na redenção do sacrifício.
Dize-lhes, Senhor, que és o Deus da Justiça e não da covardia
Dize-lhes que o espírito é da luta e não do crime.
Dize-lhes, Senhor, que não é tarde!
Senhor! Tudo é blasfêmia e tudo é lodo.
Se um lembra que amanhã é o dia da miséria
Mil gritam que hoje é o dia da carne.
Olha, Senhor, antes que seja tarde
Abandona um momento os puros e os bem-aventurados
Desvia um segundo o teu olhar de Roma
Dá remédio a esta infelicidade sem remédio
Antes que ela corrompa os bem-aventurados e os puros.
Não, meu Deus. Não pode prevalecer o prazer e a mentira.
A Verdade é o Espírito. Tu és o Espírito supremo
E tu exigiste de Abraão o sacrifício de um filho.
Na verdade o que é forte é o que mata se o Espírito exige.
É o que sacrifica à causa do bem seu ouro e seu filho.
A alma do prazer é da terra. A alma da luta e do espaço.
E a alma do espaço aniquilará a alma da terra
Para que a Verdade subsista.
Talvez, Senhor meu Deus, fora melhor
Findar a humanidade esfacelada
Com o fogo sagrado de Sodoma.
Melhor fora, talvez, lançar teu raio
E terminar eternamente tudo.
Mas não, Senhor. A morte aniquila — ao fraco a morte inglória.
A luta redime — ao forte a luta e a vida.
Mais vale, Senhor, a tua piedade
Mais vale o teu amor concitando ao combate último.
Senhor, eu não compreendo os teus sagrados desígnios.
Jeová — tu chamaste à luta os homens fortes
Tua mão lançou pragas contra os ímpios
Tua voz incitou ao sacrifício da vida as multidões.
Jesus — tu pregaste a parábola suave
Tu apanhaste na face humildemente
E carregaste ao Gólgota o madeiro.
Senhor, eu não os compreendo, teus desígnios.
Senhor, antes de seres Jesus a humanidade era forte
Os homens bons ouviam a doçura da tua voz
Os maus sentiam a dureza da tua cólera.
E depois, depois que passaste pelo mundo
Teu doce ensinamento foi esquecido
Tua existência foi negada
Veio a treva, veio o horror, veio o pecado
Ressuscitou Sodoma.
Senhor, a humanidade precisa ouvir a voz de Jeová
Os fortes precisam se erguer de armas em punho
Contra o mal — contra o fraco que não luta.
A guerra, Senhor, é em verdade a lei da vida
O homem precisa lutar, porque está escrito
Que o Espírito há de permanecer na face da Terra.
Senhor! Concita os fortes ao combate
Sopra nas multidões inquietas o sopro da luta
Precipita-nos no horror da avalancha suprema.
Dá ao homem que sofre a paz da guerra
Dá à terra cadáveres heroicos
Dá sangue quente ao chão!
Senhor! Tu que criaste a humanidade.
Dize-lhe que o sacrifício será a redenção do mundo
E que os fracos hão de perecer nas mãos dos fortes.
Dá-lhe a morte no campo de batalha
Dá-lhe as grandes avançadas furiosas
Dá-lhe a guerra, Senhor!
FUGINDO AO CATIVEIRO
Vicente de Carvalho
Horas mortas. Inverno. Em plena mata. Em plena
Serra do Mar.
Em cima, ao longe, alta e serena,
A ampla curva do céu das noites de geada:
Como a palpitação vagamente azulada
De uma poeira de estrelas...
Negra, imensa, disforme,
Enegrecendo a noite, a desdobrar-se pelas
Amplidões do horizonte, a cordilheira dorme.
Como um sonho febril no seu sono ofegante,
Na sombra em confusão do mato farfalhante,
Tumultuando, o chão corre às soltas, sem rumo;
Trepa agora alcantis por escarpas a prumo,
Eriça-se em calhaus, bruscos como arrepios;
Mais repousado, além levemente se enruga
Na crespa ondulação de cômoros macios:
Resvala num declive; e logo, como em fuga
Precípite, através da escuridão noturna,
Despenha-se de chôfre ao vácuo de uma furna.
Do fundo dos grotões outra vez se subleva,
Surge, recai, ressurge... E, assim, como em torrente
Furiosa, em convulsões, vai rolando na treva
Despedaçadamente e indefinidamente...
Muge na sombra a voz rouca das cachoeiras.
Rajadas sorrateiras
De um vento preguiçoso arfam de quando em quando
Como um vasto motim que passa sussurrando:
E em cada árvore altiva, e em cada humilde arbusto,
Há contorções de raiva ou frêmitos de susto.
A mata é tropical: basta, quase maciça
De tão cerrada. Ao pé do tronco dominante,
Que, imperturbavelmente imóvel, inteiriça
Sob a rija galhada o torso de gigante.
- Uma vegetação turbulenta e bravia
Rasteja, alastra, fura, enrosca-se, porfia:
Moitas de craguatás agressivos; rasteiras
Trapoeirabas tramando o chão todo; touceiras
De brejaúva,em riste as flechas oriçadas
De espinhos; e por tudo, e em tudo emaranhadas,
As trepadeiras, em redouças balouçando
Hastes vergadas, galho a galho acorrentando
Árvores, afogando arbustos, brutalmente
Enlaçando à jissara o talhe adolescente. . .
Cem espécies formando a trama de uma sebe,
Atulhando o desvão de dois troncos; a plebe
Da floresta, oprimida e em perpétuo levante.
Acesa num furor de seiva transbordante,
Toda essa multidão desgrenhada - fundida
Como a conflagração de cem tribos selvagens
Em batalha - a agitar cem formas de folhagens
Disputa-se o ar, o chão, o orvalho, o espaço, a vida.
Na confusão da noite, a confusão do mato
Gera alucinações de um pavor insensato,
Aguça o ouvido ansioso e a visão quase extinta:
Lembra - e talvez abafe - urros de onça faminta
A mal ouvida voz da trêmula cascata
Que salta e foge e vai rolando águas de prata.
Rugem sinistramente as moitas sussurrantes.
Acoitam-se traições de abismo numa alfombra.
Penedos traçam no ar figuras de gigantes.
Cada ruído ameaça, e cada vulto assombra.
Uns tardos caminhantes
Sinistros, meio nus, esboçados na sombra,
Passam, como visões vagas de um pesadelo. . .
São cativos fugindo ao cativeiro. O bando
É numeroso. Vêm de longe, no atropelo
Da fuga perseguida e cansada. Hesitando,
Em recuos de susto e avançadas afoitas,
Rompendo o mato e a noite, investindo as ladeiras,
Improvisam o rumo ao acaso das moitas.
Vão arrastando os pés chaga dos de frieiras...
De furna em furna a Serra, imensa, se desdobra,
De sombra em sombra a noite, infinda, se prolonga;
E flexuosa, em vaivéns, como de dobra em dobra,
A longa fila ondula e serpenteia, e a longa
Marcha através da noite e das furnas avança. . .
Vão andrajosos, vão famintos, vão morrendo.
Incita-os o terror, alenta-os a esperança:
Fica-lhes para trás, para longe, o tremendo
Cativeiro... E através desses grotões por onde
Se arrastam, do sertão que os esmaga e os esconde.
Da vasta escuridão que os cega e que os ampara,
Do mato que obsta e apaga os seus passos furtivos,
Seguem, almas de hebreus, rumo do Jabaquara
- A Canaã dos cativos.
Vão calados, poupando o fôlego. De quando
Em quando - fio d'água humilde murmurando
As tristezas de um lago imenso - algum gemido,
Um grito de mulher, um choro de criança,
Conta uma nova dor em peito já dorido,
Um bruxoleio mais mortiço da esperança,
A rajada mais fria arrepiando a floresta
E a pele nua; o espinho entrando a carne; a aresta
De um seixo apunhalando o pé já todo em sangue:
Uma exacerbação nova da fome velha,
A tortura da marcha imposta ao corpo exangue;
O joelho exausto que, contra a vontade, ajoelha...
E a longa fila segue: a passo, vagarosa,
Galga de fraga em fraga a montanha fragosa,
Bem mais fragosa, bem mais alta que o Calvário...
Um, tropeçando, arrima o pai octogenário:
Os mais valentes dão apoio aos mais franzinos;
E Mães, a agonizar de fome e de cansaço,
Levam com o coração mais do que com o braço
Os filhos pequeninos.
II
Ei-lo, por fim, o termo desejado
Da subida: a montanha avulta e cresce
De um vale escuro ao céu todo estrelado;
E o seu cume de súbito aparece
De um resplendor de estrelas aureolado.
Mas ai! Tão longe ainda! . .. E de permeio
A vastidão da sombra sem caminhos,
Um fundo vale, tenebroso e feio,
E o mato, o mato das barrocas, cheio
De fantasmas, de estrépitos, de espinhos.
Tão longe ainda!...E os peitos arquejantes,
E as fôrças e a coragem sucumbindo...
Estacando, aterrados, por instantes
Pensam que a morte hão de encontrar bem antes
Do termo desse itinerário infindo...
Tiritando, a chorar, uma criança
Diz com voz débil: "Mãe, faz tanto frio! . . ."
E a mãe os olhos desvairados lança
Em torno, e vê apenas o sombrio
Manto de folhas que o tufão balança...
"Mãe, tenho fome!" a criancinha geme,
E ela, dos trapos arrancando o seio,
Põe-lho na boca ansiosa, aperta e espreme...
Árido e seco!...E do caminho em meio
Ela, aterrada e muda, estaca e treme.
Vai-lhe morrer, morrer nos próprios braços,
Morrer de fome, o filho bem-querido;
E ela, arrastando para longe os passos,
O amado corpo deixará, perdido
Para os seus beijos, para os seus abraços...
Esse cadáver pequenino, e o riso
Murcho no lábio, e os olhos apagados,
Toda essa vida morta de improviso,
Hão de ficar no chão, abandonados
À inclemência dos sóis e do granizo;
Esse entezinho débil e medroso,
Que ao mais leve rumor se assusta e busca
O asilo do seu seio carinhoso,
Há de ficar sozinho; e, em tôrno, a brusca
Voz do vento ululante e cavernoso. . .
E, em tôrno, a vasta noite solitária
Cheia de sombra, cheia de pavores,
Onde passa a visão errante e vária
Dos lobisomens ameaçadores
Em desfilada solta e tumultuária...
Desde a cabeça aos pés, tôda estremece;
Falta-lhe a fôrça, a vista se lhe turva,
Tôda a coragem na alma lhe esmorece,
E, afastando-se, ao longe, numa curva
O bando esgueira-se, e desaparece...
Ficam sós, ela e o filho, agonizando,
Ele a morrer de fome, ela de medo.
Ulula o furacão de quando em quando,
E sacudindo os ramos e o folhedo
Movem-se as árvores gesticulando.
Ela ergue os olhos para o céu distante
E pede ao céu que descortine a aurora:
Dorme embuçado em sombras o levante,
Mal bruxuleia pela noite fora
Das estrelas o brilho palpitante...
Tenta erguer-se, e recaí; soluça e brada,
E apenas o eco lhe responde ao grito;
Os olhos fecha para não ver nada,
E tudo vê com o coração aflito,
E tudo vê com a alma alucinada.
Dentro se lhe revolta a carne; explode
O instinto bruto, e quebra-lhe a vontade:
Mães, vosso grande amor, que tanto pode,
Pode menos que a indômita ansiedade
Em que o terror os músculos sacode!
Ela, apertando o filho estreitamente,
Beija-lhe os olhos úmidos, a boca...
E desvairada, em pranto, ébria e tremente,
Arrancando-o do seio, de repente
Larga-o no chão e foge como louca.
III
Aponta a madrugada:
Da turva noite esgarça o úmido véu,
E espraia-se risonha, alvoroçada,
Rosando os morros e dourando o céu.
A caravana trôpega e ansiosa
Chega ao tope da Serra...
O olhar dos fugitivos
Descansa enfim na terra milagrosa
Na abençoada terra
Onde não há cativos.
Em baixo da montanha, logo adiante,
Quase a seus pés, uma planície imensa,
Clara, risonha, aberta, verdejante:
E ao fundo do horizonte, ao fim da extensa
Macia várzea que se lhes depara
Ali, próxima, em frente,
Esfumadas na luz do sol nascente,
As colinas azuis do Jabaquara...
O dia de ser livre, tão sonhado
Lá do fundo do escuro cativeiro,
Amanhece por fim, leve e dourado,
Enchendo o céu inteiro.
Uma explosão de júbilo rebenta
Desses peitos que arquejam, dessas bocas
Famintas, dessa turba macilenta:
Um borborinho de palavras loucas,
De frases soltas que ninguém escuta
Na vasta solidão se ergue e se espalha,
E em pleno seio da floresta bruta
Canta vitória a meio da batalha.
Seguindo a turba gárrula e travessa
Que se alvoroça e canta e salta e ri-se,
Um coitado, com a trêmula cabeça
Toda a alvejar das neves da velhice,
Tardo, trôpego, só, desamparado,
Chega afinal, exsurge à superfície
Do alto cimo; repousa, consolado,
Longamente, nos longes da planície
O olhar quase apagado;
Distingue-a mal, duvida; resmungando,
Fita-a; compreende-a pouco a pouco; vê-a
Anunciando próxima, esboçando
- No chão que brilha de um fulgor de areia,
Num verde-claro de ervaçal que ondeia-
A aparição da Terra Prometida...
Todo trêmulo, ajoelha; e ajoelhado,
De mãos postas, nos olhos a alma e a vida,
Ele, o mesquinho e o bem-aventurado,
Adora o Céu nessa visão terrena...
E de mãos postas sempre, extasiado,
Murmura, reza esta oração serena
Como um tôsco resumo do Evangelho:
"Foi Deus Nosso Senhor que teve pena
De um pobre negro velho..."
Seguem. Começa a íngreme descida.
Descem. E recomeça
A peregrinação entontecida
No labirinto da floresta espêssa.
Sob o orvalho das fôlhas gotejantes,
Entre as moitas cerradas de espinheiros,
Andrajosos, famintos, triunfantes,
Descem barrancos e despenhadeiros.
Descem rindo, a cantar... Seguem, felizes,
Sem reparar que os pés lhes vão sangrando
Pelos espinhos e pelas raízes;
Sem reparar que atrás, pelo caminho
Por onde fogem como alegre bando
De passarinhos da gaiola escapo
- Fica um pouco de trapo em cada espinho
E uma gôta de sangue em cada trapo.
Descem rindo e cantando, em vozeria
E em confusão. Tôda a floresta, cheia
Do murmúrio das fontes, da alegria
Deles, da voz dos pássaros, gorjeia.
Tudo é festa. Severos e calados,
Os velhos troncos, plácidos ermitas,
Os próprios troncos velhos, remoçados,
Riem no riso em flor das parasitas.
Varando acaso às árvores a sombra
Da folhagem que à brisa arfa e revoa,
Na verde ondulação da úmida alfombra
O ouro leve do sol bubuia à toa;
A água das cachoeiras, clara e pura,
Salta de pedra em pedra, aos solavancos;
E a flor de S. João se dependura
Festivamente à beira dos barrancos...
Vão alegres, ruidosos... Mas no meio
Dessa alegria palpitante e louca,
Que transborda do seio
E transbordada canta e ri na bôca,
Uma mulher, absorta, acabrunhada,
Segue parando a cada passo, e a cada
Instante os olhos para trás volvendo:
De além, do fundo dessas selvas brutas
Chama-a, seu nome em lágrimas gemendo,
Uma vozinha ansiosa e suplicante...
Mãe, onde geme que tão bem o escutas
Teu filho agonizante?
IV
De repente, como um agouro e uma ameaça,
Um alarido de vozes estranhas passa
Na rajada do vento...
Estacam.
Como um bando
De ariscos caitetus farejando a matilha,
Imóveis, alongado o pescoço, arquejando,
Presa a respiração, o olhar em fogo, em rilha
Os dentes, dilatada a narina, cheirando
A aragem, escutando o silêncio, espreitando
A solidão; assim, num alarma instintivo,
Estaca e põe-se alerta o bando fugitivo.
Nova rajada vem, nôvo alarido passa...
Como, topando o rastro inda fresco da caça,
Uiva a matilha enquanto inquire o chão agreste,
E de repente, em fúria, alvoçada investe
E vai correndo e vai latindo de mistura;
Rosna ao dar-lhes na pista a escolta que os procura,
E morro abaixo vem ladrando-lhes no encalço.
Grita e avança em triunfo a soldadesca ufana.
E os frangalhos ao vento, em sangue o pé descalço,
Alcatéia usurpando a forma e a face humana,
Almas em desespero arfando em corpos gastos,
Mães aflitas levando os filhinhos de rastos,
Homens com o duro rosto em lágrimas, velhinhos
Esfarrapando as mãos a tatear nos espinhos;
Tôda essa aluvião de caça perseguida
Por um clamor de fúria e um tropel de batida,
Foge... Rompendo o mato e rolando a montanha,
Foge... E, moitas, a dentro e barrocais a fora,
Arrasta-se, tropeça, esbarra, se emaranha,
Arqueja, hesita, afrouxa, e desanima, e chora...
Param.
Perto, bramindo, a escolta o passo estuga.
Os fugitivos, nesse aproximar da escolta
Sentem que vai chegando o epílogo da fuga:
A gargalheira, a algema, as angústias da volta...
Além, fulge na luz da manhã leve e clara,
O contôrno ondulante e azul do Jabaquara.
Adeus, terra bendita! Adeus, sonho apagado
De ser livre! É preciso acordar, e acordado
Ver-te ainda, e dizer-te um adeus derradeiro,
E voltar, para longe e para o cativeiro.
Sôbre eles, novamente, uma funéria noite
Cai, para sempre...
Como a trôpega boiada,
Que, abrasada de sede e tangida do açoite,
Se arrasta pela areia adusta de uma estrada:
Volverão a arrastar-se, humildes e tristonhos,
Tangidos do azorrague e abrasados de sonhos,
Pelo deserto areal desse caminho estreito:
A vida partilhada entre a senzala e o eito...
Agrupam-se, vencidos,
A tremer, escutando o tropel e os rugidos
Da escolta cada vez mais em fúria e mais perto.
Nesse magote vil de negros maltrapilhos
Mais de um olhar, fitando o vasto céu deserto,
Ingenuamente exprobra o Pai que enjeita os filhos...
Destaca-se do grupo um fugitivo. Lança
Em tôrno um longo olhar tranqüilo, de esperança,
E diz aos companheiros:
"Fugi, correi, saltai pelos despenhadeiros;
A várzea está lá em baixo, o Jabaquara é perto...
Deixai-me aqui sozinho.
Eu vou morrer, decerto...
Vou morrer combatendo e trancando o caminho.
A morte assim me agrada:
Eu tinha de voltar p´ra conservar-me vivo...
E é melhor acabar na ponta de uma espada
Do que viver cativo".
E enquanto a caravana
Desanda pelo morro atropeladamente,
Ele, torvo, figura humilde e soberana,
Fica, e a pé firme espera o inimigo iminente.
Hércules negro! Corre, abrasa-lhe nas veias
Sangue de algum heróico africano selvagem,
Acostumado à guerra, a devastar aldeias,
A cantar e a sorrir no meio da carnagem
A desprezar a morte espalhando-a às mãos cheias...
Não pode a escravidão domar-lhe a índole forte,
E vergar-lhe a altivez, e ajoelhá-lo diante
Do carrasco e da algema:
Sorri para o suplício e a fito encara a morte
Sem que lhe o braço trema,
Sem que lhe ensombre o olhar o medo suplicante.
Erguendo o braço, ele ergue a foice: a foice volta,
E rola sobre a terra uma cabeça solta.
Sobre ele vem cruzar-se o gume das espadas...
"Ah, prendê-lo, jamais!" respondem as foiçadas
Turbilhonando no ar, e ferindo, e matando.
De lado a lado o sangue espirra a jorros... Ele,
Ágil, possante, ousado, heróico, formidando,
Faz frente: um contra dez, defende-se e repele.
E não se entrega, e não recua, e não fraqueja.
Tudo nele, alma e corpo ajustados, peleja:
O braço luta, o olhar ameaça e desafia,
A coragem resiste, a agilidade vence.
E, coriscando no ar, a foice rodopia.
Afinal um soldado, ébrio de covardia,
Recua; vai fugir... Recua mais; detém-se:
Fora da luta, sente o gosto da chacina;
E vagarosamente alçando a carabina,
Visa, desfecha.
O negro abrira um passo à frente,
Erguera a foice, armava um golpe...
De repente
Estremece-lhe todo o corpo fulminado.
Cai-lhe das mãos a foice, inerte, para um lado,
Pende-lhe, inerte, o braço. Impotente, indefeso
Ilumina-lhe ainda a face decomposta
Um derradeiro olhar de afronta e de desprezo.
Como enxame em furor de vespas assanhadas,
Assanham-se-lhe em cima os golpes sem resposta,
E retalham-no à solta os gumes das espadas...
E retalhado, exausto, o lutador vencido
Todo flameja em sangue e expira num rugido.
AOS HERÓIS DO FUTEBOL BRASILEIRO
Gilka Machado
Eu vos saúdo
heróis do dia
que vos fizestes compreender
numa linguagem muda,
escrevendo com os pés
magnéticos e alados
uma epopéia internacional!
As almas dos brasileiros
distantes
vencem os espaços,
misturam-se com as vossas,
caminham nos vossos passos
para o arremesso da pelota
para o chute decisivo
da glória da Pátria.
Que obra de arte ou de ciência,
de sentimento ou de imaginação
teve a penetração
dos gols de Leônidas
que, transpondo balizas
e antipatias,
souberam se insinuar
no coração
do Mundo!
Que obra de arte ou de ciência
conteve a idéia e a emotividade
de vossos improvisos
em vôos e saltos,
ó bailarinos espontâneos
ó poetas repentistas
que sorrindo oferecestes vosso sangue
à sede de glória
de um povo
novo?
Ha milhões de pensamentos
impulsionando vossos movimentos.
Na esportiva expressão
que qualquer raça entende
longe de nossa decantada natureza
os Leônidas e os Domingos
fixaram na retina do estrangeiro
a milagrosa realidade
que é o homem do Brasil.
Eia
atletas franzinos
gigantes débeis
que com astúcia e audácia,
tenacidade e energia
transfigurai-vos,
traçando aos olhos surpresos
da Europa
um debuxo maravilhoso
do nosso desconhecido país.
Publicado no livro Sublimação (1938).
GELEIA GERAL
Torquato Neto
Um poeta desfolha a bandeira e a manhã tropical se inicia
Resplandente, cadente, fagueira num calor girassol com alegria
Na geléia geral brasileira que o Jornal do Brasil anuncia
Ê, bumba-yê-yê-boi ano que vem, mês que foi
Ê, bumba-yê-yê-yê é a mesma dança, meu boi
A alegria é a prova dos nove e a tristeza é teu porto seguro
Minha terra é onde o sol é mais limpo e Mangueira é onde o samba é mais puro
Tumbadora na selva-selvagem, Pindorama, país do futuro
Ê, bumba-yê-yê-boi ano que vem, mês que foi
Ê, bumba-yê-yê-yê é a mesma dança, meu boi
É a mesma dança na sala, no Canecão, na TV
E quem não dança não fala, assiste a tudo e se cala
Não vê no meio da sala as relíquias do Brasil:
Doce mulata malvada, um LP de Sinatra, maracujá, mês de abril
Santo barroco baiano, superpoder de paisano, formiplac e céu de anil
Três destaques da Portela, carne-seca na janela, alguém que chora por mim
Um carnaval de verdade, hospitaleira amizade, brutalidade jardim
Ê, bumba-yê-yê-boi ano que vem, mês que foi
Ê, bumba-yê-yê-yê é a mesma dança, meu boi
Plurialva, contente e brejeira miss linda Brasil diz "bom dia"
E outra moça também, Carolina, da janela examina a folia
Salve o lindo pendão dos seus olhos e a saúde que o olhar irradia
Ê, bumba-yê-yê-boi ano que vem, mês que foi
Ê, bumba-yê-yê-yê é a mesma dança, meu boi
Um poeta desfolha a bandeira e eu me sinto melhor colorido
Pego um jato, viajo, arrebento com o roteiro do sexto sentido
Voz do morro, pilão de concreto tropicália, bananas ao vento
Ê, bumba-yê-yê-boi ano que vem, mês que foi
Ê, bumba-yê-yê-yê é a mesma dança, meu boi
O SER E O VER
Ricardo Lima
O ver é o ser!
O ser? Sou eu.
Interno e evidente.
O ser é o ver!
Ver o que está dentro, é ser!
Então, o ser é o ver.
CANÇÃO DE TODOS
Raul de Leôni
Duas almas deves ter...
É um conselho dos mais sábios;
Uma, no fundo do Ser,
Outra, boiando nos lábios!
Uma, para os circunstantes,
Solta nas palavras nuas
Que inutilmente proferes,
Entre sorrisos e acenos:
A alma volúvel da ruas,
Que a gente mostra aos passantes,
Larga nas mãos das mulheres,
Agita nos torvelinhos,
Distribui pelos caminhos
E gasta sem mais nem menos,
Nas estradas erradias,
Pelas horas, pelos dias...
Alma anônima e usual,
Longe do Bem e do Mal,
Que não é má nem é boa,
Mas, simplesmente, ilusória,
Ágil, sutil, diluída,
Moeda falsa da Vida,
Que vale só porque soa,
Que compra os homens e a glória
E a vaidade que reboa
Alma que se enche e transborda,
Que não tem porquê nem quando,
Que não pensa e não recorda,
Não ama, não crê, não sente,
Mas vai vivendo e passando
No turbilhão da torrente,
Través intrincadas teias,
Sem prazeres e sem mágoas.
Fugitiva como as águas,
Ingrata como as areias.
Alma que passa entre apodos
Ou entre abraços, sorrindo,
Que vem e vai, vai e vem,
Que tu emprestas a todos,
Mas não pertence a ninguém.
Salamandra furta-cor,
Que muda ao menor rumor
Das folhas pelas devesas;
Alma que nunca se exprime,
Que é uma caixa de surpresas
Nas mãos dos homens prudentes;
Alma que é talvez um crime,
Mas que é uma grande defesa.
A outra alma, pérola rara,
Dentro da concha tranqüila,
Profunda, eterna e tão cara
Que poucos podem possuí-la,
É alma que nas entranhas
Da tua vida murmura
Quando paras e repousas.
A que assiste das Montanhas
As livres desenvolturas
Do panorama das cousas
Para melhor conhecê-las
E jamais comprometê-las,
Entre perdões e doçuras,
Num pudor silencioso,
Com o mesmo olhar generoso,
Com que contempla as estrelas
E assiste o sonho das flores...
Alma que é apenas tua,
Que não te trai nem te engana,
Que nunca se desvirtua,
Que é voz do mundo em surdina.
Que é a semente divina
Da tua têmpera humana,
Alma que só se descobre
Para uma lágrima nobre,
Para um heroísmo afetivo,
Nas íntimas confidências
De verdade e de beleza:
Milagre da natureza
Transcorrendo em reticências
Num sonho límpido e honesto,
De idealidade suprema,
Ora, aflorando num gesto,
Ora, subindo num poema.
Fonte do Sonho, jazida
Que se esconde aos garimpeiros,
Guardando, em fundos esteiros,
O ouro da tua Vida.
Alma de santo e pastor,
De herói, de mártir e de homem;
A redenção interior
Das forças que te consomem,
A legenda e o pedestal
Que se aprofunda e se agita
Da aspiração infinita
No teu ser universal.
Alma profunda e sombria,
Que ao fechar-se cada dia,
Sob o silêncio fecundo
Das horas graves e calmas,
Te ensina a filosofia
Que descobriu pelo mundo,
Que aprendeu nas outras almas
Duas almas tão diversas
Como o poente das auroras:
Uma, que passa nas horas;
Outra, que fica no tempo.
O TEMPO
Paulo Mendes Campos
Só no passado a solidão é inexplicável.
Tufo de plantas misteriosas o presente
Mas o passado é como a noite escura
Sôbre o mar escuro
Embora irreal o abutre
É incômodo meu sonho de ser real
Ou somos nós aparições fantasiosas
E forte e verdadeiro o abutre do rochedo
Os que se lembram trazem no rosto
A melancolia do defunto
Ontem o mundo existe
O agora é a hora da nossa morte
DESILUSÃO
Patativa do Assaré
Como a folha no vento pelo espaço
Eu sinto o coração aqui no peito,
De ilusão e de sonho já desfeito,
A bater e a pulsar com embaraço.
Se é de dia, vou indo passo a passo
Se é de noite, me estendo sobre o leito,
Para o mal incurável não há jeito,
É sem cura que eu vejo o meu fracasso.
Do parnaso não vejo o belo monte,
Minha estrela brilhante no horizonte
Me negou o seu raio de esperança,
Tudo triste em meu ser se manifesta,
Nesta vida cansada só me resta
As saudades do tempo de criança.
A MANIA DO ANTIQUÁRIO
Olegário Mariano
Gosta de trastes velhos o antiquário.
Tem um museu em. casa. A vida toda
Ficou sendo o feliz depositário
De tudo aquilo que passou de moda.
Enquanto gira o tempo e a vida roda,
Ele, a quem chamam de retardatário,
Vê na mania que a outros incomoda
A alegria de um gozo extraordinário.
Casou-se. Foi seu ultimo castigo.
Apezar da mulher ser bem bonita,
Ele contou sorrindo a certo amigo
O fim da derradeira transação:
—Procurei uma viuva... Era da escrita:
Gosto dos moveis de segunda mão...
AS VELHAS ÁRVORES
Olavo Bilac
Olha estas velhas árvores, — mais belas,
Do que as árvores mais moças, mais amigas,
Tanto mais belas quanto mais antigas,
Vencedoras da idade e das procelas . . .
O homem, a fera e o inseto à sombra delas
Vivem livres de fomes e fadigas;
E em seus galhos abrigam-se as cantigas
E alegria das aves tagarelas . . .
Não choremos jamais a mocidade!
Envelheçamos rindo! envelheçamos
Como as árvores fortes envelhecem,
Na glória da alegria e da bondade
Agasalhando os pássaros nos ramos,
Dando sombra e consolo aos que padecem!
NOITE
Menotti Del Picchia
As casas fecham as pálpebras das janelas e dormem.
Todos os rumores são postos em surdina,
todas as luzes se apagam.
Há um grande aparato de câmara funerária
na paisagem do mundo.
Os homens ficam rígidos,
tomam a posição horizontal
e ensaiam o próprio cadáver.
Cada leito é a maquete de um túmulo.
Cada sono em ensaio de morte.
No cemitério da treva
tudo morre provisoriamente.
VERSOS DIFÍCEIS
Medeiros e Albuquerque
Faço e desfaço... A Ideia mal domada
o cárcere da Forma foge e evita.
Breve, na folha tanta vez riscada
palavra alguma caberá escrita...
E terás tu, ó minha doce amada,
o decisivo nome da bendita
companheira formosa e delicada
a quem minh’alma tanto busca, aflita?
Não sei... Há muito a febre me consome
de achar a Forma e conhecer o nome
da que a meus dias reservou o fado.
E hei de ver, quando saiba, triunfante,
o verso bom, a verdadeira amante,
- a folha: cheia, - o coração: cansado!
ENVELHECER
Mário Quintana
Antes, todos os caminhos iam.
Agora todos os caminhos vêm.
A casa é acolhedora, os livros poucos.
E eu mesmo preparo o chá para os fantasmas.
Maria Firmina dos Reis
CÂNTICO DOS CÂNTICOS
Manuel Bandeira
– Quem me busca a esta hora tardia?
– Alguém que trenas de desejo.
– Sou teu vale, zéfiro, e aguardo
Teu hálito... A noite é tão fria!
– Meu hálito não, meu bafejo,
Meu calor, meu túrgido dardo.
– Quando por mais assegurada
Contra os golpes de Amor me tinha,
Eis que irrompes por mim deiscente...
– Cântico! Púrpura! Alvorada!
– Eis que me entras profundamente
Como um deus em sua morada!
– Como a espada em sua bainha.
MANOEL DE BARROS
Mansidão
As casas dormiam na hora surda do meio-dia.
O corpo do homem penetrou sob árvores
Na longa quietude estendida da rua.
Tudo permaneceu sem um grito,
Um pedido de socorro sequer.
Ninguém soube se o coração vibrou.
Que sonho o acalenta ninguém adivinhou.
Ninguém sabe nada.
Não traz um lamento,
Nem marca dos pés no chão vai ficar.
Tão triste é a vida sem marca dos pés!
Tudo permaneceu sem um grito,
Um pedido de socorro sequer.
Ele passou sem calúnias
E é possível que sem corpos que o chamassem.
Ninguém soube se o coração vibrou
Porque tudo permaneceu sem fundo suspiro
No estranho momento das coisas paradas.