Almanaque Raimundo Floriano
Fundado em 24.09.2016
(Cultural, sem fins comerciais, lucrativos ou financeiros)


Raimundo Floriano de Albuquerque e Silva, Editor deste Almanaque, também conhecido como Velho Fulô, Palhaço Seu Mundinho e Mundico Trazendowski, nascido em Balsas , Maranhão, a 3 de julho de 1936, Católico Apostólico Romano, Contador, Oficial da Reserva do Exército Brasileiro, Funcionário Público aposentado da Câmara dos Deputados, Titular da Cadeira nº 10 da Academia Passa Disco da Música Nordestina, cuja patrona é a cantora Elba Ramalho, Mestre e Fundador da Banda da Capital Federal, Pesquisador da MPB, especializado em Velha Guarda, Música Militar, Carnaval e Forró, Cardeal Fundador da Igreja Sertaneja, Pioneiro de Brasília, Xerife nos Mares do Caribe, Cordelista e Glosador, Amigo do Rio das Balsas, Inventor da Descida de Boia, em julho de 1952, Amigo da Fanfarra do 1° RCG, autor dos livros O Acordo PDS/PTB, coletânea de charges, Sinais de Revisão e Regras de Pontuação, normativo, Do Jumento ao Parlamento, com episódios da vida real, De Balsas para o Mundo, centrado na navegação fluvial Balsas/Oceano Atlântico, Pétalas do Rosa, saga da Família Albuquerque e Silva, Memorial Balsense, dedicado à história de sua terra natal, e Caindo na Gandaia, humorístico apimentado, é casado, tem quatro filhos, uma nora, dois genros e dois netos e reside em Brasília, Distrito Federal, desde dezembro de 1960.

Poemas e Poesias quarta, 17 de abril de 2024

ROMANCE XXI DAS IDEIAS (POEMA DA CARIOCA CECÍLIA MEIRELES)

 

 

 

ROMANCE XXI DAS IDEIAS

Cecília Meireles

(Grafia original)

 

A vastidão desses campos.
A alta muralha das serras.
As lavras inchadas de ouro.
Os diamantes entre as pedras.
Negros, índios e mulatos.
Almocrafes e gamelas.

Os rios todos virados.
Toda revirada, a terra.
Capitães, governadores,
padres intendentes, poetas.
Carros, liteiras douradas,
cavalos de crina aberta.
A água a transbordar das fontes.
Altares cheios de velas.
Cavalhadas. Luminárias.
Sinos, procissões, promessas.
Anjos e santos nascendo
em mãos de gangrena e lepra.
Finas músicas broslando
as alfaias das capelas.
Todos os sonhos barrocos
deslizando pelas pedras.
Pátios de seixos. Escadas.
Boticas. Pontes. Conversas.
Gente que chega e que passa.
E as idéias.

Amplas casas. Longos muros.
Vida de sombras inquietas.
Pelos cantos da alcovas,
histerias de donzelas.
Lamparinas, oratórios,
bálsamos, pílulas, rezas.
Orgulhosos sobrenomes.
Intrincada parentela.
No batuque das mulatas,
a prosápia degenera:
pelas portas dos fidalgos,
na lã das noites secretas,
meninos recém-nascidos
como mendigos esperam.
Bastardias. Desavenças.
Emboscadas pela treva.
Sesmarias, salteadores.
Emaranhadas invejas.
O clero. A nobreza. O povo.
E as idéias.

E as mobílias de cabiúna.
E as cortinas amarelas.
Dom José. Dona Maria.
Fogos. Mascaradas. Festas.
Nascimentos. Batizados.
Palavras que se interpretam
nos discursos, nas saúdes . . .
Visitas. Sermões de exéquias.
Os estudantes que partem.
Os doutores que regressam.
(Em redor das grandes luzes,
há sempre sombras perversas.
Sinistros corvos espreitam
pelas douradas janelas.)
E há mocidade! E há prestígio.
E as idéias.

As esposas preguiçosas
na rede embalando as sestas.
Negras de peitos robustos
que os claros meninos cevam.
Arapongas, papagaios,
passarinhos da floresta.
Essa lassidão do tempo
entre imbaúbas, quaresmas,
cana, milho, bananeiras
e a brisa que o riacho encrespa.
Os rumores familiares
que a lenta vida atravessam:
elefantíase; partos;
sarna; torceduras; quedas;
sezões; picadas de cobras;
sarampos e erisipelas . . .
Candombeiros. Feiticeiros.
Ungüentos. Emplastos. Ervas.
Senzalas. Tronco. Chibata.
Congos. Angolas. Benguelas.
Ó imenso tumulto humano!
E as idéias.

Banquetes. Gamão. Notícias.
Livros. Gazetas. Querelas.
Alvarás. Decretos. Cartas.
A Europa a ferver em guerras.
Portugal todo de luto:
triste Rainha o governa!
Ouro! Ouro! Pedem mais ouro!
E sugestões indiscretas:
Tão longe o trono se encontra!
Quem no Brasil o tivera!
Ah, se Dom José II
põe a coroa na testa!
Uns poucos de americanos,
por umas praias desertas,
já libertaram seu povo
da prepotente Inglaterra!
Washington. Jefferson. Franklin.
(Palpita a noite, repleta
de fantasmas, de presságios . . .)
E as idéias.

Doces invenções da Arcádia!
Delicada primavera:
pastoras, sonetos, liras,
— entre as ameaças austeras
de mais impostos e taxas
que uns protelam e outros negam.
Casamentos impossíveis.
Calúnias. Sátiras. Essa
paixão da mediocridade
que na sombra se exaspera.
E os versos de asas douradas,
que amor trazem e amor levam . . .
Anarda. Nise. Marília . . .
As verdades e as quimeras.
Outras leis, outras pessoas.
Novo mundo que começa.
Nova raça. Outro destino.
Planos de melhores eras.
E os inimigos atentos,
que, de olhos sinistros, velam.
E os aleives. E as denúncias.
E as idéias.

 


Poemas e Poesias terça, 16 de abril de 2024

ÉLIO FERNANDES (IN MEMORIAM) - POSTAGEM DO ESCRITOR TERESINENSE JANCLERQUES MARINHO)

 

Élio Ferreira (In Memórian)

 

 

Por - Dr. Irapuá 

Elio Ferreira de Sousa,

Ou como preferir,

Professor Elio

Poeta Elio 

Elio 

Ou simplesmente “Seu Elio”

Filho mais novo de Aluísio e Inês Ferreira, 

Ferreiro

Capoeirista 

Professor 

Poeta 

Pai

O pai do Irapuá, da Egbara, do Ricarte;

Mas também, o pai/figura paterna de muitos parentes, sobrinhos, alunos e amigos;

Tantos papéis o senhor exerceu de forma ímpar. 

O senhor sempre tinha a palavra certa e se despediu nos dando aula. Em mais de 4 anos de doença, nunca vi uma expressão de raiva. Sempre a mesma paz, calma e serenidade. Uma positividade, espiritualidade e fé inabaláveis. Algo sobrenatural, eu diria. Não à toa, vários amigos incrédulos vieram perguntar ontem: “O Élio estava doente?”

O senhor foi uma referência e  inspiração a várias gerações. Um exemplo de ética e dono de uma dedicação inigualável, algo sobre-humano. O seu exemplo mudou a  minha vida e de muitos. 

Nada representa mais o senhor do que essa cena. Poucas horas antes de ir para UTI, com febre, disfunção renal e falta de ar,  participou de uma banca de doutorado na Universidade de Coimbra. Ao final, deitou - se e riu como se tivesse cumprido mais uma missão. Um amigo que o ajudou, estupefato com tamanha resiliência, disse que não sabia de onde tirava tanta forças.

Tudo me faz lembrar o senhor, mas algumas nunca saem da minha mente:

Por onde passou deixou amigos. Fazia amizade até durante um vôo de poucas horas.

Andava sempre com um livro na mão. Tivesse que parar por alguns minutos, já poderia produzir, como dizia. 

A sua empatia, generosidade e humanidade eram marcantes. A igualdade racial e social foram as lutas da sua vida. Lembro a primeira vez que fui aos EUA estudar e o senhor ao telefone me disse que deveria  ajudar os mendigos perto da minha casa: “Meu filho, todo mendigo é universal. Você tem que ajudar.”

Meu coração está dilacerado de dor, pois perdi uma parte do meu ser. Ao mesmo tempo, uma PAZ e GRATIDÃO estão dentro de mim por Deus, pelo Universo e Olorum terem permitido vir a esse mundo como seu filho. O senhor cumpriu sua missão. A passagem foi breve mas o suficiente para deixar sua marca por onde passou. A sua obra e legado o eternizarão.

“Abracadaba.Abra.Abracadabra”

 


Poemas e Poesias domingo, 14 de abril de 2024

JESUÍTAS (POEMA DO BAIANO CASTRO ALVES)

JESUÍTAS

Castro Alves

 

 

 

(século XIII)

Ó mês frères, je viens vous apporter mon Dieu,
Je viens vous apporter ma tête!
V. Hugo
(Châtiments)

Quando o vento da Fé soprava Europa,
Como o tufão, que impele ao ar a tropa
Das águias, que pousavam no alcantil;
Do zimbório de Roma — a ventania
O bando dos Apostlos sacudia
Aos cerros do Brasil.

Tempos idos! Extintos luzimentos!
O pó da catequese aos quatro ventos
Revoava nos céus...
Floria após na India, ou na Tartária,
No Mississipi, no Peru, na Arábia
Uma palmeira — Deus! —

O navio maltês, do Lácio a vela,
A lusa nau, as quinas de Castela,
Do Holandês a galé
Levava sem saber ao mundo inteiro
Os vândalos sublimes do cordeiro,
Os átilas da fé.

Onde ia aquela nau? — Ao Oriente.
A outra? — Ao pólo. A outra? — Ao ocidente.
Outra? — Ao norte. Outra? — Ao sul.
E o que buscava? A foca além no pólo;
O âmbar, o cravo no indiano solo,
Mulheres em Stambul.

Ouro — na Austrália; pedras — em Misora!. .
"Mentira!" respondia em voz canora
O filho de Jesus...
"Pescadores!... nós vamos no mar fundo
"Pescar almas pra o Cristo em todo mundo,
"Com um anzol — a cruz —!"

Homens de ferro! Mal na vaga fria
Colombo ou Gama um trilho descobria
Do mar nos escarcéus,
Um padre atravessava os equadores,
Dizendo: "Gênios!... sois os batedores
Da matilha de Deus."

Depois as solidões surpresas viam
Esses homens inermes, que surgiam
Pela primeira vez.
E a onça recuando sesgueirava
Julgando o crucifixo... alguma clava
Invencível talvez!

O martírio, o deserto, o cardo, o espinho,
A pedra, a serpe do sertão maninho,
A fome, o frio, a dor,
Os insetos, os rios, as lianas,
Chuvas, miasmas, setas e savanas,
Horror e mais horror ...

Nada turbava aquelas frontes calmas,
Nada curvava aquelas grandes almas
Voltadas pra amplidão...
No entanto eles só tinham na jornada
Por couraça — a sotaina esfarrapada...
E uma cruz — por bordão.

Um dia a taba do Tupi selvagem
Tocava alarma... embaixo da folhagem
Rangera estranho pé...
O caboclo da rede ao chão saltava,
A seta ervada o arco recurvava...
Estrugia o boré.

E o tacape brandindo, a tribo fera
De um tigre ou de um jaguar ficava à espera
Com gesto ameaçador...
Surgia então no meio do terreiro
O padre calmo, santo, sobranceiro,
O Piaga do amor.

Quantas vezes então sobre a fogueira,
Aos estalos sombrios da madeira,
Entre o fumo e a luz...
A voz do mártir murmurava ungida
"Irmãos! Eu vim trazer-vos — minha vida...
Vim trazer-vos — Jesus!"

Grandes homens! Apóstolos heróicos!...
Eles diziam mais do que os estóicos:
"Dor, — tu és um prazer!
"Grelha, — és um leito! Brasa, — és uma gema!
Cravo, — és um cetro! Chama, — um diadema
Ó morte, — és o viver!"

Outras vezes no eterno itinerário
O sol, que vira um dia no Calvário
Do Cristo a santa cruz,
Enfiava de vir achar nos Andes
A mesma cruz, abrindo os braços grandes
Aos índios rubros, nus.

Eram eles que o verbo do Messias
Pregavam desde o vale às serranias,
Do pólo ao Equador...
E o Niagara ia contar aos mares...
E o Chimborazo arremessava aos ares
O nome do Senhor!...


Poemas e Poesias sábado, 13 de abril de 2024

BERÇO E TÚMULO (POEMA DO FLUMINENSE CASIMIRO DE ABREU)

BERÇO E TÚMULO

Casimiro de Abreu

(Grafia origina)

 

 

 

Trago-te flores no meu canto amigo
— Pobre grinalda com prazer tecida —
E — todos amores — desponta num beijo
Na fronte pura em que desponta a vida.

E cedo ainda! — quando moça fores
E percorreres deste livro os cantos,
Talvez que eu durma solitário e mudo
— Lírio pendido a quem ninguém deu prantos!.

Então, meu anjo, compassiva e meiga
Despõe-me um goivo sobre a cruz singela,
E nesse ramo que o sepulcro implora
Paga-me as rosas desta infância bela!

 


Poemas e Poesias sexta, 12 de abril de 2024

SONETO PARA GRETA GARBO (POEMA DO PERNAMBUCANO CARLOS PENA FILHO)

SONETO PARA GRETA GARBO

Carlos Pena Filho

 

 

 

Entre silêncio e sombra se devora
e em longínquas lembranças se consome
tão longe que esqueceu o próprio nome
e talvez já não sabe por que chora

Perdido o encanto de esperar agora 
o antigo deslumbrar que já não cabe
transforma-se em silêncio por que sabe
que o silêncio se oculta e se evapora

Esquiva e só como convém a um dia
despregado do tempo, esconde a tua face
que já foi sol e agora é cinza fria

Mas vê nascer da sombra outra alegria 
como se o olhar magoado contemplasse
o mundo em que viveu, mas que não via.

 


Poemas e Poesias quinta, 11 de abril de 2024

STAND-UP COM POESIA (POEMAS DO COLUNISTA FRANCISCO ITAERÇO)

STAND-UP COM POESIA
Francisco Itaerço
 

NADA A VER NEM HAVER

Moço, não tem nada a ver
Juro, o cu com as calças
Se a cueca está no meio.
Assim como não tem haver
Na minha conta bancária
A dita está no vermelho.

* * *

QUEM SOMOS

Todos somos
Como somos
Cromossomos
Mal nascemos
Somos sonhos
Mal andamos
Tropeçamos
E caímos
Levantamos
E seguimos
Mal crescemos
Envelhecemos
E nada somos
Mas já fomos

* * *

BONS LADRÕES

Quando nos encontramos
Bebemos e fumamos
O cachimbo da paz.

Pecado eu não vejo
Te roubo um beijo
Aproveito o ensejo
Pra te roubar algo mais

Você, por sua vez
Me rouba um abraço,
Um carinho, um amasso…
To nem aí, tanto faz.

Se pecamos os dois
É pra não pecarmos só
Peco eu e você
Pecamos nós.


Poemas e Poesias quarta, 10 de abril de 2024

CONSOLO DA PRAIA (POEMA DO MINEIRO CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE)

CONSOLO NA PRAIA

Caros Drummond de Andrade

 

 

 

Vamos, não chores
A infância está perdida
A mocidade está perdida
Mas a vida não se perdeu

O primeiro amor passou
O segundo amor passou
O terceiro amor passou
Mas o coração continua

Perdeste o melhor amigo
Não tentaste qualquer viagem
Não possuis carro, navio, terra
Mas tens um cão

Algumas palavras duras
Em voz mansa, te golpearam
Nunca, nunca cicatrizam
Mas e o humor?

A injustiça não se resolve
À sombra do mundo errado
Murmuraste um protesto tímido
Mas virão outros

Tudo somado
Devias precipitar-te, de vez, nas águas
Estás nu na areia, no vento
Dorme, meu filho

 
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não chores
A infância está perdida
A mocidade está perdida
Mas a vida não se perdeu

O primeiro amor passou
O segundo amor passou
O terceiro amor passou
Mas o coração continua

Perdeste o melhor amigo
Não tentaste qualquer viagem
Não possuis carro, navio, terra
Mas tens um cão

Algumas palavras duras
Em voz mansa, te golpearam
Nunca, nunca cicatrizam
Mas e o humor?

A injustiça não se resolve
À sombra do mundo errado
Murmuraste um protesto tímido
Mas virão outros

Tudo somado
Devias precipitar-te, de vez, nas águas
Estás nu na areia, no vento
Dorme, meu filho

 

Poemas e Poesias terça, 09 de abril de 2024

SONETO 149 - EM FLOR VOS ARRANCOU, DE ENTÃO CRESCIDA (PORME DO PORTUGUÊS LUÍS DE CAMÕES)
 
 
SONETO 149 - EM FLOR VOS ARRANCOU, DE ENTÃO CRESCIDA (PORME DO PORTUGUÊS LUÍS DE CAMÕES)
 
 
Luís de Camões
 
 
SONETO 149 - EM FLOR VOS ARRANCOU, DE ENTÃO CRESCIDA (PORME DO PORTUGUÊS LUÍS DE CAMÕES)
Grafia original
 
 
Em flor vos arrancou, de então crescida,
(Ah Senhor Dom Antonio!) a dura sorte
Donde fazendo andava o braço forte
A fama dos antiguos esquecida.

Huma só razão tenho conhecida
Com que tamanha mágoa se conforte:
Que se no Mundo havia honrada morte,
Não podieis vós ter mais larga vida

Se meus humildes versos podem tanto
Que co'o desejo meu se iguale a arte,
Especial materia me sereis

E celebrado em triste e longo canto,
Se morrestes nas mãos do fero Marte,
Na memoria das gentes vivireis.
 
 
 
 

 

 

 

Poemas e Poesias segunda, 08 de abril de 2024

CEM TROVAS - 017 (POEMA DO MINEIRO BELMIRO BRAGA)

 

 

TROVA 017

Belmiro Braga

 

Vivo, encheu (a História o prova)
com suas glórias o mundo,
e, morto, não enche a cova
de quatro palmos de fundo.


Poemas e Poesias domingo, 07 de abril de 2024

BARCAROLA (POEMA DO PARAIBANO AUGUSTO DOS ANJOS)

BARCAROLA

Augusto dos Anjos

 

 

 

Cantam nautas, choram flautas
Pelo mar e pelo mar
Uma sereia a cantar
Vela o Destino dos nautas.

Espelham-se os esplendores
Do céu, em reflexos, nas
Águas, fingindo cristais
Das mais deslumbrantes cores.

Em fulvos filões doirados
Cai a luz dos astros por
Sobre o marítimo horror
Como globos estrelados.

Lá onde as rochas se assentam
Fulguram como outros sóis
Os flamívomos faróis
Que os navegantes orientam.

Vai uma onda, vem outra onda
E nesse eterno vaivém
Coitadas! não acham quem,
Quem as esconda, as esconda...

Alegoria tristonha
Do que pelo Mundo vai!
Se um sonha e se ergue, outro cai;
Se um cai, outro se ergue e sonha.

Mas desgraçado do pobre
Que em meio da Vida cai!
Esse não volta, esse vai
Para o túmulo que o cobre.

Vagueia um poeta num barco.
O Céu, de cima, a luzir
Como um diamante de Ofír
Imita a curva de um arco.

A Lua - globo de louça -
Surgiu, em lúcido véu.
Cantam! Os astros do Céu
Ouçam e a Lua Cheia ouça!

Ouça do alto a Lua Cheia
Que a sereia vai falar...
Haja silêncio no mar
Para se ouvir a sereia.

Que é que ela diz?!
Será uma História de amor feliz?
Não! O que a sereia diz
Não é história nenhuma.

É como um réquiem profundo
De tristíssimos bemóis...
Sua voz é igual à voz
Das dores todas do mundo.

Fecha-te nesse medonho
Reduto de Maldição,
Viajeiro da Extrema-Unção,
Sonhador do último sonho!

Numa redoma ilusória
Cercou-te a glória falaz,
Mas nunca mais, nunca mais
Há de cercar-te essa glória!

Nunca mais! Sê, porém, forte.
O poeta é como Jesus!
Abraça-te à tua Cruz
E morre, poeta da Morte! -

E disse e porque isto disse
O luar no Céu se apagou...
Súbito o barco tombou
Sem que o poeta o pressentisse!

Vista de luto o Universo
E Deus se enlute no Céu!
Mais um poeta que morreu,
Mais um coveiro do Verso!

Cantam nautas, choram flautas
Pelo mar e pelo mar
Uma sereia a cantar
Vela o Destino dos nautas!


Poemas e Poesias sábado, 06 de abril de 2024

O FANTASMA (POEMA DO PAULISTA ÁLVARES DE AZEVEDO)

O FANTASMA

Álvares de Azevedo

 

 

Sou o sonho de tua esperança,
Tua febre que nunca descansa,
O delírio que te há de matar!...
O CÔNEGO FILIPE

O cônego Filipe! Ó nome eterno!
Cinzas ilustres que da terra escura,
Fazeis rir nos ciprestes as corujas!
Por que tão pobre lira o céu doou-me
Que não consinta meu inglório gênio
Em vasto e heróico poema decantar-te?

Voltemos ao assunto. A minha musa,
Como um falado imperador romano,
Distrai-se, às vezes, apanhando moscas.
Por estradas mais longas ando sempre:
Com o cônego ilustre me pareço,
Quando ele já sentia vir o sono,
Para poupar caminho até a vela,
Sobre a vela atirava a carapuça.
Então, no escuro, em camisola branca,
Ia apalpando procurar na sala -
Para o queijo flamengo da careca
Dos defluxos guardar - o negro saco.

À ordem, Musa! Canta agora como
O poeta Ali-Moon no harém entrando,
Como um poeta que enamora a lua,
Ou que beija uma estátua de alabastro,
Suando de calor... de sol e amores...
Cantava no alaúde enamorado!
E como ele saiu-se do namoro...
Assunto bem moral, digno de prêmio,
E interessante como um catecismo...
Que tem ares até de ladainha!

Quem não sonhou a terra do Levante?
As noites do Oriente, o mar, as brisas,
Toda aquela suave natureza
Que amorosa suspira e encanta os olhos?

Principio no harém. Não é tão novo...
Mas esta vida é sempre deleitosa.
As almas d'homem ao harém se voltam...
Ser um dia sultão quem não deseja?

Quem não quisera das sombrias folhas
Nas horas do calor, junto do lago,
As odaliscas espreitar no banho
E mais bela a sultana entre as formosas?

Mas ah! o plágio nem perdão merece!
Digam - pega ladrão! Confesso o crime:
Não é Ovídio só que imito e sonho,
Quando pinta Acteon fitando os olhos
Nas formas nuas de Diana virgem!
Não! embora eu aqui não fale em ninfas,
Essa idéia é do cônego Filipe!
 

Poemas e Poesias quinta, 04 de abril de 2024

SEUS OLHOS (POEMA DO PORTUGUÊS ALMEIDA GARRETT)

SEUS OLHOS

Almeida Garrett 

 

 

Seus olhos – que eu sei pintar 
O que os meus olhos cegou – 
Não tinham luz de brilhar, 
Era chama de queimar; 
E o fogo que a ateou 
Vivaz, eterno, divino, 
Como facho do Destino. 

Divino, eterno! – e suave 
Ao mesmo tempo: mas grave 
E de tão fatal poder, 
Que, um só momento que a vi, 
Queimar toda a alma senti… 
Nem ficou mais de meu ser, 
Senão a cinza em que ardi. 


Poemas e Poesias quarta, 03 de abril de 2024

NO PENEDO DA MEDITAÇÃO (POEMA DO FLUMINENSE ALBERTO DE OLIVEIRA)

NO PENEDO DA MEDITAÇÃO

Alberto de Oliveira

 

 

 

Aprende-se até morrer...
Mas eu fui mais refractário:
Morrerei sem aprender,
Vida, o teu abecedário!

Nem a Dor, nem o Prazer,
No seu vaivém arbitrário,
Souberam dar ao meu ser
As regras do seu fadário.

O céu trasborda de estrelas,
Mas é cifrado e secreto
Para mim, que não sei lê-las.

Cego, surdo, analfabeto,
De nada entendo o motivo,
Nem quem sou, nem porque vivo...


Poemas e Poesias terça, 02 de abril de 2024

O AMOR E O OUTRO (POEMA DO MINEIRO AFFONSO ROMANO DE SANT*ANNA)

O AMOR E O OUTRO

Affonso Romano de Sant'Anna

 

 

Não amo
melhor
nem pior
do que ninguém.

Do meu jeito amo
Ora esquisito, ora fogoso,
às vezes aflito
ou ensandecido de gozo.
Já amei
até com nojo.

Coisas fabulosas
acontecem-me no leito. Nem sempre
de mim dependem, confesso.
O corpo do outro
é que é sempre surpreendente.


Poemas e Poesias segunda, 01 de abril de 2024

SEDUÇÃO (POEMA DA MINEIRA ADÉLIA PRADO)

SEDUÇÃO

Adélia Prado 

 

 

 

 

A poesia me pega com sua roda dentada,
me força a escutar imóvel
o seu discurso esdrúxulo.
Me abraça detrás do muro, levanta
a saia pra eu ver, amorosa e doida.
Acontece a má coisa, eu lhe digo,
também sou filho de Deus,
me deixa desesperar.
Ela responde passando
língua quente em meu pescoço,
fala pau pra me acalmar,
fala pedra, geometria,
se descuida e fica meiga,
aproveito pra me safar.
Eu corro ela corre mais,
eu grito ela grita mais,
sete demônios mais forte.
Me pega a ponta do pé
e vem até na cabeça,
fazendo sulcos profundos.
É de ferro a roda dentada dela.


Poemas e Poesias domingo, 31 de março de 2024

A MÚSICA DAS ALMAS (POEMA DO CARIOCA VINÍCIUS DE MORAES)

A MÚSICA DAS ALMAS

Vinícius de Moraes

 

 

 

Na manhã infinita as nuvens surgiram como a loucura numa alma
E o vento como o instinto desceu os braços das árvores que estrangularam a terra...

Depois veio a claridade, o grande céu, a paz dos campos...
Mas nos caminhos todos choravam com os rostos levados para o alto
Porque a vida tinha misteriosamente passado na tormenta.


Poemas e Poesias sábado, 30 de março de 2024

VELHO TEMA (POEMA DO PAULISTA VICENTE DE CARVALHO)

VELHO TEMA

Vicente de Carvalho

 

 

Só a leve esperança, em toda a vida,
Disfarça a pena de viver, mais nada;
Nem é mais a existência, resumida,
Que uma grande esperança malograda.

O eterno sonho da alma desterrada
Sonho que a traz ansiosa e embevecida,
É uma hora feliz, sempre adiada
E que não chega nunca em toda a vida.

Essa felicidade que supomos,
Árvore milagrosa que sonhamos
Toda arreada de dourados pomos,

Existe, sim: mas nós não a alcançamos
Porque está sempre apenas onde a pomos
E nunca a pomos onde nós estamos.


Poemas e Poesias sexta, 29 de março de 2024

O CAJUEIRO ENSINADO (POEMA DO AMAZONENSE THIAGO DE MELLO)

O CAJUEIRO ENSINADO

Thiago de Mello

 

 

Por medo de perder pouco,
acabaste te perdendo.
Não quiseste te dar todo
e terminaste sem nada.

Não sentiste o ferrão feio
cavando devagarinho
o fundo verde do peito.
( Por que era verdade. Tu sabes. )
Nem sequer te perguntaste
porque as janelas se foram
fechando no teu olhar.

Ainda podes caminhar,
quando anoitece demais,
debaixo dos cajueiros.
Mas as suas flores tenras
não te reconhecem mais.

Suas folhas orvalhadas
se esqueceram do teu nome
e mal relembram o teu riso
que era uma festa de infância.

Sem embargo, falas forte,
te vestes de opaca azul,
atravessas a avenida,
ris alto e muito: animal
balofo e só, meu irmão.


Poemas e Poesias quinta, 28 de março de 2024

SEMPRE BEATRIZ (POEMA DO MARANHENSE SOUSÂNDRADE)

SEMPRE BEATRIZ

Sousândrade

 

 

 

Quando nos teus nove anos

Brincavas na existência,

Os anjos do teu rosto

Rindo-se de prazer;

Que eram as manhãs puras

E os hinos d'inocência

Cantavam róseos mundos,

Terras a florescer –

Foste desta alma a palma,

O onipotente ser!

Quando, musa d'infância,

Dos puros céus os astros

Teus olhos silenciosos

Olhavam-me a amar;

Que havias a fragrância

Das cândidas boninas,

Da alva todos rumores

E toda a luz do lar –

Foste a bonança-esp'rança

E a glória a s'elevar!


Poemas e Poesias quarta, 27 de março de 2024

SEI DE TUDO (POEMA DO FLUMINENSE RAIOL DE LEÔNI)

SEI DE TUDO

Raul de Leôni 

 

Sei de tudo o que existe pelo mundo.
A forma, o modo, o espírito e os destinos.
Sei da vida das almas e aprofundo
O mistério dos seres pequeninos.

Sei da ciência do Espaço, sei o fundo
Da terra e os grandes mundos submarinos,
Sei o Sol, sei o Som e o elo profundo
Que há entre os passos humanos e os divinos.

Sei de todas as cousas, a teoria
Do Universo e as longínquas perspectivas
Que emergem da expressão das cousas vivas.

Sei de tudo e - oh! tristíssima ironia! -
Pelo caminho eterno por que vou,
Eu, que sei tudo, só não sei quem sou...


Poemas e Poesias terça, 26 de março de 2024

O POETA DA ROÇA (POEMA DO CEARENSE PATATIVA DO ASSARÉ)

O POETA DA ROÇA

Patativa do Assaré

 

 

 

Sou fio das mata, cantô da mão grossa
Trabaio na roça, de inverno e de estio
A minha chupana é taipa de barro
Só fumo cigarro de paia de mio

Sou poeta das brenha, não faço o papé
De argum menestrê, ou errante cantô
Que veve vagando, com sua viola
Cantando, pachola, à percura de amô

Não tenho sabença, pois nunca estudei
Apenas eu sei o meu nome assiná
Meu pai, coitadinho! Vivia sem cobre
E o fio do pobre não pode estudá

Meu verso rastero, singelo e sem graça
Não entra na praça, no rico salão
Meu verso só entra no campo, na roça
Na pobre paióça, da serra ao sertão

Só canto o buliço da vida apertada
Da lida pesada, das roça e dos e dos eito
E às veiz, recordando feliz mocidade
Canto uma sodade que mora em meu peito

Eu canto o cabôco com suas cassada
Nas noite assombrada que tudo apavora
Por dentro das mata, com tanta corage
Topando as visage chamada caipóra

Eu canto o vaquêro vestido de côro
Brigando com o tôro no mato fechado
Que pega na ponta do brabo novio
Ganhando logio do dono do gado

Eu canto o mendigo de sujo farrapo
Coberto de trapo e mochila na mão
Que chora pedindo socorro dos home
E tomba de fome sem casa e sem pão

E assim, sem cobiça dos cofre luzente
Eu vivo contente e feliz com a sorte
Morando no campo, sem vê a cidade
Cantando as verdade das coisa do norte

 
 
 

Poemas e Poesias segunda, 25 de março de 2024

NAS RUÍNAS DA CASA-GRANDE (POEMA DO PERNAMBUCANO OLEGÁRIO MARIANO)

NAS RUÍNAS DA CASA-GRANDE

Olegário Mariano

 

 

 

A casa-grande é um espelho do passado:
Corroeu-lhe o tempo a pedra do batente
E do que foi solar da minha gente
Resta apenas um escudo brasonado. 

Mas, através do paredão gretado,
Ouvem-se ainda na aflição do poente,
Ressonância de vozes e o frequente
Bater das velhas portas do sobrado. 

Em cada telha há um gesto de abandono.
A voz que vem de longe das herdades
É a mesma voz que me embalava o sono. 

E agora, em plena noite que se expande,
Piam as andorinhas. . . São Saudades
Que dormem no beiral da casa-grande. 

 


Poemas e Poesias domingo, 24 de março de 2024

A MORTE (POEMA DO CARIOCA OLAVO BILAC)

A MORTE

Olavo Bilac

 

 

Oh! a jornada negra! A alma se despedaça...

Tremem as mãos... O olhar, molhado e ansioso, espia,

E vê fugir, fugir a ribanceira fria,

Por onde a procissão dos dias mortos passa.

 


No céu gelado expira o derradeiro dia,

Na última região que o teu olhar devassa!

E só, trevoso e largo, o mar estardalhaça

No indizível horror de uma noite vazia...

 


Pobre! por que, a sofrer, a leste e a oeste, ao norte

E ao sul, desperdiçaste a força de tua alma?

Tinhas tão perto o Bem, tendo tão perto a Morte!

 

Paz à tua ambição! paz à tua loucura!

A conquista melhor é a conquista da Calma:

- Conquistaste o país do Sono e da Ventura!


Poemas e Poesias sábado, 23 de março de 2024

POEMA DA GARE DE ASTAPOVO (POEMA DO GAÚCHO MÁRIO QUINTANA)

POEMA DA GARE DE ASTAPOVO

Mário Quintana

(Grafia original)

 

 

 

O velho Leon Tolstoi fugiu de casa aos oitenta anos
E foi morrer na gare de Astapovo!
Com certeza sentou-se a um velho banco,
Um desses velhos bancos lustrosos pelo uso
Que existem em todas as estaçõezinhas pobres do mundo
Contra uma parede nua...
Sentou-se ...e sorriu amargamente
Pensando que
Em toda a sua vida
Apenas restava de seu a Gloria,
Esse irrisório chocalho cheio de guizos e fitinhas
Coloridas
Nas mãos esclerosadas de um caduco!
E entao a Morte,
Ao vê-lo tao sozinho aquela hora
Na estação deserta,
Julgou que ele estivesse ali a sua espera,
Quando apenas sentara para descansar um pouco!
A morte chegou na sua antiga locomotiva
(Ela sempre chega pontualmente na hora incerta...)
Mas talvez não pensou em nada disso, o grande Velho,
E quem sabe se ate não morreu feliz: ele fugiu...
Ele fugiu de casa...
Ele fugiu de casa aos oitenta anos de idade...
Não são todos que realizam os velhos sonhos da infância!

 


Poemas e Poesias sexta, 22 de março de 2024

IRENE NO CÉU (POEMA DO PERNAMBUCANO MANUEL BANDEIRA)

IRENE NO CÉU

Manuel Bandeira

 

 

Irene preta
Irene boa
Irene sempre de bom humor.

Imagino Irene entrando no céu:
- Licença, meu branco!
E São Pedro bonachão:
- Entra, Irene. Você não precisa pedir licença.


Poemas e Poesias quinta, 21 de março de 2024

OS GIRASSÓIS DE VAN GOGH (POEMA DO MATO-GROSSENSE MANOEL DE BARRO9S)

OS GIRASSÓIS DE VAN GOGH

 Manoel de Barros

 

 

 

Hoje eu vi
Soldados cantando por estradas de sangue
Frescura de manhãs em olhos de crianças
Mulheres mastigando as esperanças mortas

Hoje eu vi homens ao crepúsculo
Recebendo o amor no peito.
Hoje eu vi homens recebendo a guerra
Recebendo o pranto como balas no peito.

E, como a dor me abaixasse a cabeça,
Eu vi os girassóis ardentes de Van Gogh.


Poemas e Poesias quarta, 20 de março de 2024

JOSÉ DE ALENCAR (POEMA DO CARIOCA LUÍS GUIMARÃES JÚNIOR)

JOSÉ DE ALENCAR

Luís Guimarães Júnior

 

 

No teu regaço, oh Pátria angustiosa,
Oh grande Mãe! oh Niobe! consente
Que caia minha lágrima pungente
E suspire minha alma dolorosa;

Tua serena fronte majestosa
Curva-se a terra — lívida e plangente:
Perdeste a nívea corda, a fibra algente
De tua agreste Lira luminosa.

Quem cantará agora esse obscuro
Idílio da floresta, — ingênuo tema
Que ele criou — tão mavioso e puro?

Quem guiará as asas do Poema
Com mais doçura? Oh Bardos do futuro,
Eu vos pergunto em nome de Iracema!


Poemas e Poesias terça, 19 de março de 2024

O CASTIGO DE DEUS (POEMA DO PORTUGUÊS JÚLIO DINIS)

O CASTIGO DE DEUS

Júlio Dinis

(Grafia original)

 

 

 

Terminara a peleja. Ensangüentado Jaz o campo da atroz carnificina: Um
sinistro clarão avermelhado
Do exército ao longe a marcha ensina.

O incêndio, a ruina e a feroz matança
São as relíquias da já finda guerra.
Ai dos vencidos! Gritos de vingança,
Perseguem os fugidos pela serra.

Ai dos vencidos! A furiosa plebe
Erra nos campos com medonha grita;
Não dá quartel, piedade não concebe;
Um cruento furor a move e agita.

Corre em tropel, corre ébria de vitória, Arrastando os cadáveres
despidos. Maculando os lauréis da sua glória
Na lama, envolta em sangue dos vencidos

Num vale retirado, umbroso, oculto, Estorcia-se um velho agonizante.
Ouve em delírio, um hórrido tumulto, Qual de demônios
infernal descante.

Com o rosto alterado, o olhar extinto, Pálida a fronte, sem vigor, já
fria.
«Ai, que sede cruel esta que sinto!
Água, dai-me água!» diz. Ninguém o ouvia.

«Água, dai-me água!» brada com voz rouca, Que se lhe
prende na árida garganta.
Ao longe, a turba, numa orgia louca, Hinos blasfemos, implacável, canta.

No delírio violento, que alucina,
Julga-se às vezes de um regato à borda ;
Bem-diz, chorando, protecção divina,
Mas ai, que cedo deste sonho acorda.

Acorda, e vê-se à beira de um abismo; Queimam-lhe os lábios
qual ardente frágua, E a custo, em terrível paroxismo,
Sufocado repete : «Água, dai-me água!»

Como se Deus escutasse
O grito do agonizante,
Surge do velho diante
Uma angélica visão;
Com as lágrimas em fio
Pelas faces cor de neve
Caminha com passo leve
Para o prostrado ancião.

Na brandura do semblante,
No olhar magoado e aflito
Lê-se um poema inteiro escrito
De caridade e de amor.
Corre ansiada e pressurosa
E toda cheia de graça
Em socorro da desgraça
Com piedoso fervor.

Junto do velho ajoelhada Ergue-o com meigo desvelo; E as trancas do seu cabelo
Às cãs se vão misturar. Aproxima-lhe dos lábios
A água que ele pedia;
E ao vê-lo bebe r sorria… Sorria… mas a chorar.

E uma lágrima fervente, Gentil pérola preciosa, Caiu na fronte
rugosa
Do velho, que estremeceu.
E só então, como em sonhos,
Foi que o triste moribundo
Fitou um olhar profundo
Neste enviado do Céu.

Ela sorrindo-lhe meiga, Ao vê-lo assim admirado
Lhe disse : «Velho soldado, Bebei, coitado, bebei.
Há dez anos, nestes sítios, Como vós, velho, ferido,
O meu pai estremecido, Após a guerra encontrei.

«Como o vi, meu Deus! Já frio, Já co’a vista embaciada,
A fronte roxa, gelada,
Os lábios em fogo, a arder.
«— Água! — bradava convulso;
— Água! — que de sede morro I »
A fonte vizinha corro…
Cheguei… para o ver morrer.

«Era então criança ainda; Mas esta cena de morte Impressionou-me
de sorte Que nunca mais a esqueci.
Sempre, sempre aquela imagem
Muda, pálida, cruenta,
Nos meus sonhos se apresenta;
Vejo-a ainda como a vi.

«Curvei-me sobre o cadáver
A aquecê-lo com meus beijos;
Ai, baldados meus desejos!
Que esse frio era mortal.
Jurei então, pela Virgem,
No fervor da minha mágoa,
De correr sempre com água
Pelas tendas do arraial.

«Quantas vezes à blasfêmia,
Que o delírio ao peito arranca,
Esta água, que a sede estanca,
Bendita por Deus, pôs fim!…
Quantos nobres cavaleiros,
Quantos moços, quantos velhos,
Eu vi cair de joelhos,
Soluçando ao pé de mim!

«A cada sede que estanco, A cada dor que mitigo, Pareca-me que consigo
Matar a sede a meu pai, Àquele velho soldado
Que há dez anos, nesta selva, Sobre uma cama de relva Exalou o extremo
ai.»

O velho, ouvindo-a, estremece.
«Nestes sítios ! Há dez anos!
Impenetráveis arcanos!
Dedo invisível de Deus!
E és tu quem me socorres ?!
Luz fatal se me revela.
Vingaste teu pai, donzela,
Cumpriste as ordens do Céu!»

E a fronte lívida, exausta Por extremado cansaço, Deixou pender
no regaço
Da pobre órfã que a sustem. Um supremo olhar de angústia
Nela por momentos fita;
Nela, que o encara aflita
Como carinhosa mãe,

«Morre em paz, velho soldado, Por mim meu pai te perdoa,
Se a hora extrema já te soa, Podes alegre partir.
Que seja esta gota d’água
A que te lave do crime;
Possa esta dor, que te oprime
As tuas culpas remir I»

E ao longe a turba infrene tripudiava Sobre o cruento campo da matança;
Dos homens a vingança ali reinava. Reinava aqui de Deus só a
vingança.


Poemas e Poesias segunda, 18 de março de 2024

DOIS SONETOS (POEMAS DA COLUNISTA VERÔNICA SOBRAL)

DOIS SONETOS

Verônica Sobral

 

 

No mote de Maciel Correia

“A Saudade passou jogando flores
No velório do amor que assassinamos”,

retratando um amor sofrido, o fim de um relacionamento doloroso, eu disse:

O fim do nosso amor

Quantos beijos de amor silenciaram
Nossas brigas, por vezes, tão pequenas.
De tornar nossas noites mais serenas
Os desejos também se encarregaram.

As estrelas do céu, em noite plenas,
Tantos planos e sonhos registraram…
No entanto, esses sonhos se acabaram
Num silêncio feroz de um “não” apenas.

Numa noite tristonha… só de dores
A saudade passou jogando flores
No dilúvio das lágrimas que choramos.

Nosso peito infeliz, dilacerado
Percebeu que havia terminado
O velório do amor que assassinamos!

* * *

E ainda na temática amor, mas com uma visão universal, sem sofrimento, eu disse:

Destino Traçado

Num cenário de amor… puro, encantado,
Sobre o brilho da lua incandescente
Nossas almas, concomitantemente,
Se olharam! O destino foi traçado!

Nossos olhos, silenciosamente,
Entenderam um olhar apaixonado…
E o silêncio do beijo desejado
Foi um filme perfeito em nossa mente!

E a sede do amor que nós sentimos
Envolveu nossa vida… E nós pedimos
Que o destino, com muita lealdade,

Permitisse que tudo, por Deus feito,
Fosse a prova do nosso amor perfeito
E o encontro da nossa outra metade!

 


Poemas e Poesias domingo, 17 de março de 2024

MEU CORAÇÃO (POEMA DO ACRIANO J. G. DE ARAÚJO JORGE)

MEU CORAÇÃO

J. G. de Araújo Jorge

 

 

 

Eu tenho um coração um século atrasado
ainda vive a sonhar... ainda sonha, a sofrer...
acredita que o mundo é um castelo encantado
e, criança, vive a rir, batendo de prazer...

Eu tenho um coração - um mísero coitado
que um dia há de por fim, o mundo compreender...
- é um poeta, um sonhador, um pobre esperançado
que habita no meu peito e enche de sons meu ser...

Quando tudo é matéria e é sombra - ele é uma luz
ainda crê na ilusão, no amor, na fantasia
sabe todos de cor os versos que compus...

Deus pôs-me um coração com certeza enganado:
- e é por isso talvez, que ainda faço poesia
lembrando um sonhador do século passado


Poemas e Poesias sexta, 15 de março de 2024

TATEIO (POEMA DA PAULISTA HILDA HILST)

TATEIO

Hilda Hilst

 

 

Tateio. A fronte. O braço. O ombro.
O fundo sortilégio da omoplata.
Matéria-menina a tua fronte e eu
Madurez, ausência nos teus claros
Guardados.

Ai, ai de mim. Enquanto caminhas
Em lúcida altivez, eu já sou o passado.
Esta fronte que é minha, prodigiosa
De núpcias e caminho
É tão diversa da tua fronte descuidada.

Tateio. E a um só tempo vivo
E vou morrendo. Entre terra e água
Meu existir anfíbio. Passeia
Sobre mim, amor, e colhe o que me resta:
Noturno girassol. Rama secreta.


Poemas e Poesias quinta, 14 de março de 2024

RIO (POEMA DO SERGIPANO HERMES FONTES)

RIO

Hermes Fontes

 

 

 

- Bojuda serpe, dócil crocodilo -
coleia o rio... Atrás, uma montanha
figura um cavaleiro a persegui-lo
de longe... E, distanciando-se, o acompanha.

Adiante, o bosque todo se emaranha
para deter-lhe o curso e constringi-lo:
o rio, surdo e cego à ameaça estranha,
vai correndo, monótono e tranqüilo...

Abre-se o abismo ali para tragá-lo:
e o rio, dorso ondeante ao beijo eóleo,
salta, a crina a flutuar... régio cavalo!

E ancho, e triunfante, como um rei no sólio,
avança para o Mar, quer dominá-lo...
E o Mar, que o espera, num bocejo, engole-o...


Poemas e Poesias quarta, 13 de março de 2024

MAXIXE (POEMA DO PAULISTA GUILHERME DE ALMEIDA)

MAXIXE

Guilherme de Almeida

 

 

 

O chocalho dos sapos coaxa
como um caracaxá rachado. Tudo mexe.
Um vento frouxo enlaga uma nuvem baixa
fofa. E desce com ela, desce.
E não a deixa e puxa-a como uma faixa
e espicha-se e enrolam-se. E o feixe rola
e rebola como uma bola
na luz roxa
da tarde oca

boba

chocha.


Poemas e Poesias terça, 12 de março de 2024

NOTURNO (POEMA DA PAULISTA FRANCISCA JÚLIA)

NOTURNO

Francisca Júlia

 

 

 

Pesa o silêncio sobre a terra. Por extenso
Caminho, passo a passo, o cortejo funéreo
Se arrasta em direção ao negro cemitério...
À frente, um vulto agita a caçoula do incenso.

E o cortejo caminha. Os cantos do saltério
Ouvem-se. O morto vai numa rede suspenso;
Uma mulher enxuga as lágrimas ao lenço;
Chora no ar o rumor de misticismo aéreo.

Uma ave canta; o vento acorda. A ampla mortalha
Da noite se ilumina ao resplendor da lua...
Uma estrige soluça; a folhagem farfalha.

E enquanto paira no ar esse rumor das calmas
Noites, acima dele em silêncio, flutua
O lausperene mudo e súplice das almas.


Poemas e Poesias segunda, 11 de março de 2024

PARTICULARIDADES 2 (POEMA DA CARIOCA GILKA MACHADO)

PARTICULARIDADES 2

Gilka Machado

 

 

 

 

Tudo quanto é macio os meus ímpetos doma,
e flexuosa me torna e me torna felina.
Amo do pessegueiro a pubescente poma,
porque afagos de velo oferece e propina.

O intrínseco sabor lhe ignoro, se ela assoma,
no rubor da sazão, sonho-a doce, divina!
gozo-a pela maciez cariciante, de coma,
e o meu senso em mantê-la incólume se obstina...

Toco-a, palpo-a, acarinho o seu carnal contorno,
saboreio-a num beijo, evitando um ressábio,
como num lento olhar te osculo o lábio morno.

E que prazer o meu! que prazer insensato!
– pela vista comer-te o pêssego do lábio,
e o pêssego comer apenas pelo tato.


Poemas e Poesias domingo, 10 de março de 2024

ESPERA... (POEMA DA PORTUGUESA FLORBELA ESPANCA)

ESPERA...

Florbela Espanca

 

 

 

Não me digas adeus, ó sombra amiga,
Abranda mais o ritmo dos teus passos;
Sente o perfume da paixão antiga,
Dos nossos bons e cândidos abraços!

Sou a dona dos místicos cansaços,
A fantástica e estranha rapariga
Que um dia ficou presa nos teus braços...
Não vás ainda embora, ó sombra amiga!

Teu amor fez de mim um lago triste:
Quantas ondas a rir que não lhe ouviste,
Quanta canção de ondinas lá no fundo!

Espera... espera... ó minha sombra amada...
Vê que pra além de mim já não há nada
E nunca mais me encontras neste mundo!...


Poemas e Poesias sábado, 09 de março de 2024

MORTE DE CLARICE LISPECTOR (POEMA DO MARANHENSE FERREIRA GULLAR)

MORTE DE CLARICE LISPECTOR

Ferreira Gullar

 

 

 

Poema de Ferreira Gullar, por ocasião da morte de Clarice Lispector:

 

Enquanto te enterravam no cemitério judeu

de São Francisco Xavier

(e o clarão de teu olhar soterrado

resistindo ainda)

o táxi corria comigo à borda da Lagoa

na direção de Botafogo

as pedras e as nuvens e as árvores

no vento

mostravam alegremente

que não dependem de nós.


Poemas e Poesias sexta, 08 de março de 2024

DIZEM? (POEMA DO PORTUGUÊS FERNANDO PESOA)

DIZEM?

Fernando Pessoa

 

 

 

Dizem?
Esquecem.
Não dizem?
Disseram.

Fazem?
Fatal.
Não fazem?
Igual.

Por que
Esperar?
– Tudo é
Sonhar.


Poemas e Poesias quinta, 07 de março de 2024

SONETO - DEDICADO A ANNA DA CUNHA (POEMA DO FLUMINENSE EUCLIDES DA CUNHA)

 

SONETO
Dedicado a Anna da Cunha
 
 
"Ontem, quanto, soberba, escarnecias
Dessa minha paixão, louca, suprema,
E no teu lábio, essa rosa da algema,
A minha vida, gélida prendias...
 
Eu meditava em loucas utopias,
Tentava resolver grave problema...
— Como engastar tua alma num poema?
E eu não chorava quando tu te rias...
 
Hoje, que vives desse amor ansioso
E és minha, só minha, extraordinária sorte,
Hoje eu sou triste, sendo tão ditoso!
 
E tremo e choro, pressentindo, forte
Vibrar, dentro em meu peito, fervoroso,
Esse excesso de vida, que é a morte..."

 


Poemas e Poesias quarta, 06 de março de 2024

TROVAS HUMORÍSTICAS - 26 - (POEMA DO PARANAENSE ENO TEODORO WANKE)
 

 

 

TROVA HUMORÍSTICA 26

Eno Teodoro Wanke

 

 Eu ontem me declarei

Nunca mais farei assim

Ah, sim? Ela disse não?

Oh, não! Ela disse sim!

 


Poemas e Poesias terça, 05 de março de 2024

SEI DE NADA (POEMA DO COLUNISTA FRANMCISCO ITAERÇO)

SEI DE NADA

Francisco Itaerço

 

Pouco sei
Do porvir
Do passado
Já esqueci
Do presente
Nada sei
Sei de nada
Dessa gente
Se pecador
Ou inocente
“Eu só sei
Que nada sei”

* * *

SEM SAÍDA

Eu nado, nado e nada
Não encontro a saída.
Pra liberdade, pra vida
Se eu corro eu canso
Se ando não alcanço
Ajo mais por instinto
Não quero, não consinto
E nesta vida de contos
Vou sentar-me e pronto
E esperar que a saída
Venha ao meu encontro.

* * *
LUA

Oh Lua!
Qual é a tua?
Desfilando nua
Outra vez.
Cruzou com o Sol
E se deu mal
Não fez pré-natal
Foi pro hospital
E pariu um raio.
Hoje anda distante
Triste, minguante
Pedindo pensão.
Não vem que não tem
Não te dou um vintém
Comigo não
Procure outro alguém.

* * *

SÓ DEUS

Quando te vejo
De frente, de costa…
Pergunto a você:
Como se pode fazer
Um ser tão perfeito
Com uma costela torta

Só Deus mesmo.


Poemas e Poesias segunda, 04 de março de 2024

SELVA SELVAGGIA (POEMA DO PIAUIENSE DA COSTA E SILVA)

SELVA SELVAGGIA

Da Costa e Silva

 

 

 

... Vi-me, sem o saber, perdido e errante
Por uma selva escura e misteriosa,
Como aquela floresta fabulosa,
Por onde errava o espírito do Dante.

Atônito e indeciso eu fiquei, diante
Do dédalo de sombras, de alma ansiosa
Como se dentro de uma nebulosa
Visse a livre amplidão do azul distante...

Andei às tontas, como que à procura,
Pelo instinto profético e divino,
De incerta luz na pávida espessura...

E, só conjeturava em desatino:
Que seria esta selva estranha e escura?
— Eu pensei que era a Vida... — Era o Destino.

 


Poemas e Poesias domingo, 03 de março de 2024

CLAMANDO (POEMA DO CATARINENSE CRUZ E SOUSA)

CLAMANDO

Cruz e Sousa

 

 

 

Barbaros vãos, dementes e terriveis
Bonzos tremendos de ferrenho aspecto,
Ah! deste ser todo o clarão secréto
Jamais ponde infiammar-vos, Impassiveis!

Tantas guerras bizarras e incoerciveis
No tempo e tanto, tanto immenso affecto,
São para vós menos que um verme e insecto
Na corrente vital pouco sensiveis.


No entanto nessas guerras mais bizarras
De sol, clarins e rútilas fanfarras,
Nessas radiantes e profundas guerras...

As minhas carnes se dilaceraram
E vão, das Illusões que flammejaram,
Com o proprio sangue fecundando as terras...


Poemas e Poesias sábado, 02 de março de 2024

SARDENTA (POEMA DO PORTUGUÊS CESÁRIO VERDE)

SARDENTA

Cesário Verde

 

Tu, nesse corpo completo,
Ó láctea virgem doirada!
Tens o linfático aspecto
Duma camélia melada.

 


Poemas e Poesias sexta, 01 de março de 2024

ROMANCE XXI DAS IDEIAS (POEMA DA CARIOCA CECÍLIA MEIRELES)

ROMANCE XXI DAS IDEIAS

Cecília Meireles 

 

 

 

A vastidão desses campos.
A alta muralha das serras.
As lavras inchadas de ouro.
Os diamantes entre as pedras.
Negros, índios e mulatos.
Almocrafes e gamelas.

Os rios todos virados.
Toda revirada, a terra.
Capitães, governadores,
padres intendentes, poetas.
Carros, liteiras douradas,
cavalos de crina aberta.
A água a transbordar das fontes.
Altares cheios de velas.
Cavalhadas. Luminárias.
Sinos, procissões, promessas.
Anjos e santos nascendo
em mãos de gangrena e lepra.
Finas músicas broslando
as alfaias das capelas.
Todos os sonhos barrocos
deslizando pelas pedras.
Pátios de seixos. Escadas.
Boticas. Pontes. Conversas.
Gente que chega e que passa.
E as ideias.

Amplas casas. Longos muros.
Vida de sombras inquietas.
Pelos cantos da alcovas,
histerias de donzelas.
Lamparinas, oratórios,
bálsamos, pílulas, rezas.
Orgulhosos sobrenomes.
Intrincada parentela.
No batuque das mulatas,
a prosápia degenera:
pelas portas dos fidalgos,
na lã das noites secretas,
meninos recém-nascidos
como mendigos esperam.
Bastardias. Desavenças.
Emboscadas pela treva.
Sesmarias, salteadores.
Emaranhadas invejas.
O clero. A nobreza. O povo.
E as idéias.

E as mobílias de cabiúna.
E as cortinas amarelas.
Dom José. Dona Maria.
Fogos. Mascaradas. Festas.
Nascimentos. Batizados.
Palavras que se interpretam
nos discursos, nas saúdes . . .
Visitas. Sermões de exéquias.
Os estudantes que partem.
Os doutores que regressam.
(Em redor das grandes luzes,
há sempre sombras perversas.
Sinistros corvos espreitam
pelas douradas janelas.)
E há mocidade! E há prestígio.
E as ideias.

As esposas preguiçosas
na rede embalando as sestas.
Negras de peitos robustos
que os claros meninos cevam.
Arapongas, papagaios,
passarinhos da floresta.
Essa lassidão do tempo
entre imbaúbas, quaresmas,
cana, milho, bananeiras
e a brisa que o riacho encrespa.
Os rumores familiares
que a lenta vida atravessam:
elefantíase; partos;
sarna; torceduras; quedas;
sezões; picadas de cobras;
sarampos e erisipelas . . .
Candombeiros. Feiticeiros.
Ungüentos. Emplastos. Ervas.
Senzalas. Tronco. Chibata.
Congos. Angolas. Benguelas.
Ó imenso tumulto humano!
E as ideias.

Banquetes. Gamão. Notícias.
Livros. Gazetas. Querelas.
Alvarás. Decretos. Cartas.
A Europa a ferver em guerras.
Portugal todo de luto:
triste Rainha o governa!
Ouro! Ouro! Pedem mais ouro!
E sugestões indiscretas:
Tão longe o trono se encontra!
Quem no Brasil o tivera!
Ah, se Dom José II
põe a coroa na testa!
Uns poucos de americanos,
por umas praias desertas,
já libertaram seu povo
da prepotente Inglaterra!
Washington. Jefferson. Franklin.
(Palpita a noite, repleta
de fantasmas, de presságios . . .)
E as idieias.

Doces invenções da Arcádia!
Delicada primavera:
pastoras, sonetos, liras,
— entre as ameaças austeras
de mais impostos e taxas
que uns protelam e outros negam.
Casamentos impossíveis.
Calúnias. Sátiras. Essa
paixão da mediocridade
que na sombra se exaspera.
E os versos de asas douradas,
que amor trazem e amor levam . . .
Anarda. Nise. Marília . . .
As verdades e as quimeras.
Outras leis, outras pessoas.
Novo mundo que começa.
Nova raça. Outro destino.
Planos de melhores eras.
E os inimigos atentos,
que, de olhos sinistros, velam.
E os aleives. E as denúncias.
E as ideias.


Poemas e Poesias quarta, 28 de fevereiro de 2024

ADORMECIDA (POEMA DO BAIANO CASTRO ALVES)

ADORMECIDA

Castro Alves

 

 

Uma noite eu me lembro... Ela dormia
Numa rede encostada molemente...
Quase aberto o roupão... solto o cabelo
E o pé descalço do tapete rente.
 
'Stava aberta a janela. Um cheiro agreste
Exalavam as silvas da campina...
E ao longe, num pedaço do horizonte
Via-se a noite plácida e divina.
 
De um jasmineiro os galhos encurvados,
Indiscretos entravam pela sala,
E de leve oscilando ao tom das auras
Iam na face trêmulos — beijá-la.

Era um quadro celeste!... A cada afago
Mesmo em sonhos a moça estremecia...
Quando ela serenava... a flor beijava-a...
Quando ela ia beijar-lhe... a flor fugia...

Dir-se-ia que naquele doce instante
Brincavam duas cândidas crianças...
A brisa, que agitava as folhas verdes,
Fazia-lhe ondear as negras tranças!

E o ramo ora chegava, ora afastava-se...
Mas quando a via despeitada a meio,
P'ra não zangá-la... sacudia alegre
Uma chuva de pétalas no seio...

Eu, fitando esta cena, repetia
Naquela noite lânguida e sentida:
"Ó flor! — tu és a virgem das campinas!
"Virgem! tu és a flor da minha vida!..."


Poemas e Poesias terça, 27 de fevereiro de 2024

FOLHA NEGRA (POEMA DO FLUMINENSE CASIMIRO DE ABREU) VÍDEO

FOLHA NEGRA

Casimiro de Abreu

 


Poemas e Poesias segunda, 26 de fevereiro de 2024

CONETO OCO (POEMA DO PERNAMBUCANO CARLOS PENA FILHO)

SONETO OCO

Carlos Pena Filho

 

 

 

Neste papel levanta-se um soneto,
de lembranças antigas sustentado,
pássaro de museu, bicho empalhado,
madeira apodrecida de coreto.

De tempo e tempo e tempo alimentado,
sendo em fraco metal, agora é preto.
E talvez seja apenas um soneto
de si mesmo nascido e organizado.

Mas ninguém o verá? Ninguém. Nem eu,
pois não sei como foi arquitetado
e nem me lembro quando apareceu.

Lembranças são lembranças, mesmo pobres,
olha pois este jogo de exilado
e vê se entre as lembranças te descobres.


Poemas e Poesias domingo, 25 de fevereiro de 2024

CONGRESSO INTERNACIONAL DO MEDO (POEMA DO MINEIRO CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE)

CONGRESSO INTERNACIONAL DO MEDO

Carlos Drummond de Andrade

 

 

Provisoriamente não cantaremos o amor,
que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos.
Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços,
não cantaremos o ódio porque esse não existe,
existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro,
o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos,
o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas,
cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas,
cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte,
depois morreremos de medo
e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas.


Poemas e Poesias sábado, 24 de fevereiro de 2024

SONETO 072 - EM FERMOSA LETEIA SE CONFIA (SONETO DO PORTUGUÊS LUÍS DE CAMÕES)

 

 SONETO 072 - EM FERMOSA LETEIA SE CONFIA (SONETO DO PORTUGUÊS LUÍS DE CAMÕES)
 

 

SONETO 072 - EM FERMOSA LETEIA SE CONFIA (SONETO DO PORTUGUÊS LUÍS DE CAMÕES)

SONETO 072

Luís de Camões 

 

 

Em fermosa Leteia se confia,

por onde vaïdade tanta alcança,

que, tornada em soberba a confiança,

com os deuses celestes competia.

 

Porque não fosse avante esta ousadia

(que nascem muitos erros da tardança),

em efeito puseram a vingança,

que tamanha doudice merecia.

 

Mas Oleno, perdido por Leteia,

não lhe sofrendo Amor que suportasse

castigo duro tanta fermosura,

 

quis padecer em si a pena alheia;

mas, porque a morte Amor não apartasse,

ambos tornados são em pedra dura

 

 


Poemas e Poesias sexta, 23 de fevereiro de 2024

AH! COMO EU QUERIA! (POEMA DO COLUNISTA CARLOS AIRES)
 
AH! COMO EU QUERIA!
Carlos Aires

 



Como eu queria rever
Aquela terrinha amada
Correr nos campos floridos
Acordar de madrugada
Para exalar os primores
Do cheiro vindo das flores,
Deleitar-me nesse escol!
Vendo o sol rasgar o manto
Intocável, sacrossanto,
Eclodindo no arrebol.

Como eu queria voltar
Pra casa velha alpendrada
Caminhar no seu terreiro
Sentar naquela calçada
Contemplando a linda serra,
Retornar a minha terra
Reaver minha raiz
Matando aquela saudade
Da doce infantilidade
Aonde eu fui tão feliz.

Como eu queria outra vez
Divagar pela devesa
Escutar os passarinhos,
Livres pela natureza,
Ouvir o som das cigarras,
Ver periquitos, gangarras,
Revoar pelas campinas,
E um lençol de brancas neves
Com suas camadas leves
Se estender sobre as colinas.

Como eu queria sentir
O frescor da brisa fria,
No crepúsculo vespertino
Quando a noite se inicia,
Olhar para os horizontes
Quando montanhas e montes
Envoltos pelos negrumes
Ficam na opacidade
Para a luminosidade
Afluir dos vagalumes.

Como eu queria entender
Porque é que o tempo passa
Tão depressa como fosse
A cortina de fumaça
Que o vento vem e dispersa,
Numa suave conversa
Que nem dá pra perceber
Que ela ao trazer a velhice
Leva embora a meninice
E jamais irá devolver.

Como eu queria poder
Por ali rever meus pais
Que foram pra eternidade
E não voltam nunca mais,
A sequidão que devora
Botou-me de lá pra fora
E hoje vivo pesaroso.
Porém enquanto eu viver
Jamais irei esquecer
Do meu Sítio Frutuoso!ah


Poemas e Poesias quinta, 22 de fevereiro de 2024

CEM TROVAS - 016 (POEMA DO MINEIRO BELMIRO BRAGA)

 

 

TROVA 016

Belmiro Braga

 

A vida, pelo que vejo

Hoje é vale e amanhã cimo

A quantos pobres invejo

E a quantos ricos lastimo


Poemas e Poesias quarta, 21 de fevereiro de 2024

INSÔNIA (POEMA DO PARAIBANO AUGUSTO DOS ANJOS)

INSÔNIA

Augusto dos Anjos

 

 

Noite. Da Mágoa o espírito noctâmbulo

Passou de certo por aqui chorando!

Assim, em mágoa, eu também vou passando

Sonâmbulo... sonâmbulo... sonâmbulo...

 

Que voz é esta que a gemer concentro

No meu ouvido e que do meu ouvido

Como um bemol e como um sustenido

Rola impetuosa por meu peito adentro?!

 

- Por que é que este gemido me acompanha?!

Mas dos meus olhos no sombrio palco

Súbito surge como um catafalco

Uma cidade ou mapa-múndi estranha.

 

A dispersão dos sonhos vagos reúno.

Desta cidade pelas ruas erra

A procissão dos Mártires da Terra

Desde os Cristãos até Giordano Bruno!

 

Vejo diante de mim Santa Francisca

Que com o cilício as tentações suplanta,

E invejo o sofrimento desta Santa,

Em cujo olhar o Vicio não faísca!

 

Se eu pudesse ser puro! Se eu pudesse,

Depois de embebedado deste vinho,

Sair da vida puro como o arminho

Que os cabelos dos velhos embranquece!

 

Por que cumpri o universal ditame?!

Pois se eu sabia onde morava o Vício,

Por que não evitei o precipício

Estrangulando minha carne infame?!

 

Até que dia o intoxicado aroma

Das paixões torpes sorverei contente?

E os dias correrão eternamente?!

E eu nunca sairei desta Sodoma?!

 

À proporção que a minha insônia aumenta

Hierógafos e esfinges interrogo...

Mas, triunfalmente, nos céus altos, logo

Toda a alvorada esplêndida se ostenta.

 

Vagueio pela Noite decaída...

No espaço a luz de Aldebarã e de Árgus

Vai projetando sobre os campos largos

O derradeiro fósforo da Vida.

 

O Sol, equilibrando-se na esfera,

Restitui-me a pureza da hematose

E então uma interior metamorfose

Nas minhas arcas cerebrais se opera.

 

O odor da margarida e da begônia

Subitamente me penetra o olfato...

Aqui, neste silêncio e neste mato,

Respira com vontade a alma campônia!

 

Grita a satisfação na alma dos bichos.

Incensa o ambiente o fumo dos cachimbos.

As árvores, as flores, os corimbos,

Recordam santos nos seus próprios nichos.

 

Com o olhar a verde periferia abarco.

Estou alegre. Agora, por exemplo,

Cercado destas árvores, contemplo

As maravilhas reais do meu Pau d'Arco!

 

Cedo virá, porém, o funerário,

Atro dragão da escura noite, hedionda,

Em que o Tédio, batendo na alma, estronda

Como um grande trovão extraordinário.

 

Outra vez serei pábulo do susto

E terei outra vez de, em mágoa imerso,

Sacrificar-me por amor do Verso

No meu eterno leito de Procusto!


Poemas e Poesias terça, 20 de fevereiro de 2024

NAMLRO A CAVALO (POEMA DO PAULISTA ÁLVARES DE AZEVEDO)

NAMORO A CAVALO

Álvares de Azevedo

 

Eu moro em Catumbi. Mas a desgraça
Que rege minha vida malfadada
Pôs lá no fim da rua do Catete
A minha Dulcinéia namorada.

Alugo (três mil réis) por uma tarde
Um cavalo de trote (que esparrela!)
Só para erguer meus olhos suspirando
À minha namorada na janela...

Todo o meu ordenado vai-se em flores
E em lindas folhas de papel bordado
Onde eu escrevo trêmulo, amoroso,
Algum verso bonito... mas furtado.

Morro pela menina, junto dela
Nem ouso suspirar de acanhamento...
Se ela quisesse eu acabava a história
Como toda a Comédia — em casamento.

Ontem tinha chovido... que desgraça!
Eu ia a trote inglês ardendo em chama,
Mas lá vai senão quando uma carroça
Minhas roupas tafuis encheu de lama...

Eu não desanimei. Se Dom Quixote
No Rocinante erguendo a larga espada
Nunca voltou de medo, eu, mais valente,
Fui mesmo sujo ver a namorada...

Mas eis que no passar pelo sobrado
Onde habita nas lojas minha bela
Por ver-me tão lodoso ela irritada
Bateu-me sobre as ventas a janela...

O cavalo ignorante de namoros
Entre dentes tomou a bofetada,
Arrepia-se, pula, e dá-me um tombo
Com pernas para o ar, sobre a calçada...

Dei ao diabo os namoros. Escovado
Meu chapéu que sofrera no pagode
Dei de pernas corrido e cabisbaixo
E berrando de raiva como um bode.

Circunstância agravante. A calça inglesa
Rasgou-se no cair de meio a meio,
O sangue pelas ventas me corria
Em paga do amoroso devaneio!...


Poemas e Poesias segunda, 19 de fevereiro de 2024

ROSA SEM ESPINHOS (POEMA DO PORTUGUÊS ALMEIDA GARRETT)

ROSA SEM ESPINHOS

Almeida Garrett

 

 

Para todos tens carinhos,
A ninguém mostras rigor!
Que rosa és tu sem espinhos?
Ai, que não te entendo, flor!

Se a borboleta vaidosa
A desdém te vai beijar,
O mais que lhe fazes, rosa,
É sorrir e é corar.

E quando a sonsa da abelha,
Tão modesta em seu zumbir,
Te diz: — «Ó rosa vermelha,
«Bem me podes acudir:

«Deixa do cálix divino
«Uma gota só libar…
«Deixa, é néctar peregrino,
«Mel que eu não sei fabricar…»

Tu de lástima rendida,
De maldita compaixão,
Tu à súplica atrevida
Sabes tu dizer que não?

Tanta lástima e carinhos,
Tanto dó, nenhum rigor!
És rosa e não tens espinhos!
Ai! que não te entendo, flor.


Poemas e Poesias domingo, 18 de fevereiro de 2024

MÃES DE PORTUGAL (POEMA DO FLUMINENSE ALBERTO DE OLIVEIRA)

MÃES DE PORTUGAL

Alberto de Oliveira

 

 

 

Ó Mães de Portugal comovedoras,
Com Meninos Jesus de encontro ao peito,
Iguais na devoção e amor perfeito
Aos painéis onde estão Nossas Senhoras!

Ó Virgem Mãe, qual se tu própria foras,
Surgem de cada lado, quase a eito,
As Mães e os Filhos em abraço estreito,
Dolorosas, felizes, povoadoras...

São presépios as casas onde moram:
E o riso casto, as lágrimas que choram,
O anseio que lhes enche o coração,

Gesto, candura, olhar — tudo é divino,
Tudo ensinado pelo Deus Menino,
Tudo é da Mãe Celeste inspiração!


Poemas e Poesias sábado, 17 de fevereiro de 2024

MISTÉRIO (POEMA DO MINEIRO AFFONSO ROMANO DE SANT*ANNA)

MISTÉRIO

Affonso Romano de Sant'Anna

 

 

 

 

O mistério começa do joelho para cima.
O mistério começa do umbigo para baixo
e nunca termina.


Poemas e Poesias sexta, 16 de fevereiro de 2024

SAUDAÇÃO (POEMA DA MINEIRA ADÉLIA PRADO)

SAUDAÇÃO

Adélia Prado

 

 

 

Ave, Maria!
Ave, carne florescida em Jesus.
Ave, silêncio radioso,
Urdidura de paciência
Onde Deus fez seu amor inteligível!

 


Poemas e Poesias quinta, 15 de fevereiro de 2024

A MULHER QUE PASSA (POEMA DO CARIOCA VINÍCIUS DE MORAES)

A MULHER QUE PASSA

Vinícius de Moraes

(Grafia original)

 

 

 

eu Deus, eu quero a mulher que passa.
Seu dorso frio é um campo de lírios
Tem sete cores nos seus cabelos
Sete esperanças na boca fresca!

Oh! Como és linda, mulher que passas
Que me sacias e suplicias
Dentro das noites, dentro dos dias!

Teus sentimentos são poesia
Teus sofrimentos, melancolia.
Teus pêlos são relva boa
Fresca e macia.
Teus belos braços são cisnes mansos
Longe das vozes da ventania.

Meu Deus, eu quero a mulher que passa!

Como te adoro, mulher que passas
Que vens e passas, que me sacias
Dentro das noites, dentro dos dias!
Por que me faltas, se te procuro?
Por que me odeias quando te juro
Que te perdia se me encontravas
E me encontravas se te perdias?

Por que não voltas, mulher que passas?
Por que não enches a minha vida?
Por que não voltas, mulher querida
Sempre perdida, nunca encontrada?
Por que não voltas à minha vida
Para o que sofro não ser desgraça?

Meu Deus, eu quero a mulher que passa!
Eu quero-a agora, sem mais demora
A minha amada mulher que passa!

No santo nome do teu martírio
Do teu martírio que nunca cessa
Meu Deus, eu quero, quero depressa
A minha amada mulher que passa!

Que fica e passa, que pacifica
Que é tanto pura como devassa
Que bóia leve como cortiça
E tem raízes como a fumaça.

 

 


Poemas e Poesias quarta, 14 de fevereiro de 2024

UMA IMPRESSÃO DE DON JUAN (POEMA DO PAULISTA VICENTE DE CARVALHO)

UMA IMPRESSÃO DE DON JUAN

Vicente de Carvalho

 

 

 

Gastei no amor vinte anos –os melhores,
Da minha vida pródiga: esbanjei-os
Sem remorso nem pena, nem galanteios,
Colhendo beijos, desfolhando flores.
Quentes olhares de olhos tentadores,
Suspiros de paixão, arfar de seios,
Conheci-os, buscaram-me, gozei-os…
Li, folha a folha, o livro dos amores.
Quanta lembrança de mulher amada!
Quanta ternura de alma carinhosa!
Sim, tanto amor que me passou na vida!
E nada sei do amor… Não, não sei nada,
E cada rosto de mulher formosa
Dá-me a impressão de folha inda não lida.

Poemas e Poesias terça, 13 de fevereiro de 2024

NOTÍCIA DE AMAHÃ (POEMA DO AMAZONENSE THIAGO DE MELLO)

NOTÍCIA DE AMANHÃ

Thiago de Mello

 

 

Para Milu e Ângelo


Eu sei que todos a viram
e jamais a esquecerão.
Mas é possível que alguém,
denso de noite, estivesse
profundamente dormindo.
E aos dormidos — e também
aos que estavam muito longe
e não puderam chegar,
aos que estavam perto e perto
permaneceram sem vê-la;
aos moribundos nos catres
e aos cegos de coração —
a todos que não a viram
contarei desta manhã
— manhã é céu derramado
é cristal de claridão —
que reinou, de leste a oeste,
de morro a mar — na cidade.

Pois dentro desta manhã
vou caminhando. E me vou
tão feliz como a criança
que me leva pela mão.
Não tenho nem faço rumo:
vou no rumo da manhã,
levado pelo menino
(ele conhece caminhos
e mundos, melhor do que eu).

(...)

Por verdadeira, a manhã
vai chamando outras manhãs
sempre radiosas que existem
(e às vezes tarde despontam
ou não despontam jamais)
dentro dos homens, das coisas:
na roupa estendida à corda,
nos navios chegando,
na torre das igrejas,
nos pregões dos peixeiros,
na serra circular dos operários,
nos olhos da moça que passa, tão bonitos!

(...)

A beleza mensageira
desta radiosa manhã
não se resguardou no céu
nem ficou apenas no espaço,
feita de sol e de vento,
sobrepairando a cidade
Não: a manhã se deu ao povo.

A manhã é geral.

As árvores da rua,
a réstia do mar,
as janelas abertas,
o pão esquecido no degrau,
as mulheres voltando da feira,
os vestidos coloridos,
o casal de velhos rindo na calçada,
o homem que passa com cara de sono,
a provisão de hortaliças,
o negro na bicicleta,
o barulho do bonde,
os passarinhos namorando
— ah! pois todas essas coisas
que minha ternura encontra
num pedacinho de rua,
dão eterno testemunho
da amada manhã que avança
e de passagem derrama
aqui uma alegria,
ali entrega uma frase
(como o dia está bonito!)
à mulher que abre a janela,
além deixa uma esperança
mais além uma coragem,
e além, aqui e ali
pelo campo e pela serra,
aos mendigos e aos sovinas,
aos marinheiros, aos tímidos,
aos desgraçados, aos prósperos,
aos solitários, aos mansos,
às velhas virgens, às puras
e às doidivanas também,
a manhã vai derramando
uma alegria de viver,
vai derramando um perdão,
vai derramando uma vontade de cantar.
E de repente a manhã
— manhã é céu derramado,
é claridão, claridão —
foi transformando a cidade
numa praça imensa praça,
e dentro da praça o povo
o povo inteiro cantando,
dentro do povo o menino
me levando pela mão.


Poemas e Poesias segunda, 12 de fevereiro de 2024

SAUDADES DO PORVIR (POEMA DO MARANHENSE SOUSÂNDRADE)

SAUDADES DO PORVIR

Sousândrade

 

 

 

Eu vou com a noite
Pálida e fria
Na penedia
Me debruçar:
O promontório
De negro dorso,
Qual nau de corso
Se alonga ao mar.

Dormem as horas,
A flor somente
Respira e sente
Na solidão;
A flor das rochas,
Franzina e leve,
Ao sopro breve
Da viração.

Cantando o nauta
Desdobra as velas
Argênteas, belas
Asas do mar;
Branqueia a proa
Partindo as vagas,
Que n’outras plagas
Se vão quebrar.

Eu ponho os olhos
No firmamento:
Que isolamento,
Oh, minha irmã!
Apenas o astro
Que a luz duvida,
Promete a vida
Para amanhã.

Naquela nuvem
Te vejo morta;
Meu peito corta
Cruel sentir
Da lua o túmulo
Na onda ondula,
E o mar modula
Como um porvir…


Poemas e Poesias domingo, 11 de fevereiro de 2024

PUDOR (POEMA DO FLUMINENSE RAUL DE LEÔNI)

PUDOR

Raul de Leôni

 

Quando fores sentindo que o fulgor
Do teu Ser se corrompe e a adolecência
Do teu gênio desmaia e perde a cor,
Entre penumbras e deliquescência,

Faze a tua sagrada penitência,
Fecha-te num silêncio superior,
Mas não mostres a tua decadência
Ao mundo que assistiu teu esplendor!

Foge de tudo para o teu nadir!
Poupa ao prazer dos homens o teu drama!
Que é mesmo triste para os olhos ver

E assistir, sobre o mesmo panorama,
A alegoria matinal subir
E a ronda dos crepúsculos descer...

 


Poemas e Poesias sábado, 10 de fevereiro de 2024

AUTOBIOGRAFIA (POEMA DO CEARENSE PATATIVA DO ASSARÉ)

AUTOBIOGRAFIA

Patativa do Assaré

 

 

Mas porém como a leitura

 É a maió diciprina

 E veve na treva iscura

Quem seu nome não assina,

Mesmo na lida pesada,

Para uma escola atrasada

Tinha uma parte do dia,

Onde estudei argum mês

Com um veio camponês

Que quase nada sabia.

 

Meu professô era fogo

Na base do português,

Catálogo, era catalôgo,

Mas grande favô me fez.

O mesmo nunca esqueci,

Foi com ele que aprendi

Minhas premêra lição,

Muito a ele tô devendo,

Saí escrevendo e lendo

Mesmo sem pontuação.

 

Depois só fiz meus estudo,

Mas não nos livro escola

Eu gostava de lê tudo,

Revista, livro e jorná.

Com mais uns tempo pra frente,

Mesmo vagarosamente,

Não errava nenhum nome.

Lia no claro da luz

As pregação de Jesus

E as injustiça dos home.


Poemas e Poesias sexta, 09 de fevereiro de 2024

MIGALHAS DE VENTURA (POEMA DO PERNAMBUCANO OLEGÁRIO MARIANO)

MIGALHAS DE VENTURA

Olegário Mariano

 

 

 

Tirem-me a luz que os olhos me alumia,
O ar que me enche os pulmões e o céu que adoro;
Tirem-me esses momentos de alegria,
Tirem-me a voz de pássaro canoro;

Tirem-me a paz do espírito, a harmonia
Da vida, e o mar que canta, quando eu choro
Tirem-me a noite e, ao luar da noite fria,
O sonoro esplendor do céu sonoro;

Tirem-me a glória de viver, o encanto,
A lágrima, o sorriso, a mocidade
Que faz com que eu na vida engane tanto!

Tirem-me o manto, deixem-me desnudo,
Mas não me tirem da alma esta saudade,
Que é meu sangue, meu ser, meu pão, meu tudo!


Poemas e Poesias quinta, 08 de fevereiro de 2024

O POLO (POEMA DO CARIOCA OLAVO BILAC)

O POLO

Olavo Bilac

(Grafia original)

 

 

 

"Pára, conquistador intimorato e forte!

Pára! que buscas mais que te enobreça e eleve?

E tão alegre o sol! a existência é tão breve!

E é tão fria essa tumba entre os gelos do norte!

Dorme o céu. Numa ronda esquálida, de leve,

Erram fantasmas. Reina um silêncio de morte.

Focas de vulto informe, ursos de estranho porte

Morosamente vão de rastros sobre a neve..."

Em vão!... E o gelo cresce, e espedaça o navio.

E ele, subjugador do perigo e do medo,

Sem um gemido cai, morto de fome e frio.

E o Mistério se fecha aos seus olhos serenos...

Que importa? Outros virão devassar-lhe o segredo!

Um cadáver de mais... um sonhador de menos...

 


Poemas e Poesias quarta, 07 de fevereiro de 2024

OS POEMAS (POEMA DO GAÚCHO MÁRIO QUINTANA)

OS POEMAS

Mário Quintana

 

 

 

Os poemas são pássaros que chegam
não se sabe de onde e pousam
no livro que lês.

Quando fechas o livro, eles alçam voo
como de um alçapão.

Eles não têm pouso
nem porto
alimentam-se um instante
em cada par de mãos
e partem.

E olhas, então, essas tuas mãos vazias,
no maravilhado espanto de saberes
que o alimento deles já estava em ti…


Poemas e Poesias terça, 06 de fevereiro de 2024

OBRAR (POEMA DO MATO-GROSSENSE MANOEL DE BARROS)

 

OBRAR

Manoel de Barros

 

 

Obrar
Naquele outono, de tarde, ao pé da roseira de minha
avó, eu obrei.
Minha avó não ralhou nem.
Obrar não era construir casa ou fazer obra de arte.
Esse verbo tinha um dom diferente.
Obrar seria o mesmo que cacarar.
Sei que o verbo cacarar se aplica mais a passarinhos
Os passarinhos cacaram nas folhas nos postes nas pedras do rio
nas casas.
Eú só obrei no pé da roseira da minha avó.
Mas ela não ralhou nem.
Ela disse que as roseiras estavam carecendo de esterco orgânico.
E que as obras trazem força e beleza às flores.
Por isso, para ajudar, andei a fazer obra nos canteiros da horta.
Eu só queria dar força às beterrabas e aos tomates.
A vó então quis aproveitar o feito para ensinar que o cago não é uma
coisa desprezível.
Eu tinha vontade de rir porque a vó contrariava os
ensinos do pai.
Minha avó, ela era transgressora.
No propósito ela me disse que até as mariposas gostavam
de roçar nas obras verdes.
Entendi que obras verdes seriam aquelas feitas no dia.
Daí que também a vó me ensinou a não desprezar as coisas
desprezíveis
E nem os seres desprezados.

Poemas e Poesias segunda, 05 de fevereiro de 2024

EVOCAÇÃO DO RECIFE (POEMA DO PERNAMBUCANO MANUEL BANDEIRA)

EVOCAÇÃO DO RECIFE

Manuel Bandeira

 

 

Não a Veneza americana
Não a Mauritsstad dos armadores das Índias Ocidentais
Não o Recife dos Mascates
Nem mesmo o Recife que aprendi a amar depois
— Recife das revoluções libertárias
Mas o Recife sem história nem literatura
Recife sem mais nada
Recife da minha infância
A rua da União onde eu brincava de chicote-queimado
e partia as vidraças da casa de dona Aninha Viegas
Totônio Rodrigues era muito velho e botava o pincenê
na ponta do nariz
Depois do jantar as famílias tomavam a calçada com cadeiras
mexericos namoros risadas
A gente brincava no meio da rua
Os meninos gritavam:
Coelho sai!
Não sai!


A distância as vozes macias das meninas politonavam:
Roseira dá-me uma rosa
Craveiro dá-me um botão


(Dessas rosas muita rosa
Terá morrido em botão...)
De repente
nos longos da noite
um sino
Uma pessoa grande dizia:
Fogo em Santo Antônio!
Outra contrariava: São José!
Totônio Rodrigues achava sempre que era são José.
Os homens punham o chapéu saíam fumando
E eu tinha raiva de ser menino porque não podia ir ver o fogo.


Rua da União...
Como eram lindos os montes das ruas da minha infância
Rua do Sol
(Tenho medo que hoje se chame de dr. Fulano de Tal)
Atrás de casa ficava a Rua da Saudade...
...onde se ia fumar escondido
Do lado de lá era o cais da Rua da Aurora...
...onde se ia pescar escondido
Capiberibe
— Capiberibe
Lá longe o sertãozinho de Caxangá
Banheiros de palha
Um dia eu vi uma moça nuinha no banho
Fiquei parado o coração batendo
Ela se riu
Foi o meu primeiro alumbramento
Cheia! As cheias! Barro boi morto árvores destroços redemoinho sumiu
E nos pegões da ponte do trem de ferro
os caboclos destemidos em jangadas de bananeiras


Novenas
Cavalhadas
E eu me deitei no colo da menina e ela começou
a passar a mão nos meus cabelos
Capiberibe
— Capiberibe
Rua da União onde todas as tardes passava a preta das bananas
Com o xale vistoso de pano da Costa
E o vendedor de roletes de cana
O de amendoim
que se chamava midubim e não era torrado era cozido
Me lembro de todos os pregões:
Ovos frescos e baratos
Dez ovos por uma pataca
Foi há muito tempo...
A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros
Vinha da boca do povo na língua errada do povo
Língua certa do povo
Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil
Ao passo que nós
O que fazemos
É macaquear
A sintaxe lusíada
A vida com uma porção de coisas que eu não entendia bem
Terras que não sabia onde ficavam
Recife...
Rua da União...
A casa de meu avô...
Nunca pensei que ela acabasse!
Tudo lá parecia impregnado de eternidade
Recife...
Meu avô morto.
Recife morto, Recife bom, Recife brasileiro
como a casa de meu avô.


Poemas e Poesias domingo, 04 de fevereiro de 2024

AS ESRTRELAS (POEMA DO CARIOCA LUÍS GUIMARÃES JÚNIOR)

AS ESTRELAS

Luís Guimarães Júnior

 

 

 

Boas amigas, imortais estrelas,
Eu vos comparo, oh níveas criaturas,
Ao ver-vos caminhar n'essas Alturas,
A um rebanho de lúcidas gazelas.

Bem se assemelha o vosso olhar ao delas,
Ninho de amor e ternas amarguras,
Mas sois mais puras que as gazelas puras,
Boas amigas, imortais estrelas!

As vezes, levo as noites, fielmente,
A vos seguir aí nas nebulosas
Planícies como um cão triste e dormente...

Mas vós fugis de mim!—silenciosas
Mergulhais no Infinito, de repente,
Como um bando de letras luminosas.


Poemas e Poesias sábado, 03 de fevereiro de 2024

O BOM REITOR (POEMA DO PORTUGUÊS JÚLIO DINIS)

O BOM REITOR

Júlio Dinis

 

 

 

Sabem a história triste
Do bom reitor?
Mísero, toda a vida
Levou com dor.

Fez quanto bem podia, Mas… afinal
Morre, e na pobre campa
Nem um sinal.

Nem uma cruz ao menos
Se ergue no chão!
Geme-lhe só no túmulo
A viração.

Vedes, além, na relva
Junto ao rosai,
Flores que há desfolhado
O vendaval?

Cobrem-lhe a lousa humilde; A criação
Paga-lhe assim a dívida
De compaixão.

Pobres, que amava tanto, Nunca, ao passar,
Choram, curvando a fronte
Para rezar.

Nunca, ao romper do dia, O lavrador
Pára e lamenta a sorte
Do bom reitor.

As criancinhas nuas
Que estremeceu,
Já nem sequer se lembram
Do nome seu.

No salgueiral vizinho, Ao pôr do Sol,
Vai carpir-lhe saudades
O rouxinol.

Lágrimas… pobre campal
Ai, não as tem;
Só da manhã o orvalho
Rociá-la vem.

Da solitária Lua
A triste luz
Grava-lhe em vagas sombras,
Estranha cruz.

E ele repousa, dorme, Vive no Céu.
Dorme, esquecido e humilde, Como viveu.

Há nesta vida amarga
Sortes assim:
Vive-se num martírio,
Morre-se enfim.

Sem que memória fique
Para contar
Às gerações que passam,
Nosso penar.

Quem me escutar, se um dia
Ao prado for,
Ore pelo descanso
Do bom reitor.


Poemas e Poesias sexta, 02 de fevereiro de 2024

MANHÃ PARA SERE FELIZ (POEMA DO ACRIANO J. G. DE ARAÚJO JORGE)

MANHÃ PARA SER FELIZ

J. G. de Araújo Jorge

 

 

Esta é uma manhã para ser feliz
em um lugar, de algum modo,
é uma manhã para ser feliz...

Esta é uma manhã para dois, para dois juntos
abraçados e tontos, num remoinho
não como nós, eu aqui, diante do sol, das árvores,
de tudo envergonhado porque estou sozinho...

Esta é uma manhã que me fala de ti, nas nuvens,
na transparência do ar,
neste azul do céu, imaculado,
na beleza das coisas tocadas de sonho
e imaturidade...

Uma manhã de festa
para ser feliz de verdade!
Esta é uma manhã
para te Ter ao meu lado...

Quando Deus fez uma manhã como esta
estava com certeza apaixonado...


Poemas e Poesias quinta, 01 de fevereiro de 2024

RIOS DE RUMOR (POEMA DA PAULISTA HILDA HILST)

RIOS DE RUMOR

Hilda Hilst

 

 

 

Rios de rumor: meu peito te dizendo adeus.
Aldeia é o que sou. Aldeã de conceitos
Porque me fiz tanto de ressentimentos
Que o melhor é partir. E te mandar escritos.
Rios de rumor no peito: que te viram subir
A colina de alfafas, sem éguas e sem cabras
Mas com a mulher, aquela,
Que sempre diante dela me soube tão pequena.
Sabenças? Esqueci-as. Livros? Perdi-os.
Perdi-me tanto em ti
Que quando estou contigo não sou vista
E quando estás comigo veem aquela.


Poemas e Poesias quarta, 31 de janeiro de 2024

POUCO ACIMA DAQUELA ALVÍSSIMA COLUNA) POEMA DO SERGINANO HERMES FONTES)

POUCO ACIMA DAQUELA ALVÍSSIMA COLUNA

Hermes Fontes

 

Pouco acima daquela alvíssima coluna
que é o seu pescoço, a boca é-lhe uma taça tal
que, vendo-a, ou, vendo-a, sem, na realidade, a ver,
de espaço a espaço, o céu da boca se me enfuna
de beijos — uns, sutis, em diáfano cristal
lapidados na oficina do meu Ser;
outros — hóstias ideais dos meus anseios,
e t o d o s cheios, t o d o s cheios
do meu infinito amor . . .
Taça
que encerra
por
suma graça
tudo que a terra
de bom
produz!
Boca!
o dom
possuis
de pores
louca
a minha boca
Taça
de astros e flores,
na qual
esvoaça
meu ideal!
Taça cuja embriaguez
na via-láctea do Sonho ao céu conduz!
Que me enlouqueças mais... e, a mais e mais, me dês
o teu delírio... a tua chama... a tua luz...

 

 


Poemas e Poesias terça, 30 de janeiro de 2024

LONGE DA VISTA (POEMA DO PAULISTA GUILHERME DE ALMEIDA)

LONGE DA VISTA

Guilherme de Almeida

 

 

 

Vou partir, vais ficar. “Longe da vista,
Longe do coração” – diz o ditado.
Basta, porém, que o nosso amor exista,
Para que eu parta e fiques sem cuidado.

Dentro em mim mesmo, o coração egoísta,
Quanto mais longe, mais te quer ao lado;
Tanto mais te ama, quanto mais te avista
E, antes de ver-te, já te havia amado.

Vou partir. Para longe? Para perto?
– Não sei: longe de ti tudo é deserto
E todas as distâncias são iguais.

Como eu quisera que, na despedida,
Quando se unissem nossas mãos, querida,
Nunca pudessem desunir-se mais!


Poemas e Poesias segunda, 29 de janeiro de 2024

NATUREZA (POEMA DA PAULISTA FRANCISCA JÚLIA)

NATUREZA

Francisca Júlia

 

 

 

Um contínuo voejar de moscas e de abelhas
Agita os ares de um rumor de asas medrosas;
A Natureza ri pelas bocas vermelhas
Tanto das flores más como das boas rosas.

Por contraste, hás de ouvir em noites tenebrosas
O grito dos chacais e o pranto das ovelhas,
Brados de desespero e frases amorosas
Pronunciadas, a medo, à concha das orelhas...

Ó Natureza, ó Mãe pérfida! tu, que crias,
Na longa sucessão das noites e dos dias,
Tanto aborto, que se transforma e se renova,

Quando meu pobre corpo estiver sepultado,
Mãe! transforma-o também num chorão recurvado
Para dar sombra fresca à minha própria cova.

Poemas e Poesias domingo, 28 de janeiro de 2024

PARTICULARIDADES - 1 (POEMA DA CARIOCA GILKA MACHADO)

PARTICULARIDADES - 1

Gilka Machado

 

 

 

Na plena solidão de um amplo descampado,
penso em ti e que tu pensas em mim suponho;
tenho toda afeição de um arbusto isolado,
abstrato o olhar, entregue à delícia de um sonho.

O Vento, sob o céu de brumas carregado,
passa, ora langoroso, ora forte, medonho!
e tanto penso em ti, ó meu ausente amado!
que te sinto no Vento e a ele, feliz, me exponho.

Com carícias brutais e com carícias mansas,
cuido que tu me vens, julgo-me toda nua...
– sou árvore a oscilar, meus cabelos são franças...

E não podes saber do meu gozo violento,
quando me fico assim, neste ermo, toda nua,
completa-te exposta à Volúpia do Vento!


Poemas e Poesias sábado, 27 de janeiro de 2024

ESCREVE-ME (POEMA DA PORTUGUESA FLORBELA ESPANCA)

ESCREVE-ME

Florbela Espanca

 

 

 

Escreve-me! Ainda que seja só
Uma palavra, uma palavra apenas,
Suave como o teu nome e casta
Como um perfume casto d'açucenas!


Escreve-me!Há tanto,há tanto tempo
Que te não vejo, amor!Meu coração
Morreu já,e no mundo aos pobres mortos
Ninguém nega uma frase d'oração!


"Amo-te!"Cinco letras pequeninas,
Folhas leves e tenras de boninas,
Um poema d'amor e felicidade!


Não queres mandar-me esta palavra apenas?
Olha, manda então...brandas...serenas...
Cinco pétalas roxas de saudade...


Poemas e Poesias sexta, 26 de janeiro de 2024

HOMEM SENTADO (POEMA DO MARANHENSE FERREIRA GULLAR)

HOMEM SENTADO

Ferreira Gullar

 

 

 

Neste divã recostado
à tarde
num canto do sistema solar
em Buenos Aires
(os intestinos dobrados
dentro da barriga, as pernas
sob o corpo)
vejo pelo janelão da sala
parte da cidade:
estou aqui
apoiado apenas em mim mesmo
neste meu corpo magro mistura
de nervos e ossos
vivendo
à temperatura de 36 graus e meio
lembrando plantas verdes
que já morreram

 


Poemas e Poesias quinta, 25 de janeiro de 2024

DIZEM QUE FINJO OU MINTO (POEMA DO PORTUGUÊS FERNANDO PES9OA)

DIZEM QUE FINJO OU MINTO

Fernando Pessoa

 

 

 

Dizem que finjo ou minto
Tudo que escrevo. Não.
Eu simplesmente sinto
Com a imaginação.
Não uso o coração.

Tudo o que sou ou passo,
O que me falha ou finda,
É como que um terraço
Sobre outra coisa ainda.
Essa coisa é que é linda.

Por isso escrevo em meio
Do que não está ao pé,
Livre do meu enleio,
Sério do que não é.
Sentir? Sinta quem lê!


Poemas e Poesias quarta, 24 de janeiro de 2024

SAINT-JUST (POEMA DO FLUMINENSE EUCLIDES DA CUNHA)

SAINT-JUST

Euclides da Cunha

 

 

 

Quando à tribuna ele se ergueu, rugindo,
– Ao forte impulso das paixões audazes
Ardente o lábio de terríveis frases
E a luz do gênio em seu olhar fulgindo,

A tirania estremeceu nas bases,
De um rei na fronte ressumou, pungindo,
Um suor de morte e um terror infindo
Gelou o seio aos cortesãos sequazes –

Uma alma nova ergueu-se em cada peito,
Brotou em cada peito uma esperança,
De um sono acordou, firme, o Direito –

E a Europa – o mundo – mais que o mundo, a França –
Sentiu numa hora sob o verbo seu
As comoções que em séculos não sofreu!

 


Poemas e Poesias terça, 23 de janeiro de 2024

TROVAS HUMORÍSTICAS - 25 - (POEMA DO PARANAENSE ENO TEODORO WANKE)

 

 
 

TROVA HUMORÍSTICA 25

Eno Teodoro Wanke

 

 Só porque está resfriada

Me recusa meu beijinho?...

Vá, não seja tão malvada

Me transmita um microbinho.

 


Poemas e Poesias segunda, 22 de janeiro de 2024

SELVA SELVAGGIA (POEMA DO PIAUIENSE DA COSTA E SILVA)

SELVA SELVAGGIA

Da Costa e Silva

 

 

 

... Vi-me, sem o saber, perdido e errante
Por uma selva escura e misteriosa,
Como aquela floresta fabulosa,
Por onde errava o espírito do Dante.

Atônito e indeciso eu fiquei, diante
Do dédalo de sombras, de alma ansiosa
Como se dentro de uma nebulosa
Visse a livre amplidão do azul distante...

Andei às tontas, como que à procura,
Pelo instinto profético e divino,
De incerta luz na pávida espessura...

E, só conjeturava em desatino:
Que seria esta selva estranha e escura?
— Eu pensei que era a Vida... — Era o Destino.

 


Poemas e Poesias domingo, 21 de janeiro de 2024

CARNAL E MÍSTICO (POEMA DO CATARINENSE CRUZ E SOUSA)

CARNAL E MÍSTICO

Cruz e Sousa

 

 

 

Pelas regiões tenuíssimas da bruma
vagam as Virgens e as Estrelas raras...
Como que o leve aroma das searas
todo o horizonte em derredor perfuma.

Numa evaporação de branca espuma
vão diluindo as perspectivas claras...
Com brilhos crus e fúlgidos de tiaras
as Estrelas apagam-se uma a uma.

E então, na treva, em místicas dormências,
desfila, com sidéreas latescências,
das Virgens o sonâmbulo cortejo...

Ó Formas vagas, nebulosidades!
Essência das eternas virgindades!
Ó intensas quimeras do Desejo...

 


Poemas e Poesias sábado, 20 de janeiro de 2024

O SENTIMENTO DUM OCIDENTAL - II - NOITE FECHADA (POEMA DO PORTUGTUÊS CESÁRIO VERDE)

O SENTIMENTO DUM OCIDENTAL - II - NOITE FECHADA

Cesário Verde

 

 

 

Toca-se às grades, nas cadeias. Som
Que mortifica e deixa umas loucuras mansas!
O Aljube, em que hoje estão velhinhas e crianças,
Bem raramente encerra uma mulher de <<dom>>!

E eu desconfio, até, de um aneurisma
Tão mórbido me sinto, ao acender das luzes;
À vista das prisões, da velha Sé, das Cruzes,
Chora-me o coração que se enche e que se abisma.

A espaços, iluminam-se os andares,
E as tascas, os cafés, as tendas, os estancos
Alastram em lençol os seus reflexos brancos;
E a Lua lembra o circo e os jogos malabares.

Duas igrejas, num saudoso largo,
Lançam a nódoa negra e fúnebre do clero:
Nelas esfumo um ermo inquisidor severo,
Assim que pela História eu me aventuro e alargo.

Na parte que abateu no terremoto,
Muram-me as construções rectas, iguais, crescidas;
Afrontam-me, no resto, as íngremes subidas,
E os sinos dum tanger monástico e devoto.

Mas, num recinto público e vulgar,
Com bancos de namoro e exíguas pimenteiras,
Brônzeo, monumental, de proporções guerreiras,
Um épico doutrora ascende, num pilar!

E eu sonho o Cólera, imagino a Febre,
Nesta acumulação de corpos enfezados;
Sombrios e espectrais recolhem os soldados;
Inflama-se um palácio em face de um casebre.

Partem patrulhas de cavalaria
Dos arcos dos quartéis que foram já conventos:
Idade Média! A pé, outras, a passos lentos,
Derramam-se por toda a capital, que esfria.

Triste cidade! Eu temo que me avives
Uma paixão defunta! Aos lampiões distantes,
Enlutam-me, alvejando, as tuas elegantes,
Curvadas a sorrir às montras dos ourives.

E mais: as costureiras, as floristas
Descem dos magasins, causam-me sobressaltos;
Custa-lhes a elevar os seus pescoços altos
E muitas delas são comparsas ou coristas.

E eu, de luneta de uma lente só,
Eu acho sempre assunto a quadros revoltados:
Entro na brasserie; às mesas de emigrados,
Ao riso e à crua luz joga-se o dominó.


Poemas e Poesias sexta, 19 de janeiro de 2024

RETRATO (POEMA DA CARIOCA CECÍLIA MEIRELES)

RETRATO

Cecília Meireles

 

 

 

Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazios,
nem o lábio tão amargo.

Eu não tinha estas mãos tão sem força,
Tão paradas e frias e mortas;
Eu não tinha este coração
Que nem se mostra.

Eu não dei por esta mudança,
Tão simples, tão certa, tão fácil:
– Em que espelho ficou retida
a minha face?


Poemas e Poesias quarta, 17 de janeiro de 2024

BOA NOITE (POEMA DO BAIANO CASTRO ALVES)

BOA NOITE

Castro Alves

 

 

 

Boa noite, Maria! Eu vou-me embora.
A lua nas janelas bate em cheio...
Boa noite, Maria! É tarde... é tarde...
Não me apertes assim contra teu seio.

Boa noite!... E tu dizes – Boa noite.
Mas não digas assim por entre beijos...
Mas não me digas descobrindo o peito,
– Mar de amor onde vagam meus desejos.

Julieta do céu! Ouve.. a calhandra
já rumoreja o canto da matina.
Tu dizes que eu menti?... pois foi mentira...
...Quem cantou foi teu hálito, divina!

Se a estrela-d'alva os derradeiros raios
Derrama nos jardins do Capuleto,
Eu direi, me esquecendo d'alvorada:
"É noite ainda em teu cabelo preto..."

É noite ainda! Brilha na cambraia
– Desmanchado o roupão, a espádua nua –
o globo de teu peito entre os arminhos
Como entre as névoas se balouça a lua...

É noite, pois! Durmamos, Julieta!
Recende a alcova ao trescalar das flores,
Fechemos sobre nós estas cortinas...
– São as asas do arcanjo dos amores.

A frouxa luz da alabastrina lâmpada
Lambe voluptuosa os teus contornos...
Oh! Deixa-me aquecer teus pés divinos
Ao doudo afago de meus lábios mornos.

Mulher do meu amor! Quando aos meus beijos
Treme tua alma, como a lira ao vento,
Das teclas de teu seio que harmonias,
Que escalas de suspiros, bebo atento!

Ai! Canta a cavatina do delírio,
Ri, suspira, soluça, anseia e chora...
Marion! Marion!... É noite ainda.
Que importa os raios de uma nova aurora?!...

Como um negro e sombrio firmamento,
Sobre mim desenrola teu cabelo...
E deixa-me dormir balbuciando:
– Boa noite! –, formosa Consuelo...


Poemas e Poesias segunda, 15 de janeiro de 2024

PALAVRAS A ALGUÉM (POEMA DO FLUMINENSE CASIMIRO DE ABREU)

PALAVRAS A ALGUÉM

Casimiro de Abreu

 

 

 

Tu folgas travessa e louca

Sem ouvires meu lamento,

Sonhas jardins d’esmeralda

Nesse virgem pensamento,

Mas olha que essa grinalda

Bem pode murchá-la o vento!

Ai que louca! abriste o livro

Da minh’alma, livro santo,

Escrito em noites d’angústia,

Regado com muito pranto,

E... quase rasgaste as folhas

Sem entenderes o canto!

Agora corres nos charcos

Em vez das alvas areias!...

Deleita-te a voz fingida

Dessas formosas sereias...

Mas eu te falo e te aviso:

- “olha que tu te enlameias!” -

Tu és a pomba inocente,

Eu sou teu anjo-da-guarda,

Devo dizer-te baixinho:

- “Olha que a morte não tarda!

“Mariposa dos amores,

 

“Deixa a luz, embora arda.

“A chama seduz e brilha

- “Qual diamante entre gazas -

“E tu no fogo maldito

“Tão descuidosa te abrasas!

“Mariposa, mariposa,

“Tu vais queimar tuas asas!”

Conchinha das lisas praias,

Nasceste em alvas areias,

Não corras tu para os charcos

Arrebatada nas cheias!...

- Os teus vestidos são brancos...

Olha que tu te enlameias!...


Poemas e Poesias domingo, 14 de janeiro de 2024

SONETO DO DESMANTELO AZUL (POEMA DO PERNAMBUCANO CARLOS PENA FILHIO)

SONETO DO DESMANTELO AZUL

Carlos Pena Filho

 

 

 

Então, pintei de azul os meus sapatos
por não poder de azul pintar as ruas,
depois, vesti meus gestos insensatos
e colori as minhas mãos e as tuas,

Para extinguir em nós o azul ausente
e aprisionar no azul as coisas gratas,
enfim, nós derramamos simplesmente
azul sobre os vestidos e as gravatas.

E afogados em nós, nem nos lembramos
que no excesso que havia em nosso espaço
pudesse haver de azul também cansaço.

E perdidos de azul nos contemplamos
e vimos que entre nós nascia um sul
vertiginosamente azul. Azul.


Poemas e Poesias sábado, 13 de janeiro de 2024

CONFIDÊNCIA DO ITABIRANO (POEMA DO MINEIRO CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE)

CONFIDÊNCIA DO ITABIRANO

Carlos Drummond de Andrade

 

 

 

Alguns anos vivi em Itabira.
Principalmente nasci em Itabira.
Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro.
Noventa por cento de ferro nas calçadas.
Oitenta por cento de ferro nas almas.
E esse alheamento do que na vida é porosidade e comunicação.

A vontade de amar, que me paralisa o trabalho,
vem de Itabira, de suas noites brancas, sem mulheres e sem horizontes.
E o hábito de sofrer, que tanto me diverte,
é doce herança itabirana.

De Itabira trouxe prendas diversas que ora te ofereço:
esta pedra de ferro, futuro aço do Brasil;
este São Benedito do velho santeiro Alfredo Duval;
este couro de anta, estendido no sofá da sala de visitas;
este orgulho, esta cabeça baixa…

Tive ouro, tive gado, tive fazendas.
Hoje sou funcionário público.
Itabira é apenas uma fotografia na parede.
Mas como dói!

 

 


Poemas e Poesias sexta, 12 de janeiro de 2024

SONETO 1668 - EL VASO RELUCIENTE Y CRISTALINO (POEMA DO PORTUGUÈS LUÍS DE CAMÕES)

 

 
 
 
 
EL VASO RELUCIENTE Y CRISTALINO
Soneto 1668
Luís de Camões
 
 

 El vaso reluciente y cristalino,
de Ángeles agua clara y olorosa,
de blanca seda ornado y fresca rosa,
ligado con cabellos de oro fino,

bien claro parecía el don divino
labrado por la mano artificiosa
de aquella blanca Ninfa, graciosa
más que el rubio lucero matutino.

Nel vaso vuestro cuerpo se afigura,
raxado de los blancos miembros bellos,
y en el agua vuestra ánima pura.

La seda es la blancura, y los cabellos
son las prisiones y la ligadura
con que mi libertad fue asida dellos.

 


Poemas e Poesias quinta, 11 de janeiro de 2024

CEM TROVAS - 015 (POEMA DO MINEIRO BELMIRO BRAGA)
 
)
 

TROVA 015

Belmiro Braga

                

 

 

Eu morro por Filomena,
Filomena por Joaquim,
o Joaquim por Madalena
e Madalena por mim.

Poemas e Poesias quarta, 10 de janeiro de 2024

QUEIXAS NOTURNAS (POEMA DO PARAIBANO AUGUSTO DOS ANJOS)

QUEIXAS NOTURNAS

Augusto dos Anjos

 

 

 

Quem foi que viu a minha Dor chorando?!
Saio. Minh'alma sai agoniada.
Andam monstros sombrios pela estrada
E pela estrada, entre estes monstros, ando!

Não trago sobre a túnica fingida
As insígnias medonhas do infeliz
Como os falsos mendigos de Paris
Na atra rua de Santa Margarida.

O quadro de aflições que me consomem
O próprio Pedro Américo não pinta...
Para pintá-lo, era preciso a tinta
Feita de todos os tormentos do homem!

Como um ladrão sentado numa ponte
Espera alguém, armado de arcabuz,
Na ânsia incoercível de roubar a luz,
Estou à espera de que o Sol desponte!

Bati nas pedras dum tormento rude
E a minha mágoa de hoje é tão intensa
Que eu penso que a Alegria é uma doença
E a Tristeza é minha única saúde.

As minhas roupas, quero até rompê-las!
Quero, arrancado das prisões carnais,
Viver na luz dos astros imortais,
Abraçado com todas as estrelas!

A Noite vai crescendo apavorante
E dentro do meu peito, no combate,
A Eternidade esmagadora bate
Numa dilatação exorbitante!

E eu luto contra a universal grandeza
Na mais terrível desesperação
É a luta, é o prélio enorme, é a rebelião
Da criatura contra a natureza!

Para essas lutas uma vida é pouca
Inda mesmo que os músculos se esforcem;
Os pobres braços do mortal se torcem
E o sangue jorra, em coalhos, pela boca.

E muitas vezes a agonia é tanta
Que, rolando dos últimos degraus,
O Hércules treme e vai tombar no caos
De onde seu corpo nunca mais levanta!

É natural que esse Hércules se estorça,
E tombe para sempre nessas lutas,
Estrangulado pelas rodas brutas
Do mecanismo que tiver mais força.

Ah! Por todos os séculos vindouros
Há de travar-se essa batalha vã
Do dia de hoje contra o de amanhã,
Igual à luta dos cristãos e mouros!

Sobre histórias de amor o interrogar-me
É vão, é inútil, é improfícuo, em suma;
Não sou capaz de amar mulher alguma
Nem há mulher talvez capaz de amar-me.

O amor tem favos e tem caldos quentes
E ao mesmo tempo que faz bem, faz mal;
O coração do Poeta é um hospital
Onde morreram todos os doentes.

Hoje é amargo tudo quanto eu gosto;
A bênção matutina que recebo...
E é tudo: o pão que como, a água que bebo,
O velho tamarindo a que me encosto!

Vou enterrar agora a harpa boêmia
Na atra e assombrosa solidão feroz
Onde não cheguem o eco duma voz
E o grito desvairado da blasfêmia!

Que dentro de minh'alma americana
Não mais palpite o coração - esta arca,
Este relógio trágico que marca
Todos os atos da tragédia humana!

Seja esta minha queixa derradeira
Cantada sobre o túmulo de Orfeu;
Seja este, enfim, o último canto meu
Por esta grande noite brasileira!

Melancolia! Estende-me a tu'asa!
És a árvore em que devo reclinar-me...
Se algum dia o Prazer vier procurar-me
Dize a este monstro que eu fugi de casa!Quem foi que viu a minha Dor chorando?!
Saio. Minh'alma sai agoniada.
Andam monstros sombrios pela estrada
E pela estrada, entre estes monstros, ando!

Não trago sobre a túnica fingida
As insígnias medonhas do infeliz
Como os falsos mendigos de Paris
Na atra rua de Santa Margarida.

O quadro de aflições que me consomem
O próprio Pedro Américo não pinta...
Para pintá-lo, era preciso a tinta
Feita de todos os tormentos do homem!

Como um ladrão sentado numa ponte
Espera alguém, armado de arcabuz,
Na ânsia incoercível de roubar a luz,
Estou à espera de que o Sol desponte!

Bati nas pedras dum tormento rude
E a minha mágoa de hoje é tão intensa
Que eu penso que a Alegria é uma doença
E a Tristeza é minha única saúde.

As minhas roupas, quero até rompê-las!
Quero, arrancado das prisões carnais,
Viver na luz dos astros imortais,
Abraçado com todas as estrelas!

A Noite vai crescendo apavorante
E dentro do meu peito, no combate,
A Eternidade esmagadora bate
Numa dilatação exorbitante!

E eu luto contra a universal grandeza
Na mais terrível desesperação
É a luta, é o prélio enorme, é a rebelião
Da criatura contra a natureza!

Para essas lutas uma vida é pouca
Inda mesmo que os músculos se esforcem;
Os pobres braços do mortal se torcem
E o sangue jorra, em coalhos, pela boca.

E muitas vezes a agonia é tanta
Que, rolando dos últimos degraus,
O Hércules treme e vai tombar no caos
De onde seu corpo nunca mais levanta!

É natural que esse Hércules se estorça,
E tombe para sempre nessas lutas,
Estrangulado pelas rodas brutas
Do mecanismo que tiver mais força.

Ah! Por todos os séculos vindouros
Há de travar-se essa batalha vã
Do dia de hoje contra o de amanhã,
Igual à luta dos cristãos e mouros!

Sobre histórias de amor o interrogar-me
É vão, é inútil, é improfícuo, em suma;
Não sou capaz de amar mulher alguma
Nem há mulher talvez capaz de amar-me.

O amor tem favos e tem caldos quentes
E ao mesmo tempo que faz bem, faz mal;
O coração do Poeta é um hospital
Onde morreram todos os doentes.

Hoje é amargo tudo quanto eu gosto;
A bênção matutina que recebo...
E é tudo: o pão que como, a água que bebo,
O velho tamarindo a que me encosto!

Vou enterrar agora a harpa boêmia
Na atra e assombrosa solidão feroz
Onde não cheguem o eco duma voz
E o grito desvairado da blasfêmia!

Que dentro de minh'alma americana
Não mais palpite o coração - esta arca,
Este relógio trágico que marca
Todos os atos da tragédia humana!

Seja esta minha queixa derradeira
Cantada sobre o túmulo de Orfeu;
Seja este, enfim, o último canto meu
Por esta grande noite brasileira!

Melancolia! Estende-me a tu'asa!
És a árvore em que devo reclinar-me...
Se algum dia o Prazer vier procurar-me
Dize a este monstro que eu fugi de casa!


Poemas e Poesias segunda, 08 de janeiro de 2024

MINHA DESGRAÇA (POEMA DO PAULISTA ÁLVARES DE AZEVEDO)

MINHA DESGRAÇA

Álvares de Azevedo

 

 

 


Minha desgraça não é ser poeta,
Nem na terra de amor não ter um eco...
E, meu anjo de Deus, o meu planeta
Tratar-me como trata-se um boneco...

Não é andar de cotovelos rotos,
Ter duro como pedra o travesseiro...
Eu sei... O mundo é um lodaçal perdido
cujo sol (quem mo dera) é o dinheiro...

Minha desgraça, ó cândida donzela,
O que faz que meu peito assim blasfema,
É ter por escrever todo um poema
E não ter um vintém para uma vela.

 

 


Poemas e Poesias domingo, 07 de janeiro de 2024

QUANDO EU SONHAVA (POEMA DO PORTUGUÊS ALMEIDA GARRETT)

QUANDO EU SONHAVA

Almeida Garrett 

 

 

 

Quando eu sonhava, era assim
Que nos meus sonhos a via;
E era assim que me fugia,
Apenas eu despertava,
Essa imagem fugidia
Que nunca pude alcançar.
Agora, que estou desperto,
Agora a vejo fixar...
Para quê? – Quando era vaga,
Uma ideia, um pensamento,
Um raio de estrela incerto
No imenso firmamento,
Uma quimera, um vão sonho,
Eu sonhava – mas vivia:
Prazer não sabia o que era,
Mas dor, não na conhecia ...


Poemas e Poesias sábado, 06 de janeiro de 2024

LUVA ABANDONADA (POEMA DO FLUMINENSE ALBERTO DE OLIVEIRA)

LUVA ABANDONADA

Alberto de Oliveira

 

 

 

Uma só vez calçar-vos me foi dado,
Dedos claros! A escura sorte minha,
O meu destino, como um vento irado,
Levou-vos longe e me deixou sozinha!

Sobre este cofre, desta cama ao lado,
Murcho, como uma flor, triste e mesquinha,
Bebendo ávida o cheiro delicado
Que aquela mão de dedos claros tinha.

Cálix que a alma de um lírio teve um dia
Em si guardada, antes que ao chão pendesse,
Breve me hei de esfazer em poeira, em nada…

Oh! em que chaga viva tocaria
Quem nesta vida compreender pudesse
A saudade da luva abandonada!


Poemas e Poesias sexta, 05 de janeiro de 2024

LIMITES DO AMOR (POEMA DO MINEIRO AFFONSO ROMANO DE SANT*ANNA)

LIMITES DO AMOR

Affonso Romano de Sant'Anna

 

 

 

Condenado estou a te amar
nos meus limites
até que exausta e mais querendo
um amor total, livre das cercas,
te despeça de mim, sofrida,
na direção de outro amor
que pensas ser total e total será
nos seus limites da vida.

O amor não se mede
pela liberdade de se expor nas praças
e bares, sem empecilho.
É claro que isto é bom e, às vezes,
sublime.
Mas se ama também de outra forma, incerta,
e este o mistério:


Poemas e Poesias quinta, 04 de janeiro de 2024

PRANTIO PARA COMOVER JONATHAN (POEMA DA MINEIRA ADÉLIA PRADO)

 

PRANTO PARA COMOVER JONATHAN

Adélia Prado

 

 

Os diamantes são indestrutíveis?
Mais é meu amor.
O mar é imenso?
Meu amor é maior,
mais belo sem ornamentos
do que um campo de flores.
Mais triste do que a morte,
mais desesperançado
do que a onda batendo no rochedo,
mais tenaz que o rochedo.
Ama e nem sabe mais o que ama.

 


Poemas e Poesias quarta, 03 de janeiro de 2024

A MULHER DA NOITE (POEMA DO CARIOCA VINÍCIUS DE MORAES)

A MULHER DA NOITE

Vinícius de Moraes

 

 

 

Eu fiquei imóvel e no escuro tu vieste.
A chuva batia nas vidraças e escorria nas calhas — vinhas andando e eu não te via
Contudo a volúpia entrou em mim e ulcerou a treva nos meus olhos.
Eu estava imóvel — tu caminhavas para mim como um pinheiro erguido
E de repente, não sei, me vi acorrentado no descampado, no meio de insetos
E as formigas me passeavam pelo corpo úmido.
Do teu corpo balouçante saíam cobras que se eriçavam sobre o meu peito
E muito ao longe me parecia ouvir uivos de lobas.
E então a aragem começou a descer e me arrepiou os nervos
E os insetos se ocultavam nos meus ouvidos e zunzunavam sobre os meus lábios.
Eu queria me levantar porque grandes reses me lambiam o rosto
E cabras cheirando forte urinavam sobre as minhas pernas.
Uma angústia de morte começou a se apossar do meu ser
As formigas iam e vinham, os insetos procriavam e zumbiam do meu desespero
E eu comecei a sufocar sob a rês que me lambia.
Nesse momento as cobras apertaram o meu pescoço
E a chuva despejou sobre mim torrentes amargas.

Eu me levantei e comecei a chegar, me parecia vir de longe
E não havia mais vida na minha frente.


Poemas e Poesias terça, 02 de janeiro de 2024

ÚLTIMA CONFIDÊNCIA (POEMA DO PAULISTA VICENTE DE CARVALHO)

ÚLTIMA CONFIDÊNCIA

Vicente de Carvalho

 

 

 

- E se acaso voltar? Que hei de dizer-lhe quando
Me perguntar por ti?
- Dize-lhe que me viste uma tarde chorando...
Nessa tarde parti.

- Se arrependido e ansioso ele indagar: Para onde?
Por onde a buscarei?
- Dize-lhe: "Para além... Para longe..." Responde
Como eu mesma: "Não sei".

Ai, é tão vasta a noite! A meia luz do ocaso
Desmaia... anoiteceu...
Onde vou? Nem eu sei... Irei seguindo o acaso
Até achar o céu...

Eu cheguei a supor que possível me fosse
Ser amada - e viver.
É tão fácil a morte... Ai, seria tão doce
Ser amada... e morrer!...

Ouve: conta-lhe tu que eu chorava, partindo,
As lágrimas que vês...
Só conheci do amor, que imaginei tão lindo,
O mal que ele me fez.

Narra-lhe transe a transe a dor que me consome...
Nem houve nunca igual!
Conta-lhe que eu morri murmurando o seu nome
No soluço final!

Dize-lhe que o seu nome ensangüentava a boca
Que o seu beijo não quis:
Golfa-me em sangue vês? E eu murmurando-o, louca!
Sinto-me tão feliz!

Nada lhe contes, não... Poupa-o... Eu quase o odeio,
Oculta-lho! Senhor,
Eu morro!... Amava-o tanto... Amei-o sempre... Amei-o
Até morrer... de amor.

 


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