Almanaque Raimundo Floriano
Fundado em 24.09.2016
(Cultural, sem fins comerciais, lucrativos ou financeiros)


Raimundo Floriano de Albuquerque e Silva, Editor deste Almanaque, também conhecido como Velho Fulô, Palhaço Seu Mundinho e Mundico Trazendowski, nascido em Balsas , Maranhão, a 3 de julho de 1936, Católico Apostólico Romano, Contador, Oficial da Reserva do Exército Brasileiro, Funcionário Público aposentado da Câmara dos Deputados, Titular da Cadeira nº 10 da Academia Passa Disco da Música Nordestina, cuja patrona é a cantora Elba Ramalho, Mestre e Fundador da Banda da Capital Federal, Pesquisador da MPB, especializado em Velha Guarda, Música Militar, Carnaval e Forró, Cardeal Fundador da Igreja Sertaneja, Pioneiro de Brasília, Xerife nos Mares do Caribe, Cordelista e Glosador, Amigo do Rio das Balsas, Inventor da Descida de Boia, em julho de 1952, Amigo da Fanfarra do 1° RCG, autor dos livros O Acordo PDS/PTB, coletânea de charges, Sinais de Revisão e Regras de Pontuação, normativo, Do Jumento ao Parlamento, com episódios da vida real, De Balsas para o Mundo, centrado na navegação fluvial Balsas/Oceano Atlântico, Pétalas do Rosa, saga da Família Albuquerque e Silva, Memorial Balsense, dedicado à história de sua terra natal, e Caindo na Gandaia, humorístico apimentado, é casado, tem quatro filhos, uma nora, dois genros e dois netos e reside em Brasília, Distrito Federal, desde dezembro de 1960.

Poemas e Poesias quarta, 07 de agosto de 2024

VELHA NATUREZA (POEMA DO FLUMINENJSE RAUL DE LEÔNI)

VELHA NATUREZA

Raul de Leôni 

 

 

 

 

Tudo que a velha Natureza gera
Vai sempre rumo do melhor futuro;
Ela fecunda com o ânimo seguro
De quem muito medita e delibera…

O seu gênio de artista mais se esmera
Na teoria sutil do claro-escuro,
Com que exalta a verdade mais austera,
Frisando em tudo o símbolo mais puro…

Só faz o Mau e o Hediondo para efeito
De projetar mais longe e sem nuance
A alma cheia de luz do que é perfeito,

Como cavou o Abismo nas entranhas,
Para dar mais relevo e mais alcance
À soberba estatura das montanhas…

 

Poemas e Poesias terça, 06 de agosto de 2024

MARIA GULORA, DE PATATIVA DO ASSARÉ, COM JESSIER QUIRINO - VÍDEO

 


Poemas e Poesias segunda, 05 de agosto de 2024

O DECLÍNIO DAS LOURAS (POEMA DO PERNAMBUCANO OLEGÁRIO MARIANO)

O DECLÍNIO DAS LOURAS

Olegário Mariano

 

 

 

Por serem mais românticas e belas

De linhas mais sensuais e duradouras,

Entre viuvas, casadas, e donzelas

Prefiro sempre as raparigas louras.

 

Porque nas atitudes mais singelas

São silenciosas e perturbadoras.

E a gente sente que é por causa delas

Que o sol loureja as searas e as lavouras.

 

Em Hollywood porem, na hora presente,

Andam as louras desaparecidas

De cabelos mudados de repente.

 

Será que a moda já não vale nada

Ou quem sabe se a lei contra as bebidas

Proibe a venda de água oxigenada?


Poemas e Poesias sábado, 03 de agosto de 2024

GONÇALVES DIAS (POEMA DO CARIOCA OLAO BILAC)

GONÇALVES DIAS

Olavo Bilac
(Grafia original)

 

 

 

Celebraste o domínio soberano
Das grandes tribos, o tropel fremente
Da guerra bruta, o entrechocar insano
Dos tacapes vibrados rijamente,

O maracá e as flechas, o estridente
Troar da inúbia, e o canitar indiano...
E, eternizando o povo americano,
Vives eterno em teu poema ingente.

Estes revoltos, largos rios, estas
Zonas fecundas, estas seculares
Verdejantes e amplíssimas florestas

Guardam teu nome: e a lira que pulsaste
Inda se escuta, a derramar nos ares
O estridor das batalhas que contaste.


Poemas e Poesias sexta, 02 de agosto de 2024

QUEM SABE UM DIA (POEMA DO GAÚCHO MÁRIO QUINTANA)

QUEM SABE UM DIA

Mário Quintana

 

 

 

Quem sabe um dia

Quem sabe um seremos

Quem sabe um viveremos

Quem sabe um morreremos!

 

Quem é que

Quem é macho

Quem é fêmea

Quem é humano, apenas!

 

Sabe amar

Sabe de mim e de si

Sabe de nós

Sabe ser um!

 

Um dia

Um mês

Um ano

Um(a) vida!

 

Sentir primeiro, pensar depois

Perdoar primeiro, julgar depois

 

Amar primeiro, educar depois

Esquecer primeiro, aprender depois

 

Libertar primeiro, ensinar depois

Alimentar primeiro, cantar depois

 

Possuir primeiro, contemplar depois

Agir primeiro, julgar depois

 

Navegar primeiro, aportar depois

Viver primeiro, morrer depois


Poemas e Poesias quinta, 01 de agosto de 2024

MADRIGAL (POEMA DO PERNAMBUCANO MANUEL BANDEIRA)

 

MADRIGAL

Manuel Bandeira

 

 

A luz do sol bate na lua...
Bate na lua, cai no mar...
Do mar ascende à face tua,
Vem reluzir em teu olhar...

E olhas nos olhos solitários,
Nos olhos que são teus... E assim
Que eu sinto em êxtases lunários
A luz do sol cantar em mim...


Poemas e Poesias quarta, 31 de julho de 2024

RESPEITO (POEMA DO MATO-GROSSENSE MANOEL DE BARROS)

RESPEITO

Manoel de Barros

 

 

 

 

Dou respeito às coisas desimportantes
e aos seres desimportantes.
Prezo insetos mais que aviões.
Prezo a velocidade
das tartarugas mais que a dos mísseis.
Tenho em mim esse atraso de nascença.
Eu fui aparelhado
para gostar de passarinhos.
Tenho abundância de ser feliz por isso.
Meu quintal é maior do que o mundo.


Poemas e Poesias terça, 30 de julho de 2024

NANHÃ (POEMA DO CARIOCA LUÍS GUIMARÃES JÚNIOR)

NHANHÃ

Luís Guimarães Júnior

 

 

 

Um dia apresentaram-me. Ela lia
Num canto do salão.
Deixou cair aos pés o livro, — e ria
Estendendo-me a mão.

Mão de princesa, fina, delicada,
De tão macio alvor
Qual se a talhara alguma boa fada
No cálix de uma flor.

Era no campo. As auras forasteiras
Suspiravam no ar,
Frescas do grato odor das laranjeiras,
Dos raios do luar.

Surda uma voz ao longe ressoava
Em doloridos ais...
Quem canta? perguntei. — Ora! uma escrava!
Disse ela. E nada mais.

Falou-me então das valsas delirantes
De Strauss e do furor
Dos novos cotillons. Disse-me: — Dantes
Valsava-se melhor.

E a voz da escrava como um ai de morte
Adejava ao luar...
— "Li, há dois dias, num jornal da corte
Que a Patti vai chegar:

Será verdade? Ah! quem me dera! A moda
Renascerá enfim!"
E ela, a bater as mãos, ria-se toda
Olhando para mim.

Contemplei melancólico o semblante
Dessa virgem feliz:
Era mais alva que ao luar errante
As pálidas willis;

Era tão doce como a Fantasia
Dum bardo sonhador:
Lamartine colhera uma Harmonia
Nos lábios dessa flor.

E enquanto o seu olhar negro brilhava
Como a onda ao luar,
E a suspirosa aragem derramava
O aroma do pomar;

Enquanto aquela boca fulgurante
Mais pura que os cristais,
Repetia-me a crônica elegante
Dos últimos jornais;

A voz da escrava — trêmula, queixosa,
Expirou na amplidão,
Longa como uma nênia dolorosa,
Triste como a paixão.

 


Poemas e Poesias segunda, 29 de julho de 2024

O DESTINO DAS FLORES (POEMA DO PORTUGUÊS JÚLIO DINIS)

O DESTINO DAS FLORES

Júlio Dinis 

 

 

 

Um dia em que ambos nós, sobre a mesa do estudo
Numa noite hibernai, da lâmpada ao clarão,
Ele curvado a ler, eu a escutá-lo mudo,
Seguíamos com pausa, atentos, a lição.

Inda me lembro bem ! Falávamos das plantas, De sua curta vida e sua amena
cor,
Tantas pelos vergéis e pelos montes tantas, Que vivem, fenecendo após
aberta a flor!

— «Triste destino o seu», disse ele com voz lenta, Pousando
com tristeza a fronte sobre a mão,
— «Deus as manda florir, de seiva as alimenta, Mas cedo com as flor’s
caem murchas no chão.»

Triste destino o teu, ao delas semelhante, Pobre alma de poeta! On! que destino
o teul Deus te mandou cantar e o canto vacilante
Na Terra principiado acabaste-o no Céu.


Poemas e Poesias segunda, 29 de julho de 2024

O TR4ISTE RELATO DE UM SABIÁ (POEMA DO COLUNISTA CARLOS AIRES)

O TRISTE RELATO DE UM SABIÁ

Carlos Aires

Seres humanos malvados
Com seus instintos daninhos
Deixam aprisionados
Inocentes passarinhos,
Que no decorrer das trilhas
Sucumbem em armadilhas
E por infelicidade
Passam a viver sozinhos
Bem distante dos seus ninhos
Privados da liberdade.

É o cumulo da maldade
Se prender um inocente
Colocá-lo atrás da grade
Sem ter motivo aparente
Ainda mais na covardia,
E a vítima da ironia
E mártir da traição,
Passa a viver indefeso
Sofrendo mágoa, desprezo,
Na maior desilusão.

 

Numa certa ocasião
Que não esqueço jamais
Eu adentrei num galpão
Onde se vende animais,
Subjugada aos entraves,
Eu vi ali várias aves
No mais cruel cativeiro,
Que assim a revelia
Viraram mercadoria
Pra se trocar por dinheiro.

Eu passei um dia inteiro
Ali naquele ambiente
Num momento alvissareiro
Deparei-me de repente
Com uma ave solitária
Que estava naquela área
A olhar triste pra mim,
Assim como quem pedia:
Me livra dessa enxovia
Antes que chegue o meu fim.

 

E se lamentava: enfim
Qual foi o mal que eu fiz?
Pra ter um viver assim
Nesse castigo infeliz?
Porque é que se reprime
A quem não cometeu crime
E nenhuma atitude má?
Eu, bastante comovido
Logo atendi ao pedido
Do infausto sabiá.

E ao sairmos de lá
Desse lugar tenebroso
Notei que o sabiá
Já calmo, menos nervoso,
Tinha algo a me dizer,
E eu querendo saber
Tudo sobre o passarinho
Disse: não tema perigo
E pode abrir-se comigo
Pois eu sou seu amiguinho.

Ele relatou: meu ninho
Era numa laranjeira
Eu tinha um lindo filhinho
Uma bela companheira,
Um dia eu saí contente
A procura de semente
Pra nossa alimentação
Numa emboscada escondida
Caí, daí minha vida
Transformou-se em aflição.

Sem nenhuma explicação
Eu me vi ali detido
Sem saída, sem ação,
Imaginei, estou perdido,
Mas, a hora mais ingrata,
Foi quando deixei a mata
Seguindo outra diretriz
Meu peito se encheu de luto
Ao me afastar do reduto
Aonde fui tão feliz!

O meu amigo concriz
Também teve a mesma sina,
A juriti, a perdiz,
Canário, galo-campina,
O xexéu de bananeira,
A guriatã fagueira,
O caboclinho, o “sofreu”,
Goladinha e azulão,
Mesmo o esperto cancão
Dali desapareceu.

Todos, assim como eu,
Foi um por um enganado
O homem que nos prendeu
Com o bolso abarrotado
Pelo farto numerário,
É um maldito salafrário!
Burla a lei e ignora
Que o seu ato tirano
Causa um deplorável dano
Para a fauna e para a flora.

Diga meu amigo, agora,
Se me entendeu ou não,
Minha fé se revigora
Pois sinto em seu coração
Os princípios da bondade,
Da mais pura lealdade
Por isso é que lhe dei crença,
Sei que fui compreendido
E ora lhe faço um pedido
Revogue a minha sentença.

Ali na sua presença
Eu disse emocionado
A pena já está suspensa
Você vai ser libertado,
Pra voar pelas baixadas
Cantar com as passaradas
Curtir esse clima seu
Voltar a fazer seresta
No seio dessa floresta
O lugar em que nasceu.

A triste historia envolveu
Um passarinho inocente,
Ao ser que um dia o prendeu
Com seu ato inconsequente
Peço, que tenha clemência,
Não cometa essa imprudência
Pra que tenhamos certeza
E a plena convicção,
Que quem faz preservação
Engrandece a natureza.


Poemas e Poesias domingo, 28 de julho de 2024

NOTURNO (POEMA DO ACRIANO J G. DE ARAÚJO JORGE)

NOTURNO

J. G. de Araújo Jorge

 

 

 

Agora, à noite, fujo às vezes
e aporto em algum bar

Como antigamente.
Marinheiro do amor, de porto em porto,
a vida como um navio, de mar em mar...

Pensei que tinha lançado ancora,
que plantara raízes,
que não partiria mais.

E de repente, desarvoraste meu destino,
e te foste
- volto a ser o antigo marinheiro -
e sozinho, preciso embebedar-me,
agora num navio encalhado,
sem mar...


Poemas e Poesias sábado, 27 de julho de 2024

TOMA-ME (POEMA DA PAULISTA HILDA HILST)

TOMA-ME

Hilda Hilst

 

 

 

Toma-me. A tua boca de linho sobre a minha boca
Austera. Toma-me AGORA, ANTES
Antes que a carnadura se desfaça em sangue, antes
Da morte, amor, da minha morte, toma-me
Crava a tua mão, respira meu sopro, deglute
Em cadência minha escura agonia.

Tempo do corpo este tempo, da fome
Do de dentro. Corpo se conhecendo, lento
Um sol de diamante alimentando o ventre,
O leite da tua carne, a minha
Fugidia.
E sobre nós este tempo futuro urdindo
Urdindo a grande teia. Sobre nós a vida
A vida se derramando. Cíclica. Escorrendo.

Te descobres vivo sob um jugo novo.
Te ordenas. E eu deliquescida: amor, amor,
Antes do muro, antes da terra, devo
Devo gritar a minha palavra, uma encantada
Ilharga
Na cálida textura de um rochedo. Devo gritar
Digo para mim mesma. Mas ao teu lado me estendo
Imensa. De púrpura. De prata. De delicadeza.


Poemas e Poesias sexta, 26 de julho de 2024

SUPERSTIÇÃO (POEMA DO SERGIPANO HERMES FONTES)

SUPERSTIÇÃO

Hermes Fontes

 

 

 

“As duas iniciais do nome a que respondo
(e é pena que, horas e horas, me atarefe
nesta superstição!),
as duas iniciais do meu nome — H.F. —,
tem um símbolo bom, junto a símbolo hediondo,
um destino de herói e um de vilão:
Há no H uma escada, um degrau de subida<
uma vaga noção de arquitetura
interrompida.
O F é, porém,,
forca... poste fatal... marco do fim da Vida...
guindaste de almas para a sepultura,
para a eterna Altura,
para o Além...
Para subir à forca do meu F
tenho ao lado uma escada — o meu H.
Carrasco, magarefe,
alto lá!
alto lá!
Por suas iniciais, meu nome ensina
a não temer pressentimentos vãos.
Ergástulo, fogueira, guilhotina,
cicuta, ópio, ou morfina...
— Quem sabe a sua sina?
— Quem sabe lá se há de morrer por suas mãos?”

Poemas e Poesias quinta, 25 de julho de 2024

NÓS DOIS (POEMA DO PAULISTA GUILHERME DE ALMEIDA)

NÓS DOIS

Guilherme de Almeida

 

Chão humilde. Então,
riscou-o a sombra de um voo.
"Sou céu!" disse o chão.


Poemas e Poesias quarta, 24 de julho de 2024

PAISAGEM (POEMA DA PAULISTA FRANCISCA JÚLIA)

PAISAGEM

Francisca Júlia

 

 

Dorme sob o silêncio o parque. Com descanso,
Aos haustos, aspirando o finíssimo extrato
Que evapora a verdura e que deleita o olfato,
Pelas alas sem fim da árvores avanço.

Ao fundo do pomar, entre folhas, abstrato
Em cismas, tristemente, um alvíssimo ganso
Escorrega de manso, escorrega de manso
Pelo claro cristal do límpido regato.

Nenhuma ave sequer, sobre a macia alfombra,
Pousa. Tudo deserto. Aos poucos escurece
A campina, a rechã sob a noturna sombra.

E enquanto o ganso vai, abstrato em cismas, pelas
Selvas a dentro entrando, a noite desce, desce...
E espalham-se no céu camandulas de estrelas...


Poemas e Poesias terça, 23 de julho de 2024

SAUDADE (POEMA DA CARIOCA GILKA MACHADO)

SAUDADE

Gilka Machado

 

 

 

De quem é esta saudade
que meus silêncios invade,
que de tão longe me vem?

De quem é esta saudade,
de quem?

Aquelas mãos só carícias,
Aqueles olhos de apelo,
aqueles lábios-desejo...

E estes dedos engelhados,
e este olhar de vã procura,
e esta boca sem um beijo...

De quem é esta saudade
que sinto quando me vejo?


Poemas e Poesias segunda, 22 de julho de 2024

FANATISMO (POEMA DA PORTUGUESA FLORBELA ESPANCA)

FANATISMO

Florbela Espanca

 

 

 

Minh’alma, de sonhar-te, anda perdida.
Meus olhos andam cegos de te ver!
Não és sequer razão do meu viver,
Pois que tu és já toda a minha vida!

Não vejo nada assim enlouquecida…
Passo no mundo, meu Amor, a ler
No misterioso livro do teu ser
A mesma história tantas vezes lida!

“Tudo no mundo é frágil, tudo passa… ”
Quando me dizem isto, toda a graça
Duma boca divina fala em mim!

E, olhos postos em ti, digo de rastros:
“Ah! Podem voar mundos, morrer astros,
Que tu és como Deus: Princípio e Fim! … ”


Poemas e Poesias domingo, 21 de julho de 2024

BANANAS PODRES (POEMA DO MARANHENSE FERREIRA GULLAR)

BANANAS PODRES

Ferreira Gullar

 

 

É a escuridão que engendra o mel
ou o futuro clarão no paladar
(como quase luz
na saliva, e mais:
em alguma parte da vida
a escuridão
engendra
o olhar  no corpo ansioso de abrir-se
à luz)

e o mel que
aflui da noite da polpa
(e feito
dessa noite) flui
do podre da polpa
da noite do podre
(sob a casca)
tal como um suicídio
ou um alarme ou
abafada rotação
nas moléculas
(e igual que
no cosmos cintila)
uma balbúrdia de ácidos
negros
inventando
um quase alvorecer na quitanda.

E pense bem: também
um tumor é um ponto intenso
da matéria viva,
de alta temperatura
como a gestar um astro
de pus
(assim se engendram  os sóis,
os sons
no vazio abissal)

e assim também as vozes
do açúcar
(um negro
lampejo)
que assustam os mosquitos
(nuvens deles)
pairando no ar
dos escusos cantos
do depósito
de frutas
nos fundos da quitanda
rua da Alegria esquina de Afogados

e que faliu
e sumiu
para sempre
daquela esquina e do mundo, a quitanda,
bem como seu dono, o falado
Newton Ferreira e  seus amigos Zé Dedão,
o Cantuária e o Elias,
todos
que poderiam afirmar
que sim, de fato as bananas
já estavam passadas, quase inteiramente podres
aquela tarde

e que ali amontoadas num alguidar
fermentavam
exalando no ar o doce odor
de bananas morrendo
o que efetivamente ocorreu
na cidade de São Luís do Maranhão
ao norte do Brasil
por volta de 1940…

E foda-se.

 


Poemas e Poesias sábado, 20 de julho de 2024

DORME, QUE A VIDA É NADA! (POEMA DO PORTUGUÊS FERNANDO PESSOA)

DORME, QUE A VIDA É NADA!
Fernando Pessoa

 

 

Dorme, que a Vida é Nada! 
Dorme, que tudo é vão!
Se alguém achou a estrada,
Achou-a em confusão,
Com a alma enganada.

Não há lugar nem dia
Para quem quer achar,
Nem paz nem alegria
Para quem, por amar,
Em quem ama confia.

Melhor entre onde os ramos
Tecem docéis sem ser
Ficar como ficamos,
Sem pensar nem querer,

 


Poemas e Poesias sexta, 19 de julho de 2024

VERSO E REVERSO (POEMA DO FLUMINENSE EUCLIDES DA CUNHA)

VERSO E REVERSO

Euclides da Cunha

 

 

 

Bem como o lótus que abre – o seio perfumado –
Ao doce olhar da estrela esquiva d’amplidão,
Assim também, um dia, a um doce olhar, domado,
Se abriu meu coração!…

Ah!… foi um astro puro – e vívido, fulgente,
Que à noute de minh’alma em luz veio romper
Aquele olhar divino, aquele olhar ardente –
De uns olhos de mulher!…

Escopro divinal – tecido por auroras –
Bem dentro do meu peito – esplêndido tombou –
E nele altas canções, inspirações sonoras –
Sublime – burilou!…

Foi ele que a minh’alma – em noute atroz cingida –
Ergueu do ideal ao rútilo clarão!…
Foi ele – aquele olhar, que à lágrima dorida –
Deu-me um berço – a Canção!…

Foi ele que ensinou-me às minhas dores frias
Em estrofes ardentes, altivo transformar!…
Foi ele que ensinou-me a ouvir as melodias
Que brilham num olhar!…

E são seus puros raios – seus raios róseos santos –
– Envoltos sempre e sempre em tão divina cor –
As cordas divinais da lira de meus prantos,
D’harpa de minha dor!…

Sim – ele é quem me dá – o desespero e a calma,
O ceticismo e a crença – a raiva, o mal e o bem –
Lançou-me muita luz no coração e n’alma,
Mas lágrimas também!

É ele que – febril a espadanar fulgores
Negreja na minh’alma – imenso, vil, fatal!…
– É quem me sangra o peito – e me mitiga as dores
– É bálsamo, é punhal –


Poemas e Poesias quinta, 18 de julho de 2024

TROVAS HUMORÍSTICAS - 29 - (POEMA DO PARANAENSE ENO TEODORO WANKE)
 
 

TROVA HUMORÍSTICA 29

Eno Teodoro Wanke

 

 

Ser superior não é dom

De quem diz ser é pendor

De quem, como eu, modesto

Nunca se diz superior 


Poemas e Poesias quarta, 17 de julho de 2024

SOB O SIGNO DA BELEZA (POEMA DO PIAUIENSE DA COSTA E SILVA)

SOB O SIGNO DA BELEZA

Da Costa e Silva

 

 

No dia em que nasci, fadou-me Apolo
A uma vida de júbilos e penas;
De ânsias divinas e emoções terrenas;
E eu com este destino me consolo.

Fui pelas Musas embalado ao colo,
Aprendendo no trato das Camenas
A transformar em lírios e açucenas
Os cardos que me ferem pelo solo.

Tendo este dom que eleva e transfigura
Os aspectos do mundo, a alma resiste
Ao lodo da existência amarga e escura...

E esta alegria resignada e triste
É bem de quem no sonho acha a ventura,
Vendo a beleza em tudo quanto existe.


Poemas e Poesias terça, 16 de julho de 2024

DANÇA DO VENTRE (POEMA DO CATARINENSE CRUZ E SOUSA)

DANÇA DO VENTRE

Cruz e Sousa

 

orva, febril, torcicolosamente,
numa espiral de elétricos volteios,
na cabeça, nos olhos e nos seios
fluíam-lhe os venenos da serpente.

Ah! que agonia tenebrosa e ardente!
que convulsões, que lúbricos anseios,
quanta volúpia e quantos bamboleios,
que brusco e horrível sensualismo quente.

O ventre, em pinchos, empinava todo
como réptil abjecto sobre o lodo,
espolinhando e retorcido em fúria.

Era a dança macabra e multiforme
de um verme estranho, colossal, enorme,
do demônio sangrento da luxúria!


Poemas e Poesias segunda, 15 de julho de 2024

SEGUNDO MOTIVO DA ROSA (POEMA DA CARIOCA CECÍLIA MEIRELES)

SEGUNDO MOTIVO DA ROSA

Cecília Meireles

 

 

Por mais que te celebre, não me escutas,
embora em forma e nácar te assemelhes
à concha soante, à musical orelha
que grava o mar nas íntimas volutas.

Deponho-te em cristal, defronte a espelhos,
sem eco de cisternas ou de grutas…
Ausências e cegueiras absolutas
ofereces às vespas e às abelhas.

E a quem te adora, ó surda e silenciosa,
e cega e bela e interminável rosa,
que em tempo e aroma e verso te transmutas!

Sem terra nem estrelas brilhas, presa
a meu sonho, insensível à beleza
que és e não sabes, porque não me escutas…


Poemas e Poesias sábado, 13 de julho de 2024

HINO AO SONO (POEMA DO BAIANO CASTRO ALVES)

HINO AO SONO

Castro Alves

 

 

 

Ó sono! ó noivo pálido
Das noites perfumosas,
Que um chão de nebulosas
Trilhas pela amplidão!
Em vez de verdes pâmpanos,
Na branca fronte enrolas
As lânguidas papoulas,
Que agita a viração.

Nas horas solitárias,
Em que vagueia a lua,
E lava a planta nua
Na onda azul do mar,
Com um dedo sobre os lábios
No vôo silencioso,
Vejo-te cauteloso
No espaço viajar!

Deus do infeliz, do mísero!
Consolação do aflito!
Descanso do precito,
Que sonha a vida em ti!
Quando a cidade tétrica
De angústias e dor não geme…
É tua mão que espreme
A dormideira ali.

Em tua branca túnica
Envolves meio mundo…
É teu seio fecundo.
De sonhos e visões,
Dos templos aos prostíbulos,
Desde o tugúrio ao Paço,
Tu lanças lá do espaço
Punhados de ilusões!…

Da vida o sumo rúbido,
Do hatchiz a essência
O ópio, que a indolência
Derrama em nosso ser,
Não valem, gênio mágico,
Teu seio, onde repousa
A placidez da lousa
E o gozo do viver…

Ó sono! Unge-me as pálpebras…
Entorna o esquecimento
Na luz do pensamento,
Que abrasa o crânio meu.
Como o pastor da Arcádia,
Que uma ave errante aninha…
Minh’alma é uma andorinha…
Abre-lhe o seio teu.

Tu, que fechaste as pétalas
Do lírio, que pendia,
Chorando a luz do dia
E os raios do arrebol,
Também fecha-me as pálpebras…
Sem Ela o que é a vida?…
Eu sou a flor pendida
Que espera a luz do sol.

O leite das eufórbias
Pra mim não é veneno…
Ouve-me, ó Deus sereno!
Ó Deus consolador!
Com teu divino bálsamo
Cala-me a ansiedade!
Mata-me esta saudade.
Apaga-me esta dor.

Mas quando, ao brilho rútilo
Do dia deslumbrante,
Vires a minha amante
Que volve para mim,
Então ergue-me súbito…
É minha aurora linda…
Meu anjo… mais ainda…
É minha amante enfim!

Ó sono! Ó Deus noctívago!
Doce influência amiga!
Gênio que a Grécia antiga
Chamava de Morfeu
Ouve!… E se minha súplicas
Em breve realizares…
Voto nos teus altares
Minha lira de Orfeu!…


Poemas e Poesias sexta, 12 de julho de 2024

NO TÚMULO DUM MENINO (POEMA DO FLUMINENSE CASIMIRO DE ABREU)

NO TÚMULO DUM MENINO

Casimiro de Abreu

 

Um anjo dorme aqui: na aurora apenas,
Disse adeus ao brilhar das açucenas
Sem ter da vida alevantado o véu.
- Rosa tocada do cruel granizo -
Cedo finou-se e no infantil sorriso
Passou do berço p'ra brincar no céu!

 


Poemas e Poesias quinta, 11 de julho de 2024

SONETO, AS CINCO HORAS DA TARDE (POEMA DO PERNAMBUCANO CARLOS PENA FILHO)

SONETO, ÀS CINCO HORAS DA TARDE

Carlos Pena Filho

 

 

 

Agora que me instigo e me arremesso
ao branco ofício de prender meu sono
e depois atirá-lo em seu vestido
feito de céu e restos de incerteza,

recolho inutilmente de seus lábios
a precisão do sangue do silêncio
e inauguro uma tarde em suas mãos
grávidas de gestos e de rumos.

Pelo temor e o débil sobressalto
de encontrar sua ausência numa esquina
quando extingui canção e permanência,

guardei todo o impossível de seus olhos,
embora ouvisse, longe, além dos mapas,
bruscos mastins de cedro em seus cabelos.


Poemas e Poesias quarta, 10 de julho de 2024

DESTRUIÇÃO (POEMA DO MINEIRO CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE)

DESTRUIÇÃO

Carlos Drummond de Andrade

 

 

 

Os amantes se amam cruelmente
e com se amarem tanto não se vêem.
Um se beija no outro, refletido.
Dois amantes que são? Dois inimigos.

Amantes são meninos estragados
pelo mimo de amar: e não percebem
quanto se pulverizam no enlaçar-se,
e como o que era mundo volve a nada.

Nada, ninguém. Amor, puro fantasma
que os passeia de leve, assim a cobra
se imprime na lembrança de seu trilho.

E eles quedam mordidos para sempre.
Deixaram de existir mas o existido
continua a doer eternamente.


Poemas e Poesias terça, 09 de julho de 2024

SONETO 0124 - ENQUANTO FEBO OS MONTES ACENDIA (POEMA DO PORTUGUÊS LUÍS DE CAMÕES)
 
 
 
Luís de Camões
 
 
SONETO 124 ENQUANTO FEBO OS MONTES ACENDIA
(Grafia original) 
 
 

Enquanto Febo os montes acendia
do Céu com luminosa claridade,
por evitar do ócio a castidade,
na caça o tempo Délia dispendia.

Vénus, que então de furto descendia,
por cativar de Anquises a vontade,
vendo Diana em tanta honestidade,
quase zombando dela, lhe dizia:

«Tu vais com tuas redes na espessura
os fugitivos cervos enredando;
mas as minhas enredam o sentido.»

«Milhor é – respondia a deusa pura -
nas redes leves cervos ir tomando
que tomar-te a ti nelas teu marido.»


Poemas e Poesias segunda, 08 de julho de 2024

CEM TROVAS - 019 (POEMA DO MINEIRO BELMIRO BRAGA)
 

TROVA 019

Belmiro Braga

 

Uma princesa parece

Pelos trajos do alto preço

Mas quanta gente conhece

Seus vestidos pelo avesso

 


Poemas e Poesias domingo, 07 de julho de 2024

MISTÉRIOS DE UM FILÓSOFO (POEMA DO PARAIBANO AUGUSTO DOS ANJOS)

MISTÉRIOS DE UM FILÓSOFO

Augusto dos Anjos

 

 

 

Dois são, porque um, certo, é do sonho assíduo

Que a individual psique humana tece e

O outro é o do sonho altruístico da espécie

Que é o substractum dos sonhos do indivíduo!

 

E exclamo, ébrio, a esvaziar báquicos odres:

- "Cinza, síntese má da podridão,

"Miniatura alegórica do chão,

"Onde os ventres maternos ficam podres;

 

"Na tua clandestina e erma alma vasta,

"Onde nenhuma lâmpada se acende,

"Meu raciocínio sôfrego surpreende

"Todas as formas da matéria gasta!"

 

Raciocinar! Aziaga contingência!

Ser quadrúpede! Andar de quatro pés

E mais do que ser Cristo e ser Moisés

Porque é ser animal sem ter consciência!

 

Bêbedo, os beiços na ânfora ínfima, barro,

Mergulho, e na ínfima ânfora, harto, sinto

O amargor especifico do absinto

E o cheiro animalíssimo do parto!

 

E afogo mentalmente os olhos fundos

Na amorfia da cítula inicial,

De onde, por epigênese geral,

Todos os organismos são oriundos.

 

Presto, irrupto, através ovóide e hialino

Vidro, aparece, amorfo e lúrido, ante

Minha massa encefálica minguante

Todo o gênero humano intra-uterino!

 

É o caos da avita víscera avarenta

- Mucosa nojentíssima de pus,

A nutrir diariamente os fetos nus

Pelas vilosidades da placenta? -

Certo, o arquitetural e íntegro aspecto

Do mundo o mesmo inda e, que, ora, o que nele

Morre, sou eu, sois vós, é todo aquele

Que vem de um ventre inchado, ínfimo e infecto!

 

É a flor dos genealógicos abismos

- Zooplasma pequeníssimo e plebeu,

De onde o desprotegido homem nasceu

Para a fatalidade dos tropismos. -

Depois, é o céu abscôndito do Nada,

E este ato extraordinário de morrer

Que há de na última hebdômada, atender

Ao pedido da célula cansada!

 

Um dia restará, na terra instável,

De minha antropocêntrica matéria

Numa côncava xícara funérea

Uma colher de cinza miserável!

 

Abro na treva os olhos quase cegos.

Que mão sinistra e desgraçada encheu

Os olhos tristes que meu Pai me deu

De alfinetes, de agulhas e de pregos?!

 

Pesam sobre o meu corpo oitenta arráteis!

Dentro um dínamo déspota, sozinho,

Sob a morfologia de um moinho,

Move todos os meus nervos vibráteis.

 

Então, do meu espírito, em segredo,

Se escapa, dentre as tênebras, muito alto,

Na síntese acrobática de um salto,

O espectro angulosíssimo do Medo!

 

Em cismas filosóficas me perco

E vejo, como nunca outro homem viu,

Na anfigonia que me produziu

Nonilhões de moléculas de esterco.

 

Vida, mônada vil, cósmico zero,

Migalha de albumina semifluida,

Que fez a boca mística do druida

E a língua revoltada de Lutero;

 

Teus gineceus prolíficos envolvem

Cinza fetal!... Basta um fósforo só

Para mostrar a incógnita de pó,

Em que todos os seres se resolvem!

 

Ah! Maldito o conúbio incestuoso

Dessas afinidades eletivas,

De onde quimicamente tu derivas,

Na aclamação simbiótica do gozo!

 

O enterro de minha última neurona

Desfila... E eis-me outro fósforo a riscar.

E esse acidente químico vulgar

Extraordinariamente me impressiona!

 

Mas minha crise artrítica não tarda.

Adeus! Que eu veio enfim, com a alma vencida

Na abjeção embriológica da vida

O futuro de cinza que me aguarda!


Poemas e Poesias sábado, 06 de julho de 2024

PÁGINA ROTA (POEMA DO PAULISTA ÁLVARES DE AZEVEDO)

PÁGINA VAZIA

Álvares de Azevedo

 

 

 

Meu pobre coração que estremecias,
Suspira a desmaiar no peito meu:
Para enchê-lo de amor, tu bem sabias
Bastava um beijo teu!

Como o vale nas brisas se acalenta,
O triste coração no amor dormia;
Na saudade, na lua macilenta
Sequioso ar bebia!

Se nos sonhos da noite se embalava
Sem um gemido, sem um ai sequer,
E que o leite da vida ele sonhava
Num seio de mulher!

Se abriu tremendo os íntimos refolhos,
Se junto de teu seio ele tremia,
E que lia a ventura nos teus olhos,
É que deles vivia!

Via o futuro em mágicos espelhos,
Tua bela visão o enfeitiçava,
Sonhava adormecer nos teus joelhos...
Tanto enlevo sonhava!

Via nos sonhos dele a tua imagem
Que de beijos de amor o recendia...
E, de noite, nos hálitos da aragem
Teu alento sentia!

Ó pálida mulher! se negra sina
Meu berço abandonado me embalou,
Não te rias da sede peregrina
Dest"alma que te amou...

Que sonhava em teus lábios de ternura
Das noites do passado se esquecer...
Ter um leito suave de ventura...
E amor onde morrer!


Poemas e Poesias sexta, 05 de julho de 2024

O MAR AGITA-SE, COMO UM ALUCINADO (POEMA DO FLUMINENSE ALBERTO DE OLIVEIRA)

O MAR AGITA-SE, COMO UM ALUCINADO

Alberto de Oliveira

 

 

 

O Mar agita-se, como um alucinado:
A sua espuma aflui, baba da sua Dor…
Posto o escafandro, com um passo cadenciado,
Desce ao fundo do Oceano algum mergulhador.

Dá-lhe um aspecto estranho a campânula imensa:
Lembra um bizarro Deus de algum pagode indiano:
Na cólera do Mar, pesa a sua Indiferença
Que o torna superior, e faz mesquinho o Oceano!

E em vão as ondas se lhe enroscam à cabeça:
Ele desce orgulhoso, impassível, sem pressa,
Com suprema altivez, com ironias calmas:

Assim devemos nós, Poetas, no Mundo entrar,
Sem nos deixarmos absorver por esse Mar
— Pois a Arte é, para nós, o escafandro das Almas!


Poemas e Poesias quinta, 04 de julho de 2024

O HOMEM E A LETRA (POEMA DO MINEIRO AFFONSO ROMANO DE SANT*ANA)

O HOMEM E A LETRA

Affonso Romano de Sant"Anna

 

 

 

Depois de Beranger ter visto seus vizinhos virarem rinocerontes
depois de Clov contemplar a terra arrasada e comunicar-se
em monossílabos com seus pais numa lixeira
depois de Gregory Sansa ter acordado numa manhã
transformado em desprezível inseto aos olhos da família
e Kafka não ter entrado no castelo para ele aberto todavia
depois de Carlito a sós na ceia do ano cavando o inexistente
afeto no ouro dós salões
depois de Se Tsuam perder-se não entre as três virtudes
teologais
mas num maniqueísmo banal entre o bem e o mal
depois dos diálogos estáticos de Vladimir e Estragon
na estrada.de Godot
depois de Alfred Prufrock como um velho numa estação
seca contemplando a devastação e incapaz de perturbar o universo
depois dos labirintos de Teseu, Borges e Robbe-Grillet
depois que o lobo humano se refugiou transido na estepe fria
depois da recherche no tempo perdida e de Ulisses perdido
no périplo de Dublin
depois de Mallarmé se exasperar no jogo inútil de seus dados
e Malevitch descobrir que sobre o branco
só resta o branco por pintar
depois dos falsos moedeiros moendo a escrita exasperante
em suas torres devorando o que das mãos de Cronos
gera e degenera
depois da morte do homem e da morte da alma
depois da morte de Deus na Carolina do Norte
antes e depois do depois
aqui estou Eu confiante Eu pressupondo EU erigindo
Eu cavando Eu remordendo
Eu renitente Eu acorrentado Eu Prometeu Narciso Orfeu
órfano Eu narciso maciço promitente Eu
descosendo a treva barroca desse Yo
sem pejo do passado
reinventando meu secreto
concreto
Weltschmerz
Que ligação estranha então havia entre os nós e os nós
de outros eus
entre Deus e Zeus
que estranha insistência que penitência ardente que estúpido
e tépido humanismo
que fragilidade na memória que vocação de emblemas
e carência em mitografar-se
que projectum árduo e cego que radar tremendo pelas veias
que vocação de camuflar abismos e flutuar no vácuo
que reincidente recolocar do vazio no centro do vazio?

Que aconteça o humano com todos os seus happenings
e dadas?
que para total desespero de mim mesmo e de meus amigos
I have a strong feeling that the sum of the parts does not
equal the whole
e que la connaissance du tout précède celle des parties
e com um irlandês aprendo a dividir 22 por 7 e achar
no resto ZERO
enquanto grito sobre as falésias
when genuine passion moves you say what you have to say
and say it hot
Bêbado de merda e fel egresso da Babel e de onde os sofistas
me lançaram
vate vastíssimo possesso e cego guiado pelo que nele há
de mais cego
tateando abismos em parábolas
açodando a louca parelha que avassala os céus
diante do todo-poderoso Nabucodonosor eu hoje tive um sonho:
OOO: INFERNO — recomeçar
Salute o Satana, "Finnegans reven again!"
agora sei que há a probabilidade da prova e da idade
o descontínuo do tímpano e o contínuo
que de Prometeu se vai a Orfeu e de Ptolomeu se vai
a Galileu
Eurídice e Eu, Eu e Orfeu
o feitiço contra Zebedeu Belzebu e os seus

Madness! Madness!"
sim, loucura, mas não é a primeira vez que me expulsam
da República
loucura, sim, loucura, ora direis
enquanto retiro os jovens louros de anteontem

Que encham a casa de espelhos aliciando as terríveis maravilhas
para que vejam quão desfigurado cursava o filho do homem
em seus desertos cheios de gafanhoto e mel silvestre
que venha o longo verso do humano
o desletrado inconsciente
fora os palimpsestos! Mylord é o jardineiro
eis que o touro negro pula seus cercados e cai no povaréu
Ecce Homo
ego e louco
cego e pouco
ébrio e oco
cheio de sound and fury
in-sano in-mundo

Madness! Madness! Madness!
Madness
Summerhill
Weltschmerz


Poemas e Poesias quarta, 03 de julho de 2024

A PARRTIDA (POEMA DO CARIOCA VINÍCIUS DE MORAES)

A PARTIDA

Vinícius de Moraes

 

 

 

Quero ir-me embora pra estrela 
Que vi luzindo no céu 
Na várzea do setestrelo. 
Sairei de casa à tarde 
Na hora crepuscular 
Em minha rua deserta 
Nem uma janela aberta 
Ninguém para me espiar 
De vivo verei apenas 
Duas mulheres serenas 
Me acenando devagar. 
Será meu corpo sozinho 
Que há de me acompanhar 
Que a alma estará vagando 
Entre os amigos, num bar. 
Ninguém ficará chorando 
Que mãe já não terei mais 
E a mulher que outrora tinha 
Mais que ser minha mulher 
É mãe de uma filha minha. 
Irei embora sozinho 
Sem angústia nem pesar 
Antes contente da vida 
Que não pedi, tão sofrida 
Mas não perdi por ganhar. 
Verei a cidade morta 
Ir ficando para trás 
E em frente se abrirem campos 
Em flores e pirilampos 
Como a miragem de tantos 
Que tremeluzem no alto. 
Num ponto qualquer da treva 
Um vento me envolverá 
Sentirei a voz molhada 
Da noite que vem do mar 
Chegar-me-ão falas tristes 
Como a querer me entristar 
Mas não serei mais lembrança 
Nada me surpreenderá: 
Passarei lúcido e frio 
Compreensivo e singular 
Como um cadáver num rio 
E quando, de algum lugar 
Chegar-me o apelo vazio 
De uma mulher a chorar 
Só então me voltarei 
Mas nem adeus lhe darei 
No oco raio estelar 
Libertado subirei.


Poemas e Poesias terça, 02 de julho de 2024

O SILÊNCIO DA FLORESTA (POEMA DO AMAZONENSE THIAGO DE MELLO)

O SILÊNCIO DA FLORESTA

Thiago de Mello

 

 

 

Tem consistência física,
espessamente doce,
o silêncio noturno da floresta.
Não é como o do vento e vastidão,
cujos dentes de neve
morderam a minha solidão.
Nem como o silêncio aterrador
(no seu âmago o tempo brilha imóvel)
do deserto chileno de Atacama,
onde, um entardecer,
estirado entre areia e pedras,
escutei cheio de assombro
o latir do meu próprio coração.

O silêncio da floresta é sonoro:
os cânticos dos pássaros da noite
fazem parte dele, nascem dele,
são a sua voz aconchegante.

Sozinho no centro da noite amazônica,
escuto o poder mágico do silêncio,
agora quando os pássaros
conversam com as estrelas,
e recito silenciosamente
o nome lindo da mulher que eu amo.


Poemas e Poesias segunda, 01 de julho de 2024

UNIDADE (POEMA DO FLUMINENSE RAUL DE LEÔNI)

UNIDADE

Raul de Leôni

 

 

 

Deitando os olhos sobre a perspectiva
Das cousas, surpreendo em cada qual
Uma simples imagem fugitiva
Da infinita harmonia universal

Uma revelação vaga e parcial
De tudo existe em cada coisa viva:
Na corrente do Bem ou na do Mal
Tudo tem uma vida evocativa.

Nada é inútil; dos homens aos insetos
Vão-se estendendo todos os aspectos
Que a idéia da existência pode ter;

E o que deslumbra o olhar é perceber
Em todos esses seres incompletos
A completa noção de um mesmo ser...


Poemas e Poesias domingo, 30 de junho de 2024

A ESCRAVA DO INHEIRO - PARTE I (POEMA DO CEARENSE PATATIVA DO ASSARÉ)

A ESCRAVA DO DINHEIRO - PARTE I

Patativa do Assaré

(Grafia original)

 

 

 

Boa noite, home e menino

E muié deste lugá!

Quero que me dê licença

Para uma histora contá.

Como matuto atrasado

Eu dêxo as língua de lado

Pra quem as língua aprendeu,

E quero a licença agora

Mode eu contá minha histora

Com a língua que Deus me deu.

 

Mas ante de eu começá,

Eu premeramente vou

Dizê que que o dinheiro é

O maió trensformadô,

Apois sabe o mundo intero

Que este bichinho dinhêro,

Com sua força e podê,

A sua mancha, o seu jeito,

Tem feito munto sujeito

Sisudo se derretê.

 

Dinhêro trensforma tudo,

Dinhêro é quem leva e trás,

Eu nem quero nem dizê

Tudo o que dinhêro faz.

Apenas aqui eu conto

Que ele pra tudo tá pronto,

Ele é cabrero e treidô,

É carrasco e é vingativo,

Só presta pra ser cativo,

Não presta pra ser senhô.

 

A pessoa neste mundo

Bota o pé na perdição

Quando ela dêxa o dinhêro

Gonverná seu coração.

Pra o povo que tá me uvindo

Não dizê que tou mentindo

Eu vou agora contá

Uma histora pequenina,

A histora de Regina,

Pra ninguém me duvidá.

 

Regina era minha noiva,

Meu amô, minha inlusão,

A morena mais bonita

Do meu querido sertão.

Seus grandes óio perfeito

Fazia quarqué sujeito

Tropeçá no brocotó,

Era vê no mês de maio

Dois grande pingo de orvaio

Tremendo na luz do só.

 

Os seus laibo era corado

Como a cera da cupira,

A fala tinha a doçura

Do favo da jandaíra.

O nariz bem afilado,

Cabelo preto e anelado,

Da cô da pena do anum.

Todos que conheceu ela

Dizia que era a mais bela

Do sertão dos Inhamun.

 

E era mêrmo a mais bonita,

Quem conheceu inda diz,

Ela tinha a perfeição

Da Santa lá da Matriz

Quando na festa se enfeita.

Se as mão dela era bem feita,

Mais bem feito era os seus pé,

Vocemincêis pode crê:

Valia a pena se vê

Essa franga de muié.

 

Mas dêrna de eu pequenino

Que eu oiço o povo dizê

Que no mundo um bom sem farta

Não houve, nem pode havê.

Pra que coisa mais formosa,

Mais bonita e luminosa

De que a pinta da corá?

Mas ela tem um veneno

Que mata o grande e o pequeno,

Triste do que ela pegá!

 

Ninguém lê nos coração,

E este mundo é um imbé,

Onde o cabra engole delas

Que o diabo enjeita e não qué.

Muitas coisa se padece

Só porque ninguém conhece

No mundo véio, infeliz,

Onde é que a bondade mora;

Às vez, o que é bom por fora

Por dentro não vale um xis.


Poemas e Poesias sábado, 29 de junho de 2024

O CREPÚSCULO NA QUINTA DA BOA VISTA (POEMA DO PERNAMBUCANO OLEGÁRIO MARIANO)

 

O CREPÚSCULO NA QUINTA DA BOA VISTA

Olegário Mariano

 

O crepúsculo estende as mãos sobre a paisagem,

Abre os braços num gesto afetuoso de amigo.

Tua saudade vai caminhando comigo,

Humanizada como a tua própria imagem.

 

Dormem, á fiar do lago, as ninfas em calma.
De quando em quando uma asa fere a água dormente.

Por que doe tanto em mim essa tristeza ambiente?

 

Amor? Tédio? Renuncia? O pensamento vário
Gira em torno das cousas tristes que me encantam.

Na alma de cada poeta ha um lago solitário
Que sonha ouvindo a voz dos pássaros que cantam...


Poemas e Poesias sexta, 28 de junho de 2024

A MORTE DE TAPIR (POEMA DO CARIOCA OLAVO BILAC)

 

A MORTE DE TAPIR

Olavo Bilac

 

 

Uma coluna de ouro e púrpuras ondeantes
Subia o firmamento. Acesos véus, radiantes
Rubras nuvens, do sol à viva luz, do poente
Vinham, soltas, correr o espaço resplendente.
Foi a essa hora, - às mãos o arco possante, à cinta
Do leve enduape a tanga em várias cores tinta,
A aiucara ao pescoço, o canitar à testa, -
- Que Tapir penetrou o seio da floresta.
Era de vê-lo assim, com o vulto enorme ao peso
Dos anos acurvado, o olhar faiscando aceso,
Firme o passo apesar da extrema idade, e forte.
Ninguém, como ele, em face, altivo e hercúleo, a morte
Tantas vezes fitou... Ninguém, como ele, o braço
Erguendo, a lança aguda atirava no espaço.
Quanta vez, do uapi ao rouco troar, ligeiro
Como a corça, ao rugir do estrépito guerreiro
O tacape brutal rodando no ar, terrível,
Incólume, vibrando os golpes, - insensível
Às preces, ao clamor dos gritos, surdo ao pranto
Das vitimas, - passou, como um tufão, o espanto,
O extermínio, o terror atras de si deixando!
Quanta vez do inimigo o embate rechaçando
Por si só, foi seu peito uma muralha erguida,
Em que vinha bater e quebrar-se vencida
De uma tribo contrária a onda medonha e bruta!
Onde um pulso que, tal como seu pulso, à luta
Costumado, um por um, ao chão arremessasse
Dez combatentes? Onde um arco, que atirasse
Mais célere, a zunir, a fina flecha ervada?
Quanta vez, a vagar na floresta cerrada,
Peito a peito lutou com as fulvas onças bravas,
E as onças a seus pés tombaram, como escravas,
Nadando em sangue quente, e, em roda, o eco infinite
Despertando, ao morrer, com o derradeiro grito!..
Quanta vez! E hoje velho, hoje abatido!

II

E o dia
Entre os sangüíneos tons do ocaso decaía...
E era tudo em silêncio, adormecido e quedo...
De súbito um tremor correu todo o arvoredo:
E o que há pouco era calma, agora é movimento,
Treme, agita-se, acorda, e se lastima... O vento
Fala: 'Tapir! Tapir! é finda a tua raça!"
E em tudo a mesma voz misteriosa passa;
As árvores e o chão despertam, repetindo:
'Tapir! Tapir! Tapir! O teu poder é findo!"

E, a essa hora, ao fulgor do derradeiro raio
Do sol, que o disco de ouro, em lúcido desmaio,
Quase no extremo céu de todo mergulhava,
Aquela estranha voz pela floresta ecoava
Num confuso rumor entrecortado, insano...
Como que em cada tronco havia um peito humano
Que se queixava... E o velho, úmido o olhar, seguia.
E, a cada passo assim dado na mata, via
Surgir de cada canto uma lembrança... Fora
Desta imensa ramada à sombra protetora
Que um dia repousara... Além, a arvore anosa,
Em cujos galhos, no ar erguidos, a formosa,
A doce Juraci a rede suspendera,
- A rede que, com as mãos finíssimas, tecera
Para ele, seu senhor e seu guerreiro amado!
Ali... - Contai-o vós, contai-o, embalsamado
Retiro, ninhos no ar suspensos, aves, flores!...
Contai-o, o poema ideal dos primeiros amores,
Os corpos um ao outro estreitamente unidos,
Os abraços sem conta, os beijos, os gemidos,
E o rumor do noivado, estremecendo a mata,
Sob o plácido olhar das estrelas de prata...
.........................................................
Juraci! Juraci! virgem morena e pura!
Tu também! tu também desceste à sepultura!...
.........................................................

III

E Tapir caminhava... Ante ele agora um rio
Corria; e a água também, ao crebro
Da corrente, a rolar, gemia ansiosa e clara:
- "Tapir! Tapir! Tapir! Que é da veloz igara,
Que é dos remos dos teus? Não mais as redes finas
Vêm na pesca sondar-me as águas cristalinas.
Ai! não mais beijarei os corpos luxuriantes,
Os curvos seios nus, as formas palpitantes
Das morenas gentis de tua tribo extinta!
Não mais! Depois dos teus de brônzea pele tinta
Com os sucos do urucu, de pele branca vieram
Outros, que a ti e aos teus nas selvas sucederam.
Ai! Tapir! ai! Tapir! A tua raça é morta! -"
E o índio, trêmulo, ouvindo aquilo tudo, absorta
A alma em cismas, seguiu curvada a fronte ao peito.
Agora da floresta o chão não mais direito
E plano se estendia: era um declive; e quando
Pelo tortuoso anfracto, a custo, caminhando
Ao crepúsculo, pôde o velho, passo a passo,
A montanha alcançar, viu que a noite no espaço
Vinha a negra legião das sombras espargindo...
Crescia a treva. A medo, entre as nuvens luzindo,
No alto, a primeira estrela o cálix de ouro abria...
Outra após cintilou na esfera imensa e fria...
Outras vieram... e, em breve, o céu, de lado a lado,
Foi como um cofre real de pérolas coalhado.

IV

Então, Tapir, de pé, no arco apoiado, a fronte
Ergueu, e o olhar passeou no infinito horizonte:
Acima o abismo, abaixo o abismo, o abismo adiante.
E, clara, no negror da noite, viu, distante,
Alvejando no vale a taba do estrangeiro...
Tudo extinto!... era ele o último guerreiro!
E do vale, do céu, do rio, da montanha,
De tudo que o cercava, ao mesmo tempo, estranha,
Rouca, extrema, rompeu a mesma voz: - "É finda
Toda a raça dos teus: só tu és vivo ainda!
Tapir! Tapir! Tapir! morre também com ela!
Já não fala Tupã no ulular da procela...
As batalhas de outrora, os arcos e os tacapes,
As florestas sem fim de flechas e acanguapes,
Tudo passou! Não mais a fera inúbia à boca
Dos guerreiros, Tapir, soa medonha e rouca.

É mudo o maracá. A tribo exterminada
Dorme agora feliz na Montanha Sagrada...
Nem uma rede o vento entre os galhos agita!
Não mais o vivo som de alegre dança, e a grita
Dos pajés, ao luar, por baixo das folhagens,
Rompe os ares... Não mais! As poracés selvagens,
As guerras e os festins, tudo passou! É finda
Toda a raça dos teus... Só tu és vivo ainda! -"

V

E num longo soluço a voz misteriosa
Expirou... Caminhava a noite silenciosa,
E era tranqüilo o céu; era tranqüila em roda,
Imersa em plúmbeo sono, a natureza toda.

E, no tope do monte, era de ver erguido
O vulto de Tapir... Inesperado, um ruído
Seco, surdo soou, e o corpo do guerreiro
De súbito rolou pelo despenhadeiro...
E o silêncio outra vez caiu.
Nesse momento,
Apontava o luar no curvo firmamento.

A Gonçalves Dias

Celebraste o domínio soberano
Das grandes tribos, o tropel fremente
Da guerra bruta, o entrechocar insano
Dos tacapes vibrados rijamente,

O maracá e as flechas, o estridente
Troar da inúbia, e o canitar indiano...
E, eternizando o povo americano,
Vives eterno em teu poema ingente.

Estes revoltos, largos rios, estas
Zonas fecundas, estas seculares
Verdejantes e amplíssimas florestas

Guardam teu nome: e a lira que pulsaste
Inda se escuta, a derramar nos ares
O estridor das batalhas que contaste.

Guerreira

É a encarnação do mal. Pulsa-lhe o peito
Ermo de amor, deserto de piedade...
Tem o olhar de uma deusa e o altivo aspeito
Das cruentas guerreiras de outra idade.

O lábio ao ríctus do sarcasmo afeito
Crispa-se-lhe num riso de maldade,
Quando, talvez, as pompas, com despeito,
Recorda da perdida majestade.

E assim, com o seio ansioso, o porte erguido,
Corada a face, a ruiva cabeleira
Sobre as amplas espáduas derramada,

Faltam-lhe apenas a sangrenta espada
Inda rubra da guerra derradeira,
E o capacete de metal polido...

Para a Rainha Dona Amélia de Portugal

Um rude resplendor, de rude brilho, touca
E nimba o teu escudo, em que as quinas e a esfera
Guardam, ó Portugal! a tua glória austera,
Feita de louco heroísmo e de aventura louca.

Ver esse escudo é ver a Terra toda, pouca
Para a tua ambição; é ver Afonso, à espera
Dos mouros, em Ourique; e, em redor da galera
Do Gama, ouvir do mar a voz bramante e rouca...

Mas no vosso brasão, Borgonha! Avis! Bragança!
De ouro e ferro, encerrando o orgulho da conquista, Faltava a suavidade e o encanto de uma flor;

E eis sobre ele pairando o alvo lírio de França,
Que lhe deu, flor humana, alma gentil de artista,
Um sorriso de graça e um perfume de amor...

A um Grande Homem

Heureuse au fond du bois
Ia source pauvre et pure!
Lamartine.

Olha: era um tênue fio
De água escassa. Cresceu Tornou-se em rio
Depois. Roucas, as vagas
Engrossa agora, e é túrbido e bravio,
Roendo penedos, alagando plagas.

Humilde arroio brando!...
Nele, no entanto, as flores, inclinando
O débil caule, inquietas
Miravam-se. E, em seu claro espelho, o bando
Se revia das leves borboletas.

Tudo, porém: - cheirosas
Plantas, curvas ramadas rumorosas,
Úmidas relvas, ninhos
Suspensos no ar entre jasmins e rosas,
Tardes cheias da voz dos passarinhos, -
Tudo, tudo perdido
Atrás deixou. Cresceu. Desenvolvido,
Foi alargando o seio,
E do alpestre rochedo, onde nascido
Tinha, crespo, a rolar, descendo veio...

Cresceu. Atropeladas,
Soltas, grossas as ondas apressadas
Estendeu largamente,
Tropeçando nas pedras espalhadas,
No galope impetuoso da corrente...

Cresceu. E é poderoso:
Mas enturba-lhe a face o lodo ascoso...
É grande, é largo, é forte:
Mas, de parcéis cortado, caudaloso,
Leva nas dobras de seu manto a morte.

Implacável, violento,
Rijo o vergasta o latego do vento.
Das estrelas, caindo
Sobre ele em vão do claro firmamento
Batem os raios límpidos, luzindo...

Nada reflete, nada!
Com o surdo estrondo espanta a ave assustada;
É turvo, é triste agora.
Onde a vida de outrora sossegada?
Onde a humildade e a limpidez de outrora?
................................................................
Homem que o mundo aclama!
Semideus poderoso, cuja fama
O mundo com vaidade
De eco em eco no século derrama
Aos quatro ventos da celebridade!

Tu, que humilde nasceste,
Fraco e obscuro mortal, também cresceste
De vitória em vitória,
E, hoje, inflado de orgulhos, ascendeste
Ao sólio excelso do esplendor da glória!

Mas, ah! nesses teus dias
De fausto, entre essas pompas luzidias,
- Rio soberbo e nobre!
Hás de chorar o tempo em que vivias
Como um arroio sossegado e pobre...

A Sesta de Nero

Fulge de luz banhado, esplêndido e suntuoso,
O palácio imperial de pórfiro luzente
E mármor da Lacônia. O teto caprichoso
Mostra, em prata incrustado, o nácar do Oriente.

Nero no toro ebúrneo estende-se indolente...
Gemas em profusão do estrágulo custoso
De ouro bordado vêem-se. O olhar deslumbra, ardente,
Da púrpura da Trácia o brilho esplendoroso.

Formosa ancila canta. A aurilavrada lira
Em suas mãos soluça. Os ares perfumando,
Arde a mirra da Arábia em recendente pira.

Formas quebram, dançando, escravas em coréia.
E Neto dorme e sonha, a fronte reclinando
Nos alvos seios nus da lúbrica Popéia.

Incêndio de Roma

Raiva o incêndio. A ruir, soltas, desconjuntadas,
As muralhas de pedra, o espaço adormecido
De eco em eco acordando ao medonho estampido,
Como a um sopro fatal, rolam esfaceladas.

E os templos, os museus, o Capitólio erguido
Em mármor frígio, o Foro, as erectas arcadas
Dos aquedutos, tudo as garras inflamadas
Do incêndio cingem, tudo esbroa-se partido.

Longe, reverberando o clarão purpurino,
Arde em chamas o Tibre e acende-se o horizonte...
- Impassível, porém, no alto do Palatino,

Neto, com o manto grego ondeando ao ombro, assoma
Entre os libertos, e ébrio, engrinaldada a fronte,
Lira em punho, celebra a destruição de Roma.

O Sonho de Marco Antônio

Noite. Por todo o largo firmamento
Abrem-se os olhos de ouro das estrelas...
Só perturba a mudez do acampamento
O passo regular das sentinelas.

Brutal, febril, entre canções e brados,
Entrara pela noite adiante a orgia;
Em borbotões, dos cântaros lavrados
Jorrara o vinho. O exército dormia.

Insone, entanto, vela alguém na tenda
Do general. Esse, entre os mais sozinho,
Vence a fadiga da batalha horrenda,
Vence os vapores cálidos do vinho.

Torvo e cerrado o cenho, o largo peito
Da couraça despido e arfando ansioso,
Lívida a face, taciturno o aspeito,
Marco Antônio medita silencioso.

Da lâmpada de prata a luz escassa
Resvala pelo chão. A quando e quando,
Treme, enfunada à viração que passa,
A cortina de púrpura oscilando.

O general medita. Como, soltas
Do álveo de um rio transvazado, as águas
Crescem, cavando o solo, - assim, revoltas,
Fundas a alma lhe vão sulcando as mágoas.

Que vale a Grécia, e a Macedônia, e o enorme
Território do Oriente, e este infinito
E invencível exército que dorme?
Que doces braços que lhe estende o Egito!...

Que vença Otávio! e seu rancor profundo
Leve da Hispânia à Síria a morte e a guerra!
Ela é o céu... Que valor tem todo o mundo,
Se os mundos todos seu olhar encerra?!

Ele é valente e ela o subjuga e o doma...
Só Cleópatra é grande, amada e bela!
Que importa o império e a salvação de Roma?
Roma não vale um só dos beijos dela!...
..................................................
Assim medita. E alucinado, louco
De pesar, com a fadiga em vão lutando,
Marco António adormece a pouco e pouco,
Nas largas mãos a fronte reclinando.

II

A harpa suspira. O melodioso canto,
De uma volúpia lânguida e secreta,
Ora interpreta o dissabor e o pranto,
Ora as paixões violentas interpreta.

Amplo dossel de seda levantina,
Por colunas de jaspe sustentado,
Cobre os cetins e a caxemira fina
Do régio leito de ébano lavrado.

Move o leque de plumas uma escrava.
Vela a guarda lá fora. Recolhida,
Os pétreos olhos uma esfinge crava
Nas formas da rainha adormecida.

Mas Cleópatra acorda... E tudo, ao vê-la
Acordar, treme em roda, e pasma, e a admira:
Desmaia a luz, no céu descora a estrela,
A própria esfinge move-se e suspira...

Acorda. E o torso arqueando, ostenta o lindo
Colo opulento e sensual que oscila.
Murmura um nome e, as pálpebras abrindo,
Mostra o fulgor radiante da pupila.

III

Ergue-se Marco Antônio de repente...
Ouve-se um grito estrídulo, que soa
O silêncio cortando, e longamente
Pelo deserto acampamento ecoa.

O olhar em fogo, os carregados traços
Do rosto em contração, alto e direito
O vulto enorme, - no ar levanta os braços,
E nos braços aperta o próprio peito.

Olha em torno e desvaira. Ergue a cortina,
A vista alonga pela noite afora.
Nada vê. Longe, à porta purpurina
Do Oriente em chamas, vem raiando a aurora.

E a noite foge. Em todo o firmamento
Vão se fechando os olhos das estrelas:
Só perturba a mudez do acampamento
O passo regular das sentinelas.

Lendo a Ilíada

Ei-lo, o poema de assombros, céu cortado
De relâmpagos, onde a alma potente
De Homero vive, e vive eternizado
O espantoso poder da argiva gente.

Arde Tróia... De rastos passa atado
O herói ao carro do rival, e, ardente,
Bate o sol sobre um mar ilimitado
De capacetes e de sangue quente.

Mais que as armas, porém, mais que a batalha
Mais que os incêndios, brilha o amor que ateia
O ódio e entre os povos a discórdia espalha:

- Esse amor que ora ativa, ora asserena
A guerra, e o heróico Páris encadeia
Aos curvos seios da formosa Helena.

Messalina

Recordo, ao ver-te, as épocas sombrias
Do passado. Minh'alma se transporta
À Roma antiga, e da cidade morta
Dos Césares reanima as cinzas frias;

Triclínios e vivendas luzidias
Percorre; pára de Suburra à porta,
E o confuso clamor escuta, absorta,
Das desvairadas e febris orgias.

Aí, num trono erecto sobre a ruína
De um povo inteiro, tendo à fronte impura
O diadema imperial de Messalina,

Vejo-te bela, estátua da loucura!
Erguendo no ar a mão nervosa e fina,
Tinta de sangue, que um punhal segura.

A Ronda Noturna

Noite cerrada, tormentosa, escura,
Lá fora. Dorme em trevas o convento.
Queda imoto o arvoredo. Não fulgura
Uma estrela no torvo firmamento.

Dentro é tudo mudez. Flébil murmura,
De espaço a espaço, entanto, a voz do vento:
E há um rasgar de sudários pela altura,
Passo de espectros pelo pavimento...

Mas, de súbito, os gonzos das pesadas
Portas rangem... Ecoa surdamente
Leve rumor de vozes abafadas.

E, ao clarão de uma lâmpada tremente,
Do claustro sob as tácitas arcadas
Passa a ronda noturna, lentamente...

Defenda Carthago!

I

Fulge e dardeja o sol nos amplos horizontes
Do céu da África. Ao largo, em plena luz, dos montes
Destacam-se os perfis. Tremulamente ondeia,
Vasto oceano de prata, a requeimada areia.
O ar, pesado, sufoca. E, desfraldando ovantes
Das bandeiras ao vento as pregas ondulantes,
Desfilam as legiões do exército romano
Diante do general Cipião Emiliano.
Tal soldado sopesa a dava de madeira;
Tal, que a custo sofreia a cólera guerreira,
Maneja a bipenata e rude machadinha.
Este, à ilharga pendente, a rútila bainha
Leva do gládio. Aquele a poderosa maça
Carrega, e às largas mãos a ensaia. A custo passa,
Curvado sob o peso e de fadiga aflando,
De guerreiros um grupo, os aríetes levando.
Brilham em confusão cristados capacetes.
Cavaleiros, contendo os ardidos ginetes,
Solta a clâmide ao ombro, ao braço afivelado
O côncavo broquel de cobre cinzelado,
Brandem o pílum no ar. Ressona, a espaços, rouca,

A bélica bucina. A tuba cava à boca
Dos eneatores troa. Hordas de sagitários
Vêem-se, de arco e carcás armados. O ouro e os vários
Ornamentos de prata embutem-se, em tauxias
De um correto lavor, nas armas luzidias
Dos generais. E, ao sol, que, entre nuvens, cintila,
Em torno de Cartago o exército desfila.

Mas, passada a surpresa, às pressas, a cidade
Aos escravos cedera armas e liberdade,
E era toda rumor e agitação. Fundindo
Todo o metal que havia, ou, céleres, brunindo
Espadas e punhais, capacetes e lanças,
Viam-se a trabalhar os homens e as crianças.

Heróicas, abafando os soluços e as queixas,
As mulheres, tecendo os fios das madeixas,
Cortavam-nas.
Cobrindo espáduas deslumbrantes,
Cercando a carnação de seios palpitantes
Como véus de veludo, e provocando beijos,
Excitaram paixões e lúbricos desejos
Essas tranças da cor das noites tormentosas...
Quantos lábios, ardendo em sedes luxuriosas,
As tocaram outrora entre febris abraços!..
Tranças que tanta vez - frágeis e doces laços! -
Foram cadeias de ouro invencíveis, prendendo
Almas e corações, - agora, distendendo
Os arcos, despedindo as setas aguçadas,
Iam levar a morte... - elas, que, perfumadas,
Outrora tanta vez deram a vida e o alento
Aos presos corações!...

Triste, entretanto, lento,
Ao pesado labor do dia sucedera
O silêncio noturno. A treva se estendera:
Adormecera tudo. E, no outro dia, quando
Veio de novo o sol, e a aurora, rutilando,
Encheu o firmamento e iluminou a terra,
A luta começou.

II

As máquinas de guerra
Movem-se. Treme, estala, e parte-se a muralha,
Racha de lado a lado. Ao clamor da batalha
Estremece o arredor. Brandindo o pílum, prontas,
Confundem-se as legiões. Perdido o freio, às tontas,
Desbocam-se os corcéis. Enrijam-se, esticadas
Nos arcos, a ringir, as cordas. Aceradas,
Partem setas, zunindo. Os dardos, sibilando,
Cruzam-se. Éneos broquéis amolgam-se, ressoando,
Aos embates brutais dos piques arrojados.
Loucos, afuzilando os olhos, os soldados,
Presa a respiração, torvo e medonho o aspeito,
Pela férrea squammata abroquelado o peito,
Se escruam no furor, sacudindo os macetes.
Não param, entretanto, os golpes dos aríetes,
Não cansam no trabalho os musculosos braços
Dos guerreiros. Oscila o muro. Os estilhaços
Saltam das pedras. Gira, inda uma vez vibrada
No ar, a máquina bruta... E, súbito, quebrada,
Entre o insano clamor do exército e o fremente
Ruído surdo da queda, - estrepitosamente
Rui, desaba a muralha, e a pétrea mole roda,
Rola, remoinha, e tomba, e se esfacela toda.

Rugem aclamações. Como em cachões, furioso,
Parte os diques o mar, roja-se impetuoso,
As vagas encrespando acapeladas, brutas,
E inunda povoações, enche vales e grutas,
E vai semeando o horror e propagando o estrago,
Tal o exército entrou as portas de Cartago...

O ar os gritos de dor e susto, espaço a espaço,
Cortavam. E, a bramir, atropelado, um passo
O invasor turbilhão não deu vitorioso,
Sem que deixasse atrás um rastro pavoroso
De feridos. No ocaso, o sol morria exangue:
Como que refletia o firmamento o sangue
Que tingia de rubro a lâmina brilhante
Das espadas. Então, houve um supremo instante,
Em que, cravando o olhar no intrépido africano
Asdrúbal, ordenou Cipião Emiliano:
"- Deixa-me executar as ordens do Senado!
Cartago morrerá: perturba o ilimitado
Poder da invicta Roma... Entrega-te! -"
Orgulhoso,
A fronte levantando, ousado e rancoroso,
Disse o cartaginês:
"- Enquanto eu tiver vida,
Juro que não será Cartago demolida!
Quando o incêndio a envolver, o sangue deste povo
Há de apagá-lo. Não! Retira-te! -"
De novo
Falou Cipião:
Atende, Asdrúbal! Por mais forte
Que seja o teu poder, há de prostrá-lo a morte!
Olha! A postos, sem conta, as legiões de Roma,
Que Júpiter protege e que o pavor não doma,
Vão começar em breve a mortandade infrene!
Entrega-te! -"
"- Romano, escuta-me! (solene,
O outro volveu, e a raiva em sua voz rugia)
Asdrúbal é o irmão de Aníbal... Houve um dia
Em que, ante Aníbal, Roma estremeceu vencida
E tonta recuou de súbito ferida.
Ficaram no lugar da pugna, ensangüentados,
Mais de setenta mil romanos, trucidados
Pelo esforço e valor dos púnicos guerreiros;
Seis alqueires de anéis dos mortos cavaleiros
Cartago arrecadou... Verás que, como outrora,
Do eterno Baal-Moloch a proteção agora
Teremos. A vitória há de ser nossa... Escuta:
Manda que recomece a carniceira luta! -"
E horrível, e feroz, durante a noite e o dia,
Recomeçou a luta. Em cada casa havia
Um punhado de heróis. Seis vezes, pela face
Do céu, seguiu seu curso o sol, sem que parasse
O medonho estridor da sanha da batalha...
Quando a noite descia, a treva era a mortalha
Que envolvia, piedosa, os corpos dos feridos.
Rolos de sangue e pó, blasfêmias e gemidos,
Preces e imprecações... As próprias mães, entanto,
Heróicas na aflição, enxuto o olhar de pranto,
Viam cair sem vida os filhos. Combatentes
Houve, que, não querendo aos golpes inclementes
Do inimigo entregar os corpos das crianças,
Matavam-nas, erguendo as suas próprias lanças...

Por fim, quando de todo a vida desertando
Foi a extinta cidade, e, lúgubre, espalmando
As asas negras no ar, pairou sinistra e horrenda
A morte, teve um fim a peleja tremenda,
E o incêndio começou.

III

Fraco e medroso, o fogo
À branda viração tremeu um pouco, e logo,
Inda pálida e tênue, ergueu-se. Mais violento,
Mais rápido soprou por sobre a chama o vento:
E o que era labareda, agora ígnea serpente
Gigantesca, estirando o corpo, de repente
Desenrosca os anéis flamívomos, abraça
Toda a cidade, estala as pedras, cresce, passa,
Rói os muros, estronda, e, solapando o solo,
Os alicerces broca, e estringe tudo. Um rolo
De plúmbeo e denso fumo enegrecido em torno
Se estende, como um véu, do comburente forno.
Na horrorosa eversão, dos templos arrancado,
Vibra o mármore, salta; abre-se, estilhaçado,
Tudo o que o incêndio aperta... E a fumarada cresce
Sobe vertiginosa, espalha-se, escurece
O firmamento... E, sobre os restos da batalha,
Arde, voraz e rubra, a colossal fornalha.

Mudo e triste Cipiáo, longe dos mais, no entanto,
Deixa livre correr pelas faces o pranto...

É que, - vendo rolar, num rápido momento
Para o abismo do olvido e do aniquilamento
Homens e tradições, reveses e vitórias,
Batalhas e troféus, seis séculos de glórias
Num punhado de cinza -, o general previa
Que Roma, a invicta, a forte, a armipotente, havia
De ter o mesmo fim da orgulhosa Cartago.
E, perto, o precipitar estrepitoso e vago
Dincêndio, que lavrava e inda rugia ativo,
Era como o rumor de um pranto convulsivo...

 


Poemas e Poesias quinta, 27 de junho de 2024

PRESENÇA (POEMA DO GAÚCHO MÁRIO QUINTANA)

PRESENÇA

Mário Quintana

 

 

 

É preciso que a saudade desenhe tuas linhas perfeitas,
teu perfil exato e que, apenas, levemente, o vento
das horas ponha um frêmito em teus cabelos…

É preciso que a tua ausência trescale
sutilmente, no ar, a trevo machucado,
as folhas de alecrim desde há muito guardadas
não se sabe por quem nalgum móvel antigo…

Mas é preciso, também, que seja como abrir uma janela
e respirar-te, azul e luminosa, no ar.

É preciso a saudade para eu sentir
como sinto – em mim – a presença misteriosa da vida…
Mas quando surges és tão outra e múltipla e imprevista
que nunca te pareces com o teu retrato…
E eu tenho de fechar meus olhos para ver-te.


Poemas e Poesias quarta, 26 de junho de 2024

LUA NOVA (POEMA DO PERNAMBUCANO MANUEL BANDEIRA)

LUA NOVA

Manuel Bandeira

 

Meu novo quarto
Virado para o nascente:
Meu quarto, de novo a cavaleiro da entrada da barra.

Depois de dez anos de pátio
Volto a tomar conhecimento da aurora.
Volto a banhar meus olhos no mênstruo incruento das madrugadas.

Todas as manhãs o aeroporto em frente me dá lições de partir.

Hei de aprender com ele
A partir de uma vez
— Sem medo,
Sem remorso,
Sem saudade.

Não pensem que estou aguardando a lua cheia
— Esse sol da demência
Vaga e noctâmbula.
O que eu mais quero,
O de que preciso
É de lua nova.


Poemas e Poesias terça, 25 de junho de 2024

PREFÁCIO (POEMA DO MATO-GROSSENSE MANOEL DE BARROS)

PREFÁCIO

Manoel de Barros

 

 

 

 

Assim é que elas foram feitas (todas as coisas) —
sem nome.
Depois é que veio a harpa e a fêmea em pé.
Insetos errados de cor caíam no mar.
A voz se estendeu na direção da boca.
Caranguejos apertavam mangues.
Vendo que havia na terra
Dependimentos demais
E tarefas muitas —
Os homens começaram a roer unhas.
Ficou certo pois não
Que as moscas iriam iluminar
O silêncio das coisas anônimas.
Porém, vendo o Homem
Que as moscas não davam conta de iluminar o
Silêncio das coisas anônimas —
Passaram essa tarefa para os poetas.

 


Poemas e Poesias segunda, 24 de junho de 2024

MISTICISMO (POEMA DO CARIOCA LUÍS GUIMARÃESS JÚNIOR)

MISTICISMO

Luís Guimarães Júnior

 

 

 

À luz do teu sorriso
Meigo como o luar,
Sinto minha alma entrar
No azul do Paraíso;

E junto a Deus divino
Bela a me contemplar,
Quem há de me amparar
No dia do Juízo

Oh doce Formosura,
Pura! mil vezes pura!
Enquanto me sorris,

Minha alma delirante
Pensa na dor do Dante
E pensa em Beatriz.

 


Poemas e Poesias domingo, 23 de junho de 2024

O DESTINO DA LIRA (POEMA DO PORTUGUÊS JÚLIO DINIS)

O DESTINO DA LIRA

Júlio Dinis

 

 

 

Cantar o amor é destino Quando o seio pulsa ardente, Quando no nosso
horizonte Surge a imagem resplendente Dum sol que a aridez da vida Transforma
em jardim florente.

Mas quando a chama se extingue, Que no peito nos ardia,
A lira não canta amores, Nem os sonha a fantasia; Então natureza
e pátria
Só nos inspiram poesia.

Depois, os anos declinam
Como o Sol no azul dos céus ;
E quando a noite da vida
Já nos estende seus véus,
Todos os cantos da lira
São consagrados a Deus!

12 de Agosto de 1860

À luz do Sol nascente Resplendem pelas selvas Mil pérolas nas
relvas, Nos ares mil rubis; .
No azul do céu nevoado Não brilham as estrelas, Mas são
imagens delas As flores do tapiz.

As aves perpassando
Agitam a ramagem,
E a perfumada aragem
Nos bosques se introduz;
Aí mil vozes falam
Ao céu sereno e mudo;
No bosque é sombra tudo,
No céu é tudo luz.

Ridente madrugada,
Hora em que do oriente
Com o gládio refulgente
O arcanjo da luz vem;
E as trevas se dissipam,
Com as trevas a tristeza,
Que em toda a natureza
A noite eivado tem.

Oh! vinde, vinde ao prado
Que o orvalho inda humedece;
Ali tudo parece
À vida ressurgir.
Em vórtices contínuos,
Em doudejantes ,valsas
Elevam-se das balsas
Insectos a zumbir.

Subi do prado ao vértice
Da florida colina,
Então pela campina,
Os olhos prolongai
Ao longe, ao longe as vagas,
Lutando nos fraguedos;
Mais perto os arvoredos
Que o arroio banhar vai.

A tudo anima a esp’rança No monte e vale e praia; No céu Vésper
desmaia Ao matutino alvor.
O cântico das aves, Das flores o aroma
Nos diz: — O dia assoma I Hosana ao Criador!


Poemas e Poesias sábado, 22 de junho de 2024

NOSSA CAMA (POEMA DO ACRIANO J. G. DE ARAÚJO JORGE)

NOSSA CAMA

J. G. de Araújo Jorge

 

 

 

 

Olho nossa cama. Palco vazio
sem o drama, sem a comédia,
do nosso amor.

A nossa cama branca,
branca página, em silêncio,
de onde tudo se apagou...

(Meu Deus! quem poderia ler aquelas ânsias, aqueles gemidos,
aqueles carinhos
que a mão do tempo raspou, como nos velhos pergaminhos? ... )

A nossa cama
imensa, como a tua ausência,
tão ampla, tão lisa, tão branca, tão simplesmente cama,
e era, entretanto, um mundo,
de anseios, de viagens, de prazer,

- oceano, que teve ondas e gritos encapelados,
e nele nos debatemos tanta vez 
como náufragos
a nadar... e a morrer...

Olho a nossa cama, palco vazio,
em nosso quarto, - teatro fechado -
que não se reabrirá nunca mais...

Nossa cama, apenas cama, nada 
mais que cama

alva cama, 

em sua solidão
em seu alvor...

Nossa cama:
- campa (sem inscrição)
do nosso amor.

( J.G.  de Araujo Jorge - coletânea -

"Poemas do Amor Ardente " 4a ed. 1972 )

 

 

 


Poemas e Poesias quinta, 20 de junho de 2024

TESTAMENTO LÍRICO (POEMA DA PAULISTA HILDA HILST)

TESTAMENTO LÍRICO

Hilda Hilst

 

 

 

Se quiserem saber se pedi muito
Ou se nada pedi, nesta minha vida,
Saiba, senhor, que sempre me perdi
Na criança que fui, tão confundida.
À noite ouvia vozes e regressos.
A noite me falava sempre sempre
Do possível de fábulas. De fadas.
O mundo na varanda. Céu aberto.
Castanheiras doiradas. Meu espanto
Diante das muitas falas, das risadas.
Eu era uma criança delirante.
Nem soube defender-me das palavras.
Nem soube dizer das aflições, da mágoa
De não saber dizer coisas amantes.
O que vivia em mim, sempre calava.
E não sou mais que a infância. Nem pretendo
Ser outra, comedida. Ah, se soubésseis!
Ter escolhido um mundo, este em que vivo
Ter rituais e gestos e lembranças.
Viver secretamente. Em sigilo
Permanecer aquela, esquiva e dócil
Querer deixar um testamento lírico
E escutar (apesar) entre as paredes
Um ruído inquietante de sorrisos
Uma boca de plumas, murmurante.
Nem sempre há de falar-vos um poeta.
E ainda que minha voz não seja ouvida
Um dentre vós resguardará (por certo)
A criança que foi. Tão confundida.

Poemas e Poesias quarta, 19 de junho de 2024

SUAVE AMARGOR (POEMA DO SERGIPANO HERMES FONTES)

SUAVE AMARGOR

Hermes Fontes

 

 

 

Sofrer é o menos, minha suave Amiga;
todos têm sua cruz ou seu cajado
— cruz de dor, ou cajado de dever...

Este é sereno; aquele se afadiga:
um, só pelo desejo contrariado,
outro, por esperar, sem nunca obter.

Tudo muda, dirás... Mas, certamente,
não muda a luz: — vem sempre do Nascente
para o mesmo calvário de Sol-Pôr!

Sofrer é o menos... A dificuldade
é sofrer sem protesto e sem rancor;
é morrer sem tristeza e sem saudade:

Morrer, de olhos em Deus, devagarzinho,
ciciando uma palavra de carinho
aos que vivem sem fé e sem amor...


Poemas e Poesias terça, 18 de junho de 2024

NÓS (POEMA DO PAULISTA GUILHERME DE ALMEIDA)

NÓS

Guilherme de Almeida

 

 

Fico - deixas-me velho. Moça e bela,
partes. Estes gerânios encarnados,
que na janela vivem debruçados,
vão morrer debruçados na janela.

E o piano, o teu canário tagarela,
a lâmpada, o divã, os cortinados:
- "Que é feito dela?" - indagarão - coitados!
E os amigos dirão: - "Que é feito dela?"

Parte! E se, olhando atrás, da extrema curva
da estrada, vires, esbatida e turva,
tremer a alvura dos cabelos meus;

irás pensando, pelo teu caminho,
que essa pobre cabeça de velhinho
é um lenço branco que te diz adeus!


Poemas e Poesias segunda, 17 de junho de 2024

OUTRA VIDA (POEMA DA PAULISTA FRANCISCA JÚLIA)

OUTRA VIDA

Francisca Júlia

 

 

 

Se o dia de hoje é igual ao dia que me espera
depois, resta-me, entanto, o consolo incessante
de sentir, sob os pés, a cada passo adiante,
que se muda o meu chão para o chão de outra esfera.

Eu não me esquivo à dor nem maldigo a severa
lei que me condenou à tortura constante;
porque em tudo adivinho a morte a todo instante,
abro o seio, risonha, à mão que o dilacera.

No ambiente que me envolve há trevas do seu luto;
na minha solidão a sua voz escuto,
e sinto, contra o meu, o seu hálito frio.

Morte, curta é a jornada e o meu fim está perto!
Feliz, contigo irei, sem olhar o deserto
que deixo atrás de mim, vago, imenso, vazio...


Poemas e Poesias domingo, 16 de junho de 2024

REFLEXÃO (POEMA DA CARIOCA GILKA MACHADO)

REFLEXÃO

Gilka Machado

 

 

 

Há certas almas
como as borboletas,
cuja fragilidade de asas
não resiste ao mais leve contato,
que deixam ficar pedaços
pelos dedos que as tocam.

Em seu vôo de ideal,
deslumbram olhos,
atraem as vistas:
perseguem-nas,
alcançam-nas,
detem-nas,
mas, quase sempre,
por saciedade
ou piedade,
libertam-nas outra vez.

Ela, porém, não voam como dantes,
ficam vazias de si mesmas,
cheias de desalento...

Almas e borboletas,
não fosse a tentação das cousas rasas;
- o amor de néctar,
- o néctar do amor,
e pairaríamos nos cimos
seduzindo do alto,
admirando de longe!...


Poemas e Poesias sábado, 15 de junho de 2024

EXALTAÇÃO (POEMA DA PORTUGUESA FLORBELA ESPANCA)

EXALTAÇÃO

Florbela Espanca

 

 

 

Viver! Beber o vento e o sol! Erguer
Ao céu os corações a palpitar!
Deus fez os nossos braços pra prender,
E a boca fez-se sangue pra beijar!

A chama, sempre rubra, ao alto a arder!
Asas sempre perdidas a pairar!
Mais alto até estrelas desprender!
A glória! A fama! Orgulho de criar!

Da vida tenho o mel e tenho os travos
No lago dos meus olhos de violetas,
Nos meus beijos estáticos, pagãos!

Trago na boca o coração dos cravos!
Boêmios, vagabundos, e poetas,
Como eu sou vossa Irmã, ó meus Irmãos!


Poemas e Poesias sexta, 14 de junho de 2024

IMPROVISO ORDINÁRIO SOBRE A CIDADE MARAVILHOSA (POEMA DO MARANHENSE FERREIRA GULLAR)

IMPROVISO ORDINÁRIO SOBRE A CIDADE MARAVILHOSA

Ferreira Gullar

(Grafia original)

 

 

 

Comove-me pensar
que nas porcelanas e cristais da Casa Maillet
na Rua dos Ourives
num dia qualquer do ano de 1847, nesta cidade do Rio de Janeiro,
(na borda de um cálice)
cintilava a uma luz da tarde
e lá fora
onde a tarde nada tinha do bom-tom parisiense
entre carroças puxadas a burro e homens suados
negros no ganho
o vento levantava a poeira do dia e do século
(entranhado na carne das pessoas
e que com elas
haveria de morrer).

Sem sacanagem,
me comove pensar na tranquilidade da loja
fundada em 1843
com suas estantes de vidro
cheias de preciosidades
- vasos, taças, jarros -
que tocaram o coração de algumas poucas
senhoras cariocas
de gosto requintado e vida vã.

E se penso na loja penso na cidade
desdobrando-se em ruelas, becos e ladeiras,
em sobrados e igrejas,
fervilhando no mercado da Rua do Valongo
onde se leiloavam escravos
enquanto no porto
os navios rangiam o madeirame
sobre as águas dessa mesma baía que ora vemos
atual e azul.
E que
ainda mais azul já a tinham visto
outros olhos humanos
que se apagaram
antes muito antes que houvesse este cais
entre igrejas e praças
o pelourinho
o Mosteiro de São Bento
muito antes que alguma voz de branco ecoasse neste cenário
onde tudo são serranias e rochedos espantosos
com a baía dançando na atualidade do paraíso.

Possivelmente de luvas
(que já então se usavam luvas
na cidade de pouco asseio
e muitas putas)
madame aponta
para uma porcelana de Sévres
e lhe pergunta o preço.

A tarde é quente
na cidade de S.Sebastião do Rio de Janeiro
com suas cadeias apinhadas de presos
respirando o fedor de seus próprios dejetos
arrastando correntes
para ir mendigar no meio da rua,
que o governo não alimenta criminosos.
O governo alimenta nobres
e ladrões finos
ministros, ouvidores, provedores
que empoam a cabeleira
e se cumprimentam com trejeitos importados
se se cruzam nas ruas, no Fórum, nos salões.

Já ninguém anda nu neste cenário
que os brancos
há séculos nos trouxeram a moral e os bons costumes
além da sífilis.
Não obstante, àquela altura
já a cidade transbordava de bastardos e amásias
amores noturnos
que aconteciam por todas as partes
e especialmente nos conventos.
De nada (ou muito?) valeu
a recomendação de Manuel Nóbrega, pedindo ao Rei
que à nova terra mandasse meretrizes
para evitar pecados e aumentar a população a serviço de Deus.
E a população cresceu
a serviço de Deus e de tantos outros
senhores de tez clara
donos de escravos e de terras
que se foram sucedendo
a serviço de Deus e das empresas
agora multinacionais.

Sem sacanagem,
na cidade onde havia mais leprosos que cães vagando pelas ruas,
comove-me saber que
em 1788
estava na moda o guarda-sol branco
em 1789
o verde
e que em 1904 o desbunde eram
os guarda-sóis azuis
de sarja ou tafetá.

Ah, cidade maliciosa
de olhos de ressaca
que das índias guardou a vontade de andar nua
e que, apesar do Toque do Aragão,
do Recolhimento do Parto
e do Prefeito Amaro Cavalcanti
- impondo em 1917 a moralidade rigorosa
nos banhos de mar -
despe-se novamente hoje nas areias de Ipanema.

De pouco valeu manter analfabetas
as mulheres da cidade,
proibi-las de ir à rua,
dopá-las com emulsões de castidade.
Não houve jeito senão criar a Roda
e mais tarde
os hotéis de alta rotatividade.
A população cresceu.
Cresceu talvez não bem como o queriam
o padre Cepeda
e o poeta Bilac.

Cresceu festiva e arruaceira,
mais chegada ao batuque que à novena,
convencida de que só vale a pena
viver se é
pra assistir ao Fla-Flu e arriscar na centena.
Sem falar, claro está, no seu "bacano"
que só pensa na Bolsa e no carro do ano.

Uma cidade é
um amontoado de gente sem terra.
Antes não, nem tanto, antes
havia quintal e no Campo de Santana
as negras lavadeiras
estendiam na grama a roupa enxaguada.
Ah, que saudade de ver roupas na grama!
Já não,
já não que a lira tenho desatinada
e a voz enrouquecida
e não do canto
mas de ver que venho
falar de uma cidade endurecida,
falar de uma cidade poluída
falar de uma cidade
onde a vida é
cada dia menos do que a vida:
asfalto asfalto asfalto
e mais assalto
na Tijuca, na Penha, na Avenida
Nossa Senhora de Copacabana
em pleno dia.
Uma cidade
é um amontoado de gente que não planta
e que come o que compra
e pra comprar se vende.
Uma cidade, como a nossa, é
um labirinto de arranha-céus e transações financeiras,
um mercado de brancos
(de negros, de mulatos,
de malucos)
uma multiplicada Rua do Valongo.
Vendem-se frutas, carnes congeladas,
vendem-se couves, conas, inspiradas
canções de amor, poemas, vendem-se jornadas
inteiras de vida,
noites de sono,
vende-se até o futuro
e a morte
às companhias de seguro.

A tarde se apagou.
As porcelanas
não brilham mais na Rua dos Ourives.
A Casa Maillet fechou as portas
e seu dono fechou o paletó.
De paletó fechado, de camisa
ou sem camisa,
ricos e negros, brancos e pobres,
mulatos, mamelucos,
todos os que passavam pela rua
àquela hora
(quando a mulher de luvas perguntou
pelo preço do vaso)
se foram
com o sol, o pó e os guarda-sóis da época.
A noite
que ardeu nos lampiões de óleo
(depois de gás)
aquela noite e as muitas outras noites
passaram recendendo a carbureto e esperma
voando lentas sobre o Mangue
os nas asas dos aviões
que descem de entre as constelações do céu.
E vem a manhã.
A cidade dá curso à sua história
(de féretros verões e diarréias)
em frente ao mar.
Carregados de dívidas, CPF, relógio de pulso,
entre desastres ecológicos, sob os temporais
de janeiro,
viajamos com ela
pelos espaços estelares,
velozmente.

Amigos morrem,
as ruas morrem,
as casas morrem.
Os homens se amparam em retratos.
Ou no coração dos outros homens.


Poemas e Poesias quarta, 12 de junho de 2024

DORME ENQUANTO EU VELO (POEMA DO PORTUGUÊS FERNANDO PESSOA)

DORME ENQUANTO EU VELO

Fernando Pessoa

 

 

 

Dorme enquanto eu velo...

Deixa-me sonhar...

Nada em mim é risonho.

Quero-te para sonho,

Não para te amar.

 

A tua carne calma

É fria em meu querer.

Os meus desejos são cansaços.

Nem quero ter nos braços

Meu sonho do teu ser.

 

Dorme, dorme, dorme,

Vaga em teu sorrir...

Sonho-te tão atento

Que o sonho é encantamento

E eu sonho sem sentir.


Poemas e Poesias segunda, 10 de junho de 2024

ÚLTIMO CANTO (POEMA DO FLUMINENSE EUCLIDES DA CUNHA)

ÚLTIMO CANTO

Euclides da Cunha

 

 

 

Amigo! estas canções estas filhas selvagens
Das montanhas, da luz, dos céus e das miragens
Sem arte e sem fulgor são um sonoro caos
De lágrimas e luz de plectros bons e maus…
Que ruge no meu peito e no meu peito chora
Sem um fiat de amor sem a divina aurora
De um olhar de mulher…
…perfeitamente o vês
Não sei metrificar, medir, separar pés…
— Pois — um beijo tem leis? — a um canto um núm’ro guia
Pode moldar-se uma alma às leis da geometria?

Não tenho ainda vinte anos.
E sou um velho poeta… a dor e os desenganos
Sagraram-me mui cedo, a minha juventude
É como uma manhã de Londres — fria e rude…

Filho lá dos sertões nas múrmuras florestas
Nesses berços de luz, de aromas de giestas –
Onde a poesia dorme ao canto das cachoeiras
Eu me embrenhava só… as auras forasteiras
Me segredavam baixo os cantos do mistério
E a floresta sombria era como um saltério
Em cujas vibrações minh’alma — ébria — bebia
Esse licor de luz e cantos — a Poesia…

Mui cedo como um elo atroz de luz e pó
Um sepulcro ligara a Deus minh’alma… só
Selvagem, triste e altivo eu enfrentei o mundo
Fitei-o então senti de meu cér’bro no fundo
Rolar iluminando a alma e o coração
C’o a lágrima primeira a primeira canção…
Cantei — porque sofria — e, amigo, no entretanto
Sofro hoje — porque canto…
Já vês, portanto, em mim esta arte de cantar
É um modo de sofrer , é um meio de gozar…
Quem há que meça aí de uma lágrima o brilho
Pois erra-se sofrendo?…
Eu nunca li Castilho.
Detesto francamente esses mestres cruéis
Que esmagam uma ideia sob quebrados pés…
Que vestem c’um soneto esplêndido, sem erro
Um pensamento torto, encarquilhado e perro
Como um correto frac no dorso de um corcunda
Oh sim! quando a paixão o nosso ser inunda
E ferve-nos na artéria, e canta-nos no peito
Como dos ribeirões, o borbulhoso leito
Parar — é sublevar
Medir — é deformar!
Por isso amo a Musset e jamais li Boileau

— 2 —

Esse arquiteto audaz do pensamento — Hugo
Jamais sói refrear o seu verso, terrível
Veloce como a luz, como o raio incoercível!…
Se a lima o toca, ardente, audaz como um corcel
Às esporas revel
Na página palpita e ferve e freme e estoura
Como um raio a vibrar no seio de uma aurora…

Que lime-se num verso uma cadência má!
Que p’los dedos se contem as sílabas — vá lá!
Mas que um tipão qualquer — como muitos que eu vejo —
Espiche, estique e encolha a tod’hora sem pejo
Um desgraçado verso e após tanto medir
Torcer, brunir, sovar, limar, polir… polir
No-lo venha a trazer às pobres das orelhas
Monótono, sem cor, cheio de regras velhas,
Como um casto bijou, feito de sons e luz,
Isto revolta e amola…

Mas, veja ao que conduz
O vago rabiscar de uma pena sem norte
Falava-te de Deus, de mim, da estranha sorte
Que aniila a poesia e acaba num jogral…
Num lorpa, num boçal
Que nos recebe — a pés — e faz do amor uma arte
Deixemo-lo de parte…

— 3 —

Escuta-me, eu teria um imenso prazer
Se podendo domar, curvar, forçar, vencer
O cér’bro e o coração fosse este último canto
O fim de meu sonhar, de meu cantar porquanto


Poemas e Poesias domingo, 09 de junho de 2024

TROVAS HUMORÍSTICAS - 28 - (POEMA DO PARANAENSE ENO TEODORO WANKE)
 
 

TROVA HUMORÍSTICA 28

Eno Teodoro Wanke

 

Quando um bêbado nos fala

Arrastado, tartamudo

Se não entendemos nada

Ao menos cheiramos tudo

 


Poemas e Poesias sábado, 08 de junho de 2024

SOB O RITMO DO TEMPO (POEMA DO PIAUIENSE DA COSTA E SILVA)

SOB O SIGNO DO TEMPO

Da Costa e Silva

 

 

A areia, grão a grão, escoa na ampulheta...
Sob o ritmo do tempo, em silêncio medito:
Ai de quem, a sofrer, passou pelo planeta
Sem realizar o seu instante de infinito!

A água cai, gota a gota, a oscilar na clepsidra...
Atento ao seu rumor, penso inquieto e tristonho:
Ai de quem não arou com pranto a terra anidra,
Para atirar ao mundo a semente de um sonho!

A sombra leve azula a pedra do quadrante...
Cismo, absorto, a seguir-lhe o tardo movimento: 
Ai de quem, a viver como uma sombra errante,
Não roçou pelo céu a asa de um pensamento!


Poemas e Poesias sexta, 07 de junho de 2024

CRISTO DE BRONZE (POEMA DO CATARINENSE CRUZ E SOUSA)

CRISTO DE BRONZE

Cruz e Sousa

 

 

Ó Cristos de ouro, de marfim, de prata,
Cristos ideais, serenos, luminosos,
Ensangüentados Cristos dolorosos
Cuja cabeça a Dor e a Luz retrata.

Ó Cristos de altivez intemerata,
Ó Cristos de metais estrepitosos
Que gritam como os tigres venenosos
Do desejo carnal que enerva e mata.

Cristos de pedra, de madeira e barro...
Ó Cristo humano, estético, bizarro,
Amortalhado nas fatais injurias...

Na rija cruz aspérrima pregado
Canta o Cristo de bronze do Pecado,
Ri o Cristo de bronze das luxúrias!..


Poemas e Poesias quinta, 06 de junho de 2024

VAIDOSA (POEMA DO PORTUGUÊS CESÁRIO VERDE)

VAIDOSA

Cesário Verde

 

 

 

Dizem que tu és pura como um lírio
E mais fria e insensível que o granito,
E que eu que passo aí por favorito
Vivo louco de dor e de martírio.

Contam que tens um modo altivo e sério,
Que és muito desdenhosa e presumida,
E que o maior prazer da tua vida,
Seria acompanhar-me ao cemitério.

Chamam-te a bela imperatriz das fátuas,
a déspota, a fatal, o figurino,
E afirmam que és um molde alabastrino,
E não tens coração como as estátuas.

E narram o cruel martirológio
Dos que são teus, ó corpo sem defeito,
E julgam que é monótono o teu peito
Como o bater cadente dum relógio.

Porém eu sei que tu, que como um ópio
Me matas, me desvairas e adormeces
És tão loira e doirada como as messes
E possuis muito amor... muito "amor próprio".

 


Poemas e Poesias quarta, 05 de junho de 2024

ROMANCEIRO DA INCONFIDÊNCIA (TRECHO DO POEMA DA CARIOCA CECÍLIA MEIRELE)

ROMANCE  XIV  OU  DA CHICA  DA  SILVA

Cecília Meireles

 

 

Que andor se atavia
naquela varanda?
É a Chica da Silva:
é a Chica-que-manda!

Cara cor da noite
olhos cor de estrela.
Vem gente de longe
para conhecê-la.

(Por baixo da cabeleira,
tinha a cabeça rapada
e até dizem que era feia.)

Vestida de tisso,
de raso e de holanda
– é a Chica da Silva:
– é a Chica-que-manda!

Escravas, mordomos
seguem, como um rio,
a dona do dono
do Serro do Frio.

(Doze negras em redor,
– como as horas, nos relógios.
Ela, no meio, era o sol!)

Um rio que, altiva,
dirige e comanda
a Chica da Silva,
a Chica-que-manda.

Esplendem as pedras
por todos os lados:
são flechas em selvas
de leões marchetados.

(Diamantes eram, sem jaça,
por mais que muitos quisessem
dizer que eram pedras falsas.)

Mil luzeiros chispam,
à flexão mais branda
da Chica da Silva
da Chica-que-manda!

E curvam-se, humildes,
fidalgos farfantes,
à luz dessa incrível
festa de diamantes.

(Olhava para os reinóis
e chamava-os “marotinhos”!
Que viu desprezo maior?)

Gira a noite gira,
dourada ciranda
da Chica da Silva,
da Chica-que-manda!

E em tanque de assombro
veleja o navio
da dona do dono
do Serro do Frio.

(Dez homens o tripulavam,
para que a negra entendesse
como andam barcos nas águas.)

Aonde o leva a brisa
sobre a vela panda?
– A Chica da Silva:
à Chica-que-manda.

A Vênus que afaga,
soberba e risonha
as luzentes vagas
do Jequitinhonha.

(À Rainha de Sabá,
num vinhedo de diamantes
poder-se-ia comparar.)

Nem Santa Ifigênia,
toda em festa acesa,
brilha mais que a negra,
na sua riqueza.

Contemplai, branquinhas,
na sua varanda,
a Chica da Silva,
a Chica-que-manda!

(Coisa igual nunca se viu.
Dom João Quinto, rei famoso,
não teve mulher assim!)

 

Poemas e Poesias segunda, 03 de junho de 2024

POESIA E MENDICIDADE (POEMA DO BAIANO CASTRO ALVES)

POESIA E MENDICIDADE

Castro Alves

I

Senhora! A Poesia outrora era a Estrangeira,
Pálida, aventureira, errante a viajar,
Batendo em duas portas — ao grito das procelas —
Ao céu — pedindo estrelas, à terra — um pobre lar!

Visão-de áureos lauréis-porém de manto esquálido,
Mulher-de lábio pálido-e olhar-cheio de luz.
Seus passos nos espinhos em sangue se assinalam...
E os astros lhe resvalam-à flor dos ombros nus...

II

Olhai! O sol descamba... A tarde harmoniosa
Envolve luminosa a Grécia em frouxo véu.
Na estrada ao som da vaga, ao suspirar do vento,
De um marco poeirento um velho então se ergueu.

Ergueu-se tateando... é cego... o cego anseia...
Porém o que tateia aquela augusta mão?...
Talvez busca pegar o sol, que lento expira!...
Fado cruel... mentira!... Homero pede pão!

III

Mas ai! volvei, Senhora, os vossos belos olhos
Daquele mar de abrolhos, a um novo quadro! olhai!
Do vasto salão gótico eu ergo o reposteiro...
O lar é hospitaleiro... Entrai, Senhora, entrei!

Estamos na média idade. Arnês, gládio, armadura
Servem de compostura à sala vasta e chã.
A um lado um galgo esvelto ameiga e acaricia
A mão suave, esguia — à loura castelã.
Vai o banquete em meio... O bardo se alevanta
Pega da lira... canta... uma canção de amor...

Ouvi-o! Para ouvi-lo a estrela pensativa
Alonga pela ogiva um raio de languor!
Dos ramos do carvalho a brisa se debruça...
Na sala alguém soluça... (amor, ou languidez?)
Súbito a nota extrema anseia, treme, rola...
Alguém pede uma esmola... Senhora, não olheis!...

Assim nos tempos idos a musa canta e pede...
Gênio e mendigo... vede... o abismo de irrisões!
Tasso implora um olhar! Vai Ossian mendicante...
Caminha roto o Dante! e pede pão Camões.

IV

Bem sei, Senhora, que ao talento agora
Surgiu a aurora de uma luz amena.
Hoje há salário p'ra qualquer trabalho
Cinzel, ou malho, ferramenta ou penal
Melhor que o Rei sabe pagar o pobre

Melhor que o nobre —protetor verdugo—
Foi surdo um trono... à maior glória vossa.
Abre-se a choça aos Miseráveis de Hugo.
Porém não sei se é por costume antigo,
Que inda é mendigo do cantor o gênio.
Mudem-se os panos do cenário a esmo

O vulto é o mesmo... num melhor proscênio...

V

Hoje o Poeta — caminheiro errante,
Que tem saudade de um país melhor
Pede uma pérola — à maré montante,

Do seio às vagas-pede-um outro amor.
Alma sedenta de ideal na terra
Busca apagar aquela sede atroz!
Pede a harmonia divinal, que encerra
Do ninho o chilro... da tormenta a voz!
E o rir da folha, o sussurrar da fala,

Trenos da estrela no amoroso estio.
Voz que dos poros o Universo exala
Do céu, da gruta, do alcantil, do rio!
Pede aos pequenos, desde o verme ao tojo,
Ao fraco, ao forte... preces, gritos, uivos...
Pede das águias o possante arrojo,

Para encontrar os meteoros ruivos.
Pede à mulher que seja boa e linda
Vestal de um tipo que o ideal revela...
Pois ser formosa é ser melhor ainda...
Se és boa-és luz... mas se és formosa-estrela...
E pede à sombra p'ra aljofrar de orvalhos

A fronte azul da solidão noturna.
E pede às auras p'ra afagar os galhos
E pede ao lírio p'ra enfeitar a fuma.
Pede ao olhar a maciez suave
 
Que tem o arminho e o edredom macio,
O aveludado da penugem d'ave,
Que afaga as plumas no palmar sombrio.
E quando encontra sobre a terra ingrata
Um reverbero do clarão celeste,
— Alma formada de uma essência grata,
Que a lua — doura, e que um perfume veste;

Um rir, que nasce como o broto em maio;
Mostrando seivas de bondade infinda,
Fronte que guarda— a claridade e o raio,
— Virtude e graça — o ser bondosa e linda...

Então, Senhora, sob tanto encanto
Pede o Poeta (que não tem renome)
— Versos - à brisa p'ra vos dar um canto...
Raios ao sol — p'ra vos traçar o nome!...


Poemas e Poesias domingo, 02 de junho de 2024

A UMA PLATEIA (POEMA DO FLUMINENSE CASIMIRO DE ABREU)

A UMA PLATEIA

Casimiro de Abreu

 

 

O cedro foi planta um dia,
Viço e força o arbusto cria,
Da vergôntea nasce o galho;
E a flor p’ra ter mais vida,
Para ser – rosa querida –
Carece as gotas de orvalho.

 

Com o talento é o mesmo
Quando tímido ele adeja
– Qual ave que se espaneja –
Como a flor, também precisa
Em vez do sopro da brisa
O sopro da simpatia
Que lhe adoce os amargores,
Para em horas de cansaço
Na estrada que vai trilhando
Encontrar de quando em quando
Por entre os espinhos – flores.

E vós que acabais de ouvi-lo
A suspirar nesse trilo
No seu gorjeio primeiro;
Vós, que viste o seu começo.
Dai-lhe essas palmas de apreço
Que é artista e… brasileiro!


Poemas e Poesias sábado, 01 de junho de 2024

SONETO SUPERFICIAL E ESGUIO COMO MADAME (POEMA DO PEDRNAMBUCANO CARLOS PENS FILHO)

SONETO SUPERFICIAL E ESGUIO COMO MADAME 

Carlos Pena Filho

 

 

 

Madame, em vosso claro olhar, e leve,
navegam coloridas geografias,
azul de litoral, paredes frias,
vontade de fazer o que não deve

ser feito, por ser coisa de outros dias
vivida num instante muito breve,
quando extraímos sal, areia e neve
de vossas mãos, singularmente esguias.

Que eternos somos, dúvida não tenho,
nem posso abandonar minha planície
sem saber se em vós há o que em vós venho

buscar. E embora em nós tudo nos chame,
jamais navegarei a superfície
de vosso claro e leve olhar, Madame.

Poemas e Poesias sexta, 31 de maio de 2024

CONSTRUÇÃO (POEMA DO MINEIRO CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE)

CONSTRUÇÃO

Carlos Drummond de Andrade

 

 

 

Um grito pula no ar como foguete.
Vem da paisagem de barro úmido, caliça e andaimes hirtos.
O sol cai sobre as coisas em placa fervendo.
O sorveteiro corta a rua.

E o vento brinca nos bigodes do construtor.

 


Poemas e Poesias quinta, 30 de maio de 2024

SONETO 085 - EM PRISÕES BAIXAS FUI UM TEMPO ATADO (POEMA DO PORTUGUÊS LUÍS DE CAMÕES)

 

SONETO 085 - EM PRISÕES BAIXAS FUI UM TEMPO ATADO (POEMA DO PORTUGUÊS LUÍS DE CAMÕES) 
 
SONETO 149 - EM FLOR VOS ARRANCOU, DE ENTÃO CRESCIDA (PORME DO PORTUGUÊS LUÍS DE CAMÕES)
 
 
Luís de Camões
 
 
SONETO 085 - EM PRISÕES BAIXAS FUI UM TEMPO ATADO (POEMA DO PORTUGUÊS LUÍS DE CAMÕES) Grafia original
 
 
 
 
 

Em prisões baixas fui hum tempo atado;
Vergonhoso castigo de meus erros:
Inda agora arrojando levo os ferros,
Que a morte, a meu pezar, tẽe ja quebrado.

Sacrifiquei a vida a meu cuidado,
Que Amor não quer cordeiros nem bezerros;
Vi mágoas, vi miserias, vi desterros:
Parece-me que estava assi ordenado.

Contentei-me com pouco, conhecendo
Que era o contentamento vergonhoso,
Só por ver que cousa era viver ledo.

Mas minha Estrella, que eu ja agora entendo,
A Morte cega, e o Caso duvidoso
Me fizerão de gostos haver medo.

 

Poemas e Poesias quarta, 29 de maio de 2024

CEM TROVAS - 018 (POEMA DO MINEIRO BELMIRO BRAGA)

 

TROVA 018

Belmiro Braga

 

Teu coração é morada

Que não atrai, felizmente:

– Quem nele arranja pousada

Encontra a cama ainda quente 

 

 


Poemas e Poesias terça, 28 de maio de 2024

TRISTEZAS DE UM QUARTO-MINGUANTE (POEMA DO PARAIBANO AUGUSTO DOS ANJOS)

TRISTEZAS DE UM QUARTO-MINGUANTE

Augusto dos Anjos

(Grafia original)

 

 

 

Quarto-Minguante! E, embora a lua o aclare,
Este Engenho Pau d’Arco é muito triste.
Nos engenhos da vrázea não existe
Talvez um outro que se lhe equipare!

Do observatório em que eu estou situado
A lua magra, quando a noite cresce,
Vista, através do vidro azul, parece
Um parallelipipedo quebrado!

O somno esmaga o encéphalo do povo.
Tenho 3OO kilos no epigastro.
Dóe-me a cabeça. Agora a cara do astro
Lembra a metade de uma casca de ovo.

Diabo! não ser mais tempo de milagre!
Para que esta oppressão desappareça
Vou amarrar um panno na cabeça,
Molhar a minha fronte com vinagre.

 

Augmentam-se-me então os grandes medos.
O hemispherio lunar se ergue e se abaixa
Num desenvolvimento de borracha,
Variando á acção mechanica dos dedos;

Vai-me crescendo a aberração do sonho.
Morde-me os nervos o desejo doudo
De dissolver-me, de enterrar-me todo
Naquelle semi-circulo medonho!

Mas tudo isto é illusão de minha parte!
Quem sabe se não é porque não saio
Desde que, 6ª-feira, 3 de Maio,
Eu escrevi os meus Gemidos de Arte?!

A lampada a estirar linguas vermelhas
Lambe o ar. No bruto horror que me arrebata,
Como um degenerado psychopatha
Eis-me a contar o numero das telhas!

— Uma, duas, tres, quatro. E aos tombos, tonta
Sinto a cabeça e a conta perco; e, em summa,
A conta recomeço, em ancias: — Uma.
Mas novamente eis-me a perder a conta!

Succede a uma tontura outra tontura.
— Estarei morto?! E a esta pergunta extranha
Responde a Vida — aquella grande aranha
Que anda tecendo a minha desventura! —

A luz do quarto diminuindo o brilho
Segue todas as phases de um eclypse.
Começo a ver coisas de Apocalypse
No triangulo escaleno do ladrilho!

 

Deito-me emfim. Ponho o chapéu num gancho.
Cinco lençóes balançam numa corda,
Mas aquillo mortalhas me recorda,
E o amontoamento dos lençòes desmancho.

Vêm-me á imaginação sonhos dementes.
Acho-me, por exemplo, numa festa.
Tomba uma torre sobre a minha testa,
Caem-me de uma só vez todos os dentes!

Então dois ossos roidos me assombraram.
— «Por ventura haverá quem queira roer-nos?!
Os vermes já não querem mais comer-nos
E os formigueiros já nos desprezaram».

Figuras espectraes de boccas tronchas
Tornam-me o pesadelo duradouro.
Chóro e quero beber a agua do chôro
Com as mãos dispostas á feição de conchas.

Tal uma planta aquatica submersa,
Ante-gozando as ultimas delicias
Mergulho as mãos — vis raizes adventicias —
No algodão quente de um tapete persa.

Por muito tempo rólo no tapete.
Subito me ergo. A lua é morta. Um frio
Cahe sobre o meu estomago vasio
Como se fosse um cópo de sorvete!

A alta frialdade me insensibilisa;
O suor me ensopa. Meu tormento é infindo...
Minha familia ainda està dormindo
E eu não posso pedir outra camisa!

 

Abro a janella. Elevam-se fumaças
Do engenho enorme. A luz fulge abundante
E em vez do sepulchral Quarto-Minguante
Vi que era o sol batendo nas vidraças.

Pelos respiratorios tenues tubos
Dos póros vegetaes, no acto da entréga
Do matto verde, a terra resfolèga
Estrumada, feliz, cheia de adubos.

Concavo, o ceu, radiante e estriado, observa
A universal creação. Broncos e feios,
Varios reptis cortam os campos, cheios
Dos tenros tinhorões e da humida herva.

Babujada por baixos beiços brutos,
No humus feraz, hieratica, se ostenta
A monarchia da arvore opulenta
Que dá aos homens o obolo dos fructos.

De mim diverso, rigido e de rastos
Com a solidez do tegumento sujo
Sulca, em diametro, o sólo um caramujo
Naturalmente pelos mata-pastos.

Entretanto, passei o dia inquieto,
A ouvir, nestes bucólicos retiros,
Toda a salva fatal de 21 tiros
Que festejou os funeraes de Hamleto!

Ah! Minha ruina é peor do que a de Thebas!
Quizera ser, numa ultima cobiça,
A fatia esponjosa de carniça
Que os corvos comem sobre as jurubebas!

 

Porque, longe do pão com que me nutres
Nesta hora, oh! Vida, em que a soffrer me exhortas
Eu estaria como as bestas mortas
Pendurado no bico dos abutres!


Poemas e Poesias segunda, 27 de maio de 2024

OH! PÁGINAS DA VIDA QUE EU AMAVA

OH! PÁGINAS DA VIDA QUE EU AMAVA

Álvares de Azevedo

 

 

 

Oh! Páginas da vida que eu amava,
Rompei-vos! nunca mais! tão desgraçado! ...
Ardei, lembranças doces do passado!
Quero rir-me de tudo que eu amava!

E que doudo que eu fui! como eu pensava
Em mãe, amor de irmã! em sossegado
Adormecer na vida acalentado
Pelos lábios que eu tímido beijava!

Embora — é meu destino. Em treva densa
Dentro do peito a existência finda
Pressinto a morte na fatal doença!

A mim a solidão da noite infinda!
Possa dormir o trovador sem crença
Perdoa minha mãe - eu te amo ainda!


Poemas e Poesias domingo, 26 de maio de 2024

VÍBORA (POEMA DO PORTUGUÊS ALMEIDA GARRETT)

 

 

VÍBORA

Almeida Garrett

 

Como a víbora gerado,
No coração se formou
Este amor amaldiçoado
Que à nascença o espedaçou.

Para ele nascer morri;
E em meu cadáver nutrido,
Foi a vida que eu perdi
A vida que tem vivido.


Poemas e Poesias sábado, 25 de maio de 2024

O ÍDOLO (POEMA DO FLUMINENSE ALBERTO DE OLIVEIRA)

O ÍDOLO

Alberto de Oliveira

 

 

 

Sobre um trono de mármore sombrio,
Em templo escuro, há muito abandonado,
Em seu grande silêncio, austero e frio
Um ídolo de gesso está sentado.

E como à estranha mão, a paz silente
Quebrando em torno às funerárias urnas,
Ressoa um órgão compassadamente
Pelas amplas abóbadas soturnas.

Cai fora a noite - mar que se retrata
Em outro mar - dois pélagos azuis;
Num as ondas - alcíones de prata,
No outro os astros - alcíones de luz.

E de seu negro mármore no trono
O ídolo de gesso está sentado.
Assim um coração repousa em sono...
Assim meu coração vive fechado.


Poemas e Poesias sexta, 24 de maio de 2024

VALE VERDE (POEMA LEITOR BALSENSE CAPITÃO CARLOS PEREIRA DA COSTA FILHO)

VALE VERDE

Carlos Pereira da Costa Filho

 

 

Vale Verde da minha vida,

Em ano de felação recíproca

A esmo cheguei a ti.

 

Tanta coisa aprendi

Na inocência de menino,

Lá no Faca só dá librina,

De isope não me banhei.

 

Busquei o balde cheio de sede

Mas do teu seio nada faltou.

Da Esmeralda professora

Pus a fronte pra sangrar,

Bola de gude cortou vento

Tudo para me vingar.

 

Espalhei o leite dos neófitos,

Tão nervoso fiquei lá,

Minha tenda desarmou

Foi preciso apanhar.

 

Em outra cisma do meu pai,

Indo embora levei saudades.

As lágrimas verteram forte

Inda hoje sinto saudade.

 

Vale Verde, minha vida,

É por ti uma esperança.

Tenho fé que um dia

Naquela mesma casinha

Que o aconchego me cedeu,

Terás a mim de volta

Vou ficar aí para sempre,

E quem promete sou eu. 

 


Poemas e Poesias sexta, 24 de maio de 2024

A COSTUREIRA (POSTAGEM DA COLUNISTA MADRE SUPERIORA VIOLANTE PIMENTEL)

A COSTUREIRA

 

Pode ser arte de 1 pessoa e ferro de passar roupa

 

  · 
A COSTUREIRA
 
Ela ouve o tecido, ela pousa
o ouvido, ela ouve com os olhos.
À fibra e ao feixe interroga
sobre o que se entrelaçara,
distinguindo a linha, o intervalo,
o vão, o entreato, atenta
para o que na fala geométrica
e repetida dos fios é um outro
vazio: o de antes da trama, ato
anterior ao enredo; óculos
postos para a escuta, a escuta
desfia-se no vento, o olho
flutua, folha, flor, agulha;
fecha os olhos; ouve
com as pontas dos dedos;
indaga do tecido o modo,
os limites, a função, a oficina,
a forma que ele quer ter,
a coisa, a casa que ele quer ser;
e costura como quem à mão
e à máquina descosturasse
o dicionário, rasgando em moles
móbiles seus hábitos, o vinco
de sua farda.
Velha costureira
Companheira como está?
Não levante da cadeira
Só vim perguntar
Se um peito rasgado
Você pode costurar
Com agulhas da alegria
E os fios de raios de luar
Quero um sol bordado
No meu coração
Pra aquecer no peito
Uma grande paixão
E eu lhe pago assim que puder
Com a nova canção
Que eu fizer.
 
Eucanaã Ferraz🖊️

 


Poemas e Poesias quinta, 23 de maio de 2024

O DUPLO (POEMA DO MINEIRO AFFONSO ROMANO DE SANT*ANNA)

O DUPLO

Affonso Romano de Sant'Anna

 

 

 

“Debaixo de minha mesa
tem sempre um cão faminto
-que me alimenta a tristeza…
Debaixo de minha cama
tem sempre um fantasma vivo
-que perturba quem me ama.

Debaixo de minha pele
alguém me olha esquisito
-pensando que sou ele.

Debaixo de minha escrita
há sangue em lugar de tinta
-e alguém calado que grita.”


Poemas e Poesias quinta, 23 de maio de 2024

A QUIXABEIRA (POEMA DO COLUNISTA CARLOS AIRES)

 

 

 

 

A QUIXABEIRA
Carlos Aires
 
 

 

Velha amiga quixabeira
São tantas recordações
Que ao longo da vida inteira
Não contive as emoções.
Já que as lembranças infindas
Vêm me apontar coisas lindas
De um passado tão feliz
Vou remexer a memória
Para narrar tua história
Relatando os teus perfis.

A tua fronde aprazível
Dona de farta ramagem
Estava bem compatível
Com a tua bela paisagem.
Eras sempre aconchegante
Que quem chegasse ofegante
Vencido pelo cansaço
Logo se revigorava
Depois que ali se abrigava
Acolhido em teu regaço.

Estavas bem situada
Ao lado do casarão
Na cerca localizada
Bem pertinho do oitão.
Onde belos passarinhos
Vinham construir seus ninhos
E trinar seus belos cantos
Eu ficava inebriado,
Absorto, extasiado,
Escutando esses encantos.

Vinha o gado e ali ficava
Na hora do sol a pino
Já que a sombra assegurava
Um agasalho divino.
No conforto se deitavam
Bem tranquilos ruminavam
Nesse abrigo acolhedor,
E tu no mais doce enleio
Abrigava-os no teu seio
Com carinho e muito amor.

Em ti eu guardei os sonhos
Da minha infantilidade
E em momentos tristonhos
Recorro a minha saudade
Pra que me leve outra vez
Com a maior rapidez
Quem sabe assim eu consiga,
Matar minha nostalgia
Refazendo a alegria
Junto a quixabeira amiga.

Em momentos de retiro
Na doce alucinação
Dou um profundo suspiro
E na rememoração
Com muito orgulho me ufano
Ao rever eu e meu mano
Brincando ali novamente
Essas lembranças castigam
Provocam e até instigam
Para a tristeza plangente.

O ser humano é terrível
Pois só pensa em depredar
Com seu instinto insensível
Decidiu por não poupar
A quixabeira querida
Onde iniciei a vida
Na doce recreação
Nada mais dela hoje existe,
Só a saudade persiste
Dentro do meu coração.

Essa quixabeira bela
Já não subsiste mais
Para não me esquecer dela
Vou arquivar nos anais
Essa minha narrativa
Pra que permaneça viva
Mesmo em forma de saudade
E ao evocar tempos idos
Lembrar momentos vividos
Com muita felicidade.

 


Poemas e Poesias quarta, 22 de maio de 2024

SIMPLESMENTE AMOR (POEMA DA MINEIRA ADÉLIA PRADO)

SIMPLESMENTE AMOR 

Adélia Prado

 

 

 

Amor é a coisa mais alegre

Amor é a coisa mais triste

Amor é a coisa que mais quero

Por causa dele falo palavras como lanças

Amor é a coisa mais alegre

Amor é a coisa mais triste

Amor é a coisa que mais quero

Por causa dele podem entalhar-me:

Sou de pedra sabão.

Alegre ou triste

Amor é a coisa que mais quero.


Poemas e Poesias terça, 21 de maio de 2024

A NOITE GARGALHA... E OS GRILOS... (POEMA DO CARIOCA VINÍCIUS DE MORAES)

A NOITE GARGALHA... E OS GRILOS...

Vinícius de Moraes

 

A noite gargalha... os grilos 

Trilam, trepidando as águas 

As águas correm nos trilos 

Em preces cheias de mágoas 

 

Na solidão desse pranto 

Cheio de pressentimento 

Meu tédio morre de espanto 

Para ouvir cantar o vento 

 

E o vento desce profundo 

Misterioso, gelado 

O vento vem de outro mundo 

Como uma voz do passado 

 

 


Poemas e Poesias segunda, 20 de maio de 2024

VELHO TEMA DE AMOR II (POEMA DO PAULISTA VICENTE DE CARVALHO)

VELHO TEMA DE AMOR II

Vicente de Carvalho

 

 

 

Eu cantarei de amor tão fortemente
Com tal celeuma e com tamanhos brados
Que afinal teus ouvidos, dominados,
Hão de à força escutar quanto eu sustente.

Quero que meu amor se te apresente
— Não andrajoso e mendigando agrados,
Mas tal como é: — risonho e sem cuidados,
Muito de altivo, um tanto de insolente.

Nem ele mais a desejar se atreve
Do que merece: eu te amo, e o meu desejo
Apenas cobra um bem que se me deve.

Clamo, e não gemo; avanço, e não rastejo;
E vou de olhos enxutos e alma leve
À galharda conquista do teu beijo.


Poemas e Poesias domingo, 19 de maio de 2024

O PÃO DE CADA DIA (POEMA DO AMAZONENSE THIAGO MELLO)

O PÃO DE CADA DIA

Thiago Mello

 

 

 

 

Que o pão encontre na boca

o abraço de uma canção

construída no trabalho.

Não a fome fatigada

de um suor que corre em vão.

Que o pão do dia não chegue

sabendo a travo de luta

e a troféu de humilhação.

Que seja a bênção da flor

festivamente colhida

por quem deu ajuda ao chão.

Mais do que flor, seja fruto

que maduro se oferece,

sempre ao alcance da mão.

Da minha e da tua mão.


Poemas e Poesias terça, 07 de maio de 2024

TRANSUBSTANCIAÇÃO (POEMA DO FLUMINENSE RAUL DE LEÔNI)

TRANSUBSTANCIAÇÃO

Raul de Leôni

 

 

 

Esta chance em que existo há de tornar-se um dia,
Em húmus germinal, em seiva fecundante,
Decompondo-se em Pó, há de ser a energia
De vidas que sobre ela hão de viver adiante…

Será fonte, Princípio, a tábida apatia
De um movimento novo intérmino e constante,
Sua ruína será a feraz embriogenia
De outros tipos de Vida, instante para instante.

Há de um horto florir por sobre o seu passado.
Borboletas iriais e anêmonas olentes,
Vidas da minha Morte, eu mesmo transformado…

E, assim, irei buscando a Perfeição perdida,
Vivendo na Emoção de seres diferentes
Que a Morte é a transição da Vida para a Vida…


Poemas e Poesias segunda, 06 de maio de 2024

NOITE SONORA (POEMA DO PERNAMBUCANO OLEGÁRIO MARIANO)

NOITES SONORAS

Olegário Mariano

 

 

 

Anoiteceu. Pelas montanhas veio
Lentamente o crepúsculo caindo …
O céu, redondo e claro como um seio,
Ficou, de lindo que era, inda mais lindo.

O vale abriu-se em pirilampos cheio,
Luzindo aqui, e ali tremeluzindo …
No regaço da treva, úmido e feio,
A natureza adormeceu sorrindo …

As cigarras, na sombra, se calaram:
As árvores no bosque farfalharam
Na esperança de ouvi-las e de vê-las.

Caiu de todo a noite quieta … Agora,
O céu parece uma árvore sonora
De cigarras cantando nas estrelas …


Poemas e Poesias domingo, 05 de maio de 2024

O PUXADÔ DE RODA (POEMA DO CEARENSE PATATIVA DO ASSARÉ, COM O AUTOR) VÍDEO


Poemas e Poesias sábado, 04 de maio de 2024

A MISSÃO DE PURNA (POEMA DO CARIOCA OLAVO BILAC)

A MISSÃO DE PURNA

Olavo Bilac

 

Ora Buda, que, em prol da nova fé, levanta
Na Índia antiga o clamor de uma cruzada santa
Contra a religião dos brâmanes, – medita.

Imensa, em torno ao sábio, a multidão se agita:
E há nessa multidão, que enche a planície vasta,
Homens de toda a espécie, árias de toda a casta.

 

Todos os que (a princípio, enchia Brahma o espaço)
Da cabeça, do pé, da coxa ou do antebraço
Do deus vieram à luz para povoar a terra:
– Xátrias, de braço forte armado para a guerra;
Saquias, filhos de reis; leprosos perseguidos
Como cães, como cães de lar em lar corridos;
Os que vivem no mal e os que amam a virtude;
Os ricos de beleza e os pobres de saúde;
Mulheres fortes, mães ou prostitutas, cheio
De tentações o olhar ou de alvo leite o seio;

Guardadores de bois; robustos lavradores,
A cujo arado a terra abre em frutos e flores;
Crianças; anciãos; sacerdotes de Brahma;
Párias, sudras servis rastejando na lama;
– Todos acham amor dentro da alma de Buda,
E tudo nesse amor se eterniza e transmuda.
Porque o sábio, envolvendo a tudo, em seu caminho
Na mesma caridade e no mesmo carinho,
Sem distinção promete a toda a raça humana
A bem-aventurança eterna do Nirvana.

Ora, Buda medita.
À maneira do orvalho,
Que, na calma da noite, anda de galho em galho
Dando vida e umidade às árvores crestadas,
– Aos corações sem fé e às almas desgraçadas
Concede o novo credo a esperança do sono:
Mas… as almas que estão, no horrível abandono
Dos desertos, de par com os animais ferozes,
Longe de humano olhar, longe de humanas vozes,
A rolar, a rolar de pecado em pecado?.

Ergue-se Buda:
“Purna!”
O discípulo amado Chega:

“Purna! é mister que a palavra divina
Da água do mar de Omã à água do mar da China,
Longe do Indus natal e das margens do Ganges,
Semeies, através de dardos, e de alfanjes,
E de torturas!”

Purna ouve sorrindo, e cala.
No silêncio em que está, um sonho doce o embala.
No profundo clarão do seu olhar profundo
Brilham a ânsia da morte e o desprezo do mundo.
O corpo, que O rigor das privações consome,
Esquelético, nu, comido pela fome,
Treme, quase a cair como um bambu com o vento;
E erra-lhe à flor da boca a luz do firmamento
Presa a um sorriso de anjo.

 

E ajoelha junto ao Santo:
Beija-lhe o pó dos pés, beija-lhe o pó do manto.
“Filho amado! – diz Buda – essas bárbaras gentes
São grosseiras e vis, são rudes e inclementes;
Se os homens (que, em geral, são maus os homens todos)
Te insultarem a crença, e a cobrirem de apodos,
Que dirás, que farás contra essa gente inculta?”

“Mestre! direi que é boa a gente que me insulta,
Pois, podendo ferir-me, apenas me injuria…”
“Filho amado! e se a injúria abandonando, um dia
Um homem te espancar, vendo-te fraco e inerme,
E sem piedade aos pés te pisar, como a um verme?”

“Mestre! direi que é bom o homem que me magoa,
Pois, podendo ferir-me, apenas me esbordoa…”
“Filho amado! e se alguém, vendo-te agonizante,
Te furar com um punhal a carne palpitante?”

“Mestre! direi que é bom quem minha carne fura,
Pois, podendo matar-me, apenas me tortura…”
“Filho amado! e se, enfim, sedentos de mais sangue,
Te arrancarem ao corpo enfraquecido e exangue
O último alento, o sopro último da existência,
Que dirás, ao morrer, contra tanta inclemência?”

“Mestre! direi que é bom quem me livra da vida.
Mestre! direi que adoro a mão boa e querida,
Que, com tão pouca dor, minha carne cansada
Entrega ao sumo bem e à suma paz do Nada!”

“Filho amado! – diz Buda – a palavra divina,
Da água do mar de Omã à água do mar da China,
Longe do Indus natal e dos vales do Ganges,
Vai levar, através de dardos e de alfanjes!
Purna! ao fim da Renúncia e ao fim da Caridade
Chegaste, estrangulando a tua humanidade!
Tu, sim! podes partir, apóstolo perfeito,
Que o Nirvana já tens dentro do próprio peito,
E és digno de ir pregar a toda raça humana
A bem-aventurança eterna do Nirvana!”


Poemas e Poesias sexta, 03 de maio de 2024

POEMINHA SENTIMENTAL (POEMA DO GAÚCHO MÁRIO QUINTANA)

POEMINHA SENTIMENTAL

Mário Quintana

 

O meu amor, o meu amor, Maria
É como um fio telegráfico da estrada
Aonde vêm pousar as andorinhas
De vez em quando chega uma
E canta
(Não sei se as andorinhas cantam, mas vá lá!)
Canta e vai-se embora
Outra, nem isso,
Mal chega, vai-se embora.
A última que passou
Limitou-se a fazer cocô
No meu pobre fio de vida!
No entanto, Maria, o meu amor é sempre o mesmo:
As andorinhas é que mudam.

 


Poemas e Poesias quinta, 02 de maio de 2024

LETRA PARA UMA VALSA ROMÂNTICA (POEMA DO PERNAMBUCANO MANUEL BANDEIRA)

LETRA PARA UMA VALSA ROMÂNTICA

Manuel Bandeira

 

 

 

A tarde agoniza
Ao santo acalanto
Da noturna brisa.
E eu, que também morro,
Morro sem consolo,
Se não vens, Elisa!

Ai nem te humaniza
O pranto que tanto
Nas faces desliza
Do amante que pede
Suplicantemente
Teu amor, Elisa!

Ri, desdenha, pisa!
Meu canto, no entanto,
Mais te diviniza,
Mulher diferente,
Tão indiferente,
Desumana Elisa!


Poemas e Poesias quinta, 02 de maio de 2024

PERALTAGEM (POEMA DO MATO-GROSSENSE MANOEL DE BARROS)

PERALTAGEM

Manoel de Barros

 

 

 

O canto distante da sariema encompridava a tarde.
E porque a tarde ficasse mais comprida a gente sumia dentro dela.
E quando o grito da mãe nos alcançava a gente já estava do outro lado do rio.
O pai nos chamou pelo berrante.
Na volta fomos encostando pelas paredes da casa pé ante pé.
Com receio de um carão do pai.
Logo a tosse do vô acordou o silêncio da casa.
Mas não apanhamos nem.
E nem levamos carão nem.
A mãe só que falou que eu iria viver leso fazendo só essas coisas.
O pai completou: ele precisava de ver outras
coisas além de ficar ouvindo só o canto dos pássaros.
E a mãe disse mais: esse menino vai passar a vida enfiando água no espeto!
Foi quase.


Poemas e Poesias quarta, 01 de maio de 2024

LONDRES (POEMA DO CARIOCA LUÍS GUIMARÃES JÚNIOR)

LONDRES

Luís Guimarães Júnior

 

 

 

Como um gigante suarento, dorme
Nos pardos mantos d'uma névoa estranha,
A Cidade opulenta em cuja entranha
Rasteja a fome como um verme enorme.

Dos lampeões à dúbia claridade,
Passam, repassam vultos cautelosos:
Este procura no mistério os gozos,
Procura aquele um pão, na realidade.

Contra o cais solitário o rio escuro
Geme convulso e espuma,—e novamente
Volta a gemer, de encontro ao velho muro;

Retine o oiro:—vela a Indústria ingente,
Cresce a miséria, e aumenta o vício impuro...
Oh milionária Londres indigente!


Poemas e Poesias terça, 30 de abril de 2024

O DESPERTAR DA VIRGEM (POEMA DO PORTUGUÊS JÚLIO DINIS)

O DESPERTAR DA VIRGEM

Júlio Dinis

 

 

 

Que é isto? que sentimento
Me faz palpitar o seio?
Meu Deus, meu Deus, porque anseio?
A que aspira o coração?
Que me revela este fogo,
Esta vaga inquietação?

Da vida a clara corrente Porque é que se perturba? Porque, fugindo
da turba,
Eu só folgo ao ver-me a sós, Escutando ignotas falas
De não sei que estranha voz?

Inda há pouco me apraziam
Da alegre infância os folguedos;
Hoje não sei que segredos
O coração me prediz.
Enfadam-me as alegrias
Desses tempos infantis.

Às horas do fim do dia, Quando o Sol no mar declina E d’áurea
luz ilumina
Todo o horizonte ao redor, Porque me sinto enleada Num indizível langor?

De manhã, quando nas selvas
O dia desperta as aves,
E mil aromas suaves
Sobem dos campos ao céu,
Porque sinto ante meus olhos
Estender-se húmido véu?

E esta imagem resplendente, Que sorrir-me em sonhos vejo, Ai, tão
bela que desejo
Sempre mais tempo sonhar!
Quem é que em tão mago enleio
Me faz, sem querer, sonhar?

Este ansiar incessante,
Esta esp’rança inda tão ‘vaga
De gozos, que a mente alaga,
Mal lhe sabendo o valor,
Este ignoto sentimento…
Deus do Céu, será o amor?

Amor! que palavra é esta, Que ela só me sobressalta E mil
sensações exalta Desconhecidas pra mim…
Que poder mágico encerra
Para me agitar assim?

É o amor o sentimento Que me faz arfar o seio? Este gozo por que
anseio
E a que aspira o coração? É pois amor este fogo,
Esta vaga inquietação?

Nota do Autor. – Não sou por certo eu o melhor juiz da verdade desta poesia,
crevi-a de palpite. Julgue-a quem pode .


Poemas e Poesias segunda, 29 de abril de 2024

NÃO DESPERDICES A VIDA (POEMA DO ACRIANO J. G. DE ARAÚJO JORGE)

 

NÃO DESPERDICES A VIDA

J. G. de Araújo Jorge

 

 

Não te esqueças que a vida é um momento que voa
um efêmero instante de beleza e alento;
vive pois sem temor e com desprendimento
o que ela te ofertar, sem maldize-la à-toa!

E' uma nuvem que muda aos caprichos do vento!
Se hoje a perdes... O tempo nunca te perdoa!
Vida! Repara bem como a palavra soa!
Não temas pronunciá-la com deslumbramento!

Há alguém, não sei quem é, mas disto estou seguro,
que nos há de intimar num remoto futuro
a dar contas da vida que um dia ganhamos...

E após tal julgamento estranho, com certeza
havemos de sofrer e pagar, se em defesa
não der-mos as razões porque a desperdiçamos...


Poemas e Poesias domingo, 28 de abril de 2024

TENTA-ME DE NOVO (POEMA DA PAULISTA HILDA HILST)

 

 

 

E por que haverias de querer minha alma
Na tua cama?
Disse palavras líquidas, deleitosas, ásperas
Obscenas, porque era assim que gostávamos.
Mas não menti gozo prazer lascívia
Nem omiti que a alma está além, buscando
Aquele Outro. E te repito: por que haverias
De querer minha alma na tua cama?
Jubila-te da memória de coitos e acertos.
Ou tenta-me de novo. Obriga-me.


Poemas e Poesias sábado, 27 de abril de 2024

ROSA (POEMA DO SERGIPANO HERMES FONTES)

ROSA

Hermes Fontes

 

 

 

Rosa do meu Jardim, que ardes na minha Jarra,
filha do meu afã, mártir do meu amor!
Minha grande paixão egoísta te desgarra
as pétalas, te aspira o segredo interior.

Pois que estamos a sós — eu volúvel cigarra,
tu, borboleta rubra estacionada em flor —
deveras ter comigo uma folha de parra,
a fim de preservar-te a beleza e o pudor...

Pois que! tão nua assim, tão fresca e tão punícea,
rosa da Tentação, rosa da Impudicícia,
és o próprio Pecado: e há virtude em pecar...

— Pecar morrendo em ti, sangrando em teus espinhos,
remindo num Desejo os desejos mesquinhos,
gozando pelo Olfato e amando pelo Olhar...


Poemas e Poesias sexta, 26 de abril de 2024

NAUREZA-MORTA (POEMA DO PAULISTA GUILHERME DE ALMEIDA)

NATUREZA MORTA

Guilherme de Almeida

 

 

 

Na sala fechada ao sol seco do meio-dia
sobre a ingenuidade da faiança portuguesa
os frutos cheiram violentamente e a toalha é fria
e alva na mesa.

Há um gosto áspero de ananases e um brilho fosco
de uvaias flácidas
e um aroma adstringente de cajus, de pálidas
carambolas de âmbar desbotado e um estalo oco
de jaboticabas de polpa esticada e um fogo
bravo de tangerinas.

E sobre esse jogo
de cores, gostos e perfumes a sala toma
a transparência abafada de uma redoma.


Poemas e Poesias quinta, 25 de abril de 2024

OS AZRGONAUTAS (POEMA DA PAULISTA FRANCISCA JÚLIA)

OS ARGONAUTAS

Francisca Júlia

 

 

 

Mar fora, ei-los que vão, cheios de ardor insano;

Os astros e o luar — amigos sentinelas —

Lançam bênçãos de cima às largas caravelas

Que rasgam fortemente a vastidão do oceano.

 

Ei-los que vão buscar noutras paragens belas

Infindos cabedais de algum tesouro arcano...

E o vento austral que passa, em cóleras, ufano,

Faz palpitar o bojo às retesadas velas.

 

Novos céus querem ver, miríficas belezas,

Querem também possuir tesouros e riquezas

Como essas naus, que têm galhardetes e mastros...

 

Ateiam-lhes a febre essas minas supostas...

E, olhos fitos no vácuo, imploram, de mãos postas,

A áurea bênção dos céus e a proteção dos astros...


Poemas e Poesias quarta, 24 de abril de 2024

PELO TELEFONE (POEMA DA CARIOCA GILKA MACHADO)

PELO TELEFONE

Gilka Machado

 

 

 

Ignoro quem tu és,
de onde vens,
aonde irás;
amo-te pelo enigma pertinaz
que em ti me atrai e me intimida,
por essa música mendaz
de tua voz
que alvoroçou minha audição
e me vem desviando a vida
de seu destino de solidão.

Ignoro quem tu és,
de onde vens,
aonde irás...
Fala-me sempre,
mente mais;
não te posso exprimir o pavor que me invade,
as aflições que me consomem,
ao meditar na triste realidade
de que deve ser feita
essa tua alma de homem.

Ignoro quem tu és,
de onde vens,
aonde irás,
audaz
desconhecido;
tua palavra mente ao meu ouvido,
mas não mente essa voz que me treslouca!
— Ela é o amor que me chama por tua boca,
num apelo tristonho,
de saudade;
é a exortação do sonho
à minha rara sensibilidade.
Ignoro quem tu és,
de onde vens,
aonde irás:
amo a ilusão que tua voz me traz.
a falsidade em que procuro crer.

Fala-me sempre, mente mais,
que de mim só mereces tanto apreço,
ó nebuloso, porque desconheço
as humanas misérias de teu ser!

Mas nesta solidão a que me imponho,
quando quedo em silêncio
a te aguardar a voz,
como se torna teu enigma atroz,
que ânsia de estrangular este formoso sonho,
de transpor os espaços,
de bem te conhecer,
de me atirar depressa,
inteira,
nos teus braços,
de te possuir só para te esquecer!...



Poemas e Poesias terça, 23 de abril de 2024

EU (POEMA DA PORTGUESA FLORBELA ESPANCA)

EU

Florbela Espanca

 

 

 

Eu sou a que no mundo anda perdida
Eu sou a que na vida não tem norte
Sou a irmã do Sonho, e desta sorte
Sou a crucificada... a dolorida

Sombra de névoa ténue e esvaecida
E que o destino amargo, triste e forte
Impele brutalmente para a morte!
Alma de luto sempre incompreendida!

Sou aquela que passa e ninguém vê
Sou a que chamam triste sem o ser
Sou a que chora sem saber porquê

Sou talvez a visão que Alguém sonhou
Alguém que veio ao mundo pra me ver
E que nunca na vida me encontrou!


Poemas e Poesias segunda, 22 de abril de 2024

O POÇO DOS MEDEIROS (POEMA DO MARANHENSE FERREIRA GULLAR)

O POÇO DOS MEDEIROS

Ferreira Gullar

 

 

Não quero a poesia, o capricho

do poema: quero

reaver a manhã que virou lixo

 

           quero a voz

a tua a minha

aberta no ar como fruta na casa

fora da casa

                  a voz

dizendo coisas banais

entre risos e ralhos

na vertigem do dia;

                            não a poesia

o poema o discurso limpo

onde a morte não grita

 

 

                                    A mentira

 

não me alimenta:

 

                           alimentam-me

 

as águas

             ainda que sujas e rasas

             afogadas

             do velho poço

             hoje entulhado

             onde outrora sorrimos


Poemas e Poesias domingo, 21 de abril de 2024

DOBRE (POEMA DO PORTUGUÊS FERNANDO PESSOA)

DOBRE

Fernando Pessoa

 

 

Peguei no meu coração

E pu‑lo na minha mão,

 

Olhei‑o como quem olha

Grãos de areia ou uma folha.

 

Olhei‑o pávido e absorto

Como quem sabe estar morto;

 

Com a alma só comovida

Do sonho e pouco da vida.


Poemas e Poesias sábado, 20 de abril de 2024

TRISTEZA (POEMA DO FLUMINENSE EUCLIDES DA CUNHA)

TRISTEZA

Euclides da Cunha

 

 

 

Ai! quanta vez – pendida a fronte fria
– Coberta cedo do cismar p'los rastros –
Deixo minh'alma, na asa da poesia,
Erguer-se ardente em divinal magia
À luminosa solidão dos astros!…
Infeliz mártir de fatais amores
Se ergue – sublime – em colossal anseio,
Do alto infinito aos siderais fulgores
E vai chorar de terra atroz as dores
Lá das estrelas no rosado seio!


É nessa hora, companheiro, bela,
Que ela a tremer – no seio da soedade
– Fugindo à noite que a meu seio gela –
Bebe uma estrofe ardente em cada estrela,
Soluça em cada estrela uma saudade…

É nessa hora, a deslizar, cansado,
Preso nas sombras de um presente escuro
E sem sequer um riso em lábio amado _
Que eu choro – triste – os risos do passado,
Que eu adivinho os prantos do futuro!…


Poemas e Poesias sexta, 19 de abril de 2024

TROVAS HUMORÍSTICAS - 27 - (POEMA DO PARANAENSE ENO TEODORO WANKE)

 

 

TROVA HUMORÍSTICA 27

Eno Teodoro Wanke

 

Certa vez, um camarada

Tão magrinho, (ai, quão magrinho)

Indo tomas Lamoanda

Caiu pelo canudinho

 


Poemas e Poesias quinta, 18 de abril de 2024

SÍNTESE (POEMA DO PIAUIENSE DA COSTA E SILVA)

 

 

 

Tornei-me espelho do mundo,
Desde que o meu pensamento
Ficou límpido e profundo
Como o azul do firmamento.


Poemas e Poesias quinta, 18 de abril de 2024

CRISTAIS (POEMA DO CATARINENSE CRUZ E SOUSA)

CRISTAIS

Cruz e Sousa

 

 

Mais claro e fino do que as finas pratas
o som da tua voz deliciava...
Na dolência velada das sonatas
como um perfume a tudo perfumava.

Era um som feito luz, eram volatas
em lânguida espiral que iluminava,
brancas sonoridades de cascatas...
Tanta harmonia melancolizava.

Filtros sutis de melodias, de ondas
de cantos volutuosos como rondas
de silfos leves, sensuais, lascivos...

Como que anseios invisíveis, mudos,
da brancura das sedas e veludos,
das virgindades, dos pudores vivos.


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