Almanaque Raimundo Floriano
Fundado em 24.09.2016
(Cultural, sem fins comerciais, lucrativos ou financeiros)


Raimundo Floriano de Albuquerque e Silva, Editor deste Almanaque, também conhecido como Velho Fulô, Palhaço Seu Mundinho e Mundico Trazendowski, nascido em Balsas , Maranhão, a 3 de julho de 1936, Católico Apostólico Romano, Contador, Oficial da Reserva do Exército Brasileiro, Funcionário Público aposentado da Câmara dos Deputados, Titular da Cadeira nº 10 da Academia Passa Disco da Música Nordestina, cuja patrona é a cantora Elba Ramalho, Mestre e Fundador da Banda da Capital Federal, Pesquisador da MPB, especializado em Velha Guarda, Música Militar, Carnaval e Forró, Cardeal Fundador da Igreja Sertaneja, Pioneiro de Brasília, Xerife nos Mares do Caribe, Cordelista e Glosador, Amigo do Rio das Balsas, Inventor da Descida de Boia, em julho de 1952, Amigo da Fanfarra do 1° RCG, autor dos livros O Acordo PDS/PTB, coletânea de charges, Sinais de Revisão e Regras de Pontuação, normativo, Do Jumento ao Parlamento, com episódios da vida real, De Balsas para o Mundo, centrado na navegação fluvial Balsas/Oceano Atlântico, Pétalas do Rosa, saga da Família Albuquerque e Silva, Memorial Balsense, dedicado à história de sua terra natal, e Caindo na Gandaia, humorístico apimentado, é casado, tem quatro filhos, uma nora, dois genros e dois netos e reside em Brasília, Distrito Federal, desde dezembro de 1960.

Poemas e Poesias segunda, 01 de janeiro de 2024

NINGUÉM ME HABITA (POE3MA DO AMAZONENSE THIAGO DE MELLO)

NINGUÉM ME HABITA

Thiago de Mello

 

 

 

Ninguém me habita. A não ser
o milagre da matéria
que me faz capaz de amor,
e o mistério da memória
que urde o tempo em meus neurônios,
para que eu, vivendo agora,
possa me rever no outrora.
Ninguém me habita. Sozinho
resvalo pelos declives
onde me esperam, me chamam
(meu ser me diz se as atendo)
feiúras que me fascinam,
belezas que me endoidecem.


Poemas e Poesias domingo, 31 de dezembro de 2023

RECORDAÇÕES (POEMA DO MARANHENSE SOUSÂNDRADE)

RECORDAÇÕES

Sousândrade

 

 

 

Astros gentis da bela mocidade,

Vésper meiga, crescente feiticeiro,

Que lembranças trazeis e que saudade

Dos tempos da concórdia e o verde oiteiro!

Vos adorei dos campos e à cheirosa

Brisa que das estrelas recendia,

Vos adorei à luz de santa-rosa

Quando aos nove anos Beatriz sorria:

Mas, para que volver às doces eras,

Do coração aos cândidos martírios,

Se onde eternal renascem primaveras

Não finda amor porque não findam lírios?

Depois, que importa essa ilusão fagueira

Dos mentirosos céus, quando o tormento,

Quando a dor d'alma, a sempre-verdadeira

Aí fica? – astros gentis do firmamento,

Que importa, se das flores que se amaram,

Que redolentes foram, novas flores

Cada dia o bom Deus manda aos amores,

Porque s'esqueçam tristes que murcharam!


Poemas e Poesias sábado, 30 de dezembro de 2023

PRUDÊNCIA (POEMA DO FLUMINENSE RAUL DE LEÔNI)

PRUDÊNCIA

Raul de Leôni

 

 

 

 

Não aprofundes nunca, nem pesquises
O segredo das almas que procuras:
Elas guardam surpresas infelizes
A quem lhes desce às convulsões obscuras.

Contenta-te com amá-las, se as bendizes,
Se te parecem límpidas e puras,
Pois se, às vezes, nos frutos há doçuras,
Há sempre um gosto amargo nas raízes…

Trata-se assim, como se fossem rosas,
Mas não despertes o sabor selvagem
Que lhes dorme nas pétalas tranquilas,

Lembra-te dessas flores venenosas!
As abelhas cortejam de passagem,
Mas não ousam prová-las nem feri-las…

 


Poemas e Poesias sexta, 29 de dezembro de 2023

O PUXADÔ DE RODA (POEMA DO CEARENSE PATATIVA DO ASSARÉ, COM O AUTOR) VÍDEO


Poemas e Poesias quinta, 28 de dezembro de 2023

A MELANCOLIA DAS RUAS (POEMA DO PERNAMBUCANO OLEGÁRIOMARIANO)

A MELANCOLIA DAS RUAS

Olegário Mariano

 

 

 

Choveu o dia todo… Era chuva de vento.

O dínamo da Vida amiudando os instantes,

Acelerava em continuado movimento,

Os automóveis, as carroças, os viandantes.

As casas de comércio, portas largas,

Fechadas, sonolentas e pesadas…

Os caminhões deitando cargas

Sobre a chapa polida das calçadas…

Tudo a rua sentiu embriagada e felina.

De quando em quando, no alto, lá bem no alto,

Um pássaro sonoro esgarçava a neblina

E o rumor do motor vinha morrer no asfalto…

Depois a rua adormeceu… Veio descendo

A noite…  Foram desaparecendo

As vozes todas…  Para que retê-las?

Agora as poças d’água estão sorrindo,

Monótonas, humildes, refletindo

O céu…   Tão longe o céu cheio de estrelas!

 


Poemas e Poesias quarta, 27 de dezembro de 2023

O VOADOR (POEMA DO CARIOCA OLAVO BILAC)

O VOADOR

Olavo Bilac

 

 

 

"Padre Bartolomeu Lourenço de

Gusmão, inventor do aeróstato,

morreu miseravelmente num

convento, em Toledo, sem

ter quem lhe velasse a agonia."

Em Toledo. Lá fora, a vida tumultua

E canta. A multidão em festa se atropela...

E o pobre, que o suor da agonia enregela,

Cuida o seu nome ouvir na aclamação da rua.

Agoniza o Voador. Piedosamente, a lua

Vem velar-lhe a agonia, através da janela.

A Febre, o Sonho, a Glória enchem a escura cela,

E entre as névoas da morte uma visão flutua:

"Voar! varrer o céu com as asas poderosas,

Sobre as nuvens! correr o mar das nebulosas,

Os continentes de ouro e fogo da amplidão!..."

E o pranto do luar cai sobre o catre imundo...

E em farrapos, sozinho, arqueja moribundo

Padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão...


Poemas e Poesias terça, 26 de dezembro de 2023

OS DEGRAUS (POEMA DO GAÚCHO MÁRIO QUINTANA)

OS DEGRAUS

Mário Quintana

 

 

 

Não desças os degraus do sonho
Para não despertar os monstros.
Não subas aos sótãos - onde
Os deuses, por trás das suas máscaras,
Ocultam o próprio enigma.
Não desças, não subas, fica.
O mistério está é na tua vida!
E é um sonho louco este nosso mundo...


Poemas e Poesias segunda, 25 de dezembro de 2023

O SOLITÁRIO (POEMA DO MATO-GROSSENSE MANOEL DE BARROS)

O SOLITÁRIO

Manoel de Barros

 

 

 

Os muros enflorados caminhavam ao lado de um
homem solitário
Que olhava fixo para certa música estranha
Que um menino extraía do coração de um sapo.

Naquela manhã dominical eu tinha vontade de sofrer
Mas sob as árvores as crianças eram tão comunicativas

Que me faziam esquecer de tudo
Olhando os barcos sobre as ondas…

No entanto o homem passava ladeado de muros!
E eu não pude descobrir em seu olhar de morto
O mais pequeno sinal de que estivesse esperando alguma dádiva!

Seu corpo fazia uma curva diante das flores.


Poemas e Poesias domingo, 24 de dezembro de 2023

EU VI UMA ROSA (POEMA DO PERNAMBUCANO MANUEL BANDEIRA)

 

EU VI UMA ROSA

Manuel Bandeira

 

 

 

- Uma rosa branca -
Sozinha no galho.
No galho? Sozinha
No jardim, na rua.

Sozinha no mundo.

Em torno, no entanto,
Ao sol de meio-dia,
Toda a natureza
Em formas e cores
E sons esplendia.

Tudo isso era excesso.A graça essencial,
Mistério inefável
- Sobrenatural -
Da vida e do mundo,
Estava ali na rosa
Sozinha no galho.

Sozinha no tempo.

Tão pura e modesta,
Tão perto do chão,
Tão longe na glória,
Da mística altura,
Dir-se-ia que ouvisse
Do arcanjo invisível
As palavras santas
De outra Anunciação.

 


Poemas e Poesias sábado, 23 de dezembro de 2023

A VOZ DE MOEMA (POEMA DO CARIOCA LUÍS GUIMARÃES JUNIOR)

A VOZ DE MOEMA

Luís Guimarães Júnior

 

 

 

"Ah Diogo cruel!" disse com mágoa,
E sem mais vista ser sorveu-se n'água.
DURÃO — Caramuru.


Gemem as ondas mansamente; — a quilha
Do barco ondeia, ao som da vaga clara;
Cai do farol a luz longínqua e rara,
E a Lua cheia sobre as ondas brilha...

Do mar na ardente e luminosa trilha
Nem um batel por estas horas pára:
Sonha a Bahia, ao longe, — a altiva e cara
Filha dos deuses, de Colombo filha.

Tudo silente dorme. O bardo, entanto,
Que tudo vê e em tudo colhe o tema
Que amor produz no flácido quebranto,

Ouve pairar nos ares sons d'um Poema...
Ai! é a voz, — a voz, rouca de pranto,
A triste voz da pálida Moema!


Poemas e Poesias sexta, 22 de dezembro de 2023

O ANJO DA GUARDA DA INFÂNCIA (POEMA DO PORTUGUÊS JÚLIO DINIS)

O ANJO DA GUARDA DA INFÂNCIA

Júlio Dinis

 

 

 

Desci dor celestes coros, Por Deus mandada escutar
Da infância as queixas e os choros, Para lhos ir confiar.

Desci. Na terra, nos mares
Tanta miséria encontrei,
Que os meus magoados olhares
De terra e mar desviei.

Desci. E tantos gemidos, Tão dolorosos ouvil
Que, turbados os sentidos, Quis recuar… mas desci.

Nesta colheita de dores Pelo mundo todo andei, No pranto dos pecadores As
minhas vestes molhei.

Vagueando dias e dias
Chegara à Judeia enfim,
Quando um clamor de agonias
Veio de longe até mim.

O Sol, o Sol inflamado Destas terras orientais Tinha no disco afogueado
Não sei que estranhos sinais.

Soavam menos distantes
Sinistros brados de dor
Choros de mães e de infantes
Cantos de morte e terror.

Vi anjos de asas nevadas
Em bandos subir ao Céu,
Quais pombas amedrontadas
Fugindo à voz de escarcéu.

«Onde ides? Quem vos persegue ? A que tormentos fugis?»
Um que triste o bando segue, Estas palavras me diz:

Somos as almas de infantes Mortos em guerra feroz; Inda das mães
delirantes Nos chama a sentida voz.

« Só a materna saudade
Nossa carreira detém,
Embora no Céu, quem há-de
Esquecer o amor de mãe?»

Disse e o semblante formoso
Com as asas encobriu,
E ao bando silencioso
Silencioso se uniu.

Eu segui. Na ampla cidade
Aterrada penetrei…
Ai, da fera humanidade
Os meus olhos desviei!

Que cena! Corre nas praças
Sanguinária multidão
Como nuvem de desgraças
Semeando a desolação.

Caem por terra, sem vida, Tenras crianças às mil,
E uma turba enfurecida
Corre à matança, febril.

As mães pálidas, chorosas, Suplicam, pedem em vão!
Nessas feras sanguinosas Não palpita um coração.

Outros tentam, em delírio, Os seus filhos disputar
E com eles no martírio
Gostosas se vão juntar.

Sobre a terra ensangüentada
Eu soluçando, ajoelhei,
E de intensa dor magoada,
A Deus piedade implorei.

Findava a prece, e uma estrela
No horizonte despontou,
Pura, cintilante, ela
O caminho me traçou.

À humilde e escondida estância
Da venturosa Belém
Cheguei; vi um Deus na infância
Nos ternos braços da mãe.

Minha colheita de dores
Naquele berço depus,
Da humanidade aos rigores
Pedi remédio a Jesus.

No olhar do divino infante
Raiou luz e fulgor,
Foi a aurora radiante
Que anuncia um redentor


Poemas e Poesias quinta, 21 de dezembro de 2023

LIBERDADE (POEMA DO ACRIANO J. G. DE ARAÚJO JORGE)

LIBERDADE

J. G. de Araújo Jorge

 

 

 

A liberdade é o meu clarim de guerra
e eu sou, no meu viver amplo e sem véus,
como os caminhos soltos pela terra,
como os pássaros livres pelos céus.

Ela é o sol dos caminhos ! Ela é o ar
que os enche os pulmões, é o movimento,
traz num corpo irrequieto como o mar
uma alma errante e boêmia como o vento.

Minha crença, meu Deus, minha bandeira,
razão mesma de ser do meu destino,
há de ser a palavra derradeira
que há de aflorar-me aos lábios como um hino.

Liberdade: Alavanca de montanhas!
Aureolada de louros ou de espinhos
há de cingir-me a fronte nas campanhas,
há de ferir-me os pés pelos caminhos.

Sinto-a viva em meu sangue palpitando
seja utopia ou seja ideal, - que importa?
Quero viver por esse ideal lutando,
quero morrer se essa utopia é morta!


Poemas e Poesias quarta, 20 de dezembro de 2023

QUE ESTE AMOR NÃO ME CEGUE (POEMA DA PAULISTA HILDA HILST)

QUE ESTE AMOR NÃO ME CEGUE

Hilda Hilst 

 

 

 

Que este amor não me cegue nem me siga.
E de mim mesma nunca se aperceba.
Que me exclua do estar sendo perseguida
E do tormento
De só por ele me saber estar sendo.
Que o olhar não se perca nas tulipas
Pois formas tão perfeitas de beleza
Vêm do fulgor das trevas.
E o meu Senhor habita o rutilante escuro
De um suposto de heras em alto muro.

Que este amor só me faça descontente
E farta de fadigas. E de fragilidades tantas
Eu me faça pequena. E diminuta e tenra
Como só soem ser aranhas e formigas.

Que este amor só me veja de partida.

 


Poemas e Poesias terça, 19 de dezembro de 2023

PERFEIÇÃO (POEMA DO SERGIPANO HERMES FONTES)

PERFEIÇÃO

Hemes Fontes

 

 

 

Tanto esforço perdido em ser perfeito!
Em ser superno, tanto esforço vão!
Sonho efêmero; acordo e, junto ao leito,
a mesma inércia, a mesma escuridão.

Vejo, através das sombras, um defeito
em cada cousa, e as cousas todas são,
para os meus olhos rútilos de eleito,
prodígios de impureza e imperfeição!

Fico-me, noite a dentro, insone e mudo,
pensando em ti, que dormes, esquecida
do teu amargurado sonhador...

Ah, Mas, se ao menos, imperfeito é tudo
salve-se, às mil imperfeições da vida,
a humilde perfeição do meu amor!

 


Poemas e Poesias segunda, 18 de dezembro de 2023

INFÂNCIA (POEMA DO PAULISTA GILHERME DE AMEIDA)

 

INFÂNCIA

Guilherme de Almeida

Um gosto de amora
comida com sol. A vida
chamava-se "Agora".


Poemas e Poesias domingo, 17 de dezembro de 2023

VENDO-A SORRIR (POEMA DO PORTUGUÊS GUERRA JUNQUEIRO

 

VENDO-A SORRIR

Guerra Junqueiro

 

A minha filha

Filha, quando sorris, iluminas a casa
Dum celeste esplendor.
A alegria é na infância o que na ave é asa
E perfume na flor.

Ó doirada alegria, ó virgindade santa
Do sorriso infantil!
Quando o teu lábio ri, filha, a minha alma canta
Todo o poema de Abril.

Ao ver esse sorriso, ó filha, se concentro
Em ti o meu olhar,
Engolfa-se-me o céu azul pela alma dentro
Com pombas a voar.

Sou o Sol que agoniza, e tu, meu anjo loiro,
És o Sol que se eleva.
Inunda-me de luz, sorri, polvilha de oiro
O meu manto de treva!

 

 


Poemas e Poesias sábado, 16 de dezembro de 2023

MUSA IMPASSÍVEL (POEMA DA PAULISTA FRANCISCA JÚLIA)

MUSA IMPASSÍVEL

Francisca Júlia

 

 

 

 

I

Musa! um gesto sequer de dor ou de sincero
Luto jamais te afeie o cândido semblante!
Diante de um Jó, conserva o mesmo orgulho; e diante
De um morto, o mesmo olhar e sobrecenho austero.

Em teus olhos não quero a lágrima; não quero
Em tua boca o suave e idílico descante.
Celebra ora um fantasma anguiforme de Dante,
Ora o vulto marcial de um guerreiro de Homero.

Dá-me o hemistíquio d'ouro, a imagem atrativa;
A rima, cujo som, de uma harmonia crebra,
Cante aos ouvidos d'alma; a estrofe limpa e viva;

Versos que lembrem, com seus bárbaros ruídos,
Ora o áspero rumor de um calhau que se quebra,
Ora o surdo rumor de mármores partidos.

II

Ó Musa, cujo olhar de pedra, que não chora,
Gela o sorriso ao lábio e as lágrimas estanca!
Dá-me que eu vá contigo, em liberdade franca,
Por esse grande espaço onde o impassível mora.

Leva-me longe, ó Musa impassível e branca!
Longe, acima do mundo, imensidade em fora,
Onde, chamas lançando ao cortejo da aurora,
O áureo plaustro do sol nas nuvens solavanca.

Transporta-me de vez, numa ascensão ardente,
À deliciosa paz dos Olímpicos-Lares
Onde os deuses pagãos vivem eternamente,

E onde, num longo olhar, eu possa ver contigo
Passarem, através das brumas seculares,
Os Poetas e os Heróis do grande mundo antigo.


Poemas e Poesias sexta, 15 de dezembro de 2023

PARTOCULARIDADES (POEMA DA CARIOCA GILKA MACHADO)

PARTICULARIDADES

Gilka Machado

 

 

 

Muitas vezes, a sós, eu me analiso e estudo,
os meus gostos crimino e busco, em vão torcê-los;
é incrível a paixão que me absorve por tudo
quanto é sedoso, suave ao tato: a coma... Os pêlos...

Amo as noites de luar porque são de veludo,
delicio-me quando, acaso, sinto, pelos
meus frágeis membros, sobre o meu corpo desnudo
em carícias sutis, rolarem-me os cabelos.

Pela fria estação, que aos mais seres eriça,
andam-me pelo corpo espasmos repetidos,
às luvas de camurça, às boas, à pelica...

O meu tato se estende a todos os sentidos;


Poemas e Poesias quinta, 14 de dezembro de 2023

DESEJOS VÃOS (POEMA DA PORTUGUESA FLORBELA ESPANCA)

DESEJOS VÃOS

Florbela Espanca

 

 

 

Eu q’ria ser o mar d’altivo porte
Que ri e canta, a vastidão imensa!
Eu q’ria ser a pedra que não pensa,
A pedra do caminho, rude e forte!

Eu q’ria ser o sol, a luz intensa,
O bem do que é humilde e não tem sorte!
Eu q’ria ser a árvore tosca e densa
Que ri do mundo vão e até da morte!

Mas o Mar também chora de tristeza...
As Árvores também, como quem reza,
Abrem, aos Céus, os braços, como um crente!

E o Sol altivo e forte, ao fim dum dia,
Tem lágrimas de sangue na agonia!
E as Pedras... essas... pisa-as toda a gente!...

 


Poemas e Poesias quarta, 13 de dezembro de 2023

LIÇÕES DE ARQUITETURA (POEMA DO MARANHENSE FERREIRA GULLAR)

LIÇÕES DE ARQUITETURA

Ferreira Gullar

 

 

 

                                           Para
                                                   Oscar Niemeyer
 
No ombro do planeta
(em Caracas)
Oscar depositou
para sempre
uma ave uma flor
 
(ele não faz de pedra
nossas casas:
faz de asa)
 
No coração de Argel sofrida
fez aterrizar uma tarde
uma nave estelar
                          e linda
como ainda há de ser a vida
 
(com seu traço futuro
Oscar nos ensina
que o sonho é popular)
 
Nos ensina a sonhar
mesmo se lidamos
com matéria dura:
o ferro o cimento a fome
da humana arquitetura
 
nos ensina a viver
no que ele transfigura:
no açúcar da pedra
no sonho do ovo
na argila da aurora
na pluma da neve
na alvura do novo
Oscar nos ensina
que a beleza é leve


Poemas e Poesias terça, 12 de dezembro de 2023

DITOSOS A QUEM ACENA (POEMA DO PORTUGUÊS FERNANDO PESSOA)

DITOSOS A QUEM ACENA

Fernando Pessoa

 

 

 

MARINHA

Ditosos a quem acena 
Um lenço de despedida! 
São felizes : têm pena… 
Eu sofro sem pena a vida.

Dôo-me até onde penso, 
E a dor é já de pensar, 
Órfão de um sonho suspenso 
Pela maré a vazar…

E sobe até mim, já farto 
De improfícuas agonias, 
No cais de onde nunca parto, 
A maresia dos dias.


Poemas e Poesias segunda, 11 de dezembro de 2023

ROBESPIERRE (POEMA DO FLUMINENSE EUCLIDES DA CUNHA)

ROBESPIERRE

Eulides da Cunha

 

 

 

Alma inquebrável – bravo sonhador
De um fim brilhante, de um poder ingente,
De seu cérebro audaz, a luz ardente
É que gerava a treva do Terror!

Embuçado num lívido fulgor
Su’alma colossal, cruel, potente,
Rompe as idades, lúgubre, fremente,
Cheia de glórias, maldições e dor!

Há muito que, soberba, essa’alma ardida
Afogou-se cruenta e destemida
Num dilúvio de luz: Noventa e três...

Há muito já que emudeceu na história
Mas ainda hoje a sua atroz memória
É o pesadelo mais cruel dos reis!...


Poemas e Poesias domingo, 10 de dezembro de 2023

TROVAS HUMORÍSTICAS - 24 - (POEMA DO PARANAENSE ENO TEODORO WANKE)

 

 

TROVA HUMORÍSTICA 24

Eno Teodoro Wanke

 

Eva: a primeira poesia

Escrita do prório punho

Por Deus, no sétimo dia,

Adão serviu de rascunho

 

 

 


Poemas e Poesias sábado, 09 de dezembro de 2023

SAUDADE (POEMA DO PIAUIENSE DA COSTA E SILVA)

SAUDADE

Da Costa e Silva

 

Saudade! Olhar de minha mãe rezando,
E o pranto lento deslizando em fio…
Saudade! Amor da minha terra… O rio
Cantigas de águas claras soluçando.

Noites de junho… O caburé com frio,
Ao luar, sobre o arvoredo, piando, piando…
E, ao vento, as folhas lívidas cantando
A saudade imortal de um sol de estio.

Saudade! Asa de dor do Pensamento!
Gemidos vãos de canaviais ao vento…
As mortalhas de névoa sobre a serra…

Saudade! O Parnaíba – velho monge
As barbas brancas alongando… E, ao longe,
O mugido dos bois da minha terra…


Poemas e Poesias sábado, 09 de dezembro de 2023

CANÇÃO DA FORMOSURA (POEMA DO CATARINENSE CRUZ E SOUSA)

CANÇÃO DA FORMOSURA

Cruz e Sousa

 

 

 

Vinho de sol ideal canta e cintila
Nos teus olhos, cintila e aos lábios desce,
Desce a boca cheirosa e a empurpurece,
Cintila e canta após dentre a pupila.

Sobe, cantando, a limpidez tranqüila
Da tu'alma estrelada e resplandece,
Canta de novo e na doirada messe
Do teu amor, se perpetua e trila...

Canta e te alaga e se derrama e alaga...
Num rio de ouro, iriante, se propaga
Na tua carne alabastrina e pura.

Cintila e canta na canção das cores,
Na harmonia dos astros sonhadores,
A Canção imortal da Formosura!


Poemas e Poesias sexta, 08 de dezembro de 2023

SENTIMENTO DUM OCIDENTAL - HORAS MORTAS (POEMA DO PORTUGUÊS CESÁRIO VERDE)

SENTIMENTO DUM OCIDENTAL - HORAS MORTAS

Cesário Verde

 

 

 

O tecto fundo de oxigénio, de ar,
Estende-se ao comprido, ao meio das trapeiras;
Vêm lágrimas de luz dos astros com olheiras,
Enleva-me a quimera azul de transmigrar.

    Por baixo, que portões! Que arruamentos!
Um parafuso cai nas lajes, às escuras:
Colocam-se taipais, rangem as fechaduras,
E os olhos dum caleche espantam-me, sangrentos.

    E eu sigo, como as linhas de uma pauta
A dupla correnteza augusta das fachadas;
Pois sobem, no silêncio, infaustas e trinadas,
As notas pastoris de uma longínqua flauta.

    Se eu não morresse, nunca! E eternamente
Buscasse e conseguisse a perfeição das cousas!
Esqueço-me a prever castíssimas esposas,
Que aninhem em mansões de vidro transparente!

    Ó nossos filhoes! Que de sonhos ágeis,
Pousando, vos trarão a nitidez às vidas!
Eu quero as vossas mães e irmãs estremecidas,
Numas habitações translúcidas e frágeis.

    Ah! Como a raça ruiva do porvir,
E as frotas dos avós, e os nómadas ardentes,
Nós vamos explorar todos os continentes
E pelas vastidões aquáticas seguir!

    Mas se vivemos, os emparedados,
Sem árvores, no vale escuro das muralhas!...
Julgo avistar, na treva, as folhas das navalhas
E os gritos de socorro ouvir, estrangulados.

    E nestes nebulosos corredores
Nauseiam-me, surgindo, os ventres das tabernas;
Na volta, com saudade, e aos bordos sobre as pernas,
Cantam, de braço dado, uns tristes bebedores.

    Eu não receio, todavia, os roubos;
Afastam-se, a distância, os dúbios caminhantes;
E sujos, sem ladrar, ósseos, febris, errantes,
Amareladamente, os cães parecem lobos.

    E os guardas, que revistam as escadas,
Caminham de lanterna e servem de chaveiros;
Por cima, as imorais, nos seus roupões ligeiros,
Tossem, fumando sobre a pedra das sacadas.

    E, enorme, nesta massa irregular
De prédios sepulcrais, com dimensões de montes,
A Dor humana busca os amplos horizontes,
E tem marés, de fel, como um sinistro mar!

 


Poemas e Poesias quinta, 07 de dezembro de 2023

REINVENTANDO (POEMA DA CARIOCA CECÍLIA MEIRELES)

REINVENÇÃO

Cecília Meireles

 

 

 

A vida só é possível
reinventada.

Anda o sol pelas campinas
e passeia a mão dourada
pelas águas, pelas folhas…
Ah! tudo bolhas
que vem de fundas piscinas
de ilusionismo… — mais nada.

Mas a vida, a vida, a vida,
a vida só é possível
reinventada.

Vem a lua, vem, retira
as algemas dos meus braços.
Projeto-me por espaços
cheios da tua Figura.
Tudo mentira! Mentira
da lua, na noite escura.

Não te encontro, não te alcanço…
Só — no tempo equilibrada,
desprendo-me do balanço
que além do tempo me leva.
Só — na treva,
fico: recebida e dada.

Porque a vida, a vida, a vida,
a vida só é possível
reinventada.

 


Poemas e Poesias terça, 05 de dezembro de 2023

OITAVAS A NAPOLEÃO (POEMA DO BAIANO CASTRO ALVES)

OITAVAS A NAPOLEÃO

Castro Alves

 

 

 

Águia das solidões!... Ninho atrevido
Foram-te as borrascosas tempestades,
Flamígero cometa suspendido
Sobre o céu infinito das idades.
Tu que, no lago intérmino do olvido,
Lançaste tuas régias claridades...
Deus caído do trono dos mais deuses
Quem recebeu teus últimos adeuses?

Não foram as Pirâmides, que ouviram
De teus passos o som e se inclinaram...
Nem as águas do Nilo, que te viram,
E coas ondas teu nome murmuraram...
Não foram as cidades, que brandiram
As torres como facho... te aclararam...
Quem foi? Silêncio!.. trêmulo de medo
Vejo apenas — um mar... vejo — um rochedo...

A terra, o mar, os céus... espaço estreito
Eram pra tua planta de gigante,
Para tecto dos paços teus foi feito
O firmamento colossal, flutuante
Como diadema — os sóis... E como leito
O antártico pólo de diamante...
Teu féretro qual foi?... Titão do Sena,
O penhasco fatal de Santa Helena...

Assassina do Encélado da guerra
Só tu foste, Albion... do mar senhora...
Por quê? Porque um pedaço aí de terra
Foi pedir-te o gigante em negra hora...
E lhe deste um penhasco... Oh! Lá sencerra
Tua lenda mais hórrida... Traidora!
Lá seu espectro envolto, na mortalha
Aos quatro céus a maldição espalha...

Ao leão, que temias, enjaulaste;
E de longe escutando seu rugido,
Tu, senhora do mar... tu desmaiaste!
Pelo punhal traidor ele ferido
Caiu-te aos pés... Então tu respiraste,
Cobarde vencedora do vencido...
Nem mesmo todo o oceano poderia
Lavar este padrão de covardia...

Tu não és tão culpada!... Aonde estava
A França tão potente e tão temida?...
Oh! por que o não salvou?... se o contemplava
Lá dos gelos dos Alpes — soerguida!?...
E ele que a fez tão grande?... Ela folgava!...
Enquanto ao longe do colosso a vida,
Como um vulcão antigo e moribundo
Lento expirava nesse mar profundo.

 


Poemas e Poesias segunda, 04 de dezembro de 2023

ASSIM! (POEMA DO FLUMINENSE CASIMIRO DE ABREU)

ASSIM!

Casimiro de Abreu

 

 

 

 

Viste o lírio da campina?
Lá s'inclina
E murcho no hastil pendeu!
- Viste o lírio da campina?
Pois, divina,
Como o lírio assim sou eu!

Nunca ouviste a voz da flauta,
A dor do nauta
Suspirando no alto mar?
- Nunca ouviste a voz da flauta?
Como o nauta
É tão triste o meu cantar!

Não viste a rola sem ninho
No caminho
Gemendo, se a noite vem?
- Não viste a rola sem ninho?
Pois, anjinho,
Assim eu gemo, também!

Não viste a barca perdida,
Sacudida
Nas asas dalgum tufão?
- Não viste a barca fendida?
Pois querida
Assim vai meu coração!

 


Poemas e Poesias domingo, 03 de dezembro de 2023

SONETO DAS METAMORFOSES (POEMA DO PERNAMBUCANO CARLOS PENA FILHO)

SONETO DAS METAMORFOSES

Carlos Pena Filho

 

 

 

A Edmundo Morais

Carolina, a cansada, fez-se espera
e nunca se entregou ao mar antigo.
Não por temor ao mar, mas ao perigo
de com ela incendiar-se a primavera.

Carolina, a cansada que então era,
despiu, humildemente, as vestes pretas
e incendiou navios e corvetas
já cansada, por fim, de tanta espera.

E cinza fez-se. E teve o corpo implume
escandalosamente penetrado
de imprevistos azuis e claro lume.

Foi quando se lembrou de ser esquife:
abandonou seu corpo incendiado
e adormeceu nas brumas do Recife.


Poemas e Poesias sábado, 02 de dezembro de 2023

CERTAS PALAVRAS (POEMA DO MINEIRO CARLOS DRUMOND DE ANDRADE)

CERTAS PALAVRAS

Carlos Drummond de Andrade

 

 

 

Certas palavras não podem ser ditas
em qualquer lugar e hora qualquer.
Estritamente reservadas
para companheiros de confiança,
devem ser sacralmente pronunciadas
em tom muito especial
lá onde a polícia dos adultos
não adivinha nem alcança.

Entretanto são palavras simples:
definem partes do corpo, movimentos, atos
do viver que só os grandes se permitem
e a nós é defendido por sentença
dos séculos.

E tudo é proibido. Então, falamos.

 


Poemas e Poesias sexta, 01 de dezembro de 2023

SONETO 154 - DOS ILUSTRES ANTIGOS QUE DEIXARAM (POEMA DO PORTUGUÈS LUÍS DE CAMÕES)

 

SONETO 154 - DOS ILUSTRES ANTIGOS QUE DEIXARAM (POEMA DO PORTUGUÈS LUÍS DE CAMÕES)  
 
 

 

DOS ILUSTRES ANTIGOS QUE DEXARAM

Soneto 154

Luís de Camões 

 

 

Dos antigos Illustres, que deixárão
Hum nome digno de immortal memoria,
Ficou por luz do tempo a larga historia
Dos feitos em que mais se avantajárão.

Se com suas acções se cotejárão
Mil vossas, cada huma tão notoria,
Vencêra a menor dellas a mor gloria
Que elles em tantos annos alcançárão.

A gloria sua foi: ninguem lha tome:
Seguindo cada qual varios caminhos
Estatuas mereceo no heroico Templo.

Vós honra Portugueza e dos Coutinhos,
Clarissimo Dom João, com melhor nome
A vós encheis de gloria, a nós de exemplo.


Poemas e Poesias quinta, 30 de novembro de 2023

CEM TROVAS - 014 (POEMA DO MINEIRO BELMIRO BRAGA)
 
)
 

TROVA 014

Belmiro Braga

                

 

 

Não devo guardar ressábios
da nossa extinta afeição:
morto me trazes nos lábios
e, vivo, no coração

 


Poemas e Poesias quarta, 29 de novembro de 2023

ETERNA MÁGOA (POEMA DO PARAIBANO AUGUSTO DOS ANJOS)

ETERNA MÁGOA

Augusto dos Anjos

 

 

 

O homem por sobre quem caiu a praga
Da tristeza do Mundo, o homem que é triste
Para todos os séculos existe
E nunca mais o seu pesar se apaga!

Não crê em nada, pois, nada há que traga
Consolo à Mágoa, a que só ele assiste.
Quer resistir, e quanto mais resiste
Mais se lhe aumenta e se lhe afunda a chaga.

Sabe que sofre, mas o que não sabe
E que essa mágoa infinda assim não cabe
Na sua vida, é que essa mágoa infinda

Transpõe a vida do seu corpo inerme;
E quando esse homem se transforma em verme
É essa mágoa que o acompanha ainda!


Poemas e Poesias terça, 28 de novembro de 2023

MEUSONHO (POEMA DO PAULISTA ÁLVARES DE AZEVEDO)

MEU SONHO

Álvares de Azevedo

 

 

 

EU

Cavaleiro das armas escuras,
Onde vais pelas trevas impuras
Com a espada sanguenta na mão?
Por que brilham teus olhos ardentes
E gemidos nos lábios frementes
Vertem fogo do teu coração?
 
Cavaleiro, quem és? — O remorso?
Do corcel te debruças no dorso...

E galopas do vale através...
Oh! da estrada acordando as poeiras
Não escutas gritar as caveiras
E morder-te o fantasma nos pés?
 
Onde vais pelas trevas impuras,
Cavaleiro das armas escuras,
Macilento qual morto na tumba?...
Tu escutas... Na longa montanha
Um tropel teu galope acompanha?
E um clamor de vingança retumba?
 
Cavaleiro, quem és? que mistério...
Quem te força da morte no império
Pela noite assombrada a vagar?
 

O FANTASMA

Sou o sonho de tua esperança,
Tua febre que nunca descansa,
O delírio que te há de matar!...

 


Poemas e Poesias segunda, 27 de novembro de 2023

PERFUME DA ROSA (POEMA DO ORTUGUÊS ALMEIDA GARRETT)

PERFUME DA ROSA

Almeida Garrett

 

 

 

Quem bebe, rosa, o perfume
Que de teu seio respira?
Um anjo, um silfo? Ou que nume
Com esse aroma delira?

Qual é o deus que, namorado,
De seu trono te ajoelha,
E esse néctar encantado
Bebe oculto, humilde abelha?

— Ninguém? — Mentiste: essa frente
Em languidez inclinada,
Quem ta pôs assim pendente?
Dize, rosa namorada.

E a cor de púrpura viva
Como assim te desmaiou?
E essa palidez lasciva
Nas folhas quem ta pintou?

Os espinhos que tão duros
Tinhas na rama lustrosa,
Com que magos esconjuros
Tos desarmaram, ó rosa?

E porquê, na hástia sentida
Tremes tanto ao pôr do sol?
Porque escutas tão rendida
O canto do rouxinol?

Que eu não ouvi um suspiro
Sussurrar-te na folhagem?
Nas águas desse retiro
Não espreitei a tua imagem?

Não a vi aflita, ansiada…
— Era de prazer ou dor? —
Mentiste, rosa, és amada,
E tu também tu amas, flor.

Mas ai! se não for um nume
O que em teu seio delira,
Há-de matá-lo o perfume
Que nesse aroma respira.


Poemas e Poesias domingo, 26 de novembro de 2023

VIA CRUCIS (POEMA DO GAÚCHO ALCEU WAMOSY)

VIA CRUCIS

Alceu Wamosy

 

 

 

Ó calvário do Verso! Ó Gólgota da Rima!
Como eu já trago as mãos e os tristes pés sangrentos,
De te escalar, assim, nesta ânsia que me anima,
Neste ardor que me impele aos grandes sofrimentos…

Esta mágoa, esta dor, nada existe que exprima!
Sinto curvar-me o joelho a todos os momentos!
E quanto falta, Deus, para chegar lá em cima,
Onde o pranto termina e cessam os tormentos…

Mas é preciso! Sim! É preciso que eu carpa,
Que eu soluce, que eu gema e que ensanguente a escarpa,
Para esse fim chegar, onde meus olhos ponho!

Hei de ascender, subir, levando sobre os ombros,
Entre pragas, blasfêmias, gemidos e assombros,
A eterna Cruz pesada e negra do meu Sonho!

 


Poemas e Poesias sábado, 25 de novembro de 2023

LISBOA (POEMA DO FLUMINENSE ALBERTO DE OLIVEIRA)

LISBOA

Alberto de Oliveira

 

 

 

Ó Cidade da Luz! Perpétua fonte
De tão nítida e virgem claridade,
Que parece ilusão, sendo verdade,
Que o sol aqui feneça e não desponte...

Embandeira-se em chamas o horizonte:
Um fulgor áureo e róseo tudo invade:
São mil os panoramas da Cidade,
Surge um novo mirante em cada monte.

Ó Luz ocidental, mais que a do Oriente
Leve, esmaltada, pura e transparente,
Claro azulejo, madrugada infinda!

E és, ao sol que te exalta e te coroa,
— Loira, morena, multicor Lisboa! —
Tão pagã, tão cristã, tão moira ainda...


Poemas e Poesias sexta, 24 de novembro de 2023

LETRA: FERIDA EXPOSTA AO TEMPO (POEMA DO MINEIRO AFFONSO ROMANO DE SANT*ANNA)

LETRA: FERIDA EXPOSTA AO TEMPO

Affonso Romano de Sant'Anna

 

 

 

É forçoso dizer que me faz falta
o poema que existe e nunca li,
como se alhures
brotassem coisas que não vi
e que distantes,
carentes,
dependessem de mim.
Algo como se o intocado fosse a sinfonia
inacabada, mais:rasgada
como o quadro nunca esboçado, perdido
na abatida mão do artista.

O ausente
é uma planta
que na distância se arvora
e é tão presente
quando o passado que aflora.

E a literatura, mais que avenida ou praça
por onde cavalga a glória, é um monumento,
sim, de dúbia estória: granito e rima,
alegoria ao vento, lugar onde carentes
e arrogantes
cravamos nosso nome de turista:
-estive aqui, desamado,
riscando a pedra e o tempo
expondo meu sangue e nome
com o coração trespassado.


Poemas e Poesias quinta, 23 de novembro de 2023

POEMA COMEÇADO DO FIM (POEMA DA MINEIRA ADÉLIA PRADO)

POEMA COMEÇADO DO FIM

Adélia Prado

 

 

 

Um corpo quer outro corpo.

Uma alma quer outra alma e seu corpo.

Este excesso de realidade me confunde.

Jonathan falando:

                           parece que estou num filme.

Se eu lhe dissesse você é estúpido

ele diria sou mesmo.

Se ele dissesse vamos comigo ao inferno passear

                                       eu iria.

As casas baixas, as pessoas pobres

                                            e o sol da tarde,

imaginai o que era o sol da tarde

                                          sobre nossa fragilidade.

Vinha com Jonathan

pela rua mais torta da cidade.

                                               O Caminho do Céu.


Poemas e Poesias quarta, 22 de novembro de 2023

A MORTE EM MIM (POEMA DO CARIOCA VINÍCIUS DE MORAES)

A MORTE EM MIM

Vinícius de Moraes

 

 

 

A morte em mim. Alguém (o medo) desce 
Uma rua noturna, e de repente 
Vê, soturna, no céu, a Lua, e sente 
O horror da Lua, e súbito enlouquece. 

A morte em cada ser. E alguém (a mágoa) 
Que por insone chega-se à janela 
Possui a mesma Lua dentro dela 
Que em sua carne se transforma em água. 

A Poesia em tudo. 
E a doçura de não ser mais. Ficará 
Sentado, na vertente, junto ao rio 
Vendo umas nuvens brancas, vendo o rio.


Poemas e Poesias terça, 21 de novembro de 2023

SUGESTÕES DO CREPÚSCULO (POEMA DO PAULISTA VICENTE DE CARVALHO)

SUGESTÕES DO CREPÚSCULO

Vicente de Carvalho

 

 

 

Ao pôr do sol, pela tristeza
Da meia-luz crepuscular,
Tem a toada de uma reza
A voz do mar.

Aumenta, alastra e desce pelas
Rampas dos morros, pouco a pouco,
O ermo de sombra, vago e oco,
Do céu sem sol e sem estrelas.

Tudo amortece; a tudo invade
Uma fadiga, um desconforto...
Como a infeliz serenidade
Do embaciado olhar de um morto.

Domada então por um instante
Da singular melancolia
De em torno- apenas balbucia
A voz piedosa do gigante.

Toda se abranda a vaga hirsuta,
Toda se humilha, a murmurar...
Que pede ao céu que não a escuta
A voz do mar?

-II-

Estranha voz, estranha prece
Aquela prece e aquela voz,
Cuja humildade nem parece
Provir do mar bruto e feroz;

Do mar, pagão criado às soltas
Na solidão, e cuja vida
Corre, agitada e desabrida,
Em turbilhões de ondas revoltas;

Cuja ternura assustadora
Agride a tudo que ama e quer,
E vai, nas praias onde estoura,
Tanto beijar como morder...

Torvo gigante repelido
Numa paixão lasciva e louca,
É todo fúria: em sua boca
Blasfema a dor, mora o rugido.

Sonha a nudez: brutal e impuro,
Branco de espuma, ébrio de amor,
Tenta despir o seio duro
E virginal da terra em flor.

Debalde a terra em flor, com o fito
De lhe escapar, se esconde — e anseia
Atrás de cômoros de areia
E de penhascos de granito:

No encalço dessa esquiva amante
Que se lhe furta, segue o mar;
Segue, e as maretas solta adiante
Como matilha, a farejar.

E, achado o rastro, vai com as suas
Ondas e a sua espumarada
Lamber, na terra devastada,
Barrancos nus e rochas nuas...

-III-

Mais formidável se revela,
E mais ameaça, e mais assombra
A uivar, a uivar, dentro da sombra
Nas fundas noites de procela.

Tremendo e próximo se escuta
Varrendo a noite, enchendo o ar,
Como o fragor de uma disputa
Entreo tufão, o céu e o mar.

Em cada ríspida rajada
O vento agride o mar sanhudo:
Roça-lhe a face, com o agudo
Sibilo de uma chicotada.

De entre a celeuma, um estampido
Avulta e estoura, alto e maior,
Quando, tirano enfurecido,
Troveja o céu ameaçador.

De quando em quando, um tênue risco
De chama vem, da sombra em meio...
E o mar recebe em pleno seio
A cutilada de um corisco.

Mas a batalha é sua, vence-a:
Cansa-se o vento, afrouxa... e assim
Como uma vaga sonolência
O luar invade o céu sem fim...

Donas do campo, as ondas rugem;
E o monstro impando de ousadia,
Pragueja, insulta, desafia
O céu, cuspindo-lhe a salsugem.

-IV-

A alma raivosa e libertina
Desse tenaz batalhador
Que faz do escombro e da ruína
Como os troféus do seu amor;

A alma rebelde e mal composta
Desse pagão e desse ateu
Que retalia e dá respostas
À mesma cólera do céu;

A alma arrogante, a alma bravia
Do mar, que vive a combater,
Comove-se à melancolia
Conventual do entardecer...

No seu clamor esmorecido
Vibra, indistinta e espiritual,
Alguma coisa do gemido
De um órgão numa catedral.

E pelas praias aonde descem
Do firmamento - a sombra e a paz;
E pelas várzeas que emudecem
Com os derradeiros sabiás;

Ouvem os ermos espantados
Do mar contrito no clamor
A confidência dos pecados
Daquele eterno pecador.

Escutem bem... Quando entardece,
Na meia-luz crepuscular
Tem a toada de uma prece
A voz tristíssima do mar...


Poemas e Poesias segunda, 20 de novembro de 2023

NARCISO CEGO (POEMA DO AMAZONENSE THIAGO DE MELLO)

NARCISO CEGO

Thiago de Mello

 

 

 

Tudo o que de mim se perde
acrescenta-se ao que sou.
Contudo, me desconheço.
Pelas minhas cercanias
passeio — não me frequento.

Por sobre fonte erma e esquiva
flutua-me, íntegra, a face.
Mas nunca me vejo: e sigo
com face mal disfarçada.
Oh que amargo é o não poder
rosto a rosto contemplar
aquilo que ignoto sou;
distiguir até que ponto
sou eu mesmo que me levo
ou se um nume irrevelável
que (para ser) vem morar
comigo, dentro de mim,
mas me abandona se rolo
pelos declives do mundo.

Desfaço-me do que sonho:
faço-me sonho de alguém
oculto. Talvez um Deus
sonhe comigo, cobice
o que eu guardo e nunca usei.

Cego assim, não me decifro.
E o imaginar-me sonhado
não me completa: a ganância
de ser-me inteiro prossegue.
E pairo — pânico mudo —
entre o sonho e o sonhador.


Poemas e Poesias domingo, 19 de novembro de 2023

HARPA XXXIV - VSÕES (POEMA DO MARANHENSE SOUSÂNDRADE)

HARPA XXXIV - VISÕES

Sousândrade

 

 

 

(...) Eu despertava em meu delírio
Ante a realidade! a virgem morta,
Pálida e fria a reconheço, eu rujo!
E de homem ver-me, comecei chorar.
— Quis seu corpo aquecer sobre o meu corpo;
Uni sua boca à minha, a voz lhe dando,
Que o túmulo não guarda. Em verdes folhas
Nua deitei-a, as mãos postas, e as tranças
Escorreram-lhe em torno. Dias, dias
Preso a seus pés levei a contemplá-la!
Grandes e abertos sobre mim ficaram
Seus olhos fixos e vidrados, longos
Como a meditação de uma sentença!

(...)
Eu vi! — seu corpo transparente inchando;
Perderem-se os seus olhos nas suas faces;
Humor fétido escoa-se da carne,
Tão pura e fresca, tão cheirosa inda ontem,
Que ela amou apertar em mim, d'insonte
Frenética de amor, nervosa e trêmula!
Formosa ondulação das castas ancas,
Dos seios virginais, da alva cintura
Bela voluptuosa... disformou-se
Em repugnante, (quem a vira e amara!)
Em nojenta, esverdeada, monstruosa
Onda de podridão! Zumbiam moscas,
Famintos corvos sobre mim se atiram,
Recurvas unhas regaçando e abrindo
Negras asas e o bico, triunfantes
Soltando agouros! Eu a defendia
Da ave e do inseto, que irritados vêem-me.

(...)

(...) Eu quis limpá-la
Desses monstros horríveis, que a comiam
Diante mim! porém, tudo era imundícia,
Oh! quantas vezes me lancei sobre ela,
Julgando tudo amores, tudo encantos
Dela emanando em límpidos arroios!
Fujo de nojo... de piedade eu volto...
Depois, como as enchentes pluviais
Escoando, que os troncos já se amostram,
Seus ossos vão ficando descobertos.
Oh! mirrado eu fiquei do sofrimento,
De tanta dor curtir! E tu, ó Deus,
Que tudo acabas, sofrerás também?
Porque tão miseráveis nos fizeste,
Deus d'escárnio? teus filhos nós não somos...
Que sorte de alimento ou de deleite
Encontras na desgraça desumana?

Belo horror da existência — formosura,
Filha da natureza engrandecida
No seu pecado e morte, meteoro
Enganoso da noite, flor vermelha
Em veneno banhada, mulher bela!
— Tudo ali 'stá! — ó mundo! mundo... mundo...

(...)
Embalde interroguei mudo cadáver,
E os ossos amarelos nem respondem!
Mas, aqui a mulher não é perjura:
Só lembrança de amor santo evapora —
A beleza se forma ao pensamento,
À saudade suas véstias se derramam.

(...)


Poemas e Poesias sábado, 18 de novembro de 2023

O AGREGADO (POEMA DE PATATIVA DO ASSARÉ, COM O AUTOR) VÍDEO


Poemas e Poesias sexta, 17 de novembro de 2023

CERTEZA (POEMA DO BAIANO RICARDO LIMA)

CERTEZA

Ricardo Lima

 

 

 

 

Firmeza, certeza.

Certeza, firmeza.

Abalo, badalo, ralo.

Certeza, deseja, firmeza.

 


Poemas e Poesias quinta, 16 de novembro de 2023

PÓRTICO (POEMA DO FLUMINENSE RAUL DE LEÔNI)

PÓRTICO

Raul de Leôni

 

 

 

Alma de origem ática, pagã,
Nascida sob aquele firmamento
Que azulou as divinas epopéias,
Sou irmão de Epicuro e de Renan,
Tenho o prazer sutil do pensamento
E a serena elegância das idéias...

Há no meu ser crepúsculos e auroras,
Todas as seleções do gênio ariano,
E a minha sombra amável e macia
Passa na fuga universal das horas,
Colhendo as flores do destino humano
Nos jardins atenienses da Ironia...

(...)

Meu pensamento livre, que se achega
De ideologias claras e espontâneas,
É uma suavíssima cidade grega,
Cuja memória
É uma visão esplêndida na história
Das civilizações mediterrâneas.

Cidade da Ironia e da Beleza,
Fica na dobra azul de um golfo pensativo,
Entre cintas de praias cristalinas,
Rasgando iluminuras de colinas,
Com a graça ornamental de um cromo vivo:
Banham-na antigas águas delirantes,
Azuis, caleidoscópicas, amenas,
Onde se espelha, em refrações distantes,
O vulto panorâmico de Atenas...

Entre os deuses e Sócrates assoma
E envolve na amplitude do seu gênio
Toda a grandeza grega a que remonto;
Da Hélade dos heróis ao fim de Roma,
Das cidades ilustres do Tirreno
Ao mistério das ilhas do Helesponto...

Cidade de virtudes indulgentes,
Filha da Natureza e da Razão,
— Já eivada da luxúria oriental, —
Ela sorri ao Bem, não crê no Mal,
Confia na verdade da Ilusão
E vive na volúpia e na sabedoria,
Brincando com as idéias e com as formas...

(...)

Revendo-se num século submerso.
Meu pensamento, sempre muito humano,
É uma cidade grega decadente,
Do tempo de Luciano,
Que, gloriosa e serena,
Sorrindo da palavra nazarena,
Foi desaparecendo lentamente,
No mais suave crepúsculo das coisas...


Poemas e Poesias quarta, 15 de novembro de 2023

KREMME (POEMA DO PERNAMBUCANO OLEGÁRIO MARIANO)

KREMME

Olegário Mariano

 

 

 

Foi um dia de kremesse.
Depois de rezá três prece
Pra que os santo me ajudasse,
Deus quis que nós se encontrasse
Pra que nós dois se queresse,
Pra que nós dois se gostasse.

Inté os sinos dizia
Na matriz da freguezia
Que embora o tempo corresse,
Que embora o tempo passasse,
Que nós sempre se queresse,
Que nós sempre se gostasse.

Um dia, na feira, eu disse
Com a voz cheia de meiguice
Nos teus ouvido, bem doce:
Rosinha si eu te falasse...
Si eu te beijasse na face...
Tu me dás-se um beijo? — Dou-se.

E toda a vez que nos vemo,
A um só tempo perguntemo
Tu a mim, eu a vancê:
Quando é que nós se casemo,
Nós que tanto se queremo,
Pro que esperamos pro quê?

Vancê não falou comigo
E eu com vancê, pro castigo,
Deixei de falá também,
Mas, no decorrê dos dia,
Vancê mais bem me queria
E eu mais te queria bem.

— Cabôco, vancê não presta,
Vancê tem ruga na testa,
Veneno no coração.
— Rosinha, vancê me xinga,
Morde a surucucutinga,
Mas fica o rasto no chão.

E de uma vez, (bem me lembro!)
Resto de safra... Dezembro...
Os carro afundando o chão.
Veio um home da cidade
E ao curuné Zé Trindade
Foi pedi a sua mão.

Peguei no meu cravinote
Dei quatro ou cinco pinote
Burricido como o quê,
Jurgando, antes não jurgasse,
Que tu de mim não gostasse,
Quando eu só amo a vancê.

Esperei outra kremesse
Que o seu vigário viesse
Pra que nós dois se casasse.
Mas Deus não quis que assim sesse
Pro mais que nós se queresse
Pro mais que nós se gostasse.


Poemas e Poesias terça, 14 de novembro de 2023

AS ÍNDIAS (POEMA DO CARIOCA OLAVO BILAC)

AS ÍNDIAS

Olavo Bilac

 

 

 

Se a atração da ventura os sonhos te arrebata,

Conquistador, ao largo! A tua alma sedenta

Quer a glória, a conquista, o perigo, a tormenta?

Ao largo! saciarás a ambição que te mata!

Bela, verás surgir, da água azul que a retrata,

Catai, a cujos pés o mar em flor rebenta;

E Cipango verás, fabulosa e opulenta,

Apunhalando o céu com as torres de ouro e prata.

Pisarás com desprezo as pérolas mais belas!

De mirra, de marfim, de incenso carregadas,

Se arrastarão, arfando, as tuas caravelas.

E, a aclamar-te Senhor das Terras e dos Mares,

Os régulos e os reis das ilhas conquistadas

Se humilharão, beijando o solo que pisares...


Poemas e Poesias segunda, 13 de novembro de 2023

OS ARROIOS (POEMA DO GAÚCHO MÁRIO QUINTANA)

OS ARROIOS

Mário Quintana

 

 

 

Os arroios são rios guris…
Vão pulando e cantando dentre as pedras.
Fazem borbulhas d’água no caminho: bonito!
Dão vau aos burricos,
às belas morenas,
curiosos das pernas das belas morenas.
E às vezes vão tão devagar
que conhecem o cheiro e a cor das flores
que se debruçam sobre eles nos matos que atravessam
e onde parece quererem sestear.
Às vezes uma asa branca roça-os, súbita emoção
como a nossa se recebêssemos o miraculoso encontrão
de um Anjo…
Mas nem nós nem os rios sabemos nada disso.
Os rios tresandam óleo e alcatrão
e refletem, em vez de estrelas,
os letreiros das firmas que transportam utilidades.
Que pena me dão os arroios,
os inocentes arroios…


Poemas e Poesias domingo, 12 de novembro de 2023

O PERSONAGEM - RETRATO DE IRMÃO (POEMA DO MATO-GROSSENSE MANOEL DE BARROS)

O PERSONAGEM
RETRATO DE IRMÃO

Manoel de Barros

 

 


Era um ente irresolvido entre vergôntea e lagarto. 
Tordos que externam desterro sentavam nele. Sua voz era 
curva pela forma escura da boca. (Voz de sótão com 
baratas luminosas.) Dava sempre a impressão que 
estivesse saindo de um bueiro cheio de estátuas. 
— Conforme o viver de um homem, seu ermo cede — ensinava. 
Era a cara de um lepidóptero de pedra. E tinha um 
modo de lua entrar em casa. 
Deixou-nos um TRATADO DE METAMORFOSES 
cuja Parte XIX, Livro de pré-coisas, transcrevemos.


Poemas e Poesias sábado, 11 de novembro de 2023

ESTRELA DA MANHÃ (POEMA DO PERNAMBUCANO MANUEL BANDEIRA)

ESTRELA DA MANHÃ

Manuel Bandeira

 

 

 

Eu queria a estrela da manhã
Onde está a estrela da manhã?
Meus amigos meus inimigos
Procurem a estrela da manhã

Ela desapareceu ia nua
Desapareceu com quem?
Procurem por toda à parte

Digam que sou um homem sem orgulho
Um homem que aceita tudo
Que me importa?
Eu quero a estrela da manhã

Três dias e três noite
Fui assassino e suicida
Ladrão, pulha, falsário

Virgem mal-sexuada
Atribuladora dos aflitos
Girafa de duas cabeças
Pecai por todos pecai com todos

Pecai com malandros
Pecai com sargentos
Pecai com fuzileiros navais
Pecai de todas as maneiras
Com os gregos e com os troianos
Com o padre e o sacristão
Com o leproso de Pouso Alto
Depois comigo

Te esperarei com mafuás novenas cavalhadas
      [comerei terra e direi coisas de uma ternura tão simples
Que tu desfalecerás

Procurem por toda à parte
Pura ou degradada até a última baixeza
Eu quero a estrela da manhã.

 


Poemas e Poesias sexta, 10 de novembro de 2023

A SERTANEJA (POEMA DO CARIOCA LUÍS GUIMARÃES JÚNIOR)

A SERTANEJA

Luís Guimarães Júnior

 

 

 

        Eu sou a virgem morena,
        Robusta, lesta, pequena,
        Como a cabrita montês;
        Vivo cercada de amores,
        E Aquele que fez as flores,
        Irmã das flores me fez.

        Vinde ver, oh boiadeiros,
        Meus vestidos domingueiros,
        Meus braços limpos e nus:
        Ah! vinde ver-me enfeitada
        Com minha saia engomada,
        Com meus tamancos azuis.

        Sertanejos, sertanejos,
        Pedis debalde os meus beijos,
        Em vão pedis meu amor!
        Eu sou a agreste cotia,
        Que se expõe à pontaria,
        E ri-se do caçador!

        A sertaneja morena
        Bonita, forte, pequena,
        Não cai na armadilha, não;
        A jaçanã corre e voa
        Quando vê sobre a lagoa
        A sombra do gavião.

        Sou órfã, donzela e pobre,
        Vistosa telha não cobre
        O lar que herdei de meus pais;
        Que importa? Vivo contente;
        Ser moça, bela e inocente
        É ter fortuna demais!

        Quem tece e protege o ninho,
        Quem defende o passarinho,
        Quem das mãos espalha o bem,
        Quem fez o sol e as estrelas,
        Dando a virtude às donzelas
        Deu-lhes a força também.

        A Virgem nunca se esquece
        Da mais tosca e simples prece
        Que voa ao seio de Deus:
        Por cada infeliz que chora
        Abre na terra uma aurora,
        Crava uma estrela nos céus.

        Sertanejos, sertanejos,
        Podeis morrer de desejos
        Que eu não me temo de vós!
        A sertaneja faceira
        É mais que a paca ligeira
        Mais que a andorinha veloz.

        Sou viva, arisca, medrosa,,,
        Bem como a onça raivosa
        Pronta ao mais leve rumor!
        No meu cabelo selvagem
        Sente-se a morna bafagem
        Das matas virgens em flor.

        No samba quem puxa a fieira
        Melhor, melhor que a trigueira
        Maravilha dos sertões?
        Que peito mais brando anseia,
        Quem mais gentil sapateia,
        Quem pisa mais corações?

        Ai gentes! Ai boiadeiros!
        Não sois decerto os primeiros
        Que o meu olhar cativou:
        Desta morena a doçura
        É como frecha segura:
        Peito que encontra — rasgou!

        Minha rede é perfumada
        Como a folha machucada
        De verde malva maçã;
        Nela me embalo sonhando,
        E dela salto cantando
        Quando vem rindo a manhã.

        Sonho com jambos e rosas,
        Co´as madrugadas formosas
        Deste formoso sertão;
        Meu sonho é como a canoa,
        Que voa, que voa e voa
        Nas águas do ribeirão.

Trago no seio guardado
O rosário abençoado
Que minha mãe me deixou;
Ai! gentes! ai! pastorinhas!
Foi que meu pranto as lavou.

Quem é mais feliz na terra?
Quem mais delícias encerra,
Quem mais feitiço contém?
Vem, moreno boiadeiro,
Desafiar meu pandeiro
Com tua guitarra, — vem!

Raiou domingo! Que festa!
Que barulho na floresta!
Quanto rumor no sertão!
Que céu! que matas cheirosas!
Quanto perfume nas rosas,
E quantas rosas no chão!

Vinde ouvir-me na guitarra;
Não há nas brenhas cigarra
Que me acompanhe, — não há!
Trazei, trazei, boiadeiros,
As violas, os pandeiros,
Os búzios, o maracá.

Eu sou a virgem morena
Robusta, lesta, pequena,
Como a cabrita montês;
Vivo cercada de amores,
E Aquele que fez as flores
Irmã das flores me fez. 

 


Poemas e Poesias quinta, 09 de novembro de 2023

NOVA VÊNUS (POEMA DO PORTUGUÊS JÚLIO DINIS)

NOVA VÊNUS

Júlio Dinis

 

 

 

Salta aos ventos as tranças douradas,
Meiga filha das bordas do mar,
E no meio das vagas iradas
Solta aos ventos o alegre cantar.

Não, não temas as nuvens sombrias,
Que uma a uma se elevam d´além,
Qe rodeado d´amor e alegrias,
O teu céu dessas nuvens não tem.

Canta sempre, de noite as estrelas,
De manhã ao luzir do arrebol,
Ao passarem no mar as procelas,
Ao sorrir nos outeiros o sol.

Canta sempre, ó alcione d´estas vagas
Nova filha da espuma do mar,
Canta sempre, e eu sentado nas fragas,
Voltarei para ouvir-te cantar.

 


Poemas e Poesias quarta, 08 de novembro de 2023

IDEAL DE AMOR (POEMA DO ACRIANO J. G. DE ARAÚJO JORGE)

IDEAL DE AMOR

J. G. de Araújo Jorge

 

 

 

Odeio aquelas almas onde encontro escrita
uma história que um outro antes de mim viveu...
Dentro de um grande amor, o amor-próprio se irrita
encontrando um romance que não seja o seu ...
Quero uma alma que seja inteiramente pura,
simples, e onde não haja escrita uma só linha,
onde possa ir deixar um poema de ventura
aquela que procuro e que há de ser só minha...
Quero um amor de egoísta todo meu, inteiro,
que não traga um vestígio de afeição sequer...
- se para ele eu não for o seu sonho primeiro
desde já renuncio a outro lugar qualquer...
Somente assim desejo e quero ser amado
e um grande amor somente assim posso sentir...
- hei de ser seu presente... hei de ser seu passado
e a esperança feliz que doure o seu porvir...
Para um perfeito ideal... para encher a minha vida
ser toda a minha crença em meu viver de ateu,
não quero a alma que foi por outro amor possuída
nem quero aquele amor que um dia não foi meu!
Quero o amor em botão... fechado, pequenino,
e ao calor do meu beijo há de florir então,
- para ser a razão do meu próprio destino
e a grandeza imortal da minha inspiração!...


Poemas e Poesias terça, 07 de novembro de 2023

PRELÚDIOS INTENSOS PARA OS DESMEMORIADOS DO AMOR

PRELÚDIOS INTENSOS PARA OS DESMEMORIADOS DO AMOR

Hilda Hilst

 

 

 

I

Toma-me. A tua boca de linho sobre a minha boca
Austera. Toma-me AGORA, ANTES
Antes que a carnadura se desfaça em sangue, antes
Da morte, amor, da minha morte, toma-me
Crava a tua mão, respira meu sopro, deglute
Em cadência minha escura agonia.

Tempo do corpo este tempo, da fome
Do de dentro. Corpo se conhecendo, lento,
Um sol de diamante alimentando o ventre,
O leite da tua carne, a minha
Fugidia.
E sobre nós este tempo futuro urdindo
Urdindo a grande teia. Sobre nós a vida
A vida se derramando. Cíclica. Escorrendo.

Te descobres vivo sob um jogo novo.
Te ordenas. E eu deliquescida: amor, amor,
Antes do muro, antes da terra, devo
Devo gritar a minha palavra, uma encantada
Ilharga
Na cálida textura de um rochedo. Devo gritar
Digo para mim mesma. Mas ao teu lado me estendo
Imensa. De púrpura. De prata. De delicadeza.

II

Tateio. A fronte. O braço. O ombro.
O fundo sortilégio da omoplata.
Matéria-menina a tua fronte e eu
Madurez, ausência nos teus claros
Guardados.

Ai, ai de mim. Enquanto caminhas
Em lúcida altivez, eu já sou o passado.
Esta fronte que é minha, prodigiosa
De núpcias e caminho
É tão diversa da tua fronte descuidada.

Tateio. E a um só tempo vivo
E vou morrendo. Entre terra e água
Meu existir anfíbio. Passeia
Sobre mim, amor, e colhe o que me resta:
Noturno girassol. Rama secreta.


Poemas e Poesias segunda, 06 de novembro de 2023

MOEMA (POEMA DO SERGIPANO HERMES FONTES)

MOEMA

Hermes Fontes

 

 

 

Rosa rubra dos Trópicos... Moema!
Alma-virgem das lendas brasileiras!
Irmã — pela constância — de Iracema...

Romântica-selvagem! flor de idílio,
antes havido só nas verdadeiras
Amorosas de Homero e de Virgílio!

Predestinada, passional Moema!
Amor sacrificado! dor vivida
nos sete espinhos de amoroso poema!

Virginal Dido-Elissa das florestas,
mais do que abandonada — incompreendida
no amor de sacrifício, a que te aprestas!

Caramuru partiu... E, como Enéas,
foi para sempre! Mas, não foi sozinho,
arrebatado a novas epopéias.

Foi entre os braços de outra — amante e amado —
abrindo sobre as ondas o caminho
à galera feliz do seu noivado.

Vendo esbater-se, no horizonte, a nave,
tentou-te o Mar. E, entregue à tua sorte,
foste boiando à correnteza suave...

Oh! que desgraça! e que beleza, a tua!
— "Tanto era bela, no seu rosto, a Morte",
e, no seu corpo, a virgindade nua!


Poemas e Poesias domingo, 05 de novembro de 2023

INDFERENÇA (POEMA DO PAULISTA GUILHERME DE ALMEIDA)

INDIFERENÇA

Guilherme de Almeida

 

 

 

Hoje, voltas-me o rosto, se ao teu lado passo.

E eu, baixo os meus olhos se te avisto.

E assim fazemos, como se com isto,

pudéssemos varrer nosso passado.

 

Passo esquecido de teu olhar, coitado!

Vais, coitada, esquecida de que existo.

Como se nunca me tivesses visto,

como se eu sempre não te houvesse amado.

 

Mas, se às vezes, sem querer nos entrevemos,

se quando passo, teu olhar me alcança,

se meus olhos te alcançam quando vais

 

Ah! Só Deus sabe! Só nós sabemos.

Volta-nos sempre a pálida lembrança

Daqueles tempos que não voltam mais!


Poemas e Poesias sábado, 04 de novembro de 2023

RUÍNAS (POEMA DO PORTUGUÊS GUERRA JUNQUEIRO)

RUÍNAS

Guerra Junqueiro

 

 

 

«E é triste ver assim ir desfolhando,
Vê-las levadas na amplidão do ar,
As ilusões que andámos levantando
Sobre o peito das mães, o eterno altar.

 

Nem sabe a gente já como, nem quando,
Há-de a nossa alma um dia descansar!
Que as almas vão perdidas, vão boiando
Nesta corrente eléctrica do mar!...

 

Ó ciência, minha amante, é sonho belo!
És fria como a folha dum cutelo...
Nunca o teu lábio conheceu piedade!

 

Mas caia embora o velho paraíso,
Caia a fé, caia Deus! sendo preciso,
Em nome do Direito e da Verdade.

 
II
 
Morreu-me a luz da crença - alva cecém,
Pálida virgem de luzentas tranças
Dorme agora na campa das crianças,
Onde eu quisera repousar também.
 
A graça, as ilusões, o amor, a unção,
Doiradas catedrais do meu passado,
Tudo caiu desfeito, escalavrado
Nos tremendos combates da razão.
 
Perdida a fé, esse imortal abrigo,
Fiquei sozinho como herói antigo
Batalhando sem elmo e sem escudo.
 
A implacável, a rígida ciência
Deixou-me unicamente a Providência,
Mas, deixando-me Deus, deixou-me tudo».

 


Poemas e Poesias sexta, 03 de novembro de 2023

INVERNO (POEMA DA PAULISTA FRANCISCA JÚLIA)

INVERNO

Francisca Júlia

 

 

 

Outrora, quanta vida e amor nestas formosas
Ribas! Quão verde e fresca esta planície, quando,
Debatendo-se no ar, os pássaros, em bando,
O ar enchiam de sons e queixas misteriosas.

Tudo era queixa e amor. As árvores copiosas
Mexiam-se, de manso, ao resfôlego brando
Da brisa que passava em tudo derramando
O perfume sutil dos cravos e das rosas…

Mas veio o inverno; e vida e amor foram-se em breve…
O ar se encheu de rumor e de uivos desolados…
As árvores do campo, enroupadas de neve,

Sob o látego atroz da invernia que corta,
São esqueletos que, de braços levantados,
Vão pedindo socorro à primavera morta.

 


Poemas e Poesias quinta, 02 de novembro de 2023

OLHANDO O MAR (POEMA DA CARIOCA GILKA MACHADO)

OLHANDO O MAR

Gilka Machado

 

 

 

Sempre que fito o mar
tenho a ilusão de achar-me diante
de um silêncio amplo, ondulante,
de um silêncio profundo,
onde vozes lutassem por gritar,
por lhe fugirem do invisível fundo.

Diante do mar eu fico triste,
nessa mudez de quem assiste
reproduções do próprio dissabor;
diante do mar eu sou um mar,
a outro de apor
e a se indeterminar.

O mar é sempre monotonia,
na calmaria
ou na tempestade.
Fujo de ti, ó mar que estrondas!
porque a tristeza que me invade
tem a continuidade
das tuas ondas…

Mas te amo, ó mar, porque minha alma e a tua
são bem iguais: ambas profundamente
sensíveis, e amplas, e espelhantes;
nelas o ambiente
atua
apenas superficialmente…

Calma de cismas, de êxtases, de sonhos,
desesperos medonhos,
ânsias de azul, de alturas…
– Longos ou rápidos instantes
em que me transfiguro, em que te transfiguras…
Nos nossos sentimentos sem represa,
nas nossas almas, quanta afinidade!
– Tu sentindo por toda a natureza!
– Eu sentindo por toda a humanidade!

Nos dias muito azuis, o meu olhar,
atento,
a descer e a se elevar,
supõe o mar um espreguiçamento
do céu e o céu um êxtase do mar.

Há nos ritmos da água
marinha uma poesia, a mais completa,
essa poesia universal da mágoa.

O mar é um cérebro em laboração,
um cérebro de poeta;
nas suas ondas, vêm e vão
pensamentos, de roldão.

O mar,
imperturbavelmente, a rolar, a rolar…
O mar… – Concluo sempre que metido
em sua profundeza e em sua vastidão:
– o mar é o corpo, é a objetivação
do espaço, do infinito.


Poemas e Poesias quarta, 01 de novembro de 2023

DE JOELHOS (POEMA DA PORTUGUESA FLORBELA ESPANCA)

DE JOELHOS

Florbela Espanca

 

 

 

 

“Bendita seja a Mãe que te gerou.”
Bendito o leite que te fez crescer.
Bendito o berço aonde te embalou
A tua ama, pra te adormecer!

Bendita essa canção que acalentou
Da tua vida o doce alvorecer…
Bendita seja a lua que inundou
De luz, a terra, só para te ver…

Benditos sejam todos que te amarem,
As que em volta de ti ajoelharem,
Numa grande paixão fervente e louca!

E se mais que eu, um dia, te quiser
Alguém, bendita seja essa Mulher,
Bendito seja o beijo dessa boca!!


Poemas e Poesias segunda, 30 de outubro de 2023

DIGO SIM (POEMA DO MARANHENSE FERREIRA GULLAR)

DIGO SIM

Ferreira Gullar

 

 

 

Poderia dizer
que a vida é bela, e muito,
e que a revolução caminha com pés de flor
nos campos de meu país,
com pés de borracha
nas grandes cidades brasileiras
e que meu coração
é um sol de esperança entre pulmões
e nuvens

Poderia dizer que meu povo
é uma festa só na voz
de Clara Nunes
no rodar
das cabrochas no Carnaval
da Avenida.
Mas não. O poeta mente.

A vida nós a amassamos em sangue
e samba
enquanto gira inteira a noite
sobre a pátria desigual. A vida
nós a fazemos nossa
alegre e triste, cantando
em meio à fome
e dizendo sim
– em meio à violência e a solidão dizendo
sim –
pelo espanto da beleza
pela flama de Thereza
pelo meu filho perdido
neste vasto continente
por Vianinha ferido
pelo nosso irmão caído
pelo amor e o que ele nega
pelo que dá e que cega
pelo que virá enfim,
não digo que a vida é bela
tampouco me nego a ela:
– digo sim


Poemas e Poesias domingo, 29 de outubro de 2023

DE QUEM É O OLHAR (POEMA DO PORTUGUÊS FERNANDO PESSOA)

DE QUEM É O OLHAR

Feranndo Pessoa

 

 

 

De quem é o olhar

Que espreita por meus olhos?

Quando penso que vejo,

Quem continua vendo

Enquanto estou pensando?

Por que caminhos seguem,

Não os meus tristes passos,

Mas a realidade

De eu ter passos comigo?

 

Às vezes, na penumbra

Do meu quarto, quando eu

Para mim próprio mesmo

Em alma mal existo,

Toma um outro sentido

 

Em mim o Universo —

É uma nódoa esbatida

De eu ser consciente sobre

Minha ideia das coisas.

 

Se acenderem as velas

E não houver apenas

A vaga luz de fora —

Não sei que candeeiro

Aceso onde na rua —

Terei foscos desejos

De nunca haver mais nada

No Universo e na Vida

De que o obscuro momento

Que é minha vida agora.

 

Um momento afluente

Dum rio sempre a ir

Esquecer-se de ser,

Espaço misterioso

Entre espaços desertos

Cujo sentido é nulo

E sem ser nada a nada.

 

E assim a hora passa

Metafisicamente.


Poemas e Poesias sábado, 28 de outubro de 2023

RIMAS (POEMA DO FLUMINENSE EUCLIDES DA CUNHA)

RIMAS

Euclides da Cunha

 

 

 

Ontem – quando, soberba, escarnecias
Dessa minha paixão – louca – suprema
E no teu lábio, essa rósea algema,
A minha vida – gélida – prendias…

Eu meditava em loucas utopias,
Tentava resolver grave problema…
Como engastar tua alma num poema?
E eu não chorava quando tu te rias…

Hoje, que vivo desse amor ansioso
E és minha – és minha, extraordinária sorte,
Hoje eu sou triste sendo tão ditoso!

E tremo e choro – pressentindo – forte,
Vibrar, dentro em meu peito, fervoroso,
Esse excesso de vida – que é a morte…


Poemas e Poesias sexta, 27 de outubro de 2023

TROVAS HUMORÍSTICAS - 23 - (POEMA DO PARANAENSE ENO TEODORO WANKE)

 

 

TROVA HUMORÍSTICA 23

Eno Teodoro Wanke

 

Na casa número tanto

Na rua que sempre esqueço

Se vende não sei por quanto

Alguma coisa sem preço

 

 

 


Poemas e Poesias quinta, 26 de outubro de 2023

O SINAL DA CRUZ (POEMA DO PIAUIENSE DA COSTA E SILVA)

O SINAL DA CRUZ

Da Costa e Silva

 

 

 

Se é preciso lutar para ser forte,
Se é preciso sofrer para ser puro,
Em luta e sofrimento a vida apuro, 
Para tranqüilo merecer a morte.

Hei lutado e sofrido de tal sorte
Que, a tantas provações, meu ser impuro
Sonha atingir a perfeição que auguro
Em resignado e místico transporte.

A existência de lutas e de penas,
Como um cardo florindo entre os abrolhos,
Vou bendizendo pelo bem que faço.

E quando a morte vier, resta-me apenas
Juntar as mãos e levantar os olhos
Para o que exista em luz além do espaço.

 


Poemas e Poesias terça, 24 de outubro de 2023

O SENTIMENTO OCIDENTAL - HORAS MORTAS (POEMA DO PORTUGUÊS CESÁRIO VERDE)

O SENTIMENTO OCIDENTAL - HORAS MORTAS

Cesário Verde

 

 

 

O tecto fundo de oxigénio, de ar,
Estende-se ao comprido, ao meio das trapeiras;
Vêm lágrimas de luz dos astros com olheiras,
Enleva-me a quimera azul de transmigrar.
 
Por baixo, que portões! Que arruamentos!
Um parafuso cai nas lajes, às escuras:
Colocam-se taipais, rangem as fechaduras,
E os olhos dum caleche espantam-me, sangrentos.
 
E eu sigo, como as linhas de uma pauta
A dupla correnteza augusta das fachadas;
Pois sobem, no silêncio, infaustas e trinadas,
As notas pastoris de uma longínqua flauta.
 
Se eu não morresse, nunca! E eternamente
Buscasse e conseguisse a perfeição das cousas!
Esqueço-me a prever castíssimas esposas,
Que aninhem em mansões de vidro transparente!
 
Ó nossos filhoes! Que de sonhos ágeis,
Pousando, vos trarão a nitidez às vidas!
Eu quero as vossas mães e irmãs estremecidas,
Numas habitações translúcidas e frágeis.
 
Ah! Como a raça ruiva do porvir,
E as frotas dos avós, e os nómadas ardentes,
Nós vamos explorar todos os continentes
E pelas vastidões aquáticas seguir!
 
Mas se vivemos, os emparedados,
Sem árvores, no vale escuro das muralhas!...
Julgo avistar, na treva, as folhas das navalhas
E os gritos de socorro ouvir, estrangulados.

Poemas e Poesias segunda, 23 de outubro de 2023

RECADO AOS AMIGOS DISTANTES (POEMA DA CARIOCA CECÍLIA MEIRELES)

RECADO AOS AMIGOS DISTANTES

Cecília Meireles

 

 

 

Meus companheiros amados,
não vos espero nem chamo:
porque vou para outros lados.
Mas é certo que vos amo.

Nem sempre os que estão mais perto
fazem melhor companhia.
Mesmo com sol encoberto,
todos sabem quando é dia.

Pelo vosso campo imenso,
vou cortando meus atalhos.
Por vosso amor é que penso
e me dou tantos trabalhos.

Não condeneis, por enquanto,
minha rebelde maneira.
Para libertar-me tanto,
fico vossa prisioneira.

Por mais que longe pareça,
ides na minha lembrança,
ides na minha cabeça,
valeis a minha Esperança.


Poemas e Poesias sábado, 21 de outubro de 2023

PEDRO IVO (POEMA DO BAIANO CASTRO ALVES)

PEDRO IVO

Castro Alves 

(Grafia original)

 

 

Sonhava nesta geração bastarda,
     Glorias e liberdade!...
.......................................
Era um leão sangrento que rugia,
Da gloria nos clarins se embriagava,
E vossa gente pallida recuava,
     Quando ele apparecia.
   (Alvares de Azevedo)

 

I

Rebramam os ventos... Da negra tormenta
Nos montes de nuvens galopa o corsel...
Relincha... troveja... galgando no espaço
Mil raios desperta co′as patas revel.

É noite de horrores... nas grunas celestes,
Nas naves ethereas o vento gemeu...
E os astros fugiram, qual bando de garças
Das aguas revoltas do lago do céo. 

E a terra é medonha... As arvores núas
Espectros semelham fincados de pé,
Com os braços de mumias, que os ventos retorcem,
Tremendo a esse grito, que estranho lhes é.

Desperta o infinito... Co′a boca entreaberta
Respira a borrasca do largo pulmão.
Ao longe o oceano sacode as espaduas
— Encélado novo calcado no chão.

É noite de horrores... Por invio caminho
Um vulto sombrio sósinho passou,
Co′a noite no peito, co′a noite no busto
Subiu pelo monte... nas cimas parou.

Cabellos esparsos ao sopro dos ventos,
Olhar desvairado, sinistro, fatal.
Dirieis estatua roçando nas nuvens,
P′ra qual a montanha se fez pedestal.

Rugia a procella — nem elle escutava!...
Mil raios choviam — nem elle os fitou!
Com a dextra apontando bem longe a cidade.
Após largo tempo sombrio fallou!

..........
 
II

Dorme, cidade maldicta,
Teu somno de escravidão!...
Dorme, vestal da pureza,
Sobre os cochins do Sultão!...
Dorme, filha da Georgia.
Prostituta em negra orgia,
Sê hoje Lucrecia Borgia
Da deshonra no balcão!...

Dormir?!... Não! Que a infame grita
Lá se alevanta fatal...
Corre o champagne e a deshonra
Na orgia descommunal...
Na fronte já tens um laço...
Cadêas de ouro no braço,
De perolas um baraço,
— Adornos da satural!

Louca!... Nem sabe que as luzes,
Que accendeu p′ra as saturnaes,
São do enterro de seus brios
Tristes cirios funeraes...
Que o seu grito de alegria
É o estertor da agonia,
A que responde a ironia.
Do riso de Satanaz!... 

Morreste... E ao teu sahimento
Dobra a procella no céo,
E os astros — olhar dos mortos —
A mão da noite escondeu.
Vê!... Do raio mostra a lampa
Mão de espectro, que destampa
Com dedos de ossos a campa,
Onde a gloria adormeceu.

E erguem-se as lapidas frias,
Saltam bradando os heróes:
«Quem ousa da eternidade
Roubar-nos o somno a nós?»
Responde o espectro; — A desgraça!
Que a realeza que passa,
Com o sangue de vossa raça,
Cospe lodo sobre vós!...»

Fugi, fantasmas augustos!
Caveiras que coram mais
Do que essas faces vermelhas
Dos infames pariás!...
Fugi do solo maldicto!...
Embuçai-vos no infinito!...
E eu por detrás do granito
Dos montes occidentaes.

Eu tambem fujo... Eu... fugindo!...
Mentira desses vilões!

Não foge a nuvem trevosa
Quando em azas de tufões
Sobe dos céos á esplanada,
Para tomar emprestada
De raios uma outra espada,
A luz das constellações...

Como o tigre na caverna
Afia as garras no chão,
Como em Elba amola a espada
Nas pedras — Napoleão,
Tal eu — vaga encapellada,
Recúo de uma passada,
P′ra levar de derribada
Rochedos, reis, multidão...!

III

«Pernambuco! Um dia eu vi-te
Dormido immenso ao luar,
Com os olhos quasi cerrados,
Com os labios — quasi a fallar...
Do braço o clarim suspenso,
— O punho no sabre extenso
De pedra — recife immenso.
Que rasga o peito do mar...

E eu disse: — Silencio, ventos!
Cala a boca, furacão!

No sonho daquelle somno
Perpassa a Revolução!
Este olhar que não se move
Stá fito em — Oitenta e Nove
Lê Homero — escuta Jove...
Robespierre — Dantão.

Naquelle craneo entra em ondas
O verbo de Mirabeau...
Pernambuco sonha a escada,
Que tambem sonhou Jacob;
Scisma a Republica alçada,
E pega os copos da espada,
Emquanto em su′alma brada:
«Somos irmãos, Vergniaud!»

Então repeti ao povo:
— Desperta do somno teu!
Samsão! derroca as columnas!
Quebra os ferros, Prometheu!
Vesuvio curvo — não pares,
Ignea coma solta aos ares,
Em lavas inunda os mares,
Mergulha o gladio no céo.

Republica!... Vòo ousado
Do homem feito condor!

Raio de aurora inda occulta.
Que beija a fronte ao Thabor
Deus! Porqu′emquanto que o monte
Bebe a luz desse horizonte,
Deixas vagar tanta fronte,
No valle envolto em negror?!...

Inda me lembro... Era ha pouco
A lucta!... horror!... confusão!...
A morte vôa rugindo
Da garganta do canhão!...
O bravo a fileira cerra!...
Em sangue ensopa-se a terra!...
E o fumo — o corvo da guerra —
Com as azas cobre a amplidão...

Cheguei!... Como nuvens tontas,
Ao bater no monte... além,
Topam, rasgam-se, recuam...
Taes a meus pés vi tambem
Hostes mil na lucta ingloria...
Da pyramide da gloria
São degráos... Marcha a victoria,
Porque este braço a sustem.

Foi uma lucta de bravos,
Como a lucta do jaguar,

De sangue enrubesce a terra,
De fogo enrubesce o ar!...
Oh!... mas quem faz que eu não vença?
— O acaso... — avalanche immensa.
Da mão do Eterno suspensa,
Que a idéa esmaga ao tombar!...

Não importa! A liberdade
É como a hydra, o Antheu.
Se no chão rola sem forças,
Mais forte do chão se ergueu...
São os seus ossos sangrentos
Gladios terriveis, sedentos...
E da cinza solta aos ventos
Mais um Graccho appareceu!...

..........


Dorme, cidade maldicta,
Teu somno de escravidão!
Porém no vasto sacrario
Do templo do coração,
Atêa o lume das lampas,
Talvez que um dia dos pampas
Eu, surgindo, quebre as campas,
Onde te colam no chão.

Adeus! Vou por ti, maldicto,
Vagar nos ermos paúes.

Tu ficas morta, na sombra,
Sem vida, sem fé, sem luz!...
Mas quando o povo acordado
Te erguer do tredo vallado,
Virá livre, grande, ousado,
De pranto banhar-me a cruz!...

IV

Assim fallara o vulto errante e negro,
Como a estatua sombria do revez.
Uiva o tufão nas dobras de seu manto,
Como um cão do senhor ulula aos pés...

Inda um momento esteve solitario
Da tempestade semelhante ao deus,
Trocando phrases com os trovões no espaço,
Raios com os astros nos sombrios céos...

Depois sumiu-se dentre as brumas densas
Da negra noite — de su′alma irmã...
E longe... longe... no horizonte immenso
Resonava a cidade cortezã!...

Vai!... Do sertão esperam-te as Thermopylas;
A liberdade inda pulula ali...
Lá não vão vermes perseguir as aguias,
Não vão escravos perseguir a ti!

 

Vai!... Que o teu manto de mil balas roto
É uma bandeira que não tem rival.
— Desse suor é que Deus faz os astros.
Tens uma espada, que não foi punhal.

Vai, tu que vestes do bandido as roupas
Mas nâo te cobres de uma vil libré.
Se te renega teu paiz ingrato,
O mundo, a gloria tua pátria é!...

..........
V

E foi-se... E inda hoje nas horas errantes,
Que os cedros farfalham, que ruge o tufão,
E os labios da noite murmuram nas selvas
E a onça vaguêa no vasto sertão.

Se passa o tropeiro nas ermas devezas,
Caminha medroso, figura-lhe ouvir
O infrene galope d′Espectro soberbo.
Com um grito de gloria na boca a rugir.

Que importa se o tum′lo ninguem lhe conhece?
Nem tem epitaphio, nem leito, nem cruz!...
Seu tumulo é o peito do vasto universo,
Do espaço — por cupola — as conchas azues!... 

Mas contam que um dia rolara o oceano
Seu corpo na praia, que a vida lhe deu...
Emquanto que a gloria rolava sua alma
Nas margens da historia, na arêa do céo!...

Recife, Maio de 1865.

 

 


Poemas e Poesias sexta, 20 de outubro de 2023

MINH*ALMA É TRISTE (POEMA DO FLUMINENSE CASIMIRO DE ABREU)

MINH'ALMA É TRISTE

Casimiro de Abreu

(Grafia original)

 

 

 

Minh'alma é triste como a rola aflita
Que o bosque acorda desde o alvor da aurora,
E em doce arrulo que o soluço imita
O morto esposo gemedora chora.

E, como a rôla que perdeu o esposo,
Minhalma chora as ilusões perdidas,
E no seu livro de fanado gozo
Relê as folhas que já foram lidas.

E como notas de chorosa endeixa
Seu pobre canto com a dor desmaia,
E seus gemidos são iguais à queixa
Que a vaga solta quando beija a praia.

Como a criança que banhada em prantos
Procura o brinco que levou-lhe o rio,
Minhaalma quer ressuscitar nos cantos
Um só dos lírios que murchou o estio.

Dizem que há, gozos nas mundanas galas,
Mas eu não sei em que o prazer consiste.
— Ou só no campo, ou no rumor das salas,
Não sei porque — mas a minh'alma é triste!


Poemas e Poesias quinta, 19 de outubro de 2023

SONETO DAS DEFNIÇÕES (POEMA DO PERNAMBUCANO CARLOS PENA FILHO)

SONETO DAS DEFINIÇÕES

Carlos Pena Filho

 

 

 

Não falarei de coisas, mas de inventos
e de pacientes buscas no esquisito.
Em breve, chegarei à cor do grito,
à música das cores e do vento.

Multiplicar-me-ei em mil cinzentos
(desta maneira, lúcido, me evito)
e a estes pés cansados de granito
saberei transformar em cataventos.

Daí, o meu desprezo a jogos claros
e nunca comparados ou medidos
como estes meus, ilógicos, mas raros.

Daí também, a enorme divergência
entre os dias e os jogos, divertidos
e feitos de beleza e improcedência.


Poemas e Poesias quarta, 18 de outubro de 2023

CARTA (POEMA DO MINEIRO CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE)

CARTA

Carlos Drummond de Andrade

 

 

Há muito tempo, sim, não te escrevo.
Ficaram velhas todas as notícias.
Eu mesmo envelhecí: olha em relevo
estes sinais em mim, não das carícias
(tão leves) que fazias no meu rosto:
são golpes, são espinhos, são lembranças
da vida a teu menino, que a sol-posto
perde a sabedoria das crianças.

A falta que me fazes não é tanto
à hora de dormir, quando dizias
"Deus te abençoe", e a noite abria em sonho.

É quando, ao despertar, revejo a um canto
a noite acumulada de meus dias,
e sinto que estou vivo, e que não sonho.


Poemas e Poesias terça, 17 de outubro de 2023

SONETO 082 - DOCES LEMBRANÇAS DA PASSADA GLÓRIA (POEMA DO PORTUGUÈS LUÍS DE CAMÕES)

 

 

DOCES LEMBRANÇAS DA PASSADA GLÓRIA

Soneto 082

Luís de Camões 

 

Doces lembranças da passada glória,
Que me tirou fortuna roubadora,
Deixai-me descansar em paz hum'hora,
Que comigo ganhais pouca victoria.

Impressa tenho na alma larga historia
Deste passado bem, que nunca fôra;
Ou fôra, e não passára: mas ja agora
Em mi não póde haver mais que a memoria.

Vivo em lembranças, morro de esquecido
De quem sempre devêra ser lembrado,
Se lhe lembrára estado tão contente.

Oh quem tornar pudéra a ser nascido!
Soubera-me lograr do bem passado,
Se conhecer soubera o mal presente.


Poemas e Poesias segunda, 16 de outubro de 2023

CEM TROVAS - 013 (POEMA DO MINEIRO BELMIRO BRAGA)
)
 

TROVA 013

Belmiro Braga

                

 

Quantos mortos trago vivos

No fundo do coração,

E dentro em mim quantos vivos

Há muiito mortos estão!


Poemas e Poesias domingo, 15 de outubro de 2023

A JANGADA (POEMA DO CARIOCA JUÍS GUIMARÃES JÚNIOR)

A JANGADA

Luís Guimarães Júnior

 

 

 

Cinco paus mal seguros e enlaçados
Vão através dos ventos tormentosos:
Neles confiam mais que jubilosos
Dois pescadores nus e desgraçados.

Essa prancha que em saltos arrojados
Corta o mar como os lenhos poderosos,
Resume a vida, a fé — resume os gozos
Dos miseráveis rotos e esfaimados.

Nós também, alma minha, as desventuras
Bem conhecemos: — forte e esperançada
Sulcas do mundo o pranto e as vagas duras.

Que importa! A crença é tudo e a morte é nada,
E neste fundo abismo de amarguras
Uma esperança vale uma jangada.


Poemas e Poesias sábado, 14 de outubro de 2023

POEMA NEGRO (POEMA DO PARAIBANO AUGUSTO DOS ANJOS)

POEMA NEGRO

Augusto dos Anjos

 

 

 

Para iludir minha desgraça, estudo.
Intimamente sei que não me iludo.
Para onde vou (o mundo inteiro o nota)
Nos meus olhares fúnebres, carrego
A indiferença estúpida de um cego
E o ar indolente de um chinês idiota!


Poemas e Poesias sexta, 13 de outubro de 2023

MEU DESEJO (POEMA DO PAULISTA ÁLVARES DE AZVEDO)

MEU DESEJO

Álvares de Azevedo

 

 

 

Meu desejo? era ser a luva branca
Que essa tua gentil mãozinha aperta:
A camélia que murcha no teu seio,
O anjo que por te ver do céu deserta….

Meu desejo? era ser o sapatinho
Que teu mimoso pé no baile encerra….
A esperança que sonhas no futuro,
As saudades que tens aqui na terra….

Meu desejo? era ser o cortinado
Que não conta os mistérios do teu leito;
Era de teu colar de negra seda
Ser a cruz com que dormes sobre o peito.

Meu desejo? era ser o teu espelho
Que mais bela te vê quando deslaças
Do baile as roupas de escomilha e flores
E mira-te amoroso as nuas graças!

Meu desejo? era ser desse teu leito
De cambraia o lençol, o travesseiro
Com que velas o seio, onde repousas,
Solto o cabelo, o rosto feiticeiro….

Meu desejo? era ser a voz da terra
Que da estrela do céu ouvisse amor!
Ser o amante que sonhas, que desejas
Nas cismas encantadas de langor!


Poemas e Poesias quinta, 12 de outubro de 2023

OS CINCO SENTIDOS (POEMA DO PORTUGUÊS ALMEIDA GARRETT)

OS CINCO SENTIDOS

Almeida Garrett

 

 

 

 

São belas — bem o sei, essas estrelas,
Mil cores — divinais têm essas flores;
Mas eu não tenho, amor, olhos para elas:
Em toda a natureza
Não vejo outra beleza
Senão a ti — a ti!

Divina — ai!, sim, será a voz que afina
Saudosa — na ramagem densa, umbrosa,
Será; mas eu do rouxinol que trina
Não oiço a melodia,
Nem sinto outra harmonia
Senão a ti — a ti!

Que entre as flores gira,
Celeste — incenso de perfume agreste.
Sei… não sinto: minha alma não aspira,
Não percebe, não toma
Senão o doce aroma
Que vem de ti — de ti!

Formosos — são os pomos saborosos,
É um mimo — de néctar o racimo:
E eu tenho fome e sede …sequiosos,
Famintos meus desejos
Estão… mas é de beijos,
É só de ti — de ti!

Macia — deve a relva luzidia
Do leito — ser por certo em que me deito.
Mas quem, ao pé de ti, quem poderia
Sentir outras carícias,
Tocar noutras delícias
Senão em ti — em ti!

A ti! ai, a ti só os meus sentidos
Todos num confundidos,
Sentem, ouvem, respiram;
Em ti, por ti deliram.
Em ti a minha sorte,
A minha vida em ti;
E quando venha a morte,
Será morrer por ti.


Poemas e Poesias quarta, 11 de outubro de 2023

LIÇÃO QUOTIDIANA (POEMA DO FLUMINENSE ALBERTO DE OLIVEIRA)

LIÇÃO QUOTIDIANA

Alberto de Oliveira

 

 

 

Cada manhã ressuscito
Do sono, esse irmão da Morte,
Que é minha estrela do norte,
Meu professor de infinito.

Hora por hora medito
Sua lição clara e forte;
Mas nem assim minha sorte
Encaro menos aflito.

E, se acordo com o dia,
Cheio de fé e alegria,
Julgando-me imorredoiro,

À noite estou moribundo...
E em meu vazio tesoiro
Vejo o meu fim, e o do mundo!


Poemas e Poesias terça, 10 de outubro de 2023

INTERVALO AMOROSO (POEMA DO MINEIRO AFFONSO ROMANO DE SANT*ANNA)

INTERVALO AMOROSO

Affonso Romano de Sant'Anna

 

 

 

 

O que fazer entre um orgasmo e outro,
quando se abre um intervalo
sem teu corpo?

Onde estou, quando não estou
no teu gozo incluído?
Sou todo exílio?

Que imperfeita forma de ser é essa
quando de ti sou apartado?

Que neutra forma toco
quando não toco teus seios, coxas
e não recolho o sopro da vida de tua boca?

O que fazer entre um poema e outro
olhando a cama, a folha fria?


Poemas e Poesias segunda, 09 de outubro de 2023

PARÂMETRO (POEMA DA MINEIRA ADÉLIA PRADO)

PARÂMETRO

Adélia Prado

 

 

 

Deus é mais belo que eu.

E não é jovem.

Isto sim, é consolo.


Poemas e Poesias domingo, 08 de outubro de 2023

A MORTE DO PINTAINHO (POEMA DO CARIOCA VINÍCIUS DE MORAES)

A MORTE DO PINTAINHO

Vinícius de Moraes

 

 

 

Quem matou o pintainho? 
Eu, disse o pato 
Com meu pé chato 
Eu matei o pintainho. 

Quem viu ele morto? 
Eu, disse o mocho 
Com meu olho torto 
Eu vi ele morto. 

Quem chupou seu sangue? 
Eu, disse o morcego 
Que não sou cego 
Eu chupei seu sangue. 

Quem lhe deu mortalha? 
Eu, disse a aranha 
Com teia e artimanha 
Eu lhe dei mortalha 

Quem vai ser o padre? 
Eu, o louva-a-deus 
Em nome de Deus 
Eu serei o padre. 

Quem será o sacrista? 
Eu, disse o frango 
Com a minha crista 
Eu serei o sacrista. 

Que leva o caixão? 
Eu, disse o gavião 
Sei bem porque não 
Eu levo o caixão 

Quem será o coveiro? 
Eu, a toupeira 
Eu que sou coveira 
Eu serei o coveiro. 

Quem fará o túmulo? 
Eu, disse o joão-de-barro 
Pois que tenho barro 
Eu farei o túmulo. 

Quem leva a vela? 
Eu, o vaga-lume 
Eu acendo o lume 
E eu levo a vela. 

Quem vai cantar? 
Eu, o pardal 
La-la-ri-la-ra 
Eu sei cantar. 

Quem leva as coroas? 
Eu, disse o cisne 
Já que não dou rima 
Eu levo as coroas. 

Quem toca o sino? 
Disse o suíno: 
Eu mais o boi 
Nós tocamos o sino. 

Quem vai na frente? 
Eu, o periquito 
Porque sou bonito 
Eu vou na frente. 

Todo o pássaro do ar 
Foi chorar lá no seu ninho 
Ao ouvir tocar o sino 
Pelo pobre pintainho.

 


Poemas e Poesias sábado, 07 de outubro de 2023

SPLEEN (POEMA DO PAULISTA VICENTE DE CARVALHO)

SPLEEN

Vicente de Carvalho

 

 

Fora, na vasta noute, um vento de procela
Erra, aos saltos, uivando, em rajadas e em fúria;
E num rumor de choro, uma voz de lamúria,
Ouço a chuva a escorrer nos vidros da janela.

No desconforto do meu quarto de estudante,
Velo. Sinto-me como insulado da vida.
Eu imagino a morte assim, aborrecida
Solidão numa sombra infinita e constante...

Tu, que és forte, rebrame em fúria, natureza!
Eu, caído num fundo abismo de tristeza,
Invejo-te a expansão livre do temporal;

E, no tédio feroz que me assalta e me toma,
Sinto ansiarem-me n'alma instintos de chacal...
E compreendo Nero incendiando Roma.

 


Poemas e Poesias sexta, 06 de outubro de 2023

ZABELÊ (POEMA DO PIAUIENSE TORQUATO NETO)

ZABELÊ

Torquato Neto

 

 

 

minha sabiá
minha zabelê
toda meia noite
eu sonho com você
se você duvida
eu vou sonhar pra você ver

minha sabiá
vem me dizer por favor
o quanto que eu devo amar
pra nunca morrer de amor
minha zabelê
vem correndo me dizer
porque eu sonho toda noite
e sonho só com você
se você não me acredita
vem pra cá
vou lhe mostrar
que riso largo é o meu sonho
quando eu sonho
com você
mas anda logo
vem que a noite
já não tarda a chegar
vem correndo
pro meu sonho escutar
que eu sonho falando alto
com você no meu sonhar


Poemas e Poesias quinta, 05 de outubro de 2023

MEMÓRIA DA ESPERASNÇA (POEMA DO AMAZONENSE THIAGO DE MELLO)

MEMÓRIA DA ESPERANÇA

Thiago de Mello

 

 

 

Na fogueira do que faço
por amor me queimo inteiro.
Mas simultâneo renasço
para ser barro do sonho
e artesão do que serei.
Do tempo que me devora
me nasce a fome de ser.
Minha força vem da frágil
flor ferida que se entreabre
resgatada pelo orvalho
da vida que já vivi.
Qual a flama que darei
para acender o caminho
da criança que vai chegar?
Não sei. Mas sei que já dança,
canção de luz e de sombra,
na memória da esperança.


Poemas e Poesias quarta, 04 de outubro de 2023

HARPA XXXII (POEMA DO MARANHENSE SOUSÂNDRDE)

HARPA XXXII

Sousândrade

 

 

 

Dos rubros flancos do redondo oceano
Com suas asas de luz prendendo a terra
O sol eu vi nascer, jovem formoso
Desordenando pelos ombros de ouro
A perfumada luminosa coma,
Nas faces de um calor que amor acende
Sorriso de coral deixava errante.
Em torno a mim não tragas os teus raios,
Suspende, sol de fogo! tu, que outrora
Em cândidas canções eu te saudava
Nesta hora d'esperança, ergue-te e passa
Sem ouvir minha lira. Quando infante
Nos pés do laranjal adormecido,
Orvalhado das flores que choviam
Cheirosas dentre o ramo e a bela fruta,
Na terra de meus pais eu despertava,
Minhas irmãs sorrindo, e o canto e aromas,
E o sussurrar de rúbida mangueira —
Eram teus raios que primeiro vinham
Roçar-me as cordas do alaúde brando
Nos meus joelhos tímidos vagindo.
Ouviste, sol minha'alma tênue d'anos
Toda inocente e tua, como o arroio
Em pedras estendido, em seus soluços
Andando, como o fez a natureza:
De uma luz piedosa me cercavas
Aquecendo-me o peito e a fronte bela.
Inda apareces como antigamente,
Mas o mesmo eu não sou: hoje me encontras
À beira do meu túmulo assentado
Com a maldição nos lábios branquecidos,
Azedo o peito, resfriada cinza
Onde resvalas como em rocha lôbrega:
Escurece essa esfera, os raios quebra,
Apaga-te p'ra mim, que tu me cansas!
A flor que lá nos vales levantaste
Subindo o monte, já na terra inclina.

Eu vi caindo o sol: como relevos
Dos etéreos salões, nuvens bordaram
As cintas do horizonte, e nas paredes
Estátuas negras para mim voltadas,
Tristes sombras daquelas que morreram;
Logo depois de funerais cobriu-se
Toda amplidão do céu, que recolheu-me.

 


Poemas e Poesias terça, 03 de outubro de 2023

PANDÊMICAS BOLHAS (POEMA DO BAIANO RICARDO LIMA)

PANDÊMICAS BOLHAS

Ricardo Lima

 

 

 

Bolhas, bolhas!

Aclama bolha, estoura, tola.

Murchas bolhas, não vindouras, poucas.

 

Estoura, bolhas.

Pandêmicas bolhas.

Poéticas bolhas.

 

Bolhas anis, bolhas viris.

“Rai-o-mundo” das bolhas sutis, “veronis”.

Reflexivas bolhas.

Pandêmicas bolhas.


Poemas e Poesias segunda, 02 de outubro de 2023

PLATÔNICO (POEMA DO FLUMINENSE RAUL DE LEÔNI)

PLATÔNICO

Raul de Leôni

 

 

 

As idéias são seres superiores,
— Almas recônditas de sensitivas —
Cheias de intimidades fugitivas,
De crepúsculos, melindres e pudores.

Por onde andares e por onde fores,
Cuidado com essas flores pensativas,
Que tem pólen, perfumes, órgãos e cores
E sofrem mais que as outras cousas vivas.

Colhe-as na solidão... são obras-primas
Que vieram de outros tempos e outros climas
Para os jardins de tua alma que transponho,

Para com ela teceres, na subida,
A coroa votiva do teu Sonho
E a legenda imperial da tua Vida.


Poemas e Poesias domingo, 01 de outubro de 2023

CHIUITA E MÃE VÉIA, VÍDEO, COM PATATIVA DO ASSARÉ

CHIQUITA E MÃE VÉIA

Patativa do Assaré

 


Poemas e Poesias sábado, 30 de setembro de 2023

FULANINHA (POEMA DO PERNAMBUCANO OLEGÁRIO MARIANO)

FULANINHA

Olegário Mariano

 

 

 

Foxtrotando pela rua
Vai Fulaninha, seminua,
Tem movimentos de onda do mar.
O corpo moço, a pele fresca,
Futurista, bataclanesca,
Chi! Eu gosto! Nem é bom falar...

Pisa a calçada, toc... toc...
No seu encalço vão a reboque
Peralvilhos, gênios do mal.
E ela nem liga... Continua
Foxtrotando pela rua...
Gentes, Que coisa mais fatal!

Figurino de dia cálido!
O seu semblante moreno-pálido
A mão de um gênio foi que compôs.
Como se chama? Vera? Estefânia?
Meu Luluzinho da Pomerânia,
Meu Luluzinho número 2!

Aonde vais, lindo vagalume?
— Vou ao Bazin comprar perfume...
Guerlain, Houbigant, Coty?
Todo o perfume é o mesmo, ardente,
E alucinante, e estuante, e quente,
Quando o perfume vem de ti.

— Meu bizarro João da Avenida!
Já ficou bom daquela ferida
Que lhe abriram no coração?
— Há muito tempo estou curado.
Por que falar-me do Passado?
E ela pôs os olhos no chão.

E dizer que tu foste... Perdoa...
— Pr'a que dizer? A lembrança é boa
— Lembrar é falta de educação.
— Mas a saudade purifica...
O sofrimento é o único bem que fica
Para a volúpia do perdão!


Poemas e Poesias sexta, 29 de setembro de 2023

AS CRUZADAS (POEMA DO CARIOCA OLAVO BILAC)

AS CRUZADAS

Olavo Bilac

 

 

 

Fulge-te o morrião sobre o cabelo louro,
E avultas na moldura, alto, esbelto e membrudo,
Guerreiro que por Deus abandonaste tudo,
Desbaratando o Turco, o Sarraceno e o Mouro!
Brilha-te a lança à mão, presa ao guante de couro.
Nos peitorais de ferro arfa-te o peito ossudo,
E alça-se-te o brasão sobre a chapa do escudo,
Nobre: - em campo de blau sete besantes de ouro.
"Diex le volt!" E, barão entre os barões primeiros
Foste, através da Europa, ao Sepulcro ameaçado.
Dentro de um turbilhão de pajens e escudeiros...
E era-te o gládio ao punho um relâmpago ardente!
E o teu pendão de guerra ondeou, glorioso, ao lado
Do pendão de Balduíno, imperador do Oriente.

Poemas e Poesias quinta, 28 de setembro de 2023

O TEMPO (POEMA DO GAÚCHO MÁRIO QUINTANA) - VÍDEO, NARRAÇÃO DE MARCELL MENDONÇA

 


Poemas e Poesias quarta, 27 de setembro de 2023

ESTRADA (POEMA DO PERNAMBUCANO MANUEL BANDEIRA)

ESTRADA

Manuel Bandeira

 

 

 

Esta estrada onde moro, entre duas voltas do caminho,
Interessa mais que uma avenida urbana.
Nas cidades todas as pessoas se parecem.
Todo o mundo é igual. Todo o mundo é toda a gente.
Aqui, não: sente-se bem que cada um traz a sua alma.
Cada criatura é única.
Até os cães.
Estes cães da roça parecem homens de negócios:
Andam sempre preocupados.
E quanta gente vem e vai!
E tudo tem aquele caráter impressivo que faz meditar:
Enterro a pé ou a carrocinha de leite puxada por um bodezinho manhoso.

Nem falta o murmúrio da água, para sugerir, pela voz dos símbolos,
Que a vida passa! Que a vida passa!
E a mocidade vai acabar.


Poemas e Poesias terça, 26 de setembro de 2023

O PALHAÇO (POEMA DO MATO-GROSSENSE MANOEL DE BARROS)

O PALHAÇO

Manoel de Barros

 

 

 

Gostava só de lixeiros crianças e árvores
Arrastava na rua por uma corda uma estrela suja.
Vinha pingando oceano!
Todo estragado de azul.


Poemas e Poesias segunda, 25 de setembro de 2023

NO ALTAR DA PÁTRIA (POEMA DO PORTUGUÊS JÚLIO DINIS)

NO ALTAR DA PÁTRIA

Júlio Dinis

 

 

 

 

(Ao meu amigo João Marques Nogueira
Uma)

1

Tinge do oriente as serras
O matutino alvor;
E do clarim das guerras
Se ouve o mortal clangor.

— «Ai, grata paz dos lares, Adeus, força é partir.
Ó sombra dos pomares! Ó rosas a florir!

«As hostes reunidas Chamam-me a combater, Ai, longas avenidas, Tornar-vos-ei
a ver ?

«Adeus, loucos amores! Adeus, beijos febris, Adeus, mudos verdores,
Que em sombras os encobris.»
— «Ô mãe, dá-me uma espada
Oiço da Pátria a voz!»
— «Ei-la. É imaculada, Era a de teus avós!»

— «Pura a trarei, voltando… Se não morrer ali.»
— «Vai! disse a mãe, chorando, Eu rezarei por ti.»

— «Filho, meu filho, espera! Não me ouve já. Partiu!»
E o ardor que a sustivera
De todo se extinguiu.

No campo já se escuta Das alas o marchar. Que agigantada luta Além
se vai travar?

Dá-se o sinal! Furiosas Partem as legiões; Encontram-se raivosas
Bramem como os leões.

Ai, que tinir de espadas! Que estrépito fatal!
Que vozes angustiadas
Se escutam no arraial!

O sangue rutilante Inunda e tinge o chão; Aos ais do agonizante
Responde a imprecação.

 

Em pé, os combatentes, Perdidos os corcéis, Cingem-se quais
serpentes Em pérfidos anéis.

A luta é braço a braço, A golpes de punhais;
Se caem de cansaço, Não se levantam mais.

A luta é peito a peito, Terrível e cruel!
Às cãs não há respeito, À dor não
há quartel

Findou! Tranqüilo é tudo… Já tudo emudeceu.
O campo é triste e mudo; É triste e escuro o céu!

A custa de mil vidas Salvou-se a Pátria enfim! Mas porque são
sentidas As vozes do clarim?

As hostes vitoriosas Porque tão tristes vêm? Ai, que ânsias
dolorosas Sentia a pobre mãe!

Passa a primeira fila… Mísera, que o não vês!… Outra,
outra mais. Vacila… Cresce-lhe a palidez!

Olha-as uma por uma, E a última passou;
E delas em nenhuma
Inquieta o filho achou!

E o céu mais se escurece ; O campo é envolto em pó
; E a triste permanece Absorta, muda e só I

Que solidão de morte! Que erma a planície jaz! Dorme no campo
o forte, Sono de glória e paz.

Dorme a valente raça
De intrépidos heróis!
Cegos, ao sol que passa
Saúdam novos sóis.

Que sepulcral figura
Se adianta além subtil;
Tão cheio de amargura
O gesto e o olhar febril!

À ensangüentada arena Os passos seus conduz; Raiou sobre esta
cena Da Lua a tarda luz.

Súbito em desvario
Solta um sentido ai,
Junto a um cadáver frio
Desfeita em pranto cai

«És tu! és tu? ai, filho! Ai, como te encontrei!
Como estão já sem brilho
Os olhos que eu beijei!

«Vai, sombra idolatrada, À tua Pátria, aos Céus!»
Cinge-lhe ao peito a espada; Morre ao dizer-lhe: < Adeus!»


Poemas e Poesias domingo, 24 de setembro de 2023

ZUMBI (POEMA DO ALAGOANO JORGE DE LMA)

ZUMBI

Jorge de Lima

 

Em meu torrão natal — Imperatriz —,

nas serras da Barriga e da Juçara,

um homem negro, muito negro, quis

mostrar ao mundo que tinha alma clara.

 

E tem o sonho que Platão sonhara: —

que um sonho nobre não possui matiz.

(O sol d’Egina é o mesmo sol do Saara,

da Senegâmbia, de qualquer país).

 

Em mil seiscentos e noventa e sete,

galgam o topo da montanha a pique,

os homens brancos de Caetano e Castro.

 

E o negro herói que não se curva e inflete,

faz-se em pedaços para que não fique

com os homens brancos, o seu negro rastro…

 


Poemas e Poesias sábado, 23 de setembro de 2023

UMA FACA SÓ LÁMINA (POEMA DO PERNAMBUCANO JOÃO CABRAL DE MELO NETO)

UMA FACA SÓ LÂMINA

João Cabral de Melo Neto

 

 

 

 

Assim como uma bala
enterrada no corpo,
fazendo mais espesso
um dos lados do morto;

assim como uma bala
do chumbo pesado,
no músculo de um homem
pesando-o mais de um lado

qual bala que tivesse
um vivo mecanismo,
bala que possuísse
um coração ativo

igual ao de um relógio
submerso em algum corpo,
ao de um relógio vivo
e também revoltoso,

relógio que tivesse
o gume de uma faca
e toda a impiedade
de lâmina azulada;

assim como uma faca
que sem bolso ou bainha
se transformasse em parte
de vossa anatomia;

qual uma faca íntima
ou faca de uso interno,
habitando num corpo
como o próprio esqueleto

de um homem que o tivesse,
e sempre, doloroso,
de homem que se ferisse
contra seus próprios ossos.

A.
Seja bala, relógio,
ou a lâmina colérica,
é contudo uma ausência
o que esse homem leva.

Mas o que não está
nele está como bala:
tem o ferro do chumbo,
mesma fibra compacta.

Isso que não está
nele é como um relógio
pulsando em sua gaiola,
sem fadiga, sem ócios.

Isso que não está
nele está como a ciosa
presença de uma faca,
de qualquer faca nova.

Por isso é que o melhor
dos símbolos usados
é a lâmina cruel
(melhor se de Pasmado):

porque nenhum indica
essa ausência tão ávida
como a imagem da faca
que só tivesse lâmina,

nenhum melhor indica
aquela ausência sôfrega
que a imagem de uma faca
reduzida à sua boca,

que a imagem de uma faca
entregue inteiramente
à fome pelas coisas
que nas facas se sente.

B.
Das mais surpreendentes
é a vida de tal faca:
faca, ou qualquer metáfora,
pode ser cultivada.

E mais surpreendente
ainda é sua cultura:
medra não do que come
porém do que jejua.

Podes abandoná-la,
essa faca intestina:
jamais a encontrarás
com a boca vazia.

Do nada ela destila
a azia e o vinagre
e mais estratagemas
privativos dos sabres.

E como faca que é,
fervorosa e energética,
sem ajuda dispara
sua máquina perversa:

a lâmina despida
que cresce ao se gastar,
que quanto menos dorme
quanto menos sono há,

cujo muito cortar
lhe aumenta mais o corte
e se vive a se parir
em outras, como fonte.

(Que a vida dessa faca
se mede pelo avesso:
seja relógio ou bala,
ou seja faca mesmo.)

C.
Cuidado com o objeto,
com o objeto cuidado,
mesmo sendo uma bala
desse chumbo ferrado,

porque seus dentes já
a bala os traz rombudos
e com facilidade
se em botam mais no músculo.

Mais cuidado porém
quando for um relógio
com o seu coração
aceso e espasmódico.

É preciso cuidado
por que não se acompasse
o pulso do relógio
com o pulso do sangue,

e seu cobre tão nítido
não confunda a passada
com o sangue que bate
já sem morder mais nada.

Então se for faca,
maior seja o cuidado:
a bainha do corpo
pode absorver o aço.

Também seu corte às vezes
tende a tornar-se rouco
e há casos em que ferros
degeneram em couro.

O importante é que a faca
o seu ardor não perca
e tampouco a corrompa
o cabo de madeira.

D.
Pois essa faca às vezes
por si mesma se apaga.
É a isso que se chama
maré-baixa da faca.

Talvez que não se apague
e somente adormeça.
Se a imagem é relógio,
a sua abelha cessa.

Mas quer durma ou se apague:
ao calar tal motor,
a alma inteira se torna
de um alcalino teor

bem semelhante à neutra
substância, quase feltro,
que é a das almas que não
têm facas-esqueleto.

E a espada dessa lâmina,
sua chama antes acesa,
e o relógio nervoso
e a tal bala indigesta,

tudo segue o processo
de lâmina que cega:
faz-se faca, relógio
ou bala de madeira,

bala de couro ou pano,
ou relógio de breu,
faz-se faca sem vértebras,
faca de argila ou mel.

(Porém quando a maré
já nem se espera mais,
eis que a faca ressurge
com todos seus cristais.)

E.
Forçoso é conservar
a faca bem oculta
pois na umidade pouco
seu relâmpago dura

(na umidade que criam
salivas de conversas,
tanto mais pegajosas
quanto mais confidências).

Forçoso é esse cuidado
mesmo se não é faca
a brasa que te habita
e sim relógio ou bala.

Não suportam também
todas as atmosferas:
sua carne selvagem
quer câmaras severas.

Mas se deves sacá-los
para melhor sofrê-los,
que seja em algum páramo
ou agreste de ar aberto.

Mas nunca seja ao ar
que pássaros habitem.
Deve ser a um ar duro,
sem sombra e sem vertigem.

E nunca seja à noite,
que esta tem as mãos férteis.
Aos ácidos do sol
seja, ao sol do Nordeste,

à febre desse sol
que faz de arame as ervas,
que faz de esponja o vento
e faz de sede a terra.

F.
Quer seja aquela bala
ou outra qualquer imagem,
seja mesmo um relógio
a ferida que guarde,

ou ainda uma faca
que só tivesse lâmina,
de todas as imagens
a mais voraz e gráfica,

ninguém do próprio corpo
poderá retirá-la,
não importa se é bala
nem se é relógio ou faca,

nem importa qual seja
a raça dessa lâmina:
faca mansa de mesa,
feroz pernambucana.

E se não a retira
quem sofre sua rapina,
menos pode arrancá-la
nenhuma mão vizinha.

Não pode contra ela
a inteira medicina
de facas numerais
e aritméticas pinças.

Nem ainda a polícia
com seus cirurgiões
e até nem mesmo o tempo
como os seus algodões.

E nem a mão de quem
sem o saber plantou
bala, relógio ou faca,
imagens de furor.

G.
Essa bala que um homem
leva às vezes na carne
faz menos rarefeito
todo aquele que a guarde.

O que um relógio implica
por indócil e inseto,
encerrado no corpo
faz este mais desperto.

E se é faca a metáfora
do que leva no músculo,
facas dentro de um homem
dão-lhe maior impulso.

O fio de uma faca
mordendo o corpo humano,
de outro corpo ou punhal
tal corpo vai armando,

pois lhe mantendo vivas
todas as molas da alma
dá-lhes ímpeto de lâmina
e cio de arma branca,

além de ter o corpo
que a guarda crispado,
insolúvel no sono
e em tudo quanto é vago,

como naquela história
por alguém referida
de um homem que se fez
memória tão ativa

que pôde conservar
treze anos na palma
o peso de uma mão,
feminina, apertada.

H.
Quando aquele que os sofre
trabalha com palavras,
são úteis o relógio,
a bala e, mais, a faca.

Os homens que em geral
lidam nessa oficina
têm no almoxarifado
só palavras extintas:

umas que se asfixiam
por debaixo do pó
outras despercebidas
em meio a grandes nós;

palavras que perderam
no uso todo o metal
e a areia que detém
a atenção que lê mal.

Pois somente essa fraca
dará a tal operário
olhos mais frescos para
o seu vocabulário

e somente essa faca
e o exemplo de seu dente
lhe ensinará a obter
de um material doente

o que em todas as facas
é a melhor qualidade:
a agudeza feroz ,
certa eletricidade,

mais a violência limpa
que elas têm, tão exatas,
o gosto do deserto,
o estilo das facas.

I.
Essa lâmina adversa,
como o relógio ou a bala,
se torna mais alerta
todo aquele que a guarda,

sabe acordar também
os objetos em torno
e até os próprios líquidos
podem adquirir ossos.

E tudo o que era vago,
toda frouxa matéria,
para quem sofre a faca
ganha nervos, arestas.

Em volta tudo ganha
a vida mais intensa,
com nitidez de agulha
e presença de vespa.

Em cada coisa o lado
que corta se revela,
e elas que pareciam
redondas como a cera

despem-se agora do
caloso da rotina,
pondo-se a funcionar
com todas suas quinas.

Pois entre tantas coisas
que também já não dormem,
o homem a quem a faca
corta e empresta seu corte,

sofrendo aquela lâmina
e seu jato tão frio,
passa, lúcido e insone,
vai fio contra fios.

*

De volta dessa faca,
amiga ou inimiga,
que mais condensa o homem
quanto mais o mastiga;

de volta dessa faca
de porte tão secreto
que deve ser levada
como o oculto esqueleto;

da imagem em que mais
me detive, a da lâmina,
porque é de todas elas
certamente a mais ávida;

pois de volta da faca
se sobe à outra imagem,
àquela de um relógio
picando sob a carne,

e dela àquela outra,
a primeira, a da bala,
que tem o dente grosso
porém forte a dentada

e daí à lembrança
que vestiu tais imagens
e é muito mais intensa
do que pôde a linguagem,

e afinal à presença
da realidade, prima,
que gerou a lembrança
e ainda a gera, ainda,

por fim à realidade,
prima, e tão violenta
que ao tentar apreendê-la

toda imagem rebenta.

 


Poemas e Poesias sexta, 22 de setembro de 2023

HOJE, ESTOU TRISTE (POEMA DO ACRIANO J. G. DE ARAÚJO JORGE)

HOJE, ESTOU TRISTE

J. G. de Araújo Jorge

 

 

 

Amor… Hoje, estou triste… Nesses dias
a vida de repente se reduz
a um punhado de inúteis fantasias…
… Sou uma procissão só de homens nus…

Olho as mãos, minhas pobres mãos vazias
sem esperas, sem dádivas, sem luz,
que hão semear vagas melancolias
que ninguém vai colher, mas que compus…

Amor, estou cansado, e amargo, e só…
Estou triste mais triste e pobre do que Jó,
– por que tentar um gesto? E para quê?

Dê-me, por Deus, um trago de esperança…
Fale-me, como se fala a uma criança
do amor, do mar, das aves… de você!


Poemas e Poesias quinta, 21 de setembro de 2023

PORQUE HÁ DESEJO EM MIM (POEMA DA PAULISTA HILDA HIST)

PORQUE HÁ DESEJO EM MIM

Hilda Hilst

 

 

 

Porque há desejo em mim, é tudo cintilância.
Antes, o cotidiano era um pensar alturas
Buscando Aquele Outro decantado
Surdo à minha humana ladradura.
Visgo e suor, pois nunca se faziam.
Hoje, de carne e osso, laborioso, lascivo
Tomas-me o corpo. E que descanso me dás
Depois das lidas. Sonhei penhascos
Quando havia o jardim aqui ao lado.
Pensei subidas onde não havia rastros.
Extasiada, fodo contigo
Ao invés de ganir diante do Nada.


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