ÚLTIMO CANTO
Euclides da Cunha
Amigo! estas canções estas filhas selvagens
Das montanhas, da luz, dos céus e das miragens
Sem arte e sem fulgor são um sonoro caos
De lágrimas e luz de plectros bons e maus…
Que ruge no meu peito e no meu peito chora
Sem um fiat de amor sem a divina aurora
De um olhar de mulher…
…perfeitamente o vês
Não sei metrificar, medir, separar pés…
— Pois — um beijo tem leis? — a um canto um núm’ro guia
Pode moldar-se uma alma às leis da geometria?
Não tenho ainda vinte anos.
E sou um velho poeta… a dor e os desenganos
Sagraram-me mui cedo, a minha juventude
É como uma manhã de Londres — fria e rude…
Filho lá dos sertões nas múrmuras florestas
Nesses berços de luz, de aromas de giestas –
Onde a poesia dorme ao canto das cachoeiras
Eu me embrenhava só… as auras forasteiras
Me segredavam baixo os cantos do mistério
E a floresta sombria era como um saltério
Em cujas vibrações minh’alma — ébria — bebia
Esse licor de luz e cantos — a Poesia…
Mui cedo como um elo atroz de luz e pó
Um sepulcro ligara a Deus minh’alma… só
Selvagem, triste e altivo eu enfrentei o mundo
Fitei-o então senti de meu cér’bro no fundo
Rolar iluminando a alma e o coração
C’o a lágrima primeira a primeira canção…
Cantei — porque sofria — e, amigo, no entretanto
Sofro hoje — porque canto…
Já vês, portanto, em mim esta arte de cantar
É um modo de sofrer , é um meio de gozar…
Quem há que meça aí de uma lágrima o brilho
Pois erra-se sofrendo?…
Eu nunca li Castilho.
Detesto francamente esses mestres cruéis
Que esmagam uma ideia sob quebrados pés…
Que vestem c’um soneto esplêndido, sem erro
Um pensamento torto, encarquilhado e perro
Como um correto frac no dorso de um corcunda
Oh sim! quando a paixão o nosso ser inunda
E ferve-nos na artéria, e canta-nos no peito
Como dos ribeirões, o borbulhoso leito
Parar — é sublevar
Medir — é deformar!
Por isso amo a Musset e jamais li Boileau
— 2 —
Esse arquiteto audaz do pensamento — Hugo
Jamais sói refrear o seu verso, terrível
Veloce como a luz, como o raio incoercível!…
Se a lima o toca, ardente, audaz como um corcel
Às esporas revel
Na página palpita e ferve e freme e estoura
Como um raio a vibrar no seio de uma aurora…
Que lime-se num verso uma cadência má!
Que p’los dedos se contem as sílabas — vá lá!
Mas que um tipão qualquer — como muitos que eu vejo —
Espiche, estique e encolha a tod’hora sem pejo
Um desgraçado verso e após tanto medir
Torcer, brunir, sovar, limar, polir… polir
No-lo venha a trazer às pobres das orelhas
Monótono, sem cor, cheio de regras velhas,
Como um casto bijou, feito de sons e luz,
Isto revolta e amola…
Mas, veja ao que conduz
O vago rabiscar de uma pena sem norte
Falava-te de Deus, de mim, da estranha sorte
Que aniila a poesia e acaba num jogral…
Num lorpa, num boçal
Que nos recebe — a pés — e faz do amor uma arte
Deixemo-lo de parte…
— 3 —
Escuta-me, eu teria um imenso prazer
Se podendo domar, curvar, forçar, vencer
O cér’bro e o coração fosse este último canto
O fim de meu sonhar, de meu cantar porquanto