IMPROVISO ORDINÁRIO SOBRE A CIDADE MARAVILHOSA
Ferreira Gullar
(Grafia original)
Comove-me pensar
que nas porcelanas e cristais da Casa Maillet
na Rua dos Ourives
num dia qualquer do ano de 1847, nesta cidade do Rio de Janeiro,
(na borda de um cálice)
cintilava a uma luz da tarde
e lá fora
onde a tarde nada tinha do bom-tom parisiense
entre carroças puxadas a burro e homens suados
negros no ganho
o vento levantava a poeira do dia e do século
(entranhado na carne das pessoas
e que com elas
haveria de morrer).
Sem sacanagem,
me comove pensar na tranquilidade da loja
fundada em 1843
com suas estantes de vidro
cheias de preciosidades
- vasos, taças, jarros -
que tocaram o coração de algumas poucas
senhoras cariocas
de gosto requintado e vida vã.
E se penso na loja penso na cidade
desdobrando-se em ruelas, becos e ladeiras,
em sobrados e igrejas,
fervilhando no mercado da Rua do Valongo
onde se leiloavam escravos
enquanto no porto
os navios rangiam o madeirame
sobre as águas dessa mesma baía que ora vemos
atual e azul.
E que
ainda mais azul já a tinham visto
outros olhos humanos
que se apagaram
antes muito antes que houvesse este cais
entre igrejas e praças
o pelourinho
o Mosteiro de São Bento
muito antes que alguma voz de branco ecoasse neste cenário
onde tudo são serranias e rochedos espantosos
com a baía dançando na atualidade do paraíso.
Possivelmente de luvas
(que já então se usavam luvas
na cidade de pouco asseio
e muitas putas)
madame aponta
para uma porcelana de Sévres
e lhe pergunta o preço.
A tarde é quente
na cidade de S.Sebastião do Rio de Janeiro
com suas cadeias apinhadas de presos
respirando o fedor de seus próprios dejetos
arrastando correntes
para ir mendigar no meio da rua,
que o governo não alimenta criminosos.
O governo alimenta nobres
e ladrões finos
ministros, ouvidores, provedores
que empoam a cabeleira
e se cumprimentam com trejeitos importados
se se cruzam nas ruas, no Fórum, nos salões.
Já ninguém anda nu neste cenário
que os brancos
há séculos nos trouxeram a moral e os bons costumes
além da sífilis.
Não obstante, àquela altura
já a cidade transbordava de bastardos e amásias
amores noturnos
que aconteciam por todas as partes
e especialmente nos conventos.
De nada (ou muito?) valeu
a recomendação de Manuel Nóbrega, pedindo ao Rei
que à nova terra mandasse meretrizes
para evitar pecados e aumentar a população a serviço de Deus.
E a população cresceu
a serviço de Deus e de tantos outros
senhores de tez clara
donos de escravos e de terras
que se foram sucedendo
a serviço de Deus e das empresas
agora multinacionais.
Sem sacanagem,
na cidade onde havia mais leprosos que cães vagando pelas ruas,
comove-me saber que
em 1788
estava na moda o guarda-sol branco
em 1789
o verde
e que em 1904 o desbunde eram
os guarda-sóis azuis
de sarja ou tafetá.
Ah, cidade maliciosa
de olhos de ressaca
que das índias guardou a vontade de andar nua
e que, apesar do Toque do Aragão,
do Recolhimento do Parto
e do Prefeito Amaro Cavalcanti
- impondo em 1917 a moralidade rigorosa
nos banhos de mar -
despe-se novamente hoje nas areias de Ipanema.
De pouco valeu manter analfabetas
as mulheres da cidade,
proibi-las de ir à rua,
dopá-las com emulsões de castidade.
Não houve jeito senão criar a Roda
e mais tarde
os hotéis de alta rotatividade.
A população cresceu.
Cresceu talvez não bem como o queriam
o padre Cepeda
e o poeta Bilac.
Cresceu festiva e arruaceira,
mais chegada ao batuque que à novena,
convencida de que só vale a pena
viver se é
pra assistir ao Fla-Flu e arriscar na centena.
Sem falar, claro está, no seu "bacano"
que só pensa na Bolsa e no carro do ano.
Uma cidade é
um amontoado de gente sem terra.
Antes não, nem tanto, antes
havia quintal e no Campo de Santana
as negras lavadeiras
estendiam na grama a roupa enxaguada.
Ah, que saudade de ver roupas na grama!
Já não,
já não que a lira tenho desatinada
e a voz enrouquecida
e não do canto
mas de ver que venho
falar de uma cidade endurecida,
falar de uma cidade poluída
falar de uma cidade
onde a vida é
cada dia menos do que a vida:
asfalto asfalto asfalto
e mais assalto
na Tijuca, na Penha, na Avenida
Nossa Senhora de Copacabana
em pleno dia.
Uma cidade
é um amontoado de gente que não planta
e que come o que compra
e pra comprar se vende.
Uma cidade, como a nossa, é
um labirinto de arranha-céus e transações financeiras,
um mercado de brancos
(de negros, de mulatos,
de malucos)
uma multiplicada Rua do Valongo.
Vendem-se frutas, carnes congeladas,
vendem-se couves, conas, inspiradas
canções de amor, poemas, vendem-se jornadas
inteiras de vida,
noites de sono,
vende-se até o futuro
e a morte
às companhias de seguro.
A tarde se apagou.
As porcelanas
não brilham mais na Rua dos Ourives.
A Casa Maillet fechou as portas
e seu dono fechou o paletó.
De paletó fechado, de camisa
ou sem camisa,
ricos e negros, brancos e pobres,
mulatos, mamelucos,
todos os que passavam pela rua
àquela hora
(quando a mulher de luvas perguntou
pelo preço do vaso)
se foram
com o sol, o pó e os guarda-sóis da época.
A noite
que ardeu nos lampiões de óleo
(depois de gás)
aquela noite e as muitas outras noites
passaram recendendo a carbureto e esperma
voando lentas sobre o Mangue
os nas asas dos aviões
que descem de entre as constelações do céu.
E vem a manhã.
A cidade dá curso à sua história
(de féretros verões e diarréias)
em frente ao mar.
Carregados de dívidas, CPF, relógio de pulso,
entre desastres ecológicos, sob os temporais
de janeiro,
viajamos com ela
pelos espaços estelares,
velozmente.
Amigos morrem,
as ruas morrem,
as casas morrem.
Os homens se amparam em retratos.
Ou no coração dos outros homens.