Almanaque Raimundo Floriano
Fundado em 24.09.2016
(Cultural, sem fins comerciais, lucrativos ou financeiros)


Raimundo Floriano de Albuquerque e Silva, Editor deste Almanaque, também conhecido como Velho Fulô, Palhaço Seu Mundinho e Mundico Trazendowski, nascido em Balsas , Maranhão, a 3 de julho de 1936, Católico Apostólico Romano, Contador, Oficial da Reserva do Exército Brasileiro, Funcionário Público aposentado da Câmara dos Deputados, Titular da Cadeira nº 10 da Academia Passa Disco da Música Nordestina, cuja patrona é a cantora Elba Ramalho, Mestre e Fundador da Banda da Capital Federal, Pesquisador da MPB, especializado em Velha Guarda, Música Militar, Carnaval e Forró, Cardeal Fundador da Igreja Sertaneja, Pioneiro de Brasília, Xerife nos Mares do Caribe, Cordelista e Glosador, Amigo do Rio das Balsas, Inventor da Descida de Boia, em julho de 1952, Amigo da Fanfarra do 1° RCG, autor dos livros O Acordo PDS/PTB, coletânea de charges, Sinais de Revisão e Regras de Pontuação, normativo, Do Jumento ao Parlamento, com episódios da vida real, De Balsas para o Mundo, centrado na navegação fluvial Balsas/Oceano Atlântico, Pétalas do Rosa, saga da Família Albuquerque e Silva, Memorial Balsense, dedicado à história de sua terra natal, e Caindo na Gandaia, humorístico apimentado, é casado, tem quatro filhos, uma nora, dois genros e dois netos e reside em Brasília, Distrito Federal, desde dezembro de 1960.

Poemas e Poesias quarta, 27 de julho de 2022

AINDA NÃO É O FIM (POEMA DO AMAZONENSE THIAGO DE MELLO)

AINDA NÃO É O FIM

Thiago de Mello

 

 

 

Escondo o medo e avanço. Devagar.
Ainda não é o fim. É bom andar,
mesmo de pernas bambas. Entre os álamos,
no vento anoitecido, ouço de novo
(com os mesmos ouvidos que escutaram
“Mata aqui mesmo?”) um riso de menina.
Estou quase canção, não vou morrer
agora, de mim mesmo, mal livrado
de recente e total morte de fogo.
A vida me reclama: a moça nua
me chama da janela, e nunca mais
e lembrarei sequer dos olhos dela.
Posso seguir andando como um homem
entre rosas e pombos e cabelos
que em prazo certo me devolverão
ao sonho que me queima o coração.
Muito perdi, mas amo o que sobrou.
Alguma dor, pungindo cristalina,
alguma estrela, um rosto de campina.
Com o que sobrou, avanço, devagar.
Se avançar é saber, lâmina ardendo
na flor do cerebelo, porque foi
que a alegria, a alegria começando
a se abrir, de repente teve fim.
Mas que avançar no chão ferido seja
também saber o que fazer de mim.


Poemas e Poesias terça, 26 de julho de 2022

CANTO TERCEIRO - O GUESA (POEMA DO MARANHENSE SOUSÂNDRADE)

CANTO TERCEIRO - O GUESA

Sousândrade

 

 

 

As balseiras na luz resplandeciam —
oh! que formoso dia de verão!
Dragão dos mares, — na asa lhe rugiam
Vagas, no bojo indômito vulcão!
Sombrio, no convés, o Guesa errante
De um para outro lado passeava
Mudo, inquieto, rápido, inconstante,
E em desalinho o manto que trajava.
A fronte mais que nunca aflita, branca
E pálida, os cabelos em desordem,
Qual o que sonhos alta noite espanca,
"Acordem, olhos meus, dizia, acordem!"
E de través, espavorido olhando
Com olhos chamejantes da loucura,
Propendia pra as bordas, se alegrando
Ante a espuma que rindo-se murmura:
Sorrindo, qual quem da onda cristalina
Pressentia surgirem louras filhas;
Fitando olhos no sol, que já sinclina,
E rindo, rindo ao perpassar das ilhas.
— Está ele assombrado?... Porém, certo
Dentro lhe idéia vária tumultua:
Fala de aparições que há no deserto,
Sobre as lagoas ao clarão da lua.

Imagens do ar, suaves, flutuantes,
Ou deliradas, do alcantil sonoro,
Cria nossa alma; imagens arrogantes,
Ou qual aquela, que há de riso e choro:
Uma imagem fatal (para o ocidente,
Para os campos formosos dáureas gemas,
O sol, cingida a fronte de diademas,
índio e belo atravessa lentamente):
Estrela de carvão, astro apagado
Prende-se mal seguro, vivo e cego,
Na abóbada dos céus, — negro morcego
Estende as asas no ar equilibrado.


Poemas e Poesias segunda, 25 de julho de 2022

ESTRELA (POEMA DO BAIANO RICARDO LIMA)

ESTRELA

Ricardo Lima

 

 

 

A estrela que brilha, forte e incandescente;

O desejo, brilha,

A busca cessa,

A realização acontece.


Poemas e Poesias domingo, 24 de julho de 2022

DE UM FANTASMA (POEMA DO FLUMINENSE RAUL DE LEÔNI)

DE UM FANTASMA

Raul de Leôni

 

 

 

Na minha vida fluida de fantasma
Sou tão leve que quase nem me sinto.
Nem há nada mais leve nem tão leve.
Sou mais leve do que a euforia de um anjo,
Mais leve do que a sombra de uma sombra
Refletida no espelho da Ilusão.

Nenhuma brutal lei do Universo sensível
Atua e pesa e nem de longe influi
Sobre o meu ser vago, difuso, esquivo
E no éter sereníssimo flutuo
Com a doce sutileza imponderável
De uma essência ideal que se volatiza...

Passo através das cousas mais sensíveis
E as cousas que atravesso nem se sentem,
Porque na minha plástica sutil
Tenho a delicadeza transcendente
Da luz, que flui través os corpos transparentes.
Sou quase imaterial como uma idéia...

E da matéria cósmica que tem
Tantos e variadíssimos estados
Eu sou o estado-alma, quer dizer
O último estado rarefeito, o estado ideal:
Alma, o estado divino da matéria!...


Poemas e Poesias sábado, 23 de julho de 2022

SONETO A QUATRO MÃOS (POEMA DO MINEIRO PAULO MENDES CAMPOS E OUTROS)

SONETO A QUATRO MÃOS

Paulo Mendes Campos

 

 

Tudo de amor que existe em mim foi dado. 
Tudo que fala em mim de amor foi dito. 
Do nada em mim o amor fez o infinito 
Que por muito tornou-me escravizado. 

Tão pródigo de amor fiquei coitado 
Tão fácil para amar fiquei proscrito. 
Cada voto que fiz ergueu-se em grito 
Contra o meu próprio dar demasiado. 

Tenho dado de amor mais que coubesse 
Nesse meu pobre coração humano 
Desse eterno amor meu antes não desse. 

Pois se por tanto dar me fiz engano 
Melhor fora que desse e recebesse 
Para viver da vida o amor sem dano.

 

 

 


Poemas e Poesias sexta, 22 de julho de 2022

MINHA SODADE (POEMA DO CEARENSE PATATIVA DO ASSARÉ)

MINHA SODADE

Patativa do Assaré

 

 

 

Minha gente, minha gente
Eu sei ocultar meu pranto
Não pense que estou contente
Quando na viola canto
Pois tá pensando o contrário
Eu canto é como o canário
Preso na sua gaiola
Tô cansado de dizer
Que se viver é sofrer
Eu já passei da bitola

Se no mundo toda gente
O povo mau e o distinto
Cada um conta o que sente
Eu quero contar o que sinto
Meu sofrimento é sem fim
Eu tenho dentro de mim
Uma sodade arranchada
Tão grande, tão desmedida
Que não pode ser medida
Nem pescada, nem julgada

Sodade, esta aguda seta
Que é mãe da recordação
Sabendo que eu sou poeta
Achou que meu coração
Pra se arranchar dava jeito
E foi entrando em meu peito
Como broca em aroeira
Que vai furando, furando
Até que fica morando
No miolo da madeira

Com a mesma ingratidão
Veio a sodade sem dó
Agarrou meu coração
Se enrolou e deu um nó
E foi crescendo, crescendo
Cada vez mais se estendendo
E por dentro enraizando
Tanto ligou e apregou
Que em toda parte que eu tô
Ela tá me aperreando

No verdor da minha idade
Modi acalentar meu choro
Minha vovó de bondade
Falava em grandes tesouros
Eram estórias de reinado
Prencesa e príncipe encantado
Com feiticeira e condão
Essas estórias engraçada
Tá selada e carimbada
Dentro do meu coração

Mas, porém, eu sinto e vejo
Que a grande sodade minha
Não é só de história e beijo
Da querida vovozinha
De manhãzinha bem cedo
Sodade dos meus brinquedo
Meu bodoque e meu fornol
O meu cavalo de pau
Meu pião, meu berimbau
E a minha carça cotó

Sem esperança e sem fé
Vejo o meu mal incurávi
Eu tenho sodade até
Das coisa desagradávi
Pois mesmo aquilo que eu via
Que não me dava alegria
Não ficava satisfeito
E nem me sentia bem
Virou sodade também
E se arranchou no meu peito

Sodade quando eu deitado
Na minha pequena rede
Escutava admirado
Nos buracos da parede
O cri cri cri dos grilos
Sodade de tudo aquilo
Que para mim já morreu
Sodade até das palmada
Corcorote, chinelada
Que minha mã dava n’eu

Nesse tempo eu pissuia
Paz, inocência e saúde
Quando no inverno chovia
Eu ia brincar de açude
Nas levadas do terreiro
Todo alegre e prazenteiro

Mas aquele tempo belo
Que para mim já não torna
Fez do meu peito bigorna
E da sodade martelo
E o velho martelo horrendo
Toda noite e o dia inteiro
No meu coração batendo
Batendo como um ferreiro
Maiando num ferro quente
E assim todo deferente
Do resto da humanidade
Como um pobre vagabundo
Vou arrastando no mundo
O meu fardo de sodade

Já me achei bem rodeado
De amor, beijo e carinho
E hoje triste e abondonado
Vou seguindo meu caminho
Sem alento e sem conforto
Cansado, enjambrado e torto
Com o grande peso da idade
O meu corpo até parece
A formatura de um S
Com que se escreve sodade


Poemas e Poesias quinta, 21 de julho de 2022

ANDORINHA (POEMA DO PERNAMBUCANO OLEGÁRIO MARIANO)

ANDORINHA

Olegário Mariano

 

 

 

A frescura do céu baixou com a tarde calma,

Penetrou pouco a pouco os meus sentidos… Vejo

Em cada boca estuar a volúpia de um beijo,

Arder em cada corpo a chama do desejo

E um frêmito passar vibrando de alma em alma…

 

Voa, chilreando, louca, uma inquieta andorinha.

Cruza o céu, desce  à tona azul da água apressada,

Pousa num fio telegráfico da rua.

— Dá-me um pouco de sol! Eu que não tenho nada,

Preciso de aquecer a minh’alma na tua.

     Andorinha!  Andorinha!

Tens em meu coração tua melhor morada…

Mas és de outro e afinal bem podias ser minha!


Poemas e Poesias quarta, 20 de julho de 2022

ÚLTIMA PÁGINA (POEMA DO CARIOCA OLAVO BILAC)

ÚLTIMA PÁGINA

Olavo Bilac

 

 

 

Primavera. Um sorriso aberto em tudo. Os ramos
Numa palpitação de flores e de ninhos.
Doirava o sol de outubro a areia dos caminhos
(Lembras-te, Rosa?) e ao sol de outubro nos amamos.
Verão. (Lembras-te Dulce?) À beira-mar, sozinhos,
Tentou-nos o pecado: olhaste-me... e pecamos;
E o outono desfolhava os roseirais vizinhos,
Ó Laura, a vez primeira em que nos abraçamos...
Veio o inverno. Porém, sentada em meus joelhos,
Nua, presos aos meus os teus lábios vermelhos,
(Lembras-te, Branca?) ardia a tua carne em flor...
Carne, que queres mais? Coração, que mais queres?
Passas as estações e passam as mulheres...
E eu tenho amado tanto! e não conheço o Amor!


Poemas e Poesias terça, 19 de julho de 2022

RESSURREIÇÃO II (POEMA DO PAULISTA MENOTTI DEL PICCHIA)

RESSURREIÇÃO - II 

Menotti Del Picchia

 

 

 

 

“Ser feliz! Ser feliz estava em mim, Senhora...

Este sonho que ergui, ou poderia pôr

onde quisesse, longe até da minha dor,

em um lugar qualquer, onde a ventura mora;

 

onde, quando o buscasse, o encontrasse a toda hora

tivesse-o em minhas mãos... Mas, louco sonhador,

eu coloquei muito alto o meu sonho de amor...

Guardei-o em vosso olhar e me arrependo agora.

 

O homem foi sempre assim... Em sua ingenuidade

teme levar consigo o próprio sonho, a esmo,

e oculta-o sem saber se depois o achará...

 

E, quando vai buscar sua felicidade,

ele, que poderia encontrá-la em si mesmo,

escondeu-a também, que nem sabe onde está!”


Poemas e Poesias segunda, 18 de julho de 2022

EU QUERIA TRAZER-TE UNS VERSOS MUITO LINDOS (POEMA DO GAÚCHO MÁRIO QUINTANA)

EU QUERIA TRAZER-TE UNS VERSOS MUITO LINDOS

Mário Quintana

 

 

 

Eu queria trazer-te uns versos muito lindos

colhidos no mais íntimo de mim…

Suas palavras

seriam as mais simples do mundo,

porém não sei que luz as iluminaria

que terias de fechar teus olhos para as ouvir…

Sim! Uma luz que viria de dentro delas,

como essa que acende inesperadas cores

nas lanternas chinesas de papel!

Trago-te palavras, apenas… e que estão escritas

do lado de fora do papel… Não sei, eu nunca soube o que dizer-te

e este poema vai morrendo, ardente e puro, ao vento

da poesia…

como

uma pobre lanterna que incendiou!


Poemas e Poesias domingo, 17 de julho de 2022

SONHO OU VISÃO? (POEMA DA MARANHENSE MARIA FIRMINA DOS REIS)

SONHO OU VISÃO?
Maria Firmina dos Reis

 

 

 

Tu vens rebuçado

Nas sombras da noite

Sentar-te em meu leito;

Eu sinto teus lábios

Roçar minhas faces

Roçar no meu peito.

Não sei bem se durmo,

Se velo ─ se é sonho,

Se é grato visão:

Só sei que arroubada

Deleita a minh’alma

Tão doce ilusão.

Depois, um suspiro

Que cala mais fundo

Que prantos de dor;

Que fala mais alto

Que juras ardentes,

Que votos de amor,

Vem lento ─ pausado

Do imo do peito

Memorial de Maria Firmina dos Reis

Nos lábios ─ morrer…

Eu amo de ouvi-lo,

Pois desses suspiros

Se anima o meu ser.

Mas, ah! não me falas…

Teus lábios, teu rosto

Só tem um sorriso.

Depois vaporoso

Vai todo fugindo

Teu corpo ─ teu riso.

Então eu desperto

Do sonho ─ ou visão,

Começo a cismar;

E ainda acordada

Invoco em delírio.

[Falta o verso final desta estrofe, em todas as fontes]

Oh! Vem no meu sono

Imagem querida

Pousar no meu leito

Com lábios macios

Roçar minhas faces

Pousar no meu peito


Poemas e Poesias sábado, 16 de julho de 2022

CONSOADA (POEM ADO PERNAMBUCANO MANUEL BANDEIRA)

CONSDOADA

Manuel Bandeira

 

 

 

Quando a Indesejada das gentes chegar
(Não sei se dura ou caroável),
Talvez eu tenha medo.
Talvez sorria, ou diga:
- Alô, iniludível!
O meu dia foi bom, pode a noite descer.
(A noite com seus sortilégios.)
Encontrará lavrado o campo, a casa limpa,
A mesa posta,
Com cada coisa em seu lugar.


Poemas e Poesias quinta, 14 de julho de 2022

OS DESLIMITES DAS PALAVRAS (POEMA DO MATO-GROSSENSE MANOEL DE BARROS)

OS DESLIMITES DAS PALAVRAS

Manoel de Barros

 

 

 

Ando muito completo de vazios.
Meu órgão de morrer me predomina.
Estou sem eternidades.

Não posso mais saber quando amanheço ontem.
Está rengo de mim o amanhecer.
Ouço o tamanho oblíquo de uma folha.

Atrás do ocaso fervem os insetos.
Enfiei o que pude dentro de um grilo o meu
destino.

Essas coisas me mudam para cisco.
A minha independência tem algemas


Poemas e Poesias quarta, 13 de julho de 2022

ODE (POEMA DO PERNAMBUCANO MACIEL MONTEIRO)

ODE

Maciel Monteiro

 

 

Ao nascerdes, senhora, um astro novo

Vos inundou de luz, que inda hoje ensina,

No fogo desses vossos olhos belos

          Vossa origem divina.

 

O ar que respirastes sobre a terra,

Foi um sopro de Deus embalsamado

Entre as flores gentis que vos ornavam

          O berço abençoado.

Ao ver-vos sua igual, no empíreo os anjos

Hinos de amor cantaram nesse dia;

E o que se escuta, se falais é o eco

          Da angélica harmonia.

 

Gerada para o céu, que o céu somente

Da criação a pompa e o brilho encerra,

Das mãos do criador vos escapastes;

          Caístes cá na terra.

Um anjo vos seguiu para guardar-vos;

E, quais gêmeos, um noutro retratado,

Quem pode distinguir o anjo que guarda

          Do anjo que é guardado?

 

Só um raio do céu arde perene

Sem que o tempo lhe apague o furor santo!

Por isso os vossos dons são sempre os mesmos,

          O mesmo o vosso encanto.

 

Em vós é tudo eterno. E, se na fronte

(Tão bela sempre em tempos tão diversos)

Uma c'roa murchar-vos, é decerto

          A coroa de meus versos,

 

Dos meus versos! Ah! Não! Que inextinguível

É o incenso queimado à divindade:

E ao canto que inspirais, vós dais, senhora,

          Vossa imortalidade.


Poemas e Poesias terça, 12 de julho de 2022

NA GIRA DS GIRAFAS (POEM ADO PERNAMBUCANO LUÍS TURIBA)

NA GIRA DAS GIRAFAS

Luís Turiba

 

 

 

Como são gostosas as girafas

olham as estrelas de frente

conversam nos olhos de Deus

penteiam em plenas nuvens

os cílios de Carmem Miranda

& aquelas antenas a ligá-las

aos desfiles das savanas

são gêmeas das senegalesas

na altura na graça & beleza

as pernas mais altas da África

são retilíneas falsas magras

as curvas cheias de carne

quadris de Noami Campbell

o andar de Gisele Bündchen

são afro-pop as top models

sacodem as bundas a valer

tão nuas em seus pijamas

de listras lindas & leopardas

ouvir dizer que elas dormem

dez minutos a cada hora

também pudera, natureza mátria

com aquele pescoço quilométrico

(que um dia ainda vou beijá-lo)

um cochilo (ah!!!) faz descansá-lo.

Assim sendo ofereço-lhes

um espaço de pouca mata

não tão afro como a África

mas confortável  & afável

numa posição de vanguarda

aceitem, pois, minha pauta

um convite um cheque-mate:

Venham cumpridas girafas

(e isso não as desagravam)

dormir em minhas gravatas

O sono de quem lida em altas

nada custa, é puro charme

 


Poemas e Poesias segunda, 11 de julho de 2022

RISUM TENEATIS (POEMA DO CARIOCA LUÍS EDMUNDO) N

RISUM TENEATIS

Luís Edmndo

 

 

 

Teus olhos claros me disseram,

Como se fossem tua voz:

Ama-me... Os olhos também falam;

E quando os nossos lábios calam

O gesto e o olhar falam por nós.

 

Quando os teus dedos se encontraram

Nos dedos meus cheios de ardor,

Tua alma cálida fremia;

A tua mão nervosa e fria

Disse-me todo o teu amor.

 

Sorrias tu como uma estátua;

Lívida e cheia de emoção

Tu não falaste... a boca mente,

Tu foste minha inteiramente,

Foi meu teu virgem coração.

 

Passou no entanto aquele dia

Em que com febre e embriaguez

As nossas almas amorosas

Se uniram, trêmulas, ansiosas,

Pela primeira e última vez!

 

A boca mente... tu falaste...

Sem pressentir a minha dor...

Tu me negaste o amor ardente

Que em ti vibrava... a boca mente...

E tu mentiste, meu amor!


Poemas e Poesias domingo, 10 de julho de 2022

CULTO SECRETO (POEMA DO PORTUGUÊS JÚLIO DINIS)

CULTO SECRETO

Júlio Dinis

 

 

 

Ouve, lânguida virgem das cidades,
A paixão que me inspiraste.
Curvada, como a flor em vaso d'ouro,
Tu, bela, me encantaste.

Eu vi-te assim pendida; a estrela d'alva
Ao surgir do oriente
Não nos envia mais saudosos raios
Do seu leito fulgente.

A viração da tarde, mais amena
No bosque, não murmura;
A alva açucena, que o vergel enfeita,
Não tem a cor mais pura.

Eu vi-te, e desde então sempre em meus sonhos
Surges, e magoada
Pareces ver as vagas desta vida
Na margem debruçada

Vejo-te então ainda, e pensativa,
Os lábios entreabertos,
Murmurando em sentida linguagem
Pensamentos incertos.

Vejo-te ainda, as lágrimas ferventes
Dos olhos rebentando,
E, ao correrem nas faces, indiscretas,
Segredos revelando.

Que segredo é o teu, lânguida virgem,
Ideal dos meus amores?
Que imaginas nos sonhos dessas noites
Tão cheias de fulgores?

Que mistério procuras no ocidente
Ao desmaiar do dia?
Ou que visão esperas, quando a aurora
Com rosas se anuncia?

Que oculto sentimento reprimido
Te faz ansiar o seio?
Que íntima dor, que pensamento acerbo?
Que indefinido enleio?

Olha, se o coração te pede amores,
Virgem, não chores, canta,
Para ti é que são as flores da vida
E a luz que nos encanta.

Tu, sim, podes amar; nas sacras aras
Dessa chama inquieta,
Ateia o sacro fogo com que inflamas
O coração do poeta.

Tu sim, podes amar; mas eu... se ao ver-te
Interrogo o futuro,
Uma voz me murmura: «Adora, mártir,
Adora, e morre obscuro».


Poemas e Poesias sábado, 09 de julho de 2022

SONETO DA MANHÃ PRIMEIRA (POEMA DO MARANHENSE JOSÉ CHAGAS)

SONETO DA MANHÃ PRIMEIRA

José Chagas

 

 

 

Quero a manhã exata, a manhã viva,
pois estas luzes e estes vôos na aurora,
são só ensaios de manhãs. E agora
o que eu quero é a manhã definitiva,

a autêntica manhã pura, exclusiva,
manhã nascida de si mesma e fora
desta jubilação falsa e sonora
que só por um momento nos cativa.

Ah, a manhã da última promessa,
manhã de um novo mundo que começa,
mais acessível, mais humano e bom.

Meu Deus, seria como chegasse
a manhã do primeiro sol que nasce,
a cor primeira e do primeiro som.


Poemas e Poesias sexta, 08 de julho de 2022

POEMA DA IRMÃ (POEMA DO ALAGOANO JORGE DE LIMA)

POEMA DA IRMÃ

Jorge de Lima

 

 

Ó irmã
agora que as noites vêm cedo
e paira por tudo
uma tristeza enorme
e o silêncio é tão longo
que os cães enlouquecem nas ruas,
irmã, vem me relembrar
que crescemos juntos
quando os dias eram compridos e diferentes.
Irmã, se tu sabes signos
para mudar o tempo, vem.
Vem que eu quero fugir
para outras paragens
onde as gaivotas sejam menos inúteis
e haja um coração em cada porto;
e os pássaros do mar
tão lavados e tão alvos
e tão lentos e tão sabedores de viagens
venham esvoaçar
sobre o meu cachimbo
em que os cometas do céu se apagaram.
Irmã, nos meus ritmos
há colegas que gritam:
Daubler, Ehrenstein, Stramm, suicidas,
vagabundos, crianças,
operários, leprosos e prostitutas que
se lembram ainda de suas orações familiares.

Há não sei onde outros ares e outras serras,
outros limites, adeus irmã.
Ó que noite longa,
Ó que noite tão longa!
Que é que chora lá fora?
— A humanidade ou qualquer fonte?


Poemas e Poesias quinta, 07 de julho de 2022

O SERTANEJO FALANDO (POEMA DO PERNAMBUCANO JOÃO CABRAL DE MELO NETO)

O SERTANEJO FALANDO

João Cabral de Melo Neto

 

 

 

A fala a nível do sertanejo engana:
as palavras dele vêm, como rebuçadas
(palavras confeito, pílula), na glace
de uma entonação lisa, de adocicada.
Enquanto que sob ela, dura e endurece
o caroço de pedra, a amêndoa pétrea,
dessa árvore pedrenta (o sertanejo)
incapaz de não se expressar em pedra.

2.

Daí porque o sertanejo fala pouco:
as palavras de pedra ulceram a boca
e no idioma pedra se fala doloroso;
o natural desse idioma fala à força.
Daí também porque ele fala devagar:
tem de pegar as palavras com cuidado,
confeitá-las na língua, rebuçá-las;
pois toma tempo todo esse trabalho.


Poemas e Poesias quarta, 06 de julho de 2022

DUALIDADE (POEMA DO ACRIANO J. G. DE ARAÚJO JORGE)

DUALIDADE

J. G. de Araújo Jorge

 

 

 

 

Sei que é Amor, meu amor...porque o desejo 
o meu próprio desejo tão violento, 
dir-se-ia ter pudor, ter sentimento, 
quando estás junto a mim, quando te vejo. 

É um clarim a vibrar como um harpejo, 
misto de impulso e de deslumbramento. 
Sei que é Amor, meu amor...porque o desejo 
é desejo e ternura a um só momento. 

Beijo-te a boca, as mãos, e hei de beijar-te 
nessa dupla emoção, (violento e terno) 
em que a minha alma inteira se reparte, 

- e a perceber em meu estranho ardor, 
que há uma luta entre o efêmero e o eterno, 
entre um demônio e um anjo em todo Amor! 


Poemas e Poesias terça, 05 de julho de 2022

DO AMOR CONTENTE E MUITO DESCONTENTE - 1 (POEMA DA PAULISTA HILDA HILST)

DO AMOR COTENTE E MUITO DESCONTENTE - 1

Hilda Hilst

 

 

 

Iniciei mil vezes o diálogo. Não há jeito.
Tenho me fatigado tanto todos os dias
Vestindo, despindo e arrastando amor
Infância,
Sóis e sombras.
Vou dizer coisas terríveis à gente que passa.
Dizer que não é mais possível comunicar-me.
(Em todos os lugares o mundo se comprime.)
Não há mais espaço para sorrir ou bocejar de tédio.
As casas estão cheias. As mulheres parindo sem cessar,
Os homens amando sem amar, ah, triste amor desperdiçado
Desesperançado amor… Serei eu só
A revelar o escuro das janelas, eu só
Adivinhando a lágrima em pupilas azuis
Morrendo a cada instante, me perdendo?
 
Iniciei mil vezes o diálogo. Não há jeito.
Preparo-me e aceito-me
Carne e pensamento desfeitos. Intentemos,
Meu pai, o poema desigual e torturado.
E abracemo-nos depois em silêncio. Em segredo.

Poemas e Poesias segunda, 04 de julho de 2022

DE UM LADO CANTAVA O SOL (POEMA DO SERGIPANO HERMES FONTES)

DE UM LADO CANTAVA O SOL

Hermes Fontes

 

 

De um lado cantava o sol,
do outro, suspirava a lua.
No meio, brilhava a tua
face de ouro, girassol!

Ó montanha da saudade
a que por acaso vim:
outrora, foste um jardim,
e és, agora, eternidade!

De longe, recordo a cor
da grande manhã perdida.
Morrem nos mares da vida
todos os rios do amor?

Ai! celebro-te em meu peito,
em meu coração de sal,
Ó flor sobrenatural,
grande girassol perfeito!

Acabou-se-me o jardim!
Só me resta, do passado,
este relógio dourado
que ainda esperava por mim…


Poemas e Poesias domingo, 03 de julho de 2022

CUIDADO! (POEMA DO PAULISTA GUILHERME DE ALMEIDA)

CUIDADO!

Guilherme de Almeida

 

 

 

 

Ó namorados que passais, sonhando,
quando bóia, no céu, a lua cheia!
Que andais traçando corações na areia
e corações nos peitos apagando!

Desperta os ninhos vosso passo... E quando
pelas bocas em flor o amor chilreia,
nem sei se é o vosso beijo que gorjeia,
se são as aves que se estão beijando...

Mais cuidado! Não vá vossa alegria
afligir tanta gente que seria
feliz sem nunca ouvir nem ver!

Poupai a ingenuidade delicada
dos que amaram sem nunca dizer nada,
dos que foram amados sem saber!


Poemas e Poesias sábado, 02 de julho de 2022

EM VIAGEM (POEMA DO PORTUGUÊS GUERRA JUNQUEIRO)

EM VIAGEM

Guerra Junqueiro

 

 

 

Desde aquela dor tamanha
Do momento em que parti
Um só prazer me acompanha,
Filha, o de pensar em ti:

Por sobre a negra paisagem
Do meu ermo coração
O luar branco da tua imagem
Veste um benigno clarão.

A tarde, no azul celeste,
Há uma estrela esmorecida,
Que é o beijo que tu me deste
Na hora da despedida.

Beijo tão longo e dolente,
Tão longo e cortado de ais,
Que o meu coração pressente
Que não te torno a ver mais.

Conto no céu estrelado
Lágrimas de oiro sem fim:
É o pranto que tens chorado,
De dia e noite, por mim...

Quando me deito na cama
E vou quase adormecido,
Oiço a tua voz que me chama,
Num suplicante gemido.

Num gemido tão suave,
Tão triste na noite escura,
Que é como uma queixa d'ave
Presa numa sepultura!...

Em sonho, às vezes, meu Deus,
Cuido que vou expirar,
Sem levar nos olhos meus
O teu derradeiro olhar.

E sem extremo conforto
Que eu ness'hora quero ter:
Beijar a fronte do morto
Aquela que o fez viver.

E é esta ideia constante,
É esta ideia sombria
Que me eclipsa, a todo o instante
O sol da alma, a alegria.

Partir!... Partir-se a cadeia
Da vida, Senhor, senhor!
Quando o azul doirado arqueia
Bênçãos ao meu sonho em flor!...

Morrer amanhã talvez!
Morrer!... Endoideço, quando
Me lembra a tua viuvez,
Entre dois berços chorando!..

Morrer, entregar à treva,
Aos vermes e às podridões
O meu coração, que leva
Dentro mais três corações!

É duro, é cruel... No entanto,
Antes da hora final,
Eu quero dizer-te o quanto
Te amei, lírio virginal!

Eu vinha de longe, exangue,
A alma despedaçada,
deixando um rastro de sangue
Nas urzes da minha estrada.

Brancas ilusões mimosas,
Vastas quimeras febris,
Abelhas doirando rosas,
Águias c'roando alcantis.

Oh, desse mundo risonho
Havia apenas ficando
A bruma vaga dum sonho
Que a gente sonha acordado...

.......................
.......................

Nessa tremenda ansiedade
É que tu verteste, flor,
A tua imensa piedade
Na minha infinita dor!...

Eu era a sombra funesta
E tu o clarão doirado;
Juntámo-nos, que é que resta?
Um céu de Maio estrelado.

Quando vais serena e calma,
Linda, inefável, como és,
Vou pondo sempre a minha alma
No sítio onde pões os pés.

Corre o mundo, (o mundo é estreito)
Podes mil mundos correr,
Que hás-de calcar o meu peito
sempre por ti a bater.

......................
......................

Meus sofrimentos partilhas
E meus regozijos vãos:
Minhas dores são tuas filhas;
Meus cuidados teus irmãos.

Não Há dif'rença nenhuma
Em nossas almas, eu creio
Que foram feitas só duma
Que Deus dividiu ao meio.

Por isso penso há dois meses,
Desde a hora em que parti,
Que morreria cem vezes
Morrendo longe de ti:

Mas ai! se assim fosse, quando
Me sepultassem, então
Estalariam chorando
As tábuas do meu caixão.

E do meu peito gelado,
Na terra do cemitério,
Brotaria ensanguentado
Um lírio roxo, funéreo.

Um lírio estranho, imprevisto,
Feito pela minha dor
Das cinco chagas de Cristo
Reunidas numa só flor...

E a estrela, d'alva inocente,
Cheia de dó tombaria,
Lagrimosissimamente
Na urna da Flor sombria!..

 


Poemas e Poesias sexta, 01 de julho de 2022

ESBOÇO (POEMA DA CARIOCA GILKA MACHADO)

ESBOÇO

Gilka Machado

 

 

 

Teus lábios inquietos
pelo meu corpo
acendiam astros...
e no corpo da mata
os pirilampos
de quando em quando,
insinuavam
fosforecentes carícias...
e o corpo do silêncio estremecia,
chocalhava,
com os guizos
do cri-cri osculante
dos grilos que imitavam
a música de tua boca...
e no corpo da noite
as estrelas cantavam
com a voz trêmula e rútila
de teus beijos...


Poemas e Poesias quinta, 30 de junho de 2022

TANTO QUE O FRADE FOI EMBARCADO (POEMA DO PORTUGUÊS GIL VICENTE)

TANTO QUE O FRADE FOI EMBARCADO

Gil Vicente

 

 

 

 

Tanto que o Frade foi embarcado, veio üa Alcoviteira, per nome Brízida Vaz, a qual chegando à barca infernal, diz desta maneira:

BRÍZIDA Hou lá da barca, hou lá!
DIABO Quem chama?
BRÍZIDA Brízida Vaz.
DIABO E aguarda-me, rapaz?
Como nom vem ela já?
COMPANHEIRO Diz que nom há-de vir cá
sem Joana#de#Valdês.
DIABO Entrai vós, e remarês.
BRÍZIDA Nom quero eu entrar lá.

DIABO Que sabroso arrecear!
BRÍZIDA No é essa barca que eu cato.
DIABO E trazês vós muito fato?
BRÍZIDA O que me convém levar.
Día. Que é o que havês d'embarcar?
BRÍZIDA Seiscentos virgos postiços
e três arcas de feitiços
que nom podem mais levar.

Três almários de mentir,
e cinco cofres de enlheos,
e alguns furtos alheos,
assi em jóias de vestir,
guarda-roupa d'encobrir,
enfim - casa movediça;
um estrado de cortiça
com dous coxins d'encobrir.

A mor cárrega que é:
essas moças que vendia.
Daquestra mercadoria
trago eu muita, à bofé!
DIABO Ora ponde aqui o pé...
BRÍZIDA Hui! E eu vou pera o Paraíso!
DIABO E quem te dixe a ti isso?
BRÍZIDA Lá hei-de ir desta maré.

Eu sô üa mártela tal!...
Açoutes tenho levados
e tormentos suportados
que ninguém me foi igual.
Se fosse ò fogo infernal,
lá iria todo o mundo!
A estoutra barca, cá fundo,
me vou, que é mais real.

chegando à Barca da Glória diz ao Anjo:

Barqueiro mano, meus olhos,
prancha a Brísida Vaz.
ANJO: Eu não sei quem te cá traz...
BRÍZIDA Peço-vo-lo de giolhos!
Cuidais que trago piolhos,
anjo de Deos, minha rosa?
Eu sô aquela preciosa
que dava as moças a molhos,

a que criava as meninas
pera os cónegos da Sé...
Passai-me, por vossa fé,
meu amor, minhas boninas,
olho de perlinhas finas!
E eu som apostolada,
angelada e martelada,
e fiz cousas mui divinas.

Santa#Úrsula nom converteu
tantas cachopas como eu:
todas salvas polo meu
que nenhüa se perdeu.
E prouve Àquele do Céu
que todas acharam dono.
Cuidais que dormia eu sono?
Nem ponto se me perdeu!

ANJO Ora vai lá embarcar,
não estês importunando.
BRÍZIDA Pois estou-vos eu contando
o porque me haveis de levar.
ANJO Não cures de importunar,
que não podes vir aqui.
BRÍZIDA E que má-hora eu servi,
pois não me há-de aproveitar!...

torna-se Brízida Vaz à Barca do Inferno, dizendo:

BRÍZIDA Hou barqueiros da má-hora,
que é da prancha, que eis me vou?
E já há muito que aqui estou,
e pareço mal cá de fora.
DIABO Ora entrai, minha senhora,
e sereis bem recebida;
se vivestes santa vida,
vós o sentirês agora...

tanto que Brízida Vaz se embarcou, veo um Judeu, com um bode às costas; e, chegando ao batel#dos#danados, diz:

JUDEU Que vai cá? Hou marinheiro!
DIABO Oh! Que má-hora vieste!...
JUDEU Cuj'é esta barca que preste?
DIABO Esta barca é do barqueiro.
JUDEU. Passai-me por meu dinheiro.
DIABO E o bode há cá de vir?
JUDEU Pois também o bode há-de vir.
DIABO Que escusado passageiro!

JUDEU Sem bode, como irei lá?
DIABO Nem eu nom passo cabrões.
JUDEU Eis aqui quatro tostões
e mais se vos pagará.
Por vida do Semifará
que me passeis o cabrão!
Querês mais outro tostão?
DIABO Nem tu nom hás-de vir cá.

JUDEU Porque nom irá o judeu
onde vai Brísida Vaz?
Ao senhor meirinho apraz?
Senhor meirinho, irei eu?
DIABO E o fidalgo, quem lhe deu...
JUDEU O mando, dizês, do batel?
Corregedor, coronel,
castigai este sandeu!

Azará, pedra miúda,
lodo, chanto, fogo, lenha,
caganeira que te venha!
Má corrença que te acuda!
Par el Deu, que te sacuda
coa beca nos focinhos!
Fazes burla dos meirinhos?
Dize, filho da cornuda!

PARVO Furtaste a chiba cabrão?
Parecês-me vós a mim
gafanhoto d'Almeirim
chacinado em um seirão.
DIABO Judeu, lá te passarão,
porque vão mais despejados.
PARVO E ele mijou nos finados
n'ergueja de São#Gião!

E comia a carne da panela
no dia de Nosso Senhor!
E aperta o salvador,
e mija na caravela!
DIABO Sus, sus! Demos à vela!
Vós, Judeu, irês à toa,
que sois mui ruim pessoa.
Levai o cabrão na trela!

vem um Corregedor, carregado de feitos, e, chegando à barca do Inferno, com sua vara na mão, diz:

CORREGEDOR Hou da barca!
DIABO Que quereis?
CORREGEDOR Está aqui o senhor juiz?
DIABO Oh amador de perdiz.
Gentil cárrega trazeis!
CORREGEDOR No meu ar conhecereis
que nom é ela do meu jeito.
DIABO Como vai lá o direito?
CORREGEDOR Nestes feitos o vereis.

DIABO Ora, pois, entrai. Veremos
que diz i nesse papel...
CORREGEDOR E onde vai o batel?
DIABO No Inferno vos poeremos.
CORREGEDOR Como? À terra dos demos
há-de ir um corregedor?
DIABO Santo descorregedor,
embarcai, e remaremos!

Ora, entrai, pois que viestes!
CORREGEDOR Non#est#de#regulae#juris, não!
DIABO Ita, Ita! Dai cá a mão!
Remaremos um remo destes.
Fazei conta que nacestes
pera nosso companheiro.
- Que fazes tu, barzoneiro?
Faze-lhe essa prancha prestes!

CORREGEDOR Oh! Renego da viagem
e de quem me há-de levar!
Há 'qui meirinho do mar?
DIABO Não há tal costumagem.
CORREGEDOR Nom entendo esta barcagem,
nem hoc#non#potest#esse.
DIABO Se ora vos parecesse
que nom sei mais que linguagem...

Entrai, entrai, corregedor!
CORREGEDOR Hou! Videtis#qui#petatis -
Super#jure#magestatis
tem vosso mando vigor?
DIABO Quando éreis ouvidor
nonne#accepistis#rapina?
Pois ireis pela bolina
onde nossa mercê for...

Oh! Que isca esse papel
pera um fogo que eu sei!
CORREGEDOR Domine,#memento#mei!
DIABO Non#est#tempus, bacharel!
Imbarquemini in batel
quia#judicastis#malitia.
CORREGEDOR Semper#ego#justitia
fecit, e bem por nivel.

DIABO E as peitas dos judeus
que a vossa mulher levava?
CORREGEDOR Isso eu não o tomava
eram lá percalços seus.
Nom som peccatus#meus,
peccavit#uxore#mea.
DIABO Et#vobis#quoque#cum#ea,
não temuistis#Deus.

A largo modo adquiristis
sanguinis#laboratorum
ignorantis#peccatorum.
Ut#quid#eos#non#audistis?
CORREGEDOR Vós, arrais, nonne#legistis
que o dar quebra os pinedos?
Os direitos estão quedos,
sed#aliquid#tradidistis...

DIABO Ora entrai, nos negros fados!
Ireis ao lago dos cães
e vereis os escrivães
como estão tão prosperados.
CORREGEDOR E na terra#dos#danados
estão os Evangelistas?Tanto que o Frade foi embarcado, veio üa Alcoviteira, per nome Brízida Vaz, a qual chegando à barca infernal, diz desta maneira:

BRÍZIDA Hou lá da barca, hou lá!
DIABO Quem chama?
BRÍZIDA Brízida Vaz.
DIABO E aguarda-me, rapaz?
Como nom vem ela já?
COMPANHEIRO Diz que nom há-de vir cá
sem Joana#de#Valdês.
DIABO Entrai vós, e remarês.
BRÍZIDA Nom quero eu entrar lá.

DIABO Que sabroso arrecear!
BRÍZIDA No é essa barca que eu cato.
DIABO E trazês vós muito fato?
BRÍZIDA O que me convém levar.
Día. Que é o que havês d'embarcar?
BRÍZIDA Seiscentos virgos postiços
e três arcas de feitiços
que nom podem mais levar.

Três almários de mentir,
e cinco cofres de enlheos,
e alguns furtos alheos,
assi em jóias de vestir,
guarda-roupa d'encobrir,
enfim - casa movediça;
um estrado de cortiça
com dous coxins d'encobrir.

A mor cárrega que é:
essas moças que vendia.
Daquestra mercadoria
trago eu muita, à bofé!
DIABO Ora ponde aqui o pé...
BRÍZIDA Hui! E eu vou pera o Paraíso!
DIABO E quem te dixe a ti isso?
BRÍZIDA Lá hei-de ir desta maré.

Eu sô üa mártela tal!...
Açoutes tenho levados
e tormentos suportados
que ninguém me foi igual.
Se fosse ò fogo infernal,
lá iria todo o mundo!
A estoutra barca, cá fundo,
me vou, que é mais real.

chegando à Barca da Glória diz ao Anjo:

Barqueiro mano, meus olhos,
prancha a Brísida Vaz.
ANJO: Eu não sei quem te cá traz...
BRÍZIDA Peço-vo-lo de giolhos!
Cuidais que trago piolhos,
anjo de Deos, minha rosa?
Eu sô aquela preciosa
que dava as moças a molhos,

a que criava as meninas
pera os cónegos da Sé...
Passai-me, por vossa fé,
meu amor, minhas boninas,
olho de perlinhas finas!
E eu som apostolada,
angelada e martelada,
e fiz cousas mui divinas.

Santa#Úrsula nom converteu
tantas cachopas como eu:
todas salvas polo meu
que nenhüa se perdeu.
E prouve Àquele do Céu
que todas acharam dono.
Cuidais que dormia eu sono?
Nem ponto se me perdeu!

ANJO Ora vai lá embarcar,
não estês importunando.
BRÍZIDA Pois estou-vos eu contando
o porque me haveis de levar.
ANJO Não cures de importunar,
que não podes vir aqui.
BRÍZIDA E que má-hora eu servi,
pois não me há-de aproveitar!...

torna-se Brízida Vaz à Barca do Inferno, dizendo:

BRÍZIDA Hou barqueiros da má-hora,
que é da prancha, que eis me vou?
E já há muito que aqui estou,
e pareço mal cá de fora.
DIABO Ora entrai, minha senhora,
e sereis bem recebida;
se vivestes santa vida,
vós o sentirês agora...

tanto que Brízida Vaz se embarcou, veo um Judeu, com um bode às costas; e, chegando ao batel#dos#danados, diz:

JUDEU Que vai cá? Hou marinheiro!
DIABO Oh! Que má-hora vieste!...
JUDEU Cuj'é esta barca que preste?
DIABO Esta barca é do barqueiro.
JUDEU. Passai-me por meu dinheiro.
DIABO E o bode há cá de vir?
JUDEU Pois também o bode há-de vir.
DIABO Que escusado passageiro!

JUDEU Sem bode, como irei lá?
DIABO Nem eu nom passo cabrões.
JUDEU Eis aqui quatro tostões
e mais se vos pagará.
Por vida do Semifará
que me passeis o cabrão!
Querês mais outro tostão?
DIABO Nem tu nom hás-de vir cá.

JUDEU Porque nom irá o judeu
onde vai Brísida Vaz?
Ao senhor meirinho apraz?
Senhor meirinho, irei eu?
DIABO E o fidalgo, quem lhe deu...
JUDEU O mando, dizês, do batel?
Corregedor, coronel,
castigai este sandeu!

Azará, pedra miúda,
lodo, chanto, fogo, lenha,
caganeira que te venha!
Má corrença que te acuda!
Par el Deu, que te sacuda
coa beca nos focinhos!
Fazes burla dos meirinhos?
Dize, filho da cornuda!

PARVO Furtaste a chiba cabrão?
Parecês-me vós a mim
gafanhoto d'Almeirim
chacinado em um seirão.
DIABO Judeu, lá te passarão,
porque vão mais despejados.
PARVO E ele mijou nos finados
n'ergueja de São#Gião!

E comia a carne da panela
no dia de Nosso Senhor!
E aperta o salvador,
e mija na caravela!
DIABO Sus, sus! Demos à vela!
Vós, Judeu, irês à toa,
que sois mui ruim pessoa.
Levai o cabrão na trela!

vem um Corregedor, carregado de feitos, e, chegando à barca do Inferno, com sua vara na mão, diz:

CORREGEDOR Hou da barca!
DIABO Que quereis?
CORREGEDOR Está aqui o senhor juiz?
DIABO Oh amador de perdiz.
Gentil cárrega trazeis!
CORREGEDOR No meu ar conhecereis
que nom é ela do meu jeito.
DIABO Como vai lá o direito?
CORREGEDOR Nestes feitos o vereis.

DIABO Ora, pois, entrai. Veremos
que diz i nesse papel...
CORREGEDOR E onde vai o batel?
DIABO No Inferno vos poeremos.
CORREGEDOR Como? À terra dos demos
há-de ir um corregedor?
DIABO Santo descorregedor,
embarcai, e remaremos!

Ora, entrai, pois que viestes!
CORREGEDOR Non#est#de#regulae#juris, não!
DIABO Ita, Ita! Dai cá a mão!
Remaremos um remo destes.
Fazei conta que nacestes
pera nosso companheiro.
- Que fazes tu, barzoneiro?
Faze-lhe essa prancha prestes!

CORREGEDOR Oh! Renego da viagem
e de quem me há-de levar!
Há 'qui meirinho do mar?
DIABO Não há tal costumagem.
CORREGEDOR Nom entendo esta barcagem,
nem hoc#non#potest#esse.
DIABO Se ora vos parecesse
que nom sei mais que linguagem...

Entrai, entrai, corregedor!
CORREGEDOR Hou! Videtis#qui#petatis -
Super#jure#magestatis
tem vosso mando vigor?
DIABO Quando éreis ouvidor
nonne#accepistis#rapina?
Pois ireis pela bolina
onde nossa mercê for...

Oh! Que isca esse papel
pera um fogo que eu sei!
CORREGEDOR Domine,#memento#mei!
DIABO Non#est#tempus, bacharel!
Imbarquemini in batel
quia#judicastis#malitia.
CORREGEDOR Semper#ego#justitia
fecit, e bem por nivel.

DIABO E as peitas dos judeus
que a vossa mulher levava?
CORREGEDOR Isso eu não o tomava
eram lá percalços seus.
Nom som peccatus#meus,
peccavit#uxore#mea.
DIABO Et#vobis#quoque#cum#ea,
não temuistis#Deus.

A largo modo adquiristis
sanguinis#laboratorum
ignorantis#peccatorum.
Ut#quid#eos#non#audistis?
CORREGEDOR Vós, arrais, nonne#legistis
que o dar quebra os pinedos?
Os direitos estão quedos,
sed#aliquid#tradidistis...

DIABO Ora entrai, nos negros fados!
Ireis ao lago dos cães
e vereis os escrivães
como estão tão prosperados.
CORREGEDOR E na terra#dos#danados
estão os Evangelistas?


Poemas e Poesias quarta, 29 de junho de 2022

ANFITRITE (POEMA DA PAULISTA FRANCISCA JÚLIA)

 

ANFITRITE

Francisca Júlia

 

Louco, às doudas, roncando, em látegos, ufano,
O vento o seu furor colérico passeia...
Enruga e torce o manto à prateada areia
Da praia, zune no ar, encarapela o oceano.

A seus uivos, o mar chora o seu pranto insano,
Grita, ulula, revolto, e o largo dorso arqueia;
Perdida ao longe, como um pássaro que anseia,
Alva e esguia, uma nau avança a todo o pano.

Sossega o vento; cala o oceano a sua mágoa;
Surge, esplêndida, e vem, envolta em áurea bruma,
Anfitrite, e, a sorrir, nadando à tona d'água,

Lá vai... mostrando à luz suas formas redondas,
Sua clara nudez salpicada de espuma,
Deslizando no glauco amículo das ondas.


Poemas e Poesias terça, 28 de junho de 2022

OLHOS D*ELE (POEMA DA PORTUGUESA FLORBELA ESPANCA)

OLHOS D'ELE

Florbela Espanca

 

 

 

Não acredito em nada. As minhas crenças
Voaram como voa a pomba mansa,
Pelo azul do ar. E assim fugiram
As minhas doces crenças de criança.

Eu digo sempre, embora magoada:
Não acredito em Deus e a Virgem Santa
É uma ilusão apenas e mais nada!

Duma luz suavíssima de dor...
E grito então ao ver esses dois céus:

Que criou esse brilho que m’encanta!
Eu creio, sim, creio, eu creio em Deus!


Poemas e Poesias segunda, 27 de junho de 2022

POEMA (POEMA DO MARANHENSE FERREIRA GULLAR)

POEMA

Ferreira Gullar

 

 

Se morro 
universo se apaga como se apagam 
as coisas deste quarto 
se apago a lâmpada: 
os sapatos - da - ásia, as camisas 
e guerras na cadeira, o paletó - 
dos - andes, 
bilhões de quatrilhões de seres 
e de sóis 
morrem comigo. 

Ou não: 
o sol voltará a marcar 
este mesmo ponto do assoalho 
onde esteve meu pé; 
deste quarto 
ouvirás o barulho dos ônibus na rua; 
uma nova cidade 
surgirá de dentro desta 
como a árvore da árvore. 

Só que ninguém poderá ler no esgarçar destas nuvens 
a mesma história que eu leio, comovido.  

 

 

 


Poemas e Poesias domingo, 26 de junho de 2022

COMO A NOITE É LONGA (POEMA DO PORTUGUÊS FERNANDO PESSOA)

COMO A NOITE É LONGA

Fernando Pessoa

 

 

 

Como a noite é longa!

Toda a noite é assim...

Senta-te, ama, perto

Do leito onde esperto.

Vem pr'ao pé de mim...

 

Amei tanta coisa...

Hoje nada existe.

Aqui ao pé da cama

Canta-me, minha ama,

Uma canção triste.

 

Era uma princesa

Que amou... Já não sei...

Como estou esquecido!

Canta-me ao ouvido

E adormecerei...

 

Que é feito de tudo?

Que fiz eu de mim?

Deixa-me dormir,

Dormir a sorrir

E seja isto o fim.


Poemas e Poesias sábado, 25 de junho de 2022

PRIMEIRA COLINA (POEMA DO GAÚCHO FABRÍCIO CARPINEJAR)

PRIMEIRA COLINA

Fabrício Carpinejar

 

 

 

Reconheci a antigüidade do rosto
pela fumaça apressada do prado
— ela encorpava,
ardilosa,
uma cobra que endurece
o couro
na estocada da faca


Poemas e Poesias sexta, 24 de junho de 2022

HÁ NOS TEUS OLHOS ESCUROS (POEMA DO FLUMINENSE EUCLIDES DA CUNHA)

HÁ NOS TEUS OLHOS ESCUROS

Euclides da Cunha

 

 

Há nos teus olhos escuros
Tantas centelhas, que ao vê-las
Penso na treva e nos brilhos
Das noites cheias de estrelas…
Penso em cousas singulares,
Indagando entre delírios:
Por que é que os céus inda brilham?
Por que não se apaga Sírius?


Poemas e Poesias quinta, 23 de junho de 2022

TROVAS HUMORÍSTICAS - 14 - (POEMA DO PARANAENSE ENO TEODORO WANKE)

TROVA HUMORÍSTICA 14

Eno Teodoro Wanke

 

Informo, com desprazer

Que chato é aquele infeliz

Que, nada tendo a dizer

Insistentemente dia


Poemas e Poesias quarta, 22 de junho de 2022

O BEIJA-FLOR (POEMA DO CARIOCA DOM PEDRO II)

O BEIJA-FLOR

Dom Pedro II

 

 

O verde beija-flor, rei das colinas,
Vendo o rocio e o sol brilhante
Luzir no ninho, trança d'ervas finas,
Qual fresco raio vai-se pelo ar distante.

Rápido voa ao manancial vizinho,
Onde os bambus sussurram como o mar,
Onde o açoká rubro, em cheiros de carinho,
Abre, e eis no peito úmido a fuzilar.

Desce sobre a áurea flor a repousar,
E em rósea taça amor a inebriar,
E morre não sabendo se a pode esgotar!

Em teus lábios tão puros, minha amada,
Tal minha alma quisera terminar,
Só do primeiro beijo perfumada!


Poemas e Poesias terça, 21 de junho de 2022

MEMENTO HOMO... (POEMA DO PIAUIENSE DA COSTA E SILVA)

MEMENTO HOMO...

Da Costa e Silva

 

 

Que somos nós? — Pulvis et umbra sumus. 
Horácio, o teu pentâmetro latino, 
No mais sábio e conciso dos resumos, 
Diz o que é a vida em face do destino. 

O Homem, vindo do pó, da lama, do húmus 
Que se transforma ao hálito divino, 
É sombra errante por incertos rumos, 
À mercê do seu próprio desatino. 

Por mais que à lei da morte se submeta, 
Lute e sofra, nem sempre se persuade 
De que a sua existência no planeta 

Não passa de uma sombra de vaidade, 
De um simples grão de areia na ampulheta 
Em que o tempo derrama a Eternidade.


Poemas e Poesias segunda, 20 de junho de 2022

PLANGÊNCIA DA TARDE (POEMA DO CATARINENSE CRUZ E SOUSA)

PLANGÊNCIA DA TARDE

Cruz e Sousa

 

 

 

Quando do campo as prófugas ovelhas
Voltam a tarde, lépidas, balando
Com elas o pastor volta cantando
E fulge o ocaso em convulsões vermelhas.

Nos beirados das casas, sobre as telhas
Das andorinhas esvoaça o bando...
E o mar, tranqüilo, fica cintilando
Do sol que morre as últimas centelhas.

O azul dos montes vago na distância...
No bosque, no ar, a cândida fragrância
Dos aromas vitais que a tarde exala.

Às vezes, longe, solta, na esplanada,
A ovelha errante, tonta e desgarrada,
Perdida e triste pelos ermos bala...


Poemas e Poesias domingo, 19 de junho de 2022

OFERTAS DE ANINHA (POEMA DA GOIANA CORA CORALINA)

OFERTAS DE ANINHA

Cora Coralina

 

 

Eu sou aquela mulher
a quem o tempo
muito ensinou.
Ensinou a amar a vida.
Não desistir da luta.
Recomeçar na derrota.
Renunciar a palavras e pensamentos negativos.
Acreditar nos valores humanos.
Ser otimista.

Creio numa força imanente
que vai ligando a família humana
numa corrente luminosa
de fraternidade universal.
Creio na solidariedade humana.
Creio na superação dos erros
e angústias do presente.

Acredito nos moços.
Exalto sua confiança,
generosidade e idealismo.
Creio nos milagres da ciência
e na descoberta de uma profilaxia
futura dos erros e violências do presente.

Aprendi que mais vale lutar
Do que recolher dinheiro fácil.
Antes acreditar do que duvidar


Poemas e Poesias sábado, 18 de junho de 2022

LXXI (SONETOS) EU CANTEI, NÃO NEGO, EU ALGUM DIA (POEMA DO CARIOCA CLÁUDIO MANUEL DA COSTA)

LXXI (SONETOS)

EU CANTEI, NÃO NEgO, EM ALGUM DIA

Cláudio Manuel da Costa

 

 

 

Eu cantei, não o nego, eu algum dia
Cantei do injusto amor o vencimento;
Sem saber, que o veneno mais violento
Nas doces expressões falso encobria.

Que amor era benigno, eu persuadia
A qualquer coração de amor isento;
Inda agora de amor cantara atento,
Se lhe não conhecera a aleivosia.

Ninguém de amor se fie: agora canto
Somente os seus enganos; porque sinto,
Que me tem destinado estrago tanto.

De seu favor hoje as quimeras pinto:
Amor de uma alma é pesaroso encanto;
Amor de um coração é labirinto.


Poemas e Poesias sexta, 17 de junho de 2022

EU E ELA (POEMA DO PORTUGUÊS CESÁRIO VERDE)

EU E ELA

Cesário Verde

 

 

 

Cobertos de folhagem, na verdura,
O teu braço ao redor do meu pescoço,
O teu fato sem ter um só destroço,
O meu braço apertando-te a cintura;

Num mimoso jardim, ó pomba mansa,
Sobre um banco de mármore assentados.
Na sombra dos arbustos, que abraçados,
Beijarão meigamente a tua trança.

Nós havemos de estar ambos unidos,
Sem gozos sensuais, sem más idéias,
Esquecendo para sempre as nossas ceias,
E a loucura dos vinhos atrevidos.

Nós teremos então sobre os joelhos
Um livro que nos diga muitas cousas
Dos mistérios que estão para além das lousas,
Onde havemos de entrar antes de velhos.

Outras vezes buscando distração,
Leremos bons romances galhofeiros,
Gozaremos assim dias inteiro,
Formando unicamente um coração.

Beatos ou pagãos, vida à paxá,
Nós leremos, aceita este meu voto,
O Flos-Sanctorum místico e devoto
E o laxo Cavaleiro de Faublas...


Poemas e Poesias quinta, 16 de junho de 2022

NADADOR (POEMA DA CARIOCA CECÍLIA MEIRELES)

NADADOR

Cecília Meireles

 

 

 

O que me encanta é a linha alada
das tuas espáduas, e a curva
que descreves, passáro da água!

É a tua fina, ágil cintura,
e esse adeus da tua garganta
para cemitérios de espuma!

É a despedida, que me encanta,
quando te desprendes ao vento,
fiel à queda, rápida e branda

E apenas por estar prevendo,
longe, na eternidade da água,
sobreviver teu movimento...


Poemas e Poesias terça, 14 de junho de 2022

AO DOUS DE JULHO (POEMA DO BAIANO CASTRO ALVES)

AO DOUS DE JULHO

Castro Alves

 

 

 

Era no Dous de julho. A pugna imensa
Travara-se nos cerros da Bahia...
O anjo da morte pálido cosia
Uma vasta mortalha em Pirajá.
"Neste lençol tão largo, tão extenso,
"Como um pedaço roto do infinito...
O mundo perguntava erguendo um grito:
"Qual dos gigantes morto rolará?!..."

Debruçados do céu... a noite e os astros
Seguiam da peleja o incerto fado...
Era a tocha — o fuzil avermelhado!
Era o Circo de Roma — o vasto chão!
Por palmas — o troar da artilharia
Por feras — os canhões negros rugiam!
Por atletas — dous povos se batiam!
Enorme anfiteatro — era a amplidão!

Não! Não eram dous povos, que abalavam
Naquele instante o solo ensanguentado...
Era o porvir — em frente do passado,
A Liberdade — em frente à Escravidão,
Era a luta das águias — e do abutre,
A revolta do pulso — contra os ferros,
O pugilato da razão — com os erros,
O duelo da treva — e do clarão!...

No entanto a luta recrescia indômita...
As bandeiras — como águias eriçadas —
Se abismavam com as asas desdobradas
Na selva escura da fumaça atroz...
Tonto de espanto, cego de metralha,
O arcanjo do triunfo vacilava...
E a glória desgrenhada acalentava
O cadáver sangrento dos heróis...
...............................................
...............................................
Mas quando a branca estrela matutina
Surgiu do espaço... e as brisas forasteiras
No verde leque das gentis palmeiras
Foram cantar os hinos do arrebol,
Lá do campo deserto da batalha
Uma voz se elevou clara e divina:
Eras tu — Liberdade peregrina!
Esposa do porvir — noiva do sol!...

Eras tu que, com os dedos ensopados
No sangue dos avós mortos na guerra,
Livre sagravas a Colúmbia terra,
Sagravas livre a nova geração!
Tu que erguias, subida na pirâmide,
Formada pelos mortos do Cabrito,
Um pedaço de gládio — no infinito...
Um trapo de bandeira — n'amplidão!...


Poemas e Poesias segunda, 13 de junho de 2022

PERDÃO! (POEMA DO FLUMINENSE CASIMIRO DE ABREU)
PERDÃO!
Casimiro de Abreu
 
 
 

I
Choraste?! - E a face mimosa
Perdeu as cores da rosa
E o seio todo tremeu?!
Choraste, pomba adorada?
E a lágrima cristalina
Banhou-te a face divina
E a bela fronte inspirada
Pálida e triste pendeu?!

Choraste?! - E longe não pude
Sorver-te a lágrima pura
Que banhou-te a formosura!
Ouvir-te a voz de alaúde
A lamentar-se sentida!
Humilde cair-te aos pés,
Oferecer-te esta vida
No sacrifício mais santo,
Para poupar esse pranto
Que te rolou sobre a tez!

Choraste?! - De envergonhada,
No teu pudor ofendida,
Porque minh'alma atrevida
No seu palácio de fada,
- No sonhar da fantasia -
Ardeu em loucos desejos,
Ousou cobrir-te de beijos
E quis manchar-te na orgia!

........................


II
Perdão p'r'o pobre demente
Culpado, sim, - inocente -
Que se te amou, foi demais!
Perdão p'ra mim que não pude
Calar a voz do alaúde,
Nem comprimir os meus ais!

Perdão oh! flor dos amores,
Se quis manchar-te os verdores,
Se quis tirar-te do hastil!
- Na voz que a paixão resume
Tentei sorver-te o perfume...
E fui covarde e fui vil!...

........................


III
Eu sei, devera sozinho
Sofrer comigo o tormento
E na dor do pensamento
Devorar essa agonia!
- Devera, sedento algoz,
Em vez de sonhos felizes,
Cortar no peito as raízes
Desse amor, e tão descrido
Dos hinos matar-lhe a voz!
- Devera, pobre fingido,
Tendo n'alma atroz desgosto,
Mostrar sorrisos no rosto,
Em vez de mágoas - prazer,
E mudo e triste e penando,
Como um perdido te amando,
Sentir, calar-me e - morrer!

 .......................


Não pude! - A mente fervia,
O coração trasbordava,
Interna voz me falava,
E louco ouvindo a harmonia
Que a alma continha em si,
Soltei na febre o meu canto
E do delírio no pranto
Morri de amores - por ti!

........................


IV
Perdão! se fui desvairado
Manchar-te a flor d'inocência
E do meu canto n'ardência
Ferir-te no coração!
- Será enorme o pecado,
Mas tremenda a expiação
Se me deres por sentença
Da tua alma a indiferença,
Do teu lábio a maldição!...

 


Poemas e Poesias domingo, 12 de junho de 2022

PARA FAZER UM SONETO (POEMA DO PERNAMBUCANO CARLOS PENA FILHO)

PARA FAZER UM SONETO

Carlos Pena Filho

 

 

 

Tome um pouco de azul, se a tarde é clara,

E espere pelo instante ocasional.

Nesse curto intervalo Deus prepara

e lhe oferta a palavra inicial.

 

Aí, adote uma atitude avara:

se você preferir a cor local,

não use mais que o sol de sua cara

e um pedaço de fundo de quintal.

 

Se não, procure a cinza e essa vagueza

das lembranças da infância , e não se apresse,

antes, deixe levá-lo a correnteza.

 

Mas ao chegar ao ponto em que se tece

dentro da escuridão a vã certeza,

ponha tudo de lado e então comece.

 


Poemas e Poesias sábado, 11 de junho de 2022

AS SEM-RAZÕES DO AMOR (POEMA DO MINEIRO CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE)

AS SEM-RAZÕES DO AMOR

Carlos Drummond de Andrade

 

 

 

Eu te amo porque te amo.
Não precisas ser amante,
e nem sempre sabes sê-lo.
Eu te amo porque te amo.
Amor é estado de graça
e com amor não se paga.

Amor é dado de graça,
é semeado no vento,
na cachoeira, no eclipse.
Amor foge a dicionários
e a regulamentos vários.

Eu te amo porque não amo
bastante ou demais a mim.
Porque amor não se troca,
não se conjuga nem se ama.
Porque amor é amor a nada,
feliz e forte em si mesmo.

Amor é primo da morte,
e da morte vencedor,
por mais que o matem (e matam)
a cada instante de amor.


Poemas e Poesias sexta, 10 de junho de 2022

SONETO 151 - DE UM TÃO FELICE ENGENHO, PRODUZIDO (POEMA DO PORTUGUÊS LUÍS DE CAMÕES)

DE UM TÃO FELICE ENGENHO, PRODUZIDO

Soneto 151

Luís de Camões

 

 

 

De um tão felice engenho, produzido
de outro, que o claro Sol não viu maior,
é trazer cousas altas no sentido,
todas dinas de espanto e de louvor.

Museu foi antiquíssimo escritor,
filósofo e poeta conhecido,
discípulo do Músico amador
que co som teve o Inferno suspendido.

Este pôde abalar o monte mudo,
cantando aquele mal, que eu já passei,
do mancebo de Abido mal sisudo.

Agora contam já (segundo achei),
Passo, e o nosso Boscão, que disse tudo
dos segredos que move o cego Rei.


Poemas e Poesias quinta, 09 de junho de 2022

POEMA À VIRGEM MARIA (POEMA OD ESPANHOL SÃO JOSÉ DE ANCHIETA, O *APÓSTOLO DO bRASIL*

Poema à Virgem Maria

São José de Anchieta

 

 

 comshalom
QUADRO DE BENEDITO CALIXTO RETRATA ANCHIETA ESCREVENDO POEMA (FOTO: DIVULGAÇÃO/MUSEU DE ANCHIETA)
 

São José de Anchieta, considerado o apóstolo do Brasil, canonizado pelo Papa Francisco em 3 de abril 2014. Enviado em missão para o Brasil antes de completar 20 anos, padre Anchieta é o maior expoente do grupo de jesuítas que deram a vida pela catequização dos índios e pela evangelização primordial do país.

Entre muitos episódios da vida dele, tornou-se conhecida sua prisão por cinco meses, quando esteve refém dos índios tamoios, em 1563. Durante esse período, escreveu nas areias da praia de Iperoig (hoje praia do Cruzeiro) um poema dedicado a Maria, com quase 5 mil versos.

Reze conosco o trecho do “Poema à Virgem Maria”, escrito por São José de Anchieta:

Ó doce chaga, que repara os corações feridos,
Abrindo larga estrada para o Coração de CRISTO.
Prova do novo amor que nos conduz a união! (Amai uns aos outros como EU vos amo)
Porto do mar que protege o barco de afundar!
Em TI todos se refugiam dos inimigos que ameaçam:
TU, SENHOR, és medicina presente a todo mal!
Quem se acabrunha em tristeza, em consolo se alegra:
A dor da tristeza coloca um fardo no coração!
Por Ti Mãe, o pecador está firme na esperança,
Caminhar para o Céu, lar da bem-aventurança!
Ó Morada de Paz! Canal de água sempre vivo,
Jorrando água para a vida eterna!
Esta ferida do peito, ó Mãe, é só Tua,
Somente Tu sofres com ela, só Tu a podes dar.
Dá-me acalentar neste peito aberto pela lança,
Para que possa viver no Coração do meu SENHOR!
Entrando no âmago amoroso da piedade Divina,
Este será meu repouso, a minha casa preferida.
No sangue jorrado redimi meus delitos,
E purifique com água a sujeira espiritual!
Embaixo deste teto (Céu) que é morada de todos,
Viver e morrer com prazer, este é o meu grande desejo.


Poemas e Poesias quarta, 08 de junho de 2022

SONETO ASCOROSO (POEMA DO PORTUGUÊS MANUEL MARIA DU BOCAGE)

SONETO ASCOROSO

Bocage

 

 

 

Piolhos cria o cabelo mais dourado;
Branca remela o olho mais vistoso;
Pelo nariz do rosto mais formoso
O monco se divisa pendurado:
 
Pela boca do rosto mais corado
Hálito sai, às vezes bem ascoroso;
A mais nevada mão sempre é forçoso
Que de sua dona o cu tenha tocado:
 
Ao pé dele a melhor natura mora,
Que deitando no mês podre gordura,
Fétido mijo lança a qualquer hora.
 
Caga o cu mais alvo merda pura:
Pois se é isto o que tanto se namora,
Em ti, mijo, em ti cago, oh formosura!


Poemas e Poesias terça, 07 de junho de 2022

CEM TROVAS - 004 (POEMA DE BELMIRO BRAGA)

TROVA 004

Belmiro Braga

 

 

 

Quem, mesmo nas alegrias,
de lastimar não se furta
de ver tão longos os dias,
para uma vida tão curta?


Poemas e Poesias segunda, 06 de junho de 2022

A ÁRVORE DA SERRA (POEMA DO CAPIXABA AUGUSTO DOS ANJOS)

 

A ÁRVORE DA SERRA

Augusto dos Anjos

 

 

 

As árvores, meu filho, não tem alma!
E esta árvore me serve de empecilho...
É preciso cortá-la, pois, meu filho,
Para que eu tenha uma velhice mais calma!

- Meu pai, por que sua ira não se acalma?!
Não vê que em tudo existe o mesmo brilho?!
Deus pôs almas nos cedros... no junquilho...
Esta árvore, meu pai, possui minh'alma!...

- Disse - e ajoelhou-se, numa rogativa:
"Não mate a árvore, pai, para que eu viva!"
E quando a árvore, olhando a pátria serra,

Caiu aos golpes do machado bronco,
O moço triste se abraçou com o tronco
E nunca mais se levantou da terra.

 


Poemas e Poesias sábado, 04 de junho de 2022

FANTASIA (POEMA DO PAULISTA ÁLVARES DE AZEVEDO)

FANTASIA

Álvares de Azevedo

 

 

 

Quanti dolci pensier, quanto disio!
DANTE

C’est alors que ma voix
Murmure un nom tout bas... c’est alors que je vois
M’apparaître à demi, jeune, voluptueuse,
Sur ma couche penchée une femme amoureuse!
...........................................................................
Oh! toi que j’ai rêvée,
Femme à mes longs baisers si souvent enlevée,
Ne viendras-tu jamais? ......................................
CH. DOVALLE


À noite sonhei contigo...
E o sonho cruel maldigo
Que me deu tanta ventura.
Uma estrelinha que vaga
Em céu de inverno e se apaga
Faz a noite mais escura!

Eu sonhava que sentia
Tua voz que estremecia
Nos meus beijos se afogar!
Que teu rosto descorava
E teu seio palpitava
E eu te via a desmaiar!

Que eu te beijava tremendo,
Que teu rosto enfebrecendo
Desmaiava a palidez!
Tanto amor tua alma enchia
E tanto fogo morria
Dos olhos na languidez!

E depois... dos meus abraços,
Tu caíste, abrindo os braços,
Gélida, dos lábios meus...
Tu parecias dormir,
Mas debalde eu quis ouvir
O alento dos seios teus...

E uma voz, uma harmonia
No teu lábio que dormia
Desconhecida acordou,
Falava em tanta ventura,
Tantas notas de ternura
No meu peito derramou!

O soído harmonioso
Falava em noites de gozo
Como nunca eu as senti.
Tinha músicas suaves,
Como no canto das aves,
De manhã eu nunca ouvi!

Parecia que no peito
Nesse quebranto desfeito
Se esvaía o coração...
Que meu olhar se apagava,
Que minhas veias paravam
E eu morria de paixão...

E depois... num santuário
Junto do altar solitário
Perto de ti me senti,
Dormias junto de mim...
E um anjo nos disse assim:
"Pobres amantes, dormi!"

Tu eras inda mais bela...
O teu leito de donzela
Era coberto de flores...
Tua fronte empalecida,
Frouxa a pálpebra descida,
Meu Deus! que frio palor!...

Dei-te um beijo... despertaste,
Teus cabelos afastaste,
Fitando os olhos em mim...
Que doce olhar de ternura!
Eu só queria a ventura
De um olhar suave assim!

Eu dei-te um beijo, sorrindo
Tremeste os lábios abrindo,
Repousaste ao peito meu...
E senti nuvens cheirosas,
Ouvi liras suspirarem,
Rompeu-se a névoa... era o céu!

Caía chuva de flores
E luminosos vapores
Davam azulada luz...
E eu acordei... que delírio!
Eu sonho findo o martírio
E acordo pregado à cruz!


Poemas e Poesias sexta, 03 de junho de 2022

BELEZA (POEMA DO PORTUGUÊS ALMEIDA GARRETT)

BELEZA

Almeida Garrett

 

 

 

Vem do amor a Beleza,
Como a luz vem da chama.
É lei da natureza:
Queres ser bela? - ama.

Formas de encantar,
Na tela o pincel
As pode pintar;
No bronze o buril
As sabe gravar;
E estátua gentil
Fazer o cinzel
Da pedra mais dura...
Mas Beleza é isso? - Não; só formosura.

Sorrindo entre dores
Ao filho que adora
Inda antes de o ver
- Qual sorri a aurora
Chorando nas flores
Que estão por nascer –
A mãe é a mais bela das obras de Deus.
Se ela ama! - O mais puro do fogo dos céus
Lhe ateia essa chama de luz cristalina:

É a luz divina
Que nunca mudou,
É luz... é a Beleza
Em toda a pureza
Que Deus a criou.


Poemas e Poesias quinta, 02 de junho de 2022

DESILUDIDO (POEMA DO GAÚCHO ALCEU WAMOSY)

DESILUDIDO

Alceu Wamosy

 

 

 

Por que te hás de aquecer ao sol dessa esperança
nova, que despontou na tua alma ingênua e crente?
Se ela é como sorriso em lábio de criança,
que se há de transformar em pranto, de repente...

A ventura completa, é céu que não se alcança,
mas que a gente vislumbra, além, perpetuamente:
esse céu mentiroso, é um céu que foge e avança,
se é maior ou menor a aspiração da gente.

Sê simples e sê bom, mas não julgues que um dia,
hás de o teu coração, repleto de alegria,
para sempre fechar, como quem fecha um cofre!

Crê que a desilusão é o sonho pelo avesso,
e que só se é feliz, dando-se o mesmo apreço
ao gozo que se goza, e à mágoa que se sofre!


Poemas e Poesias quarta, 01 de junho de 2022

CINDO SENTIDOS (POEMA DO FLUMINENSE ALBERTO DE OLIVEIRA)

 

CINCO SENTIDOS

Alberto de Oliveira

 

 

Cinco sentidos são os cinco dedos
Com que o homem tacteia a escuridão,
Rodeado de sombras e segredos
De que busca, e não acha, a solução.

Mas decerto haverá mundos mais ledos
Onde outros seres, de maior visão,
Rompendo brumas, dissipando medos,
A treva finalmente vencerão.

E sendo sete as cores, e outros tantos
Os sons da escala, mas com mil matizes
Que prolongam seu eco e seus encantos,

Talvez nos seja um dia transmitido,
Por esses mundos fortes e felizes,
Um novo sexto e sétimo sentido!


Poemas e Poesias terça, 31 de maio de 2022

DEFINIÇÃO (POEMA DO MINEIRO AFFONSO ROMANO DE SANT8ANNA)

DEFINIÇÃO

Affonso Romano de Sant'Anna

 

 

 

O corpo é onde
é carne:

o corpo é onde
há carne
e o sangue
é alarme.

O corpo é onde
é chama:

o corpo é onde
há chama
e a brasa
inflama.

O corpo é onde
é luta:

o corpo é onde
há luta
e o sangue
exulta.

O corpo é onde
é cal:

o corpo é onde
há cal
e a dor
é sal.

O corpo
é onde
e a vida
é quando.


Poemas e Poesias segunda, 30 de maio de 2022

IMPRESSIONISTA (POEMA DA MINEIRA ADÉLIA PRADO)

IMPRESSIONISTA

Adélia Prado

 

 

 

Uma ocasião,
meu pai pintou a casa toda
de alaranjado brilhante.
Por muito tempo moramos numa casa,
como ele mesmo dizia,
constantemente amanhecendo.


Poemas e Poesias domingo, 29 de maio de 2022

PATRIMÔIO (POEMA DA CARIOCA ADALGISA NERY)

PATRIMÔNIO

Adalgisa Nery

 

 

 

Pesam nos meus ossos
Os meus pensamentos,
Choram nos meus olhos
As visões neles crescidas,
Soluçam no torpor das minhas carnes
Ancestrais desalentos.

Sangram os meus pés
Na inútil andança
Da imaginação liberta,
Pulveriza o meu espírito
A solidão do suicida ignorado
E cresce assustadoramente dentro de mim
A calmaria que precede o fim.


Poemas e Poesias sábado, 28 de maio de 2022

A LEGIÃO DOS ÚRIAS (POEMA DO CARIOCA VINÍCIUSDE MORAES)

 A LEGIÃO DOS ÚRIAS

Vinícius de Moraes

 

 

 

Quando a meia-noite surge nas estradas vertiginosas das montanhas
Uns após outros, beirando os grotões enluarados sobre cavalos lívidos
Passam olhos brilhantes de rostos invisíveis na noite
Que fixam o vento gelado sem estremecimento.

São os prisioneiros da Lua. Às vezes, se a tempestade
Apaga no céu a languidez imóvel da grande princesa
Dizem os camponeses ouvir os uivos tétricos e distantes
Dos Cavaleiros Úrias que pingam sangue das partes amaldiçoadas.

São os escravos da Lua. Vieram também de ventres brancos e puros
Tiveram também olhos azuis e cachos louros sobre a fronte...
Mas um dia a grande princesa os fez enlouquecidos, e eles foram escurecendo
Em muitos ventres que eram também brancos mas que eram impuros.

E desde então nas noites claras eles aparecem
Sobre cavalos lívidos que conhecem todos os caminhos
E vão pelas fazendas arrancando o sexo das meninas e das mães sozinhas
E das éguas e das vacas que dormem afastadas dos machos fortes.

Aos olhos das velhas paralíticas murchadas que esperam a morte noturna
Eles descobrem solenemente as netas e as filhas deliquescentes
E com garras fortes arrancam do último pano os nervos flácidos e abertos
Que em suas unhas agudas vivem ainda longas palpitações de sangue.

Depois amontoam a presa sangrenta sob a luz pálida da deusa
E acendem fogueiras brancas de onde se erguem chamas desconhecidas e fumos
Que vão ferir as narinas trêmulas dos adolescentes adormecidos
Que acordam inquietos nas cidades sentindo náuseas e convulsões mornas.

E então, após colherem as vibrações de leitos fremindo distantes
E os rinchos de animais seminando no solo endurecido
Eles erguem cantos à grande princesa crispada no alto
E voltam silenciosos para as regiões selvagens onde vagam.

Volta a Legião dos Úrias pelos caminhos enluarados
Uns após outros, somente os olhos, negros sobre cavalos lívidos
Deles foge o abutre que conhece todas as carniças
E a hiena que já provou de todos os cadáveres.

São eles que deixam dentro do espaço emocionado
O estranho fluido todo feito de plácidas lembranças
Que traz às donzelas imagens suaves de outras donzelas
E traz aos meninos figuras formosas de outros meninos.

São eles que fazem penetrar nos lares adormecidos
Onde o novilúnio tomba como um olhar desatinado
O incenso perturbador das rubras vísceras queimadas
Que traz à irmã o corpo mais forte da outra irmã.

São eles que abrem os olhos inexperientes e inquietos
Das crianças apenas lançadas no regaço do mundo
Para o sangue misterioso esquecido em panos amontoados
Onde ainda brilha o rubro olhar implacável da grande princesa.

Não há anátema para a Legião dos Cavaleiros Úrias
Passa o inevitável onde passam os Cavaleiros Úrias
Por que a fatalidade dos Cavaleiros Úrias?
Por que, por que os Cavaleiros Úrias?

Oh, se a tempestade boiasse eternamente no céu trágico
Oh, se fossem apagados os raios da louca estéril
Oh, se o sangue pingado do desespero dos Cavaleiros Úrias
Afogasse toda a região amaldiçoada!

Seria talvez belo — seria apenas o sofrimento do amor puro
Seria o pranto correndo dos olhos de todos os jovens
Mas a Legião dos Úrias está espiando a altura imóvel
Fechai as portas, fechai as janelas, fechai-vos, meninas!

Eles virão, uns após outros, os olhos brilhando no escuro
Fixando a lua gelada sem estremecimento
Chegarão os Úrias, beirando os grotões enluarados sobre cavalos lívidos
Quando a meia-noite surgir nas estradas vertiginosas das montanhas.


Poemas e Poesias sexta, 27 de maio de 2022

MARINHA (POEMA DO PAULISTA VICENTE DE CARVALHO)

MARINHA

Vicente de Carvalho

 

 

 

Eis o tempo feliz das pescarias — quando
Maio aponta a sorrir pela boca das flores.
Derramam-se na praia as gaivotas em bando...
Alerta, pescadores!

Crepusculeja ainda a aurora, mas quem pesca
Deve esperar o dia entre as ondas — enquanto
Sopra enfunando a vela a matutina fresca
E o sol não queima tanto.

Mulheres, fazei fogo! Ao alcance do braço,
Mesmo à porta do rancho a maré pôs a lenha.
Aprontai o café! Vibra já pelo espaço
A buzina roufenha.

Peixe na costa! O aviso erra de frágua em frágua,
Chama de rancho em rancho os pescadores. Eia!
As canoas estão ainda fora d'água
Encalhadas na areia:

Prestes, descei-as! Ide apanhar às estacas
A rede. Ide-a colhendo às pressas; colocai-a
Na canoa. Descendo agora nas ressacas,
Isso, fora da praia!

E é remar, é remar para o largo... As crianças
E as mulheres, em terra, esperam aguentando
O cabo que por sobre o azul das ondas mansas
A rede vai largando...


Poemas e Poesias quinta, 26 de maio de 2022

LET*S PLAY THAT (POEMA DO PIAUIENSE TORQUATO NETO)

LET'S PLAY THAT

Torquato Neto

 

 

 

quando eu nasci
um anjo louco muito louco
veio ler a minha mão
não era um anjo barroco
era um anjo muito louco, torto
com asas de avião

eis que esse anjo me disse
apertando minha mão
com um sorriso entre dentes
vai bicho desafinar
o coro dos contentes
vai bicho desafinar
o coro dos contentes
let's play that

 


Poemas e Poesias quarta, 25 de maio de 2022

A VIDA VERDADEIRA (POEMA DO AMAZONENSE THIAGO DE MELLO)

A VIDA VERDADEIRA

Thiago de Mello

 

 

 

Pois aqui está a minha vida.
Pronta para ser usada.
 
Vida que não se guarda
nem se esquiva, assustada.
Vida sempre a serviço da vida.
Para servir ao que vale
a pena e o preço do amor.
 
Ainda que o gesto me doa,
não encolho a mão: avanço
levando um ramo de sol.
Mesmo enrolada de pó,
dentro da noite mais fria,
a vida que vai comigo é fogo:
está sempre acesa.
 
Vem da terra dos barrancos
o jeito doce e violento
da minha vida: esse gosto
da água negra transparente.
A vida vai no meu peito,
mas é quem vai me levando:
tição ardente velando,
girassol na escuridão.
 
Carrego um grito que cresce
cada vez mais na garganta,
cravando seu travo triste
na verdade do meu canto.
 
Canto molhado e barrento
de menino do Amazonas
que viu a vida crescer
nos centros da terra firme.
Que sabe a vinda da chuva
pelo estremecer dos verdes
e sabe ler os recados
que chegam na asa do vento.
Mas sabe também o tempo
da febre e o gosto da fome.
 
Nas águas da minha infância
perdi o medo entre os rebojos.
Por isso avanço cantando.
 
Estou no centro do rio,
estou no meio da praça.
Piso firme no meu chão,
sei que estou no meu lugar,
como a panela no fogo
e a estrela na escuridão.
 
O que passou não conta?
indagarão as bocas desprovidas.
Não deixa de valer nunca.
O que passou ensina
com sua garra e seu mel.
Por isso é que agora vou assim
no meu caminho.
Publicamente andando.
 
Não, não tenho caminho novo.
O que tenho de novo
é o jeito de caminhar.
Aprendi (o caminho me ensinou)
a caminhar cantando
como convém a mim
e aos que vão comigo.
Pois já não vou mais sozinho.
 
Aqui tenho a minha vida:
feita à imagem do menino
que continua varando
os campos gerais
e que reparte o seu canto
como o seu avô
repartia o cacau
e fazia da colheita
uma ilha de bom socorro.
 
Feita à imagem do menino
mas à semelhança do homem:
com tudo que ele tem de primavera
de valente esperança e rebeldia.
 
Vida, casa encantada,
onde moro e mora em mim,
te quero assim verdadeira
cheirando a manga e jasmim.
Que me sejas deslumbrada
como ternura de moça
rolando sobre o capim.
 
Vida, toalha limpa,
vida posta na mesa,
vida brasa vigilante
vida pedra e espuma,
alçapão de amapolas,
o sol dentro do mar,
estrume e rosa do amor:
a vida.
 
Há que merecê-la.

Poemas e Poesias terça, 24 de maio de 2022

CANTO SEGUNDO (POEMA DO MARANHENSE SOUSÂNDRADE)

 

CANTO SEGUNDO

Sousândrade

 

c

 

Opalescem os céus — clarões de prata —
Beatífica luz pelo ar mimoso
Dos nimbos d'alva exala-se, tão grata
Acariciando o coração gostoso!

Oh! doce enlevo! oh! bem-aventurança!
Paradíseas manhãs! riso dos céus!
Inocência do amor e da esperança
Da natureza estremecida em Deus!

Visão celeste! angélica encarnada
Co'a nitente umidez d'ombros de leite,
Onde encontra amor brando, almo deleite,
E da infância do tempo a hora foi nada!

A claridade aumenta, a onda desliza,
Cintila co'o mais puro luzimento;
De púrpura, de ouro, a c'roa se matiza
Do tropical formoso firmamento!

Qual um vaso de fina porcelana
Que de através o sol alumiasse,
Qual os relevos da pintura indiana
É o oriente do dia quando nasce.

Uma por uma todas se apagaram
As estrelas, tamanhas e tão vivas,
Qual os olhos que lânguidas cativas,
Mal nutridas de amores, abaixaram.

Aclaram-se as encostas viridantes,
A espreguiçar-se a palma soberana;
Remonta a Deus a vida, à origem d'antes,
Amiga e matinal, donde dimana.

Acorda a terra; as flores da alegria
Abrem, fazem do leito de seus ramos
Sua glória infantil; alcion em clamos
Passa cantando sobre o cedro ao dia

Lindas loas boiantes; o selvagem
Cala-se, evoca doutro tempo um sonho,
E curva a fronte... Deus, como é tristonho
Seu vulto sem porvir em pé na margem!

Talvez a amante, a filha haja descido,
Qual esse tronco, para sempre o rio —
Ele abana a cabeça co'o sombrio
Riso do íris da noite entristecido.

 


Poemas e Poesias segunda, 23 de maio de 2022

ESSÊNCIA HUMANA (POEMA DO BAIANO RICARDO LIMA)

ESSÊNCIA HUMANA

Ricardo Lima

 

 

 

O em-si não dialoga;

O para-si, o completa

Na subjetividade,

No complexo-todo, que é a essência humana.

 

A consciência do em-si será sempre o para-si.


Poemas e Poesias domingo, 22 de maio de 2022

CRISTIANISMO (POEMA DO FLUMINENSE RAUL DE LEONI)

CRISTIANISMO

Raul de Leôni

 

 

 

Sonho um cristianismo singular
Cheio de amor divino e de prazer humano;
O Horto de Mágoas sob um céu virgiliano,
A beatitude com mais luz e com mais ar...

Um pequeno mosteiro em meio de um pomar,
Entre loureiros-rosa e vinhas de todo o ano.
Num misticismo lírico, a sonhar
Na orla florida e azul de um lago italiano...

Um cristianismo sem renúncia e sem martírios,
Sem a pureza melancólica dos lírios.
Temperado na graça natural...

Cristianismo de bom humor, que não existe,
Onde a Tristeza fosse um pecado venial,
Onde a Virtude não precisasse ser triste...

 

 

 


Poemas e Poesias sábado, 21 de maio de 2022

SENTIMENTO DO TEMPO (POEMA DO MINEIRO PAULO MENDES CAMPOS)

SENTIMENTO DO TEMPO

Paulo Mendes Campos

 

 

 

"Os sapatos envelheceram depois de usados
mas fui por mim mesmo aos mesmos descampados
E as borboletas pousavam nos dedos de meus pés.
As coisas estavam mortas, muito mortas,
Mas a vida tem outras portas, muitas portas.
Na terra, três ossos repousavam
Mas há imagens que não podia explicar; me ultrapassavam.
As lágrimas correndo podiam incomodar
Mas ninguém sabe dizer por que deve passar
Como um afogado entre as correntes do mar.
Ninguém sabe dizer por que o eco embrulha a voz
Quando somos crianças e ele corre atrás de nós.
Fizeram muitas vezes minha fotografia
Mas meus pais não souberam impedir
Que o sorriso se mudasse em zombaria
E um coração ardente em coisa fria.
Sempre foi assim: vejo um quarto escuro
Onde só existe a cal de um muro.
Costumo ver nos guindastes do porto
O esqueleto funesto de outro mundo morto
Mas não sei ver coisas mais simples como a água.
Fugi e encontrei a cruz do assassinado
Mas quando voltei, como se não houvesse voltado,
Comecei a ler um livro e nunca mais tive descanso.
Meus pássaros caíam sem sentidos.
No olhar do gato passavam muitas horas
Mas não entendia o tempo àquele como agora.
Não sabia que o tempo cava na face
Um caminho escuro, onde a formiga passe
Lutando com a folha.
O tempo é meu disfarce."


Poemas e Poesias sexta, 20 de maio de 2022

SURDINA (POEMA DO CARIOCA OLAVO BILAC)

SURDINA

Olavo Bilac

 

 

 

No ar sossegado um sino canta,
Um sino canta no ar sombrio...
Pálida, Vênus se levanta...
Que frio!

Um sino canta. O campanário
Longe, entre névoas, aparece...
Sino, que cantas solitário,
Que quer dizer a tua prece?

Que frio! embuçam-se as colinas;
Chora, correndo, a água do rio;
E o céu se cobre de neblinas.
Que frio!

Ninguém... A estrada, ampla e silente,
Sem caminhantes, adormece...
Sino, que cantas docemente,
Que quer dizer a tua prece?

Que medo pânico me aperta
O coração triste e vazio!
Que esperas mais, alma deserta?
Que frio!

Já tanto amei! já sofri tanto!
Olhos, por que inda estais molhados?
Por que é que choro, a ouvir-te o canto,
Sino que dobras a finados?

Trevas, caí! que o dia é morto!
Morre também, sonho erradio!
A morte é o último conforto...
Que frio!

Pobres amores, sem destino,
Soltos ao vento, e dizimados!
Inda vos choro... E, como um sino,
Meu coração dobra a finados.

E com que mágoa o sino canta,
No ar sossegado, no ar sombrio!
- Pálida, Vênus se levanta.
Que frio!


Poemas e Poesias quinta, 19 de maio de 2022

MAIÓ DECEPÇÃO - A HISTÓRIA DE UMA TRAPAÇA REVOLTANTE (POEMA DO CEARENSE PATATIVA DO ASSARÉ)

 

 

 

MAIÓ DECEPÇÃO

Patativa do Assaré

(A história de uma trapaça revoltante.)

 

Seu moço, que é viajante,

Conhece o sertão e a praça,

Deve conhecê bastante

O que é bondade e desgraça.

Sei que o Senhô teve estudo,

Conhece um pôco de tudo,

Pois munta coisa aprendeu,

Quêra escutá com tenção

A maió decepção

Que comigo aconteceu.

 

O meu nome é Malaquia,

Sou honrado, honesto e sero,

Sou o maió da freguesia

Na bondade e no critero.

Seu moço, eu sou tão isato

Que, quando faço o meu trato,

Só chego inriba da hora,

Tanto que, por causa disto,

Não dou valô a registo,

Ricibo nem promissóra.

 

Meus papé resorvo tudo,

Mas divido eu sê assim,

Já levei munto canudo,

Jurgando os ôtro por mim.

Daqui a três légua e meia,

Fica a cidade de Areia,

Que é sede municipá.

Foi lá que passei, patrão,

A maió decepção

Que a gente pode passá.

 

Chegou ali um sujeito,

Há seis ou sete ano atrás,

Sem vergonha, sem respeito,

Ladrão, cabreiro e sagaz,

Chamado Mané José.

Tinha a fala de muié,

Que fazia aborrecê.

A fala do tal gaiato

Era o miado de um gato,

Quando pede dicumê.

 

Lá na cidade, o sujeito

Vevia meio introsado

Com escrivão e prefeito,

Com juiz e delegado.

E o cara lisa, sabido,

Adoladô, inxirido,

Divido alguém lhe informá,

Ficou sabendo que eu era

Uma pessoa sincera

E intendeu de me robá.

 

Eu tava, uma menhãzinha,

Mais Raqué, minha muié,

Lá no fugão da cozinha,

Tomando o nosso café,

Quando uvi uma voz fina,

Parecendo uma buzina:

“Ô de casa! Ô de casa!”

Seu moço, eu naquela hora,

Saí de dentro pra fora,

Pisando inriba de brasa.

 

E aquele marmanjo horrendo,

Da cara de intipatia,

Quando me viu, foi dizendo:

“Como vai, seu Malaquia?

Não lhe conheço de vista,

Porém, a gente benquista

Já me deu informação:

Na cidade, me dissero

Que o senhô é o mais sincero

Dos home deste sertão.

 

Sabendo desta verdade,

Fiquei munto satisfeito,

Eu gosto da honestidade,

Pois sou deste mesmo jeito.

Pra sê pontuá e honrado,

Eu já nasci inducado

E, mesmo sem tê estudo,

A minha fala segura

Tem o valô da iscritura,

Com selo, carimbo e tudo.

 

Se qué sabê se é ou não,

Vá preguntá na cidade.

Lá, eu tenho relação

Com todas oturidade.

E é por isso que hoje venho

Aqui, com bastante impenho,

Falá com seu Malaquia,

Pra me imprestá um dinhêro,

Quatrocento mil cruzêro,

A juro, por quinze dia.

 

Pode crê neste meu dito,

O meu trato é tiro e queda,

Pra fazê papé bonito,

Pôca gente me arremeda;

É tanto que eu sou um sóço

De uma casa de negoço

Que tem lá na capitá

E ganho mais um salaro,

Pruquê sou foncionáro

Do gunvêrno estaduá.

 

Nunca a ninguém inganei,

Provo e faço um juramento

E, mesmo fora da lei,

Eu lhe pago a dez por cento,

O lucro não esperdice,

Pois gente boa me disse

Que o dinhêro o sinhô tem,

Não injeite o risurtado,

Pruquê dinhêro guardado

Nunca deu lucro a ninguém.

 

Seu moço, eu sou verdadêro,

É certo o que tou dizendo.”

Eu intreguei o dinhêro

Com as duas mão tremendo

E ele, quando recebeu,

Fingindo me respondeu,

Dizendo: “Seu Malaquia,

Os pé que veio buscá,

Os mêrmo vêm lhe pagá,

Quando interá quinze dia”.

 

Na hora que foi saindo

O cabra Mané José,

Desconfiança sentindo,

A minha esposa Raqué,

Pra ele não precebê,

Veio logo me dizê,

Baixinho, com a voz fraca,

Como quem faz um cuchicho:

“Malaquia, aquele bicho

Talvez te passe na maca!”

 

O que a muié me dizia

Foi dito e feito, patrão!

Quando interou quinze dia,

O cabra não chegou, não,

Desonrou o trato que fez

E eu fui atrás do freguez,

Daquele peste ladrão.

Era mió não tê ido,

Pruquê não tinha sofrido

A maió decepção.

 

Andei atrás do imbruião,

Rua arriba, rua abaxo

Dizendo com os meu botão:

“Miserave, eu hoje te acho!”

Já tava perdendo a fé,

Quando vi Mané José

Na sala de um botequim,

Numa banca de bebida,

Com sua cara lambida

E o jeito de muié ruim.

 

Quando eu vi Mané José,

Foi me esquentando as urêia,

Da cabeça até nos pé,

Fugiu-me o sangue das vêia

E eu disse: “Seu voz de gato!

Você quebrou nosso trato,

Vagabundo sem futuro!

Me diga se já tá pronto

Os meu quatrocento conto,

Que você tomou, a juro!”

 

E o cabra me respostou:

“Tá doido, seu Malaquia?

Juro por Nosso Senhô

Não lhe devo esta quantia”.

E, depois de risingá,

Negá, negá e negá,

Dizendo que não devia,

Me chamou, na mesma hora,

Pra eu contá minha históra,

Dentro da delegacia.

 

Depois daquele chamado,

Eu tive grande alegria,

Pruquê o senhô delegado,

Há tempo, me conhecia,

Mas lá na repartição,

Ele não me deu tenção,

Do meu dito não deu fé,

Fez um papé muito preto,

Puxando brasa pro espeto

Do cabra Mané José.

 

Eu disse: seu delegado,

Seu Mané José, um dia,

Chegou alegre e vexado,

Lá na minha moradia,

E eu lhe imprestei um dinhêro,

Quatrocento mil cruzêro,

Toda minha inconomia.

O trato já se findou

E hoje aqui ele jurou

Que não deve esta quantia.

 

Pra juntá este dinhêro,

Que tem seu Mané José,

Eu passei um ano intêro

Mais Raqué, minha muié,

Trabaiando todo dia

E fazendo inconomia,

Com o maió sofrimento.

Com aquele capitá

O meu prano era comprá

Meia duza de jumento.

 

Sei que o senhô delegado

Conhece bem o meu tipo,

Eu sou munto acreditado,

Dentro deste municipo,

Nunca fiz um papé ruim.

E ele respondeu pra mim:

“ – Para provar a verdade,

Sem testemunha não presta,

Isto de palavra honesta

Foi coisa da antiguidade”.

 

Ali, o cabra safado

Falou com estupidez:

“ – Munto bem, seu delegado,

Gostei do seu português,

E o senhô, seu Malaquia,

Me cobrando esta quantia,

Tá manchando o meu conceito,

É um grande atrevimento;

Se quisé comprá jumento,

Vá precurá ôtro jeito.

 

Eu nunca dei prejuízo,

Sou um cidadão de bem

E pra vivê não preciso

De dinhêro de ninguém.

A sua falsa cobrança

Prova a sua inguinorança,

É um caso de prisão.

Eu devia processá

Porém, vou lhe perdoá,

Eu tenho um bom coração”.

 

Seu moço, basta que eu toque

Nisto que tou lhe falando

Pra muié sinti um choque.

Ói Raqué, ali, chorando!

“Não chore não, Raquézinha!

Vá lá pra sua cozinha

Se esqueça daquela praga,

Daquela infeliz desgraça.

Destá, que a sua trapaça,

Lá nos inferno ele paga!”

 

Meu senhô, vou lhe pedi

Não me chame inguinorante,

Mas, por favô, quêra uvi,

A históra inda vai adiante,

Pois o nosso ingrato mundo

Cria certos vagabundo

Da mais baxa natureza:

O senhô inda não viu

Até em que grau subiu

Aquela sem-vergonheza.

 

Depois que o Diabo tramou

Aquela feia injustiça,

Lá da cidade azulou,

Sem mais ninguém tê notiça.

E o tempo foi se passando

E foi gastando, gastando

Aquela negra impressão

Que eu tinha do condenado,

Eu já tava miorado

Da minha decepção.

 

Porém, o prope inocente

Não tem sossêgo compreto,

O Diabo, com seus argente,

Não dêxa ninguém tá queto.

Eu, certa vez, resorvi

E um dia saí daqui,

Fui batê na capitá;

Não fui visitá parente,

Fui à capitá, somente,

Vê as beleza do má.

 

Pois, mesmo sem tê estudo

Sei que o má de tudo tem:

Ele é brando, ele é sisudo

E tanto vai como vem,

Tem de tudo uma parcela;

É das beleza mais bela

Das obra do Criadô.

O má representa briga,

Prazê, tristeza, cantiga,

Gemido, sodade e amô.

 

Eu fui, com grande alegria,

Vê as beleza do má.

E naquele mêrmo dia

Que cheguei na capitá,

Indo armunçá num hoté,

Lá eu vi Mané José

Trabaiando de garçon.

Naquela hora, seu moço,

Eu senti tanto sobroço,

Que a fala mudou de tom.

 

Eu tinha pedido um prato,

Quando avistei o bandido.

Pensei que aquele gaiato

Não tinha me conhecido,

Mas tive sorte mesquinha.

Eu ainda bem não tinha

Nem começado a comê

Meu prato de refeição,

A cuié caiu da mão,

Quando uvi ele dizê:

 

“Como vai, seu Malaquia?

Se o senhô qué se hospedá,

Vai tê toda garantia,

Este é o hoté populá,

Onde a honestidade mora.

Tem de tudo, a toda hora,

É esta a pensão que agrada

A todo e quarqué freguez

E o quarto número 6

Tem cama desocupada”.

 

Senti medonha surpresa,

Fiquei danado da vida,

Fastei pro meio da mesa

O meu prato de comida,

Fiz depressa o pagamento

E, nesse mesmo momento,

Sem uma palavra dá,

Saí pra rua apressado,

Como quem tinha escutado

A mãe do Diabo rinchá.

 

Fiquei todo deferente,

Fiquei leso, fiquei tonto.

Veio logo em minha mente

Os meus quatrocento conto,

Que aquele cão deu sumiço.

Como a dô de um panariço,

Que se espreme o carnegão,

O meu coração doeu

E, de novo, apareceu

A minha decepção.

 

E hoje, até mêrmo drumindo,

Vejo, quando tou sonhando,

O Mané José mentindo

E o delegado apoiando.

Ôtras vez, mesmo acordado,

Fico meio amalucado,

Pruquê escuto, argum dia,

A voz daquele atrivido

Zuando nos meus uvido:

“Como vai, seu Malaquia?!” 

 


Poemas e Poesias quarta, 18 de maio de 2022

A VELHA MANGUEIRA (POEMA DO PERNAMBUCANO OLEGÁRIO MARIANO)

A VELHA MANGUEIRA

Olegário Mariano

 

 

 

No pátio da senzala que a corrida
Do tempo mau de assombrações povoa,
Uma velha mangueira, comovida,
Deita no chão maldito a sombra boa.

Tinir de ferros, música dorida,
Vago maracatu no espaço ecoa...
Ela, presa às raízes, toda a vida,
Seu cativeiro, em flores, abençoa...

Rondam na noite espectros infelizes
Que lhe atiram, dos galhos às raízes,
Em blasfêmias de dor, golpes violentos.

E, quando os ventos rugem nos espaços,
Os seus galhos se torcem como braços
De escravos vergastados pelos ventos.


Poemas e Poesias terça, 17 de maio de 2022

I - PRAÇA DA REPÚBLICA (POEMA DO PAULISA MENOTTI DEL PICCHIA)

I - PRAÇA DA REPÚBLICA

Menotti Del Picchia

 

 

 

Os chorões lavaram seus cabelos verdes
nas piscinas de cimento
dentadas de rochedos feitos por marmoristas
e desenhados por Debugras

Há peixes dispépticos que só comem pão-de-ló
servidos pelos dedos lunares das Salomés-normalistas
que sabem de cor as façanhas de Tom-Mix e Tiradentes.

As astúrias cortaram suas tranças "à la garçonne"
e ouvem lições de geometria no espaço
de sábios buxos cubistas...

Praça da República cheia de mulheres públicas
de detritos humanos, como um porto cosmopolita onde os táxis atracam,
velhas catraias urbanas
que vogam nos canais de asfalto das alamedas.

Álvares de Azevedo, o último Romântico,
condenado às galés da imortalidade,
cospe na praça noturna,
do alto de sua herma,
o seu desdém de bronze.


Poemas e Poesias segunda, 16 de maio de 2022

EU ESCREVI UM POEMA TRISTE (POEMA DO GAÚCHO MÁRIO QUINTANA)

EU ESCREVI UM POEMA TRISTA

Mário Quintana

 

 

 

Eu escrevi um poema triste

E belo, apenas da sua tristeza.

Não vem de ti essa tristeza

Mas das mudanças do Tempo,

Que ora nos traz esperanças

Ora nos dá incerteza...

Nem importa, ao velho Tempo,

Que sejas fiel ou infiel...

Eu fico, junto à correnteza,

Olhando as horas tão breves...

E das cartas que me escreves

Faço barcos de papel!


Poemas e Poesias domingo, 15 de maio de 2022

SEU NOME (POEMA DA MARANHENSE MARIA FIRMINA DOS REIS, NA VOZ DE SOCORRO LIRA) VÍDEO

 

 

 


Poemas e Poesias sábado, 14 de maio de 2022

CHAMA E FUMO (POEMA DO PERNAMBUCANO MANUEL BANDEIRA)

CHAMA E FUMO

Manuel Bandeira

 

 

 

Amor - chama e, depois, fumaça...
Medita no que vais fazer:
O fumo vem, a chama passa...

Gôzo cruel, ventura escassa,
Dono do meu e do teu ser,
Amor - chama e, depois, fumaça...

Tanto êle queima! e, por desgraça,
Queimado o que melhor houver,
O fumo vem, a chama passa...

Paixão puríssima ou devassa,
Triste ou feliz, pena ou prazer,
Amor - chama e, depois, fumaça...

A cada par que a aurora enlaça,
Como é pungente o entardecer!
O fumo vem, a chama passa...

Antes, todo êle é gôsto e graça.
Amor, fogueira linda a arder!
Amor - chama e, depois, fumaça...

Porquanto, mal se satisfaça,
(Como te poderei dizer?...)
O fumo vem, a chama passa...

A chama queima. O fumo embaça.
Tão triste que é! Mas, tem de ser...
Amor?... - chama e, depois, fumaça:
O fumo vem, a chama passa...


Poemas e Poesias sexta, 13 de maio de 2022

O APANHADOR DE DESPERDÍCIOS (POEMA DO MATO-GROSSENSE MANOEL DE BARROS)

O APANHADOR DE DESPERDÍCIOS

Manoel de Barros

 

 

 

Uso a palavra para compor meus silêncios.
Não gosto das palavras
fatigadas de informar.
Dou mais respeito
às que vivem de barriga no chão
tipo água pedra sapo.
Entendo bem o sotaque das águas
Dou respeito às coisas desimportantes
e aos seres desimportantes.
Prezo insetos mais que aviões.
Prezo a velocidade
das tartarugas mais que a dos mísseis.
Tenho em mim um atraso de nascença.
Eu fui aparelhado
para gostar de passarinhos.
Tenho abundância de ser feliz por isso.
Meu quintal é maior do que o mundo.
Sou um apanhador de desperdícios:
Amo os restos
como as boas moscas.
Queria que a minha voz tivesse um formato
de canto.
Porque eu não sou da informática:
eu sou da invencionática.
Só uso a palavra para compor meus silêncios.


Poemas e Poesias quinta, 12 de maio de 2022

FORMOSA (POEMA DO PERNAMBUCANO MACIEL MONTEIRO)

FORMOSA

Maciel Monteiro

 

 

 

Formosa, qual pincel em tela fina
Debuxar jamais pode ou nunca ousara;
Formosa, qual jamais desabrochara
Na primavera a rosa purpurina;

Formosa, qual se a própria mão divina
Lhe alinhara o contorno e a forma rara;
Formosa, qual jamais no céu brilhara
Astro gentil, estrela peregrina;

Formosa, qual se a natureza e a arte,
Dando as mãos em seus dons, em seus lavores
jamais soube imitar no todo ou parte;

Mulher celeste, oh! anjo de primores!
Quem pode ver-te, sem querer amar-te?
Quem pode amar-te, sem morrer de amores?!


Poemas e Poesias quarta, 11 de maio de 2022

LÍNGUA À BRASILEIRA (POEMA DO PERNAMBUCANO LUÍS TURIBA)

LÍNGUA À BRASILEIRA

Luís Turiba

 

 

 

Ó órgão vernacular alongado
Hábil áspero ponteado
Móvel Nobel ágil tátil
Amálgama lusa malvada
Degusta deglute deflora
Mas qual flora antropofágica
Salva a pátria mal amada
 
Língua-de-trapo Língua solta
Língua ferina Língua douta
Língua cheia de saliva
Saravá Língua-de-fogo e fósforo
Viva & declinativa
Língua fônica apócrifa
Lusófona & arcaica
Crioula iorubáica
 
Língua-de-sogra Língua provecta
Língua morta & ressurecta
Língua tonal e viperina
Palmo de neolatina
Poema em linha reta
Lusíadas no fim do túnel
Caetano não fica mudo
Nem “Seo” Manoel lá da esquina
 
Por ti Guesa errante, afro-gueixa
O mar se abre o sol se deita
Por Mários de Sagarana
Por magos de Saramago
Viva os lábios!
Viva os livros!
Dos Rosas Campos & Netos
Os léxicos, Andrades, os êxtases
Toda a síntese da sintaxe
Dos erros milionários
Desses malandros otários
Descartáveis, de gorjetas.
 
Língua afiada a Machado
Afinal, cabeça afeita
Desafinada índia-preta
Por cruzas mil linguageiras
A coisa mais Língua que existe
É o beijos da impureza
Desta Língua que adeja
Toda a brisa brasileira
Por mim,
              Tupi,
                       Por tu Guesa

Poemas e Poesias terça, 10 de maio de 2022

OLHOS TRISTES (POEMA DO CARIOCA LUÍS EDMUNDO)

OLHOS TRISTES

Luís Edmundo

 

 

 

 

Olhos tristes, vós sois com dois sóis num poente,

Cansados de luzir, cansados de girar,

Olhos de quem andou na vida alegremente

Para depois sofrer, para depois chorar.

 

Andam neles agora a vagar lentamente,

Como as velas das naus sobre as águas do mar,

Todas as ilusões do vosso sonho ardente.

Olhos tristes, vós sois dois monges a rezar.

 

Ouço ao vos ver assim, tão cheios de humildade,

Marinheiros cantando a canção da saudade

Num coro de tristeza e de infinitos ais.

 

Olhos tristes, eu sei vossa história sombria

E sei quando chorais cheios de nostalgia,

O sonho que passou e que não torna mais.


Poemas e Poesias segunda, 09 de maio de 2022

AS MULHERES - RECORDAÇÕES DE UM VELHO (POEMA DO PORTUGUÊS JÚLIO DINIS)

AS MULHERES
(RECORDAÇÕES DE UM VELHO)

Júlio Dinis

 

Tenho oitenta anos contados Dos meus cabelos nevados Bem poucos me restam
já;
Tem-me ido até agora a vida
D’amor pr’amor impelida,
Até quando… Deus dirá.

Tinha dez anos apenas, E já nas tardes serenas,
Ao declinar do calor,
Me agitava o pensamento
Como agita as flores o vento
Uma idéia só — amor.

Na aldeia em que eu residia
Defronte de mim vivia
Quem tal amor me inspirou.
Uma criança era ainda,
Porém nunca flor tão linda
Os olmedos enfeitou.

Uma manhã, como a visse
Junto de mim, eu lhe disse
Coisas que me lembram mal;
Ela, ao passo que me ouvia,
Baixava os olhos, sorria…
E deu-me um beijo, afinal

E desde então por diante
Fiquei sendo seu amante
E fui amado também.
À sombra dos arvoredos, Dizíamos mil segredos,
Que nunca entendemos bem.

Tempos assim decorreram, Felizes tempos que eram!
‘Té que pra cidade eu vim. Chorámos na despedida
Mas supondo-se esquecida, Ela esqueceu-se de mim.

Outra vida, outros amores
Da cidade entre os fulgores,
Tinha quinze anos, amei.
Era uma virgem trigueira
Olhos negros, prazenteira,
Doido por ela fiquei.

Os livros abandonava, Horas e horas passava Com ela, sem o sentir; Meu tio
franzia a testa, Porém, à hora da sesta, Costumava ele dormir.

Ia então pra junto dela, Chamava-lhe meiga, bela,
E o que é costume chamar. Ela ouvia-me, corava,
Na costura continuava
E deixava-me falar.

Duma vez, pedi-lhe um beijo, Ela mostrou algum pejo,
Mas enfim… sempre mo deu ; Atrás deste, outros vieram
E o bem que me eles souberam
Nunca depois me esqueceu.

Mas numa noite de festa, Para mim noite funesta,
Todo este amor se extinguiu; Toda esta nossa ternura,
Que eu julguei de tanta dura, A um capricho sucumbiu.

Todos no baile dançavam, E às valsas se entregavam Com furor;
faltava eu só. Como dançar não sabia, Para um canto me
metia, Triste que fazia dó ;

Ora, é coisa bem sabida, Que a dança cá nesta vida,
Não se dispensa a um rapaz; Adeus amores, se não dança…
Neste mundo mais alcança Quem mais cabriolas faz.

Por não dançar, fui deposto E, como após um Sol-posto,
Se levanta um novo Sol.
O que pr a par a tirara
Logo ali me arremessara
Dos esquecidos para o rol.

Fiquei livre; mas em brev e
A minha cabeça leve
Me envolveu noutra prisão.
Estava escrito em meu destino
Que havia de errar sem tino
De afeição em afeição.

Tinha vinte anos. Um dia Pra ver se me distraía Num teatro me meti;
Mal no palco os olhos prego Que perdi o meu sossego Desde logo conheci.

Estremeci de surpresa
Ao contemplar a beleza
Com que brilhava uma actriz!
Perdido fiquei a vê-la!
Nunca vi mulher tão bela!
Nem uns olhos tão gentis!

Cai o pano, as palmas soam
E por toda a parte ecoam
De poetas mil canções.
Tudo isso me revela
Que a muitos os olhos dela
Incendiaram os corações.

Abandono a sala, corro, Quero vê-la, senão morro, Quero ver
os olhos seus, Quero dizer-lhe que a adoro
E que em chamas me devoro, Contar-lhe os tormentos meus.

Entro no palco, perdido, Doido de todo… varrido, Vejo-a, lanço-me
a seus pés.
Disse amá-la como um louco, E, como achasse isto pouco, Repeti-lho
muita vez.

Ela olhou-me com um sorriso, Como nem no paraíso
Um sorriso assim se vê ;
— «Se tem um amor como o pinta,
Que o futuro o não desminta.» Me disse ela. — E tenha fe.

Voltei para casa exaltado Quase meio embriagado, Coisas que o amor produz.
Mas dormir debalde tento, Impede-me o pensamento, Toda a noite olho não
pus.

Já quarenta anos eu tinha Quando, por desgraça minha, Tornei
no engodo a cair;
Foi uma rica matrona
Que me meteu nesta fona
Donde me custou a sair.

Viúva de três maridos, Tinha intentos decididos
De ainda mais outro matar.
Se a pensar nisto me ponho,
Um destino tão medonho
Me faz hoje arrepiar!

Mas enfim o amor é cego
E amava-a, não o nego,
A razão não a sei eu.
Por isso talvez influísse
Pra cair nesta doidice
O que ela tinha de seu.

Fiz-lhe um dia três sonetos, Falei-lhe nos meus afectos, Ela ao lê-los
me sorriu.
E, respondendo-me em presa, Prometeu ser minha esposa
E um beijo me permitiu.

Com ela as tardes passava, Em sua casa merendava
Chá com leite e pão-de-ló. Jogava-se à noite o
quino
E aturava-lhe o menino
Com paciência de Job.

Nada mais apetecendo, Assim íamos vivendo
Um com outro em santa paz; Já se marcava o momento Para o nosso casamento…
Quando tudo se desfez.

Foi o caso que num dia
Chegou, vindo da Baía, E lhe lançou o anzol,
Um ricaço brasileiro,
Que cheirando-lhe a dinheiro,
Casou ele e pôs-me ao sol.

Causou-me um vivo desgosto
Ver-me assim, sem mais, deposto
Por este sensaborão…
Mas então? Tinha dinheiro,
Em brev e o vi Conselheiro
E pouco depois Barão.

Abandonar os amores
Que se pra os mais só tem flores
Eu por mim poucas lhe vi.
Jurei, mas quis meu fadário,
Que a cruz levasse ao Calvário,
Que remédio obedeci.

Já no inverno das idades Eu entrava, e as verdades, Que então
a vida nos diz,
Pra mim não se revelavam, Os cabelos me nevavam Quando eu outra asneira
fiz.

E desta vez o objecto Do meu sensível afecto E das minhas afeições
Era uma velha provecta E que já inha uma neta
Capaz de inspirar paixões.

Chamei-lhe rola, gazela, Comparei os olhos dela Com as estrelas dos céus.
Ela, como bem-criada,
Não só não ficou calada
Mas disse o mesmo dos meus

Uma noite, à luz da Lua Eu… beijei-lhe a face sua A sua enrugada
tez.
E ela a modo que gostava, Mostrou que não estranhava, Pois nem corada
se fez.

Tinha, sim, ela um defeito? Mas no mundo, amor perfeito Só em flor,
é que se vê.
É que, por mais que eu teimava,
Nunca ela se deixava
De me tratar por você!

Era destas formosuras
Que é melhor ver às escuras
Que na presença de luz.
Quantas mais trevas a cobrem
Mais dotes se lhe descobrem
E mais amor nos seduz.

Já o Verão principiava
E com ele começava
O tempo dos arraiais;
Quis que a uma acompanhasse
E como tal recusasse
Deixou-me pra nunca mais.

Se há caprichos nesta idade, Como é que havê-los não
há-de Na estação juvenil?
A mulher é caprichosa
Como é fragrante a rosa
E florido o mês de Abril.

Livre, fiquei com a rosa Livre, como a mariposa Como a rã pelos pauis;
Fiquei livre como os ventos
Que espalham nuvens aos centos
Pelos espaços azuis.

Já do que tendes ouvido. Podeis ver como Cupido Se fez comigo taful.
E, com um gênio assim feito, Para viver tinha jeito
Num serralho de Istambul.

E pr a que tudo vos conte Dir-vos-ei que aqui defronte Descobri esta manhã
Uma velhinha sem dentes
Muito rica e sem parentes 1
Vou requestá-la amanhã.

Porém eu cá já estou certo
Que, apesar dos cem bem perto,
Caprichos ela há-de ter.
Mas, embora, paciência,
Da mulher é essa a essência…
O que se lhe há-de fazer?

E mal pr a eles iria
Se lhes desse na mama
Seus caprichos desterrar.
Crede, meus alvos cabelos
Um dos seus dotes mais belos
É mesmo esse caprichar.


Poemas e Poesias domingo, 08 de maio de 2022

O APITO DO PASSADO (POEMA DO MARANHENSE JOSÉ CHAGAS)

O APITO DO PASSADO

José Chagas

 

 

 

O Mearim derrama na distância
uma água que em sonhos nos invade,
como fio invisível que se lance a
separar em duas a cidade.

E essa água vem banhar sem que se canse a
vida inteira que no rio nade,
porquanto água de amor que lava infância
lava também velhice e mocidade.

Mearim — rio velho e rio novo,
alegria e aflição de um mesmo povo —
um mar se afoga nos mistérios teus.

Mas preservas em ti, para Pedreiras,
vibrando no ar, o apito das primeiras
lanchas que nos deixaram seu adeus.

 


Poemas e Poesias sábado, 07 de maio de 2022

POEMA À PÁTRIA (POEMA ALAGOANO JORGE DE LIMA)

POEMA À PÁTRIA

Jorge de Lima

 

 

 

Ó grande
país
Tu aderiste também.
Teus urubus são inquietados
Nos teus ares altíssimos pelos aviões.
Nos teus céus os anjos já não podem solfejar,
Sufocados de fumaça, importunados pelo pessoal
Do Limbo.

Tu vais ficar irremediavelmente
Toda a América
Irremediavelmente gêmeo,
Irremediavelmente comum.


Poemas e Poesias sexta, 06 de maio de 2022

O RELÓGIO (POEMA DO PERNAMBUCANO JOÃO CABRAL DE MELO NETO)

O RELÓGIO

João Cabral de Melo Neto

 

 

 

Ao redor da vida do homem

há certas caixas de vidro,

dentro das quais, como em jaula,

se ouve palpitar um bicho.

 

Se são jaulas não é certo;

mais perto estão das gaiolas

ao menos, pelo tamanho

e quadradiço de forma.

 

Uma vezes, tais gaiolas

vão penduradas nos muros;

outras vezes, mais privadas,

vão num bolso, num dos pulsos.

 

Mas onde esteja: a gaiola

será de pássaro ou pássara:

é alada a palpitação,

a saltação que ela guarda;

 

e de pássaro cantor,

não pássaro de plumagem:

pois delas se emite um canto

de uma tal continuidade

 

que continua cantando

se deixa de ouvi-lo a gente:

como a gente às vezes canta

para sentir-se existente.

 

O que eles cantam, se pássaros,

é diferente de todos:

cantam numa linha baixa,

com voz de pássaro rouco;

 

desconhecem as variantes

e o estilo numeroso

dos pássaros que sabemos,

estejam presos ou soltos;

 

têm sempre o mesmo compasso

horizontal e monótono,

e nunca, em nenhum momento,

variam de repertório:

 

dir-se-ia que não importa

a nenhum ser escutado.

Assim, que não são artistas

nem artesãos, mas operários

 

para quem tudo o que cantam

é simplesmente trabalho,

trabalho rotina, em série,

impessoal, não assinado,

 

de operário que executa

seu martelo regular

proibido (ou sem querer)

do mínimo variar.

 

A mão daquele martelo

nunca muda de compasso.

Mas tão igual sem fadiga,

mal deve ser de operário;

 

ela é por demais precisa

para não ser mão de máquina,

a máquina independente

de operação operária.

 

De máquina, mas movida

por uma força qualquer

que a move passando nela,

regular, sem decrescer:

 

quem sabe se algum monjolo

ou antiga roda de água

que vai rodando, passiva,

graçar a um fluido que a passa;

 

que fluido é ninguém vê:

da água não mostra os senões:

além de igual, é contínuo,

sem marés, sem estações.

 

E porque tampouco cabe,

por isso, pensar que é o vento,

há de ser um outro fluido

que a move: quem sabe, o tempo.

 

Quando por algum motivo

a roda de água se rompe,

outra máquina se escuta:

agora, de dentro do homem;

 

outra máquina de dentro,

imediata, a reveza,

soando nas veias, no fundo

de poça no corpo, imersa.

 

Então se sente que o som

da máquina, ora interior,

nada possui de passivo,

de roda de água: é motor;

 

se descobre nele o afogo

de quem, ao fazer, se esforça,

e que ele, dentro, afinal,

revela vontade própria,

 

incapaz, agora, dentro,

de ainda disfarçar que nasce

daquela bomba motor

(coração, noutra linguagem)

 

que, sem nenhum coração,

vive a esgotar, gota a gota,

o que o homem, de reserva,

possa ter na íntima poça.


Poemas e Poesias quinta, 05 de maio de 2022

CONFISSÃO INICIAL (POEMA DO ACRIANO J. G. DE ARAÚJO JORGE)

CONFISSÃO INICIAL

J. G. de Araújo Jorge

 

 

 

Às vezes, tenho a impressão
de que não devia publicar estas palavras
nascidas para viverem em surdina
ao teu ouvido.

Às vezes penso que deveria deixar no limbo
do coração
estas palavras de ti e para ti
e que tomaram imprevistamente
a forma de canção.

Estas palavras que te colhem toda
e te deixam nua,
e me dão a impressão de que também
tenho nu o coração, em plena rua.


Poemas e Poesias quarta, 04 de maio de 2022

DO AMOR CONTENTE E MUITO DESCONTENTE - 6 (POEMA DA PAULISTA HILDA HILST)

DO AMOR CONTENTE E MUITO DESCONTENTE - 6

Hilda Hilst

 

 

 

Tudo é triste. Triste como nós
Vivos ausentes, a cada dia esperando
O imutável presente.
Tudo é triste. Triste como eu
Antiga de carícias
De olhos e lamentos
Lenta no andar, lenta
Irmã
De algum canto de ave
De silêncio na nave, irmã.

Vamos partir, amor.
Subir e descer rios
Caminhar nos caminhos
Beijar
Amar como feras
Rir quando vier a tarde.
E no cansaço

Deitaremos imensos
Na planície vazia de memórias.


Poemas e Poesias terça, 03 de maio de 2022

ANOITECER NA PRAIA (POEMA DO SERGIPANO HERMES FONTES)

ANOITECER, NA PRAIA

Hermes Fontes

 

 

 

Junto ao mar, as crianças
são mais alegres; as mulheres são
mais harmoniosas,
mais naturais.
E, enquanto a ondulação
das águas marulhosas
arma, em seu ritmo, imprevistas danças
isócronas, mas sempre desiguais;
e a escumilha na praia arma frouxéis de rosas,
efêmeros, sutis, quase irreais;
e as crianças, à beira da água, armam castelos
na úmida areia,
sob os olhos da miss, ou da ama que as ladeia,
e o distraído encanto dos papais;
e os velhos, em seus trajos mais singelos,
sob os toldos velados,
repousados,
sorriem cachimbando,
recordando
coisas imemoriais, —
cada mulher que passa é atávica sereia;
é atávico tritão
cada atleta que emerge à ondulação
da correnteza rejuvenescente;
é atávico tritão
aquele nadador adolescente
ora a subordinar o mar fremente
que resfolega e ondeia,
ao ritmo do seu próprio coração...


Poemas e Poesias segunda, 02 de maio de 2022

CUBISMO(POEMA DO PAULISTA GUILHERME DE ALMEIDA)

CUBISMO

Guilherme de Almeida

 

 

Um Arlequim feito de cubos
equilibrados:
trinta losangos arranjados
sobre dois tubos.
— Ele talvez
jogue xadrez...

No halo, que a lâmpada tranquila
rasga, de cima,
esse Arlequim de pantomima
oscila, oscila,
e vem... e vai...
e quase cai...

Mas entra alguém: é uma silhueta
que espia e passa.
Seu riso é um fruto sob a graça
da mosca preta
— É uma mulher
como qualquer...

Um gesto só lânguido e doce:
e, num instante,
Dom Arlequim, o petulante,
esfarelou-se...
— Todo Arlequim
é mesmo assim...


Poemas e Poesias domingo, 01 de maio de 2022

ELEGIA (POEMA DO PORTUGUÊS GUERRA JUNQUEIRO)

ELEGIA

Guerra Junqueiro

 

 

 

A alegria da vida, essa alegria d'oiro
A pouco e pouco em mim vai-se extinguindo, vai...
          Melros alegres de bico loiro,
          Ó melros negros, cantai, cantai!

Ando lívido, arrasto o pobre corpo exangue,
Que era feito da luz das claras madrugadas...
          Rosas vermelhas da cor do sangue,
          Rosas abri-vos às gargalhadas!

Limpidez virginal, graça d'Anacreonte,
Mimo, frescura, força, onde é que estais?... não sei!...
          Ó águas vivas, águas do monte,
          Ó águas puras, correi, correi!

Eu sinto-me prostrado em lânguido desmaio,
E a minha fronte verga exausta para o chão...
          Cedros altivos, sem medo ao raio,
          Cedros erguei-vos pela amplidão!


Poemas e Poesias sábado, 30 de abril de 2022

ENCANTAMENTO (POEMA DA CARIOCA GILKA MACHADO)

ENCANTAMENTO

Gilka Machado

 

 

A Francisco Alves
- O perfeito intérprete da canção brasileira

Canta,
que tua voz
ardente e moça
faz com que eu sinta a meiguice
das palavras que a vida não me disse.

Para te ouvir melhor
abro as janelas
e fico a sós
com tua voz
sonhando
que a noite está cantando
pelos lábios de fogo das estrelas.

Canta,
boca febril que não conheço,
que nunca me falaste e que me dizes tudo!...

Ave estranha
de garras de veludo,
entoa para mim
uma canção sem fim!

Canta,
que ao teu canto vejo
em tudo
quietude atroz
de insatisfeito desejo
Canta,
— em cada ouvido há um beijo
para tua linda voz.


Poemas e Poesias quinta, 28 de abril de 2022

SERRANILHA (POEMA DO PORTUGUÊS GIL VICENTE)

SERRANILHA

Gil Vicente

 

 

 

A serra é alta, fria e nevosa;
vi venir serrana gentil, graciosa.

Vi venir serrana, gentil, graciosa,
cheguei-me per'ela com grã cortesia.

Cheguei-me per'ela de grã cortesia,
disse-lhe: senhora, quereis companhia?

Disse-lhe: senhora, quereis companhia?
Disse-me: escudeiro, segui vossa via.


Poemas e Poesias quarta, 27 de abril de 2022

ADAMAH (POEMA DA PAULISTA FRANCISCA JÚLIA)

ADAMAH

Francisca Júlia

 

 

 

Homem, sábio produto, epítome fecundo

Do supremo saber, forma recém-nascida,

Pelos mandos do céu, divinos, impelida,

Para povoar a terra e dominar o mundo;

 

Homem, filho de Deus, imagem foragida,

Homem, ser inocente, incauto e vagabundo,

Da terrena substância, em que nasceu, oriundo,

Para ser o primeiro a conhecer a vida;

 

Em teu primeiro dia, olhando a vida em cada

Ser, seguindo com o olhar as barulhentas levas

De pássaros saudando a primeira alvorada,

 

Que ingênuo medo o teu, quando ao céu calmo elevas

O ingênuo olhar, e vês a terra mergulhada

No primeiro silêncio e nas primeiras trevas...


Poemas e Poesias terça, 26 de abril de 2022

ANSEIOS (POEMA DA PORTUGUESA FLORBELA ESPANCA)

ANSEIOS

Florbela Espanca

 

À minha Júlia

No teu imenso anseio de liberdade?
Toma cautela com a realidade;
Meu pobre coração olha que cais!

A doce quietação da soledade?
Tuas lindas quimeras irreais,
Não valem o prazer duma saudade!

Ai, vê lá bem, ó doido coração,
Não te deslumbre o brilho do luar!...

Deixa-te estar quietinho, triste monge,
Na paz da tua cela, a soluçar...


Poemas e Poesias segunda, 25 de abril de 2022

NO CORPO (POEMA DO MARANHENSE FERREIRA GULLAR)

NO CORPO

Ferreira Gullar

 

 

De que vale tentar reconstruir com palavras
o que o verão levou
entre nuvens e risos
junto com o jornal velho pelos ares?

O sonho na boca, o incêndio na cama.
o apelo na noite
agora são apenas esta
contração (este clarão)
de maxilar dentro do rosto.

A poesia é o presente.


Poemas e Poesias domingo, 24 de abril de 2022

COMEÇA A IR SER DIA (POEMA DO PORTUGUÊS FERNANDO PESSOA)

COMEÇA A IR SER DIA

Fernando Pessoa

 

 

 

Começa a ir ser dia,
O céu negro começa,
Numa menor negrura
Da sua noite escura,
A Ter uma cor fria
Onde a negrura cessa.

Um negro azul-cinzento
Emerge vagamente
De onde o oriente dorme
Seu tardo sono informe,
E há um frio sem vento
Que se ouve e mal se sente.

Mas eu, o mal-dormido,
Não sinto noite ou frio,
Nem sinto vir o dia
Da solidão vazia.
Só sinto o indefinido
Do coração vazio.

Em vão o dia chega
Quem não dorme, a quem
Não tem que ter razão
Dentro do coração,
Que quando vive nega
E quando ama não tem.

Em vão, em vão, e o céu
Azula-se de verde
Acinzentadamente.
Que é isto que a minha alma sente?
Nem isto, não, nem eu,
Na noite que se perde.


Poemas e Poesias sábado, 23 de abril de 2022

OUVIDOS DE ORVALHO (POEMA DO GAÚCHO FABRÍCIO CARPINEJAR)

OUVIDOS DE ORVALHO

Fabrício Carpinejar

 

 

 

Na eternidade, ninguém se julga eterno.
Aqui, nesta estada, penso que vou durar
além dos meus anos, que terei
outra chance de reaver o que não fiz.
Se perdoar é esquecer, me espera o pior:
serei esquecido quando redimido.

Não me perdoes, Deus. Não me esqueças.
O esquecimento jamais devolve seus reféns.

A claridade não se repete. A vida estala uma única vez.

O fogo é uma noz que não se quebra com as mãos.
A voz vem do fogo, que somente cresce se arremessado.
Não há como recuar depois de arder alto.
Fui lançado cedo demais às cinzas.

Somos reacionários no trajeto de volta.
Quando estava indo ao teu encontro,
arrisquei atalhos e travessas desconhecidas.
Acreditei que poderia sair pela entrada.
Ao retornar, não improviso.

Minha conversão é pelo medo,
orando de joelhos diante do revólver,
sem volver aos lados,
na dúvida se é de brinquedo ou de verdade.

O vento faz curva. Não mexo nos bolsos,
na pasta e na consciência,
nenhum gesto brusco de guitarra,
a ciência de uma mira
e o gatilho rodando próximo
do tambor dos dentes.

Derramado em Deus, junto meu desperdício.

Vou te extraviando no ato de nomear.
Melhor seria recuar no silêncio.

Cantamos em coro como animais da escureza.
Os cílios não germinaram.
Falta plantio em nossas bocas, vegetação nas unhas,
estampas e ervas no peito.
Suplicamos graves e agudos, espasmos e espanto,
compondo esquina com a noite.

Cantar não é desabafo,
mas puxar os sinos
além do nosso peso,
acordando a cúpula de pombas.

Somos fumaça e cera,
limo e telha,
névoa e leme.
O inverno nos inventou.

Não importa se te escuto
ou se explodes meus ouvidos de orvalho:
morre aquilo que não posso conversar?

Ficarei isolado e reduzido,
uma fotografia esvaziada de datas.
Os familiares tentarão decifrar quem fui
e o que prosperou do legado.
Haverei de ser um estranho no retrato
de olhos vivos em papel velho.

Escrevo para ser reescrito.
Ando no armazém da neblina, tenso,
sob ameaça do sol.
Masco folhas, provando o ar, a terra lavada.
Depois de morto, tudo pode ser lido.

Vejo degraus até no vôo.
Tua violência é a suavidade.
Não há queda mais funda
do que não ser o escolhido,
amargar o fim da fila,
ser o que fica para depois,
o que enumera os amigos
pelos obituários de jornal,
o que enterra e se retrai no desterro,
esfacela a rosa ao toque
na palidez das pétalas e velas,
vistoriando cada ruga
e infiltração de heras entre as veias,
nunca adulto para compreender.

Não há nada de natural na morte natural.
Divorciar-se do corpo, tremer ao segurar
as pernas, acomodar-se no finito
de uma cama e deitar com o tumulto
que vem de um túmulo vazio.


Poemas e Poesias sexta, 22 de abril de 2022

GONÇALVES DIAS - AO PÉ DO MAR (POEMA DO FLUMINENSE EUCLIDES DA CUNHA)

GONÇALVES DIAS - AO PÉ DO MAR

Euclides da Cunha

 

 

 

Seu eu pudesse cantar a grande história,
Que envolve ardente o teu viver brilhante!…
Filho dos trópicos que – audaz gigante –
Desceste ao túmulo subindo à Glória!…

Teu túmulo colossal – nest’hora eu fito –
Altivo, rugidor, sonoro, extenso –
O mar!… O mar!… Oh sim, teu crânio imenso –
Só podia conter-se – no infinito…

E eu – sou louco talvez – mas quando, forte,
Em seu dorso resvala – ardente – Norte,
E ele espumante estruge, brada, grita.

E em cada vaga uma canção estoura…
Eu – creio ser tu’alma que, sonora,
Em seu seio sem fim – brava – palpita!…


Poemas e Poesias quinta, 21 de abril de 2022

TROVAS HUMORÍSTICAS - 13 - (POEMA DO PARANAENSE ENO TEODORO WANKE)

TROVA HUMORÍSTICA 13

Eno Teodoro Wanke

 

Espartilhado, sofrendo

Estoicamente a tortura

O B é um D resolvido

A reduzir a cintura


Poemas e Poesias quarta, 20 de abril de 2022

INGRATOS (POEMA DO CARIOCA D. PEDRO II!

INGRATOS

Dom Pedro II

 

 

 

Não maldigo o rigor da iníqua sorte,
Por mais atroz que fosse e sem piedade,
Arrancando-me o trono e a majestade,
Quando a dous passos só estou da morte.

Do jogo das paixões minha alma forte
Conhece bem a estulta variedade,
Que hoje nos dá contínua f'licidade
E amanhã nem — um bem que nos conforte.

Mas a dor que excrucia e que maltrata,
A dor cruel que o ânimo deplora,
Que fere o coração e pronto mata,

É ver na mão cuspir a extrema hora
A mesma boca aduladora e ingrata,
Que tantos beijos nela pôs — outrora.


Poemas e Poesias terça, 19 de abril de 2022

O QUE É A VERDADE (POEMA DA MARANHENSE DAGMAR DESTÊRRO)

O QUE É A VERDADE

Dagmar Destêrro

 

 

 

Lancei a minha semente

na terra que conquistei.

Com cuidado e água crescente

aquele meu chão reguei.

 

Esperei com esperança

esse dia que chegou.

Fiz sorriso de criança

quando a plantinha vingou.

 

Retirei pedras pequenas,

pedras feitas de maldade;

com agudas pontas-penas,

arestas de falsidade.

 

Adubei com meu amor

o meu pedaço de terra;

pedaço pequeno, sei,

grande, porém, no que encerra.

 

Arranquei ervas daninhas,

afastei gestos diversos.

De manhã cantei modinhas.

A noite, disse meus versos.

 

Meu próprio sangue eu usei

para dar à planta alento.

Em muitas noite fiquei

vigilante e ao relento.

 

No meu chão está plantada.

Lutou, cresceu, prometeu.

Por muitos foi sufocada,

mas reagiu e venceu.

 

Minha vida é aquele chão,

pedaço da humanidade.

E a semente, simples grão,

é minha própria verdade.


Poemas e Poesias segunda, 18 de abril de 2022

MATER ADMIRABILIS (POEMA DO PIAUIENSE DA COSTA E SILVA)

MATER ADMIRABILIS

Da Costa e Silva

 

 

 

A vida amarga e triste é doce e linda,
Se temos mãe, e em sua imagem vemos
Os transportes sublimes e supremos
Do amor, que se transmite, mas não finda.

Mãe! se te quis com todos os extremos,
Hoje te quero muito mais ainda;
Pois amamos quanto mais sofremos
E a minha dor vai-se tornando infinda.

Se te amei, na ventura, na desgraça
As tuas mãos de lágrimas inundo,
Porque o afeto os limites ultrapassa.

É mais alto, mais vasto, mais profundo,
Desde que vi meus filhos sem a graça
Do melhor bem que se possui no mundo.


Poemas e Poesias domingo, 17 de abril de 2022

PAPOULAS (POEMA DO CATARINENSE CRUZ E SOUSA)

PAPOULAS

Cruz e Sousa

 

 

Assim loura és mais formosa
Do que se fosses trigueira:
Corpo de eflúvios de rosa
Com esbeltez de palmeira.

Vestida de cor da aurora
Leve dos fluidos da graça,
És uma estrela sonora
Que, em sonhos, pelo éter passe.

Resplandece em teu cabelo
Um fulgor de sol dourado,
Que só de senti-lo e vê-lo
Fica tudo iluminado.

Do teu branco leque aberto
Que lembra uma asa de garça,
Aspiro um perfume incerto,
Talvez a tua alma esparsa.

Num resplendor de madona
E altivez de corça arisca
Surges da luz entre a zona
Com quebrantos de odalisca.

Que venha o duque normando
De castelos escoceses
Com seu ar bizarro e brando
Amar-te os olhos ingleses.

E entre aromas e frescores
E revoadas de abelhas,
Como num campo de flores
Que esse olhar vibre centelhas.

Que cantem na tua boca
As alegrias radiadas,
Numa ideal rajada louca
De vôos de passaradas.

Que como os astros no espaço,
Teu encanto resplandeça...
Com pelúcias no regaço
E asas de ave na cabeça.

E que os teus dois seios puros
Que o amor fecundando beija
Fiquem cheios e maduros
Com dois bicos de cereja.

 


Poemas e Poesias sábado, 16 de abril de 2022

O PASSADO (POEMA DA GOIANA CORA CORALINA)

 

 

O PASSADO

Cora Coralina

 

O
salão da frente recende a cravo.
Um grupo de gente moça
se reúne ali.
"Clube Literário Goiano".
Rosa Godinho.
Luzia de Oliveira.
Leodegária de Jesus,
a presidência.

Nós, gente menor,
sentadas, convencidas, formais.
Respondendo à chamada.
Ouvindo atentas a leitura da ata.
Pedindo a palavra.
Levantando idéias geniais.

Encerrada a sessão com seriedade,
passávamos à tertúlia.
O velho harmônio, uma flauta, um bandolim.
Músicas antigas. Recitativos.
Declamavam-se monólogos.
Dialogávamos em rimas e risos.

D. Virgínia. Benjamim.
Rodolfo. Ludugero.
Veros anfitriões.
Sangrias. Doces. Licor de rosa.
Distinção. Agrado.

O Passado...

Homens sem pressa,
talvez cansados,
descem com leva
madeirões pesados,
lavrados por escravos
em rudes simetrias,
do tempo das acutas.
Inclemência.
Caem pedaços na calçada.
Passantes cautelosos
desviam-se com prudência.
Que importa a eles o sobrado?

Gente que passa indiferente,
olha de longe,
na dobra das esquinas,
as traves que despencam.
Que vale para eles o sobrado?

Quem vê nas velhas sacadas
de ferro forjado
as sombras debruçadas?
Quem é que está ouvindo
o clamor, o adeus, o chamado?...
Que importa a marca dos retratos na parede?
Que importam as salas destelhadas,
e o pudor das alcovas devassadas...
Que importam?

E vão fugindo do sobrado,
aos poucos,
os quadros do passado.


Poemas e Poesias sexta, 15 de abril de 2022

LXXXI (SONETOS) JUNTO DESTA JANELA CONTEMPLANDO (SONETO DO CARIOCA CLÁUDIO MANUEL DA COSTA)

LXXXI (SONETOS) JUNTO DESTA JANELA CONTEMPLANDO 

Cláudio Manuel da Costa

 

Junto desta corrente contemplando
Na triste falta estou de um bem que adoro;
Aqui entre estas lágrimas, que choro,
Vou a minha saudade alimentando.

Do fundo para ouvir-me vem chegando
Das claras hamadríades o coro;
E desta fonte ao murmurar sonoro,
Parece, que o meu mal estão chorando.

Mas que peito há de haver tão desabrido,
Que fuja à minha dor! que serra, ou monte
Deixará de abalar-se a meu gemido!

Igual caso não temo, que se conte;
Se até deste penhasco endurecido
O meu pranto brotar fez uma fonte.


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