Almanaque Raimundo Floriano
Fundado em 24.09.2016
(Cultural, sem fins comerciais, lucrativos ou financeiros)
Raimundo Floriano de Albuquerque e Silva, Editor deste Almanaque, também conhecido como Velho Fulô, Palhaço Seu Mundinho e Mundico Trazendowski, nascido em Balsas , Maranhão, a 3 de julho de 1936, Católico Apostólico Romano, Contador, Oficial da Reserva do Exército Brasileiro, Funcionário Público aposentado da Câmara dos Deputados, Titular da Cadeira nº 10 da Academia Passa Disco da Música Nordestina, cuja patrona é a cantora Elba Ramalho, Mestre e Fundador da Banda da Capital Federal, Pesquisador da MPB, especializado em Velha Guarda, Música Militar, Carnaval e Forró, Cardeal Fundador da Igreja Sertaneja, Pioneiro de Brasília, Xerife nos Mares do Caribe, Cordelista e Glosador, Amigo do Rio das Balsas, Inventor da Descida de Boia, em julho de 1952, Amigo da Fanfarra do 1° RCG, autor dos livros O Acordo PDS/PTB, coletânea de charges, Sinais de Revisão e Regras de Pontuação, normativo, Do Jumento ao Parlamento, com episódios da vida real, De Balsas para o Mundo, centrado na navegação fluvial Balsas/Oceano Atlântico, Pétalas do Rosa, saga da Família Albuquerque e Silva, Memorial Balsense, dedicado à história de sua terra natal, e Caindo na Gandaia, humorístico apimentado, é casado, tem quatro filhos, uma nora, dois genros e dois netos e reside em Brasília, Distrito Federal, desde dezembro de 1960.
Poemas e Poesias quarta, 27 de abril de 2022
ADAMAH (POEMA DA PAULISTA FRANCISCA JÚLIA)
ADAMAH
Francisca Júlia
Homem, sábio produto, epítome fecundo
Do supremo saber, forma recém-nascida,
Pelos mandos do céu, divinos, impelida,
Para povoar a terra e dominar o mundo;
Homem, filho de Deus, imagem foragida,
Homem, ser inocente, incauto e vagabundo,
Da terrena substância, em que nasceu, oriundo,
Para ser o primeiro a conhecer a vida;
Em teu primeiro dia, olhando a vida em cada
Ser, seguindo com o olhar as barulhentas levas
De pássaros saudando a primeira alvorada,
Que ingênuo medo o teu, quando ao céu calmo elevas
O ingênuo olhar, e vês a terra mergulhada
No primeiro silêncio e nas primeiras trevas...
Poemas e Poesias terça, 26 de abril de 2022
ANSEIOS (POEMA DA PORTUGUESA FLORBELA ESPANCA)
ANSEIOS
Florbela Espanca
À minha Júlia
No teu imenso anseio de liberdade? Toma cautela com a realidade; Meu pobre coração olha que cais!
A doce quietação da soledade? Tuas lindas quimeras irreais, Não valem o prazer duma saudade!
Ai, vê lá bem, ó doido coração, Não te deslumbre o brilho do luar!...
Deixa-te estar quietinho, triste monge, Na paz da tua cela, a soluçar...
Poemas e Poesias segunda, 25 de abril de 2022
NO CORPO (POEMA DO MARANHENSE FERREIRA GULLAR)
NO CORPO
Ferreira Gullar
De que vale tentar reconstruir com palavras o que o verão levou entre nuvens e risos junto com o jornal velho pelos ares?
O sonho na boca, o incêndio na cama. o apelo na noite agora são apenas esta contração (este clarão) de maxilar dentro do rosto.
A poesia é o presente.
Poemas e Poesias domingo, 24 de abril de 2022
COMEÇA A IR SER DIA (POEMA DO PORTUGUÊS FERNANDO PESSOA)
COMEÇA A IR SER DIA
Fernando Pessoa
Começa a ir ser dia, O céu negro começa, Numa menor negrura Da sua noite escura, A Ter uma cor fria Onde a negrura cessa.
Um negro azul-cinzento Emerge vagamente De onde o oriente dorme Seu tardo sono informe, E há um frio sem vento Que se ouve e mal se sente.
Mas eu, o mal-dormido, Não sinto noite ou frio, Nem sinto vir o dia Da solidão vazia. Só sinto o indefinido Do coração vazio.
Em vão o dia chega Quem não dorme, a quem Não tem que ter razão Dentro do coração, Que quando vive nega E quando ama não tem.
Em vão, em vão, e o céu Azula-se de verde Acinzentadamente. Que é isto que a minha alma sente? Nem isto, não, nem eu, Na noite que se perde.
Poemas e Poesias sábado, 23 de abril de 2022
OUVIDOS DE ORVALHO (POEMA DO GAÚCHO FABRÍCIO CARPINEJAR)
OUVIDOS DE ORVALHO
Fabrício Carpinejar
Na eternidade, ninguém se julga eterno. Aqui, nesta estada, penso que vou durar além dos meus anos, que terei outra chance de reaver o que não fiz. Se perdoar é esquecer, me espera o pior: serei esquecido quando redimido.
Não me perdoes, Deus. Não me esqueças. O esquecimento jamais devolve seus reféns.
A claridade não se repete. A vida estala uma única vez.
O fogo é uma noz que não se quebra com as mãos. A voz vem do fogo, que somente cresce se arremessado. Não há como recuar depois de arder alto. Fui lançado cedo demais às cinzas.
Somos reacionários no trajeto de volta. Quando estava indo ao teu encontro, arrisquei atalhos e travessas desconhecidas. Acreditei que poderia sair pela entrada. Ao retornar, não improviso.
Minha conversão é pelo medo, orando de joelhos diante do revólver, sem volver aos lados, na dúvida se é de brinquedo ou de verdade.
O vento faz curva. Não mexo nos bolsos, na pasta e na consciência, nenhum gesto brusco de guitarra, a ciência de uma mira e o gatilho rodando próximo do tambor dos dentes.
Derramado em Deus, junto meu desperdício.
Vou te extraviando no ato de nomear. Melhor seria recuar no silêncio.
Cantamos em coro como animais da escureza. Os cílios não germinaram. Falta plantio em nossas bocas, vegetação nas unhas, estampas e ervas no peito. Suplicamos graves e agudos, espasmos e espanto, compondo esquina com a noite.
Cantar não é desabafo, mas puxar os sinos além do nosso peso, acordando a cúpula de pombas.
Somos fumaça e cera, limo e telha, névoa e leme. O inverno nos inventou.
Não importa se te escuto ou se explodes meus ouvidos de orvalho: morre aquilo que não posso conversar?
Ficarei isolado e reduzido, uma fotografia esvaziada de datas. Os familiares tentarão decifrar quem fui e o que prosperou do legado. Haverei de ser um estranho no retrato de olhos vivos em papel velho.
Escrevo para ser reescrito. Ando no armazém da neblina, tenso, sob ameaça do sol. Masco folhas, provando o ar, a terra lavada. Depois de morto, tudo pode ser lido.
Vejo degraus até no vôo. Tua violência é a suavidade. Não há queda mais funda do que não ser o escolhido, amargar o fim da fila, ser o que fica para depois, o que enumera os amigos pelos obituários de jornal, o que enterra e se retrai no desterro, esfacela a rosa ao toque na palidez das pétalas e velas, vistoriando cada ruga e infiltração de heras entre as veias, nunca adulto para compreender.
Não há nada de natural na morte natural. Divorciar-se do corpo, tremer ao segurar as pernas, acomodar-se no finito de uma cama e deitar com o tumulto que vem de um túmulo vazio.
Poemas e Poesias sexta, 22 de abril de 2022
GONÇALVES DIAS - AO PÉ DO MAR (POEMA DO FLUMINENSE EUCLIDES DA CUNHA)
GONÇALVES DIAS - AO PÉ DO MAR
Euclides da Cunha
Seu eu pudesse cantar a grande história, Que envolve ardente o teu viver brilhante!… Filho dos trópicos que – audaz gigante – Desceste ao túmulo subindo à Glória!…
Teu túmulo colossal – nest’hora eu fito – Altivo, rugidor, sonoro, extenso – O mar!… O mar!… Oh sim, teu crânio imenso – Só podia conter-se – no infinito…
E eu – sou louco talvez – mas quando, forte, Em seu dorso resvala – ardente – Norte, E ele espumante estruge, brada, grita.
E em cada vaga uma canção estoura… Eu – creio ser tu’alma que, sonora, Em seu seio sem fim – brava – palpita!…
Poemas e Poesias quinta, 21 de abril de 2022
TROVAS HUMORÍSTICAS - 13 - (POEMA DO PARANAENSE ENO TEODORO WANKE)
TROVA HUMORÍSTICA 13
Eno Teodoro Wanke
Espartilhado, sofrendo
Estoicamente a tortura
O B é um D resolvido
A reduzir a cintura
Poemas e Poesias quarta, 20 de abril de 2022
INGRATOS (POEMA DO CARIOCA D. PEDRO II!
INGRATOS
Dom Pedro II
Não maldigo o rigor da iníqua sorte, Por mais atroz que fosse e sem piedade, Arrancando-me o trono e a majestade, Quando a dous passos só estou da morte.
Do jogo das paixões minha alma forte Conhece bem a estulta variedade, Que hoje nos dá contínua f'licidade E amanhã nem — um bem que nos conforte.
Mas a dor que excrucia e que maltrata, A dor cruel que o ânimo deplora, Que fere o coração e pronto mata,
É ver na mão cuspir a extrema hora A mesma boca aduladora e ingrata, Que tantos beijos nela pôs — outrora.
Poemas e Poesias terça, 19 de abril de 2022
O QUE É A VERDADE (POEMA DA MARANHENSE DAGMAR DESTÊRRO)
O QUE É A VERDADE
Dagmar Destêrro
Lancei a minha semente
na terra que conquistei.
Com cuidado e água crescente
aquele meu chão reguei.
Esperei com esperança
esse dia que chegou.
Fiz sorriso de criança
quando a plantinha vingou.
Retirei pedras pequenas,
pedras feitas de maldade;
com agudas pontas-penas,
arestas de falsidade.
Adubei com meu amor
o meu pedaço de terra;
pedaço pequeno, sei,
grande, porém, no que encerra.
Arranquei ervas daninhas,
afastei gestos diversos.
De manhã cantei modinhas.
A noite, disse meus versos.
Meu próprio sangue eu usei
para dar à planta alento.
Em muitas noite fiquei
vigilante e ao relento.
No meu chão está plantada.
Lutou, cresceu, prometeu.
Por muitos foi sufocada,
mas reagiu e venceu.
Minha vida é aquele chão,
pedaço da humanidade.
E a semente, simples grão,
é minha própria verdade.
Poemas e Poesias segunda, 18 de abril de 2022
MATER ADMIRABILIS (POEMA DO PIAUIENSE DA COSTA E SILVA)
MATER ADMIRABILIS
Da Costa e Silva
A vida amarga e triste é doce e linda, Se temos mãe, e em sua imagem vemos Os transportes sublimes e supremos Do amor, que se transmite, mas não finda.
Mãe! se te quis com todos os extremos, Hoje te quero muito mais ainda; Pois amamos quanto mais sofremos E a minha dor vai-se tornando infinda.
Se te amei, na ventura, na desgraça As tuas mãos de lágrimas inundo, Porque o afeto os limites ultrapassa.
É mais alto, mais vasto, mais profundo, Desde que vi meus filhos sem a graça Do melhor bem que se possui no mundo.
Poemas e Poesias domingo, 17 de abril de 2022
PAPOULAS (POEMA DO CATARINENSE CRUZ E SOUSA)
PAPOULAS
Cruz e Sousa
Assim loura és mais formosa Do que se fosses trigueira: Corpo de eflúvios de rosa Com esbeltez de palmeira.
Vestida de cor da aurora Leve dos fluidos da graça, És uma estrela sonora Que, em sonhos, pelo éter passe.
Resplandece em teu cabelo Um fulgor de sol dourado, Que só de senti-lo e vê-lo Fica tudo iluminado.
Do teu branco leque aberto Que lembra uma asa de garça, Aspiro um perfume incerto, Talvez a tua alma esparsa.
Num resplendor de madona E altivez de corça arisca Surges da luz entre a zona Com quebrantos de odalisca.
Que venha o duque normando De castelos escoceses Com seu ar bizarro e brando Amar-te os olhos ingleses.
E entre aromas e frescores E revoadas de abelhas, Como num campo de flores Que esse olhar vibre centelhas.
Que cantem na tua boca As alegrias radiadas, Numa ideal rajada louca De vôos de passaradas.
Que como os astros no espaço, Teu encanto resplandeça... Com pelúcias no regaço E asas de ave na cabeça.
E que os teus dois seios puros Que o amor fecundando beija Fiquem cheios e maduros Com dois bicos de cereja.
Poemas e Poesias sábado, 16 de abril de 2022
O PASSADO (POEMA DA GOIANA CORA CORALINA)
O PASSADO
Cora Coralina
O salão da frente recende a cravo. Um grupo de gente moça se reúne ali. "Clube Literário Goiano". Rosa Godinho. Luzia de Oliveira. Leodegária de Jesus, a presidência.
Nós, gente menor, sentadas, convencidas, formais. Respondendo à chamada. Ouvindo atentas a leitura da ata. Pedindo a palavra. Levantando idéias geniais.
Encerrada a sessão com seriedade, passávamos à tertúlia. O velho harmônio, uma flauta, um bandolim. Músicas antigas. Recitativos. Declamavam-se monólogos. Dialogávamos em rimas e risos.
D. Virgínia. Benjamim. Rodolfo. Ludugero. Veros anfitriões. Sangrias. Doces. Licor de rosa. Distinção. Agrado.
O Passado...
Homens sem pressa, talvez cansados, descem com leva madeirões pesados, lavrados por escravos em rudes simetrias, do tempo das acutas. Inclemência. Caem pedaços na calçada. Passantes cautelosos desviam-se com prudência. Que importa a eles o sobrado?
Gente que passa indiferente, olha de longe, na dobra das esquinas, as traves que despencam. Que vale para eles o sobrado?
Quem vê nas velhas sacadas de ferro forjado as sombras debruçadas? Quem é que está ouvindo o clamor, o adeus, o chamado?... Que importa a marca dos retratos na parede? Que importam as salas destelhadas, e o pudor das alcovas devassadas... Que importam?
E vão fugindo do sobrado, aos poucos, os quadros do passado.
Poemas e Poesias sexta, 15 de abril de 2022
LXXXI (SONETOS) JUNTO DESTA JANELA CONTEMPLANDO (SONETO DO CARIOCA CLÁUDIO MANUEL DA COSTA)
LXXXI (SONETOS) JUNTO DESTA JANELA CONTEMPLANDO
Cláudio Manuel da Costa
Junto desta corrente contemplando Na triste falta estou de um bem que adoro; Aqui entre estas lágrimas, que choro, Vou a minha saudade alimentando.
Do fundo para ouvir-me vem chegando Das claras hamadríades o coro; E desta fonte ao murmurar sonoro, Parece, que o meu mal estão chorando.
Mas que peito há de haver tão desabrido, Que fuja à minha dor! que serra, ou monte Deixará de abalar-se a meu gemido!
Igual caso não temo, que se conte; Se até deste penhasco endurecido O meu pranto brotar fez uma fonte.
Poemas e Poesias quinta, 14 de abril de 2022
ESPLÊNDIDA (POEMA DO PORTUGUÊS CESÁRIO VERDE)
ESPLÊNDIDA
Cesário Verde
Ei-la! Como vai bela! Os esplendores Do lúbrico Versailles do Rei-Sol Aumenta-os com retoques sedutores, É como o refulgir dum arrebol Em sedas multicolores.
Deita-se com langor no azul celeste Do seu "landau" forrado de cetim; E esses negros corcéis, que a espuma veste, Sobem a trote a rua do Alecrim, Velozes como a peste.
É fidalga e soberba. As incensadas Dubarry, Montespan e Maintenon, Se a vissem ficariam ofuscadas. Tem a altivez magnética e o bom tom Das cortes depravadas.
É clara como os "pós à marechala" E as mãos, que o Jock Clube embalsamou, Entre peles de tigres as regala; De tigres que por ela apunhalou, Um amante, em Bengala.
É ducalmente esplêndida! A carruagem Vai agora subindo devagar; Ela, no brilhantismo da equipagem, Ela, de olhos cerrados, a cismar, Atrai como a voragem!
Os lacaios vão firmes na almofada; E a doce brisa dá-lhes de través Nas capas de borracha esbranquiçada, Nos chapéus com roseta, e nas librés De forma aprimorada.
E eu vou acaopanhando-a, corcovado. No "trottoir", como um doido, em convulsões Febril, de colarinho amarrotado, Desejando o lugar dos seus truões, Sinistro e mal trajado.
E daria, contente e voluntário, A minha independência e o meu porvir, Para ser, eu poeta solitário, Para ser, ó princesa sem sorrir, Teu pobre trintanário.
E aos almoços magníficos do Mata Preferiria ir, fardado, aí, Ostentando galões de velha prata, E de costas voltadas para ti, Formosa aristocrata!
Poemas e Poesias quarta, 13 de abril de 2022
MOTIVO (POEMA DA CARIOCA CECÍLIA MEIRELES)
MOTIVO
Cecília Meireles
Eu canto porque o instante existe e a minha vida está completa. Não sou alegre nem sou triste: sou poeta.
Irmão das coisas fugidias, não sinto gozo nem tormento. Atravesso noites e dias no vento.
Se desmorono ou se edifico, se permaneço ou me desfaço, — não sei, não sei. Não sei se fico ou passo.
Sei que canto. E a canção é tudo. Tem sangue eterno a asa ritmada. E um dia sei que estarei mudo: — mais nada.
Poemas e Poesias segunda, 11 de abril de 2022
MOCIDADE E MORTE (POEMA DO BAIANO CASTRO ALVES)
MOCIDADE E MORTE
Castro Alves
E perto avisto o porto Emmenso, nebuloso e sempre noite Chamado — Eternidade. (Laurindo.)
Oh! eu quero viver, beber perfumes Na flôr silvestre que embalsama os ares; Ver minh′alma adejar pelo infinito, Qual branca vela n′amplidão dos mares. No seio da mulher ha tanto aroma... Nos seus beijos de fogo ha tanta vida... — Arabe errante, vou dormir á tarde Á sombra fresca da palmeira erguida.
Mas uma voz responde-me sombria: — Terás o somno sob a lagea fria.
Morrer... quando este mundo é um paraiso, E a alma um cysne de douradas plumas: Não! o seio da amante é um lago virgem... Quero boiar á tona das espumas. Vem! formosa mulher — camelia pallida, Que banharam de pranto as alvoradas. Minh′alma é a borboleta que espaneja O pó das azas lucidas, douradas...
E a mesma voz repete-me terrivel, Com gargalhar sarcastico: — Impossivel!
Eu sinto em mim o borbulhar do genio; Vejo além um futuro radiante: Avante! — brada-me o talento n′alma E o echo ao longe me repete — Avante! O futuro... o futuro... no seu seio... Entre louros e bençãos dorme a gloria! Após — um nome do universo n′alma, Um nome escripto no Pantheon da historia.
E a mesma voz repete funeraria: — Teu Pantheon — a pedra mortuaria!
Morrer — é ver extincto dentre as nevoas O phanal, que nos guia na tormenta: Condemnado — escutar dobres de sino, — Voz da morte, que a morte lhe lamenta.
Ai! morrer — é trocar astros por cirios, Leito macio por esquife immundo, Trocar os beijos da mulher — no visco Da larva errante no sepulchro fundo.
Ver tudo findo... só na lousa um nome Que o viandante a perpassar consome.
E eu sei que vou morrer... dentro em meu peito Um mal terrivel me devora a vida: Triste Ahasverus, que no fim da estrada, Só tem por braços uma cruz erguida. Sou o cypreste, qu′inda mesmo flórido, Sombra de morte no ramal encerra! Vivo — que vaga sobre o chão da morte, Morto — entre os vivos a vagar na terra.
Do sepulchro escutando triste grito Sempre, sempre bradando-me: — Maldicto! —
E eu morro, ó Deus! na aurora da existencia, Quando a sêde e o desejo em nós palpita... Levei aos labios o dourado pomo, Mordi no fructo podre do Asphaltita. No triclinio da vida — novo Tantalo — O vinho do viver ante mim passa... Sou dos convivas da legenda hebraica, O stylete de Deus quebra-me a taça.
É que até minha sombra é inexoravel, Morrer! morrer! soluça-me implacavel.
Adeus! pallida amante dos meus sonhos! Adeus, vida! Adeus, gloria! amor! anhelos! Escuta, minha irmã, cuidosa enxuga Os prantos de meu pae nos teus cabellos. Fôra louco esperar! fria rajada Sinto que do viver me extingue a lampa... Resta-me agora por futuro — a terra, Por gloria — nada, por amor — a campa.
Adeus!... arrasta-me uma voz sombria, Já me foge a razão na noite fria!...
Poemas e Poesias domingo, 10 de abril de 2022
AMOR E MEDO (POEMA DO FLUMINENSE CASIMIRO DE ABREU)
AMOR E MEDO
Casimiro de Abreu
Quando eu te vejo e me desvio cauto Da luz de fogo que te cerca, ó bela, Contigo dizes, suspirando amores: — "Meu Deus! que gelo, que frieza aquela!"
Como te enganas! meu amor, é chama Que se alimenta no voraz segredo, E se te fujo é que te adoro louco... És bela — eu moço; tens amor, eu — medo...
Tenho medo de mim, de ti, de tudo, Da luz, da sombra, do silêncio ou vozes. Das folhas secas, do chorar das fontes, Das horas longas a correr velozes.
O véu da noite me atormenta em dores A luz da aurora me enternece os seios, E ao vento fresco do cair cias tardes, Eu me estremece de cruéis receios.
É que esse vento que na várzea — ao longe, Do colmo o fumo caprichoso ondeia, Soprando um dia tornaria incêndio A chama viva que teu riso ateia!
Ai! se abrasado crepitasse o cedro, Cedendo ao raio que a tormenta envia: Diz: — que seria da plantinha humilde, Que à sombra dela tão feliz crescia?
A labareda que se enrosca ao tronco Torrara a planta qual queimara o galho E a pobre nunca reviver pudera. Chovesse embora paternal orvalho!
Ai! se te visse no calor da sesta, A mão tremente no calor das tuas, Amarrotado o teu vestido branco, Soltos cabelos nas espáduas nuas! ...
Ai! se eu te visse, Madalena pura, Sobre o veludo reclinada a meio, Olhos cerrados na volúpia doce, Os braços frouxos — palpitante o seio!...
Ai! se eu te visse em languidez sublime, Na face as rosas virginais do pejo, Trêmula a fala, a protestar baixinho... Vermelha a boca, soluçando um beijo!...
Diz: — que seria da pureza de anjo, Das vestes alvas, do candor das asas? Tu te queimaras, a pisar descalça, Criança louca — sobre um chão de brasas!
No fogo vivo eu me abrasara inteiro! Ébrio e sedento na fugaz vertigem, Vil, machucara com meu dedo impuro As pobres flores da grinalda virgem!
Vampiro infame, eu sorveria em beijos Toda a inocência que teu lábio encerra, E tu serias no lascivo abraço, Anjo enlodado nos pauis da terra.
Depois... desperta no febril delírio, — Olhos pisados — como um vão lamento, Tu perguntaras: que é da minha coroa?... Eu te diria: desfolhou-a o vento!...
Oh! não me chames coração de gelo! Bem vês: traí-me no fatal segredo. Se de ti fujo é que te adoro e muito! És bela — eu moço; tens amor, eu — medo!...
Poemas e Poesias sábado, 09 de abril de 2022
ORADORES - DE GUIA PRÁTICO DA CIDADE DO RECITE (POEMA DO PERNAMBUCANO CARLOS PENA FILHO)
ORADORES
Carlos Pena Filho
Este ponto verde aqui, feito de folhas e flores, é o Jardim Treze de Maio, onde os nossos oradores vão um ao outro contar como foi que conseguiram a vida inteira passar nas trevas da ignorância sem nunca desconfiar. Pois, cada qual sente um gênio dentro de si borbulhar e, coitadinhos, nem sabem, que o que borbulha é a ameba que não puderam tratar.
Poemas e Poesias sexta, 08 de abril de 2022
AMOR, POIS QUE É PALAVRA ESSENCIAL (POEMA DO MINEIRO CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE)
AMOR, POIS QUE É PALAVRA ESSENCIAL
Carlos Drumonnd de Andrade
Amor — pois que é palavra essencial comece esta canção e toda a envolva. Amor guie o meu verso, e enquanto o guia, reúna alma e desejo, membro de vulva.
Quem ousará dizer que ele é só alma? Quem não sente no corpo a alma expandir-se até desabrochar em puro grito de orgasmo, num instante de infinito?
O corpo noutro corpo entrelaçado, fundido, dissolvido, volta à origem dos seres, que Platão viu completados: é um, perfeito em dois; são dois em um.
Integração na cama ou já no cosmo? Onde termina o quarto e chega aos astros? Que força em nossos flancos nos transporta a essa extrema região, etérea, eterna?
Ao delicioso toque do clitóris, já tudo se transforma, num relâmpago. Em pequenino ponto desse corpo, a fonte, o fogo, o mel se concentraram.
Vai a penetração rompendo nuvens e devassando sóis tão fulgurantes que nunca a vista humana os suportara, mas, varado de luz, o coito segue.
E prossegue e se espraia de tal sorte que, além de nós, além da própria vida, como activa abstracção que se faz carne, a ideia de gozar está gozando.
E num sofrer de gozo entre palavras, menos que isto, sons, arquejos, ais, um só espasmo em nós atinge o clímax: é quando o amor morre de amor, divino.
Quantas vezes morremos um no outro, no húmido subterrâneo da vagina, nessa morte mais suave do que o sono: a pausa dos sentidos, satisfeita.
Então a paz se instaura. A paz dos deuses, estendidos na cama, quais estátuas vestidas de suor, agradecendo o que a um deus acrescenta o amor terrestre.
Poemas e Poesias quinta, 07 de abril de 2022
SONETO 153 - DE TÃO DIVINO ACENTO EM VOZ HUMANA (POEMA DO PORTUGUÊS LUÍS DE CAMÕES)
DE TÃO DIVINO ACENTO EM VOZ HUMANA
Soneto 153
Luís de Camões
De tão divino accento em voz humana, De elegancias que são tão peregrinas, Sei bem que minhas obras não são dinas; Que o rudo engenho meu me desengana.
Porém da vossa penna illustre mana Licor que vence as águas Caballinas; E comvosco do Tejo as flores finas Farão inveja á cópia Mantuana.
E pois, a vós de si não sendo avaras, As filhas de Mnemosine formosa Partes dadas vos tẽe ao mundo claras;
A minha Musa, e a vossa tão famosa, Ambas se podem nelle chamar raras, A vossa de alta, a minha de invejosa.
Poemas e Poesias quarta, 06 de abril de 2022
SONETO DA PUTA NOVATA (POEMA DO PORTUGUÊS MANUEL MARIA DU BOCAGE)
SONETO DA PUTA NOVATA
Bocage
Dizendo que a costura não dá nada, Que não sabe servir quem foi senhora, A impulsos da paixão fornicadora Sobe d'alcoviteira a moça a escada.
Seus desejos lhe pinta a malfadada, E a tabaquanta velha sedutora Diz-lhe: "Veio menina, em bela hora, Que essas, que aí tenho, já não ganham nada".
Matricula-se aqui a tal pateta, Em punhetas e fodas se industria, Enquanto a mestra lhe não rifa a greta:
Chega, por fim, o fornicário dia; E em pouco a menina de muleta Passeia do hospital na enfermaria.
Poemas e Poesias quarta, 06 de abril de 2022
CEM TGROVAS - 003 (POEMA DO MINEIRO BELMIRO BRAGA)
CEM TROVAS
Belmiro Braga
Trova 003
Fiz na vida o meu escudo desta verdade sagrada – o nada com Deus é tudo e tudo sem Deus é nada.
Poemas e Poesias terça, 05 de abril de 2022
DEPOIS DA ORGIA (POEMA DO CAPIXABA AUGUSTO DOS ANJOS)
DEPOIS DA ORGIA
Augusto dos anjos
O prazer que na orgia a hetaíra goza Produz no meu sensorium de bacante O efeito de uma túnica brilhante Cobrindo ampla apostema escrofulosa!
Troveja! E anelo ter, sôfrega e ansiosa, O sistema nervoso de um gigante Para sofrer na minha carne estuante A dor da força cósmica furiosa.
Apraz-me, enfim, despindo a última alfaia Que ao comércio dos homens me traz presa, Livre deste cadeado de peçonha,
Semelhante a um cachorro de atalaia Às decomposições da Natureza, Ficar latindo minha dor medonha!
Poemas e Poesias segunda, 04 de abril de 2022
ERA JÁ POSTO O SOL (POEMA DO PERNAMBUCANO MACIEL MONTEIRO)
ERA JÁ POSTO O SOL
Maciel Monteiro
Era já posto o sol. A natureza Em ondas de perfume se banhava; Aqui, pendia a rosa, além brilhava Alguma flor de virginal pureza.
Nuvem sutil, de pálida tristeza, Pelo cândido rosto lhe vagava. Nas negras tranças do cabelo estava Murcha e mais triste uma saudade presa.
Oh! pintor que a pintaste! Era mais bela Que a lua deslumbrante de fulgores, Surgindo dentre as sombras da procela!
Ao vê-la, aos meus olhos matadores, Voou meu coração aos lábios dela, Minh´alma ardente se banhou de amores.
Poemas e Poesias sábado, 02 de abril de 2022
EUTANÁSIA (POEMA DO PAULISTA ÁLVARES DE AZEVEDO)
EUTANÁSIA
Álvares de Azevedo
"Ergue-te daí, velho! ergue essa fronte onde o passado afundou suas rugas como o vendaval no Oceano, onde a morte assombrou sua palidez como na face do cadáver, onde o simoun do tempo ressecou os anéis louros do mancebo nas cãs alvacentas de ancião!
"Por que tão lívido, ó monge taciturno, debruças a cabeça macilenta no peito que é murcho, onde mal bate o coração sobre a cogula negra do asceta?
"Escuta: a lua ergueu-se hoje mais prateada nos céus cor-de-rosa do verão, as montanhas se azulam no crepuscular da tarde e o mar cintila seu manto azul palhetado de aljôfares. A hora da tarde é bela, quem aí na vida lhe não sagrou uma lágrima de saudade?
"Tens os olhares turvos, luzem-te baços os olhos negros nas pálpebras roxas e o beijo frio da doença te azulou nos lábios a tinta do moribundo. E por que te abismas em fantasias profundas, sentado à borda de um fosso aberto, sentado na pedra de um túmulo?
"Por que pensá-la... a noite dos mortos, fria e trevosa como os ventos de inverno? Por que antes não banhas tua fronte nas virações da infância, nos sonhos de moço? Sob essa estamenha não arfa um coração que palpitara outrora por uns olhos gázeos de mulher?
"Sonha!... sonha antes no passado, no passado belo e doirado em seu dossel de escarlate, em seus mares azuis, em suas luas límpidas e suas estrelas românticas."
O velho ergueu a cabeça. Era uma fronte larga e calva, umas faces contraídas e amarelentas, uns lábios secos, gretados, em que sobreaguava amargo sorriso, uns olhares onde a febre tresnoitava suas insônias...
"E quem to disse — que a morte é a noite escura e fria, o leito de terra úmida, a podridão e o lodo? Quem to disse — que a morte não era mais bela que as flores sem cheiro da infância, que os perfumes peregrinos e sem flores da adolescência? Quem to disse — que a vida não é uma mentira? — que a morte não é o leito das trêmulas venturas?"
Poemas e Poesias sexta, 01 de abril de 2022
BELA D*AMOR (POEMA DO PORTUGUÊS ALMEIDA GARRETT)
BELA D'AMOR
Almeida Garrett
Pois essa luz cintilante Que brilha no teu semblante Donde lhe vem o ‘splendor? Não sentes no peito a chama Que aos meus suspiros se inflama E toda reluz de amor?
Pois a celeste fragrância Que te sentes exalar, Pois, dize, a ingénua elegância Com que te vês ondular Como se baloiça a flor Na Primavera em verdor, Dize, dize: a natureza Pode dar tal gentileza? Quem ta deu senão amor?
Vê-te a esse espelho, querida, Ai!, vê-te por tua vida, E diz se há no céu estrela, Diz-me se há no prado flor Que Deus fizesse tão bela Como te faz meu amor.
Poemas e Poesias quinta, 31 de março de 2022
CLAUDE DEBUSSY (POEMA DO GAÚCHO ALCEU WAMOSY)
CLAUDE DEBUSSY
Slceu Wamosy
Maintenant tout est gris sur lande nocturne... F. Viellé-Griffin.
Chove cinza do céu. Todo o rosal ajoelha, balbuciando uma suave oração de perfume. Não há, no firmamento, uma sombra vermelha: — Tudo é ausente de cor — tudo é viúvo de lume.
A tristeza do instante em teus olhos se espelha, minha estranha Quimera, ó sacrossanto Nume, que acendeste em meu sonho a radiosa centelha na qual todo o esplendor deste amor se resume...
Sob a chuva do espaço o jardim adormece. E, sobre nós os dois, como um mistério, desce a carícia da tarde, essa divina viúva.
Andam lábios errando, invisíveis, no ambiente; e, morrendo de amor, dentro da luz morrente, os nossos corações são Jardins sob a Chuva...
Poemas e Poesias quarta, 30 de março de 2022
CHEIRO DE ESPÁDUA (POEMA DO FLUMINENSE ALBERTO DE OLIVEIRA)
CHEIRO DE ESPÁDUA
Alberto de Oliveira
“Quando a valsa acabou, veio à janela, Sentou-se. O leque abriu. Sorria e arfava, Eu, viração da noite, a essa hora entrava E estaquei, vendo-a decotada e bela.
Eram os ombros, era a espádua, aquela Carne rosada um mimo! A arder na lava De improvisa paixão, eu, que a beijava, Hauri sequiosa toda a essência dela!
Deixei-a, porque a vi mais tarde, oh! ciúme! Sair velada da mantilha. A esteira Sigo, até que a perdi, de seu perfume.
E agora, que se foi, lembrando-a ainda, Sinto que à luz do luar nas folhas, cheira Este ar da noite àquela espádua linda!”
Poemas e Poesias terça, 29 de março de 2022
CONJUGAÇÃO (POEMA DO MINEIRO AFFONSO ROMANO DE SANT*ANNA)
CONJUGAÇÃO
Affonso Romano de Sant'Anna
"Eu falo tu ouves ele cala.
Eu procuro tu indagas ele esconde.
Eu planto tu adubas ele colhe.
Eu ajunto tu conservas ele rouba.
Eu defendo tu combates ele entrega.
Eu canto tu calas ele vaia.
Eu escrevo tu me lês ele apaga."
Poemas e Poesias segunda, 28 de março de 2022
HOMILIA (POEMA DA MINEIRA ADÉLIA PRADO)
HOMILIA
Adélia Prado
Quem dentre vós dirá convictamente: os alquimistas morreram — aqueles simples —, morreram os conquistadores, os reis, os tocadores de alaúde, os mágicos. Oh, engano! A vida é eterna, irmãos, aquietai-vos, pois, em vossas lidas, louvai a Deus e reparti a côdea, o boi, vosso marido e esposa e sobretudo e mais que tudo a palavra sem fel.
Poemas e Poesias domingo, 27 de março de 2022
O LAMENTO ME PERSEGUE (POEMA DA CARIOCA ADALGISA NERY)
O LAMENTO ME PERSEGUE
Adalgisa Nery
Lamento eterno das minhas carnes Que inebria de sons o meu espirito Que torna incertos os meus passos E que invade de torpor os meus sentidos. Lamento que se estica nos meus braços Se volteia em meu pescoço Se prende á minha língua E se plasma no meu torso. Lamento eterno que tem percorrido caminhos sem fim Que tem atravessado mares revoltos Desertos pestilentos, Sempre atrás de mim. Lamento eterno que vem separando a minha Unidade, Dilatando o meu ser com imperceptíveis movimentos, Que domina, que lambe os meus contornos E que me afoga em caricias como um amante sedento.
Poemas e Poesias sábado, 26 de março de 2022
HORAS (POEMA DA PORTUGUESA VIRGÍNIA VICTORINO)
HORAS
Virgínia Victorino
Tem cada hora uma decifração.
As horas falam e têm gestos, côres.
Na hora da manhã - vê que esplendores! -
É diferente a sua vibração.
Repara bem na hora dos amores.
É um coração com outro coração.
Tem a hora maior palpitação.
Tem vida, movimentos e langores.
É cada hora um livro, e cada qual
da sua forma o lê: ou bem ou mal.
- Horas que vão e que não voltam mais!
Para mim há só duas. Males... bens...
É a hora dourada em que tu vens,
e a hora dolorosa em que te vais.
Poemas e Poesias sexta, 25 de março de 2022
A IMPOSSÍVEL PARTIDA (POEMA DO CARIOCA VINÍCIUS DE MORAES)
A IMPOSSÍVEL PARTIDA
Vinícius de Moraes
Como poder-te penetrar, ó noite erma, se os meus olhos cegaram nas luzes da cidade E se o sangue que corre no meu corpo ficou branco ao contato da carne indesejada?... Como poder viver misteriosamente os teus recônditos sentidos Se os meus sentidos foram murchando como vão murchando as rosas colhidas E se a minha inquietação iria temer a tua eloquência silenciosa?... Eu sonhei!... Sonhei cidades desaparecidas nos desertos pálidos Sonhei civilizações mortas na contemplação imutável Os rios mortos... as sombras mortas... as vozes mortas... ...o homem parado, envolto em branco sobre a areia branca e a quietude na face... Como poder rasgar, noite, o véu constelado do teu mistério Se a minha tez é branca e se no meu coração não mais existem os nervos calmos Que sustentavam os braços dos Incas horas inteiras no êxtase da tua visão?... Eu sonhei!... Sonhei mundos passando como pássaros Luzes voando ao vento como folhas Nuvens como vagas afogando luas adolescentes... Sons... o último suspiro dos condenados vagando em busca de vida... O frêmito lúgubre dos corpos penados girando no espaço... Imagens... a cor verde dos perfumes se desmanchando na essência das coisas... As virgens das auroras dançando suspensas nas gazes da bruma Soprando de manso na boca vermelha dos astros...
Como poder abrir no teu seio, ó noite erma, o pórtico sagrado do Grande Templo Se eu estou preso ao passado como a criança ao colo materno E se é preciso adormecer na lembrança boa antes que as mãos desconhecidas me arrebatem?...
Poemas e Poesias quinta, 24 de março de 2022
MANHÃ DE SOL (POEMA DO PAULISTA VICENTE DE CARVALHO)
MANHÃ DE SOL
Vicente de Carvalho
(Grafia original)
Na sombra do murtal, cujas flores a leve Aragem, desgrinalda em turbilhões de neve, Ella vagueia a sós... E como vai formosa! Tem como uma frescura orvalhada de rosa Na face... Em seu sorriso amanhece. E’ tão brando O seu pisar, que o chão o acolhe suspirando. — Eis o sol! — canta uma ave ao fitar-lhe a retina... E por onde ella passa a sombra se illumina.
Descuidada e feliz, entre as arvores ella Erra á toa. Sorrindo, as aves interpella. Corre de flor em flor, salta de moita em moita. Ora entre a ramaria o olhar travesso afoita
E tenta surprehender o segredo de um ninho; Ora scisma, fitando o vago desalinho Em que toda palpita, em que se entrega toda, A folhagem que o vento acaricia... Em roda, Em tudo, vê um ar festivo de noivado. Cada flor abre ao sol o calice orvalhado, Humido como um labio em que poisasse um beijo...
E o seu passo é subtil, e erra como um adejo.
Surprehendo-a. Ella estaca, assustada, indecisa; Mal com os pesinhos nús o chão musgoso pisa Num ar de jurity prestes a abrir o vôo. Tomo-lhe as mãos; baixinho, ao seu ouvido, entôo A atrevida canção do amor que tudo pede, Do amor que não é mais do que um furor de sede, Que é o amor afinal...
Toda a sua alma escuta, Todo o seu corpo treme. Amante e irresoluta, Quer ceder, e resiste; abraza; e não se atreve... E de subito, como a corça arisca e leve Que sente o caçador e ouve silvar a bala, Ella das minhas mãos bruscamente resvala,
Salta, foge-me... Em vão. Salto-lhe empós; não tomba Mais faminto um abutre em cima de uma pomba. Ella, sem rumo, vai e erra ao acaso, numa Vaga trepidação, como ao vento uma pluma. E o seu passo recorda o chão, que abaixa e alteia Aqui um charco, adeante um cómoro de areia.
Aos poucos, a carreira afrouxa. Em cada passo Mais e mais ella mostra a angustia do cansaço. Arfa-lhe o seio; perde o folego; tropeça; Pára... Alcança-a meu beijo. O noivado começa.
Poemas e Poesias quarta, 23 de março de 2022
HOJE TEM ESPETÁCULO (POEMA DO PIAUIENSE TORQUATO NETO)
HOJE TEM ESPETÁCULO
Torquato Neto
Vá ao cinema: presta? Vá ao teatro: presta? Esses filmes servem a quê? Servem a quem? Essas peças: servem? Pra quê? Divirta-se: teu programa é esse, bicho: vá ao cinema vá ao teatro, vá ao concerto disco é cultura, vá para o inferno: o paraíso na tela no palco na boca do som e nas palavras todas na ferrugem dos gestos e nas trancas da porta da rua no movimento das imagens: violência e frescura: montagem. Divirta-se. O inferno é perto é longe, o paraíso custa muito pouco. Pra que serve este filme, serve a quem? Pra que serve esse tema, serve a quem? De churrasco em churrasco encha o seu caco, amizade. Cante seresta na churrascaria e arrote filmes-teatros-marchas-ranchos alegrias e tal: volte (como sempre) atrás, fique na sua bons tempos são para sempre — jamais bata no peito, bata no prato, é assim que se faz a festa. Reclame isso: esse filme não presta o diretor é fraco e essa história eu conheço esse papo é pesado demais pras crianças na sala é macio, é demais: serve a quem, amizade? Teu roteiro hoje é esse, meu bicho: cante tudo na churrascaria não saia nunca mais da frente fria sirva, serve, bicho, criança, bonecão sirva sirva sirva mais churrasco churrasquinho churrascão. Sirva um samba de Noel, uma ciranda uma toada do Gonzaga (o pai), aquele samba aquela exaltação de um iê-iê-iê romanticosuavespuma bem macio um filme de mocinho e de bandidos uma peça qualquer com muito drama: encha o caco, amizade, tudo é porta e vá entrando à vontade, a casa é sua, entre pelos filmes em cartaz, pelas peças sobre os palcos vá entrando pelo papo, entrando pelo cano geral; coma churrasco, sirva, vá entrando e servindo (a quê a quem?) encha o seu caco. Divirta-se, bata no prato e peça bis, reclame, cante o quanto queira afaste o lixo, nem pense: teu programa é esse mesmo, bicho.
Poemas e Poesias terça, 22 de março de 2022
AS ROSA BRANCA (POEMA DO AMAZONENSE THIAGO DE MELLO)
A ROSA BRANCA
Thiago de Mello
Não me inquieta se o caminho que me coube – por secreto desígnio – jamais floresce. Dentro de mim, sei que existe, oculta, uma rosa branca. Incólume rosa. E branca.
Não pude colhê-la: mal nascera e logo perdi-me nos labirintos do tempo, onde desde então pervago apenas entressonhando aquilo que sou – e vive no recôncavo da rosa.
Sem conhecer-me, padeço o mistério de existir em amargo desencontro comigo mesmo. No entanto, pesar tão largo se apaga quando pressinto: na rosa, mistério não há. Nenhum. Sem medo de trair-me a face, posso morrer amanhã. Extinto o jugo do tempo, olhos nem boca haverá – para a queixa e para a lágrima – se em vez de rosa, de pétala cinza de pétala, apenas existir a escuridão. O vazio. Nada mais.
Poemas e Poesias segunda, 21 de março de 2022
CANTO SEGUNDO I (POEMA DO MARANHENSE SOUSÂNDRADE)
CANTO SEGUNDO - I
Sousândrade
Opalescem os céus — clarões de prata — Beatífica luz pelo ar mimoso Dos nimbos d'alva exala-se, tão grata Acariciando o coração gostoso!
Oh! doce enlevo! oh! bem-aventurança! Paradíseas manhãs! riso dos céus! Inocência do amor e da esperança Da natureza estremecida em Deus!
Visão celeste! angélica encarnada Co'a nitente umidez d'ombros de leite, Onde encontra amor brando, almo deleite, E da infância do tempo a hora foi nada!
A claridade aumenta, a onda desliza, Cintila co'o mais puro luzimento; De púrpura, de ouro, a c'roa se matiza Do tropical formoso firmamento!
Qual um vaso de fina porcelana Que de através o sol alumiasse, Qual os relevos da pintura indiana É o oriente do dia quando nasce.
Uma por uma todas se apagaram As estrelas, tamanhas e tão vivas, Qual os olhos que lânguidas cativas, Mal nutridas de amores, abaixaram.
Aclaram-se as encostas viridantes, A espreguiçar-se a palma soberana; Remonta a Deus a vida, à origem d'antes, Amiga e matinal, donde dimana.
Acorda a terra; as flores da alegria Abrem, fazem do leito de seus ramos Sua glória infantil; alcion em clamos Passa cantando sobre o cedro ao dia
Lindas loas boiantes; o selvagem Cala-se, evoca doutro tempo um sonho, E curva a fronte... Deus, como é tristonho Seu vulto sem porvir em pé na margem!
Talvez a amante, a filha haja descido, Qual esse tronco, para sempre o rio — Ele abana a cabeça co'o sombrio Riso do íris da noite entristecido.
Poemas e Poesias domingo, 20 de março de 2022
O PRETO DA MENTE: UMA HOMENAGEM AO CAFÉ (POEMA DO BAIANO RICARDO LIMA)
O PRETO DA MENTE: UMA HOMENAGEM AO CAFÉ
Ricardo Lima
O preto da mente, sente!
O ente, poente, preto da mente.
O que sente, mente!
Poente preto no gueto da mente.
A mente cura, escura!
O preto da mente, sente o quente.
O preto da mente!
Poemas e Poesias sábado, 19 de março de 2022
CREPUSCULAR (POEMA DO FLUMINENSE RAUL DE LEÔNI)
CREPUSCULAR
Raul de Leôni
Poente no meu jardim... O olhar profundo Alongo sobre as árvores vazias, Essas em cujo espírito infecundo Soluçam silenciosas agonias.
Assim estéreis, mansas e sombrias, Sugerem à emoção em que as circundo Todas as dolorosas utopias De todos os filósofos do mundo.
Sugerem... Seus destinos são vizinhos: Ambas, não dando frutos, abrem ninhos Ao viandante exânime que as olhe.
Ninhos, onde vencida de fadiga, A alma ingénua dos pássaros se abriga E a tristeza dos homens se recolhe...
Poemas e Poesias sexta, 18 de março de 2022
RELÓGIO DE SOL (POEMA DO MINEIRO PAULO MENDES CAMPOS)
RELÓGIO DE SOL
Paulo Mendes Campos
De todas as minhas façanhas
a que me dói mais lentamente
é sentir nas minhas entranhas
o meu coração arbitrário
girando em sentido contrário
à parábola do poente.
Poemas e Poesias quinta, 17 de março de 2022
COISAS DO MEU SERTÃO (POEMA DO CEARENSE PATATIVA DO ASSARÉ)
COISA DO MEU SERTÃO
Patativa do Assaré
Seu dotô, que é da cidade Tem diproma e posição E estudou derne minino Sem perdê uma lição, Conhece o nome dos rios, Que corre inriba do chão, Sabe o nome de estrela Que forma constelação, Conhece todas as coisa Da historia da criação E agora qué i na Lua Causando admiração, Vou fazê uma pergunta, Me preste bem atenção: Pruque não quis aprendê As coisa do meu sertão?
Por favô, não negue não Quero que o sinhô me diga Pruquê não quis o roçado Onde se sofre de fadiga, Pisando inriba do toco, Lacraia, cobra e formiga, Cocerento de friêra, Incalombado de urtiga, Muntas vez inté duente, Sofrendo dô de barriga, Mas o jeito é trabaiá Que a necessidade obriga. (...)
Poemas e Poesias quarta, 16 de março de 2022
A TOADZ DA CHUVA (POEMA DO PERNAMBUCANO OLEGÁRIO MARIANO)
A TOADA DA CHUVA
Olegário Mariano
Chove incessantemente . . . Uma garoa Fina e sutil parece não ter fim. No ar pardacento uma andorinha voa . . . E a chuva bate como um tamborim. Para os seres sem alma a vida é boa, Para mim que sou triste a vida é ruim, Pois me falta o calor de uma pessoa Que é a própria vida boa para mim. E a chuva continua à toa, à toa . . . Chuva, por que vives caindo assim? Será que uma outra força te magoa? Por que teu choro d’água não tem fim? Se eu tivesse o calor de uma pessoa, Seria a vida um sonho para mim.
Poemas e Poesias terça, 15 de março de 2022
REQUIESCAT (POEMA DO CARIOCA OLAVO BILAC)
REQUIESCAT
Olavo Bilac
(Grafia original)
Por que me vens, com o mesmo riso, Por que me vens, com a mesma voz, Lembrar aquele Paraíso, Extinto para nós?
Por que levantas esta lousa? Por que, entre as sombras funerais, Vens acordar o que repousa, O que não vive mais?
Ah! esqueçamos, esqueçamos Que foste minha e que fui teu: Não lembres mais que nos amamos, Que o nosso amor morreu!
O amor é uma árvore ampla, e rica De frutos de ouro, e de embriaguez: Infelizmente, frutifica Apenas uma vez...
Sob essas ramas perfumadas, Teus beijos todos eram meus: E as nossas almas abraçadas Fugiam para Deus.
Mas os teus beijos esfriaram. Lembra-te bem! lembra-te bem! E as folhas pálidas murcharam, E o nosso amor também.
Ah! frutos de ouro, que colhemos, Frutos da cálida estação, Com que delícia vos mordemos, Com que sofreguidão!
Lembras-te? os frutos eram doces... Se ainda os pudéssemos provar! Se eu fosse teu... se minha fosses, E eu te pudesse amar...
Em vão, porém, me beijas, louca! Teu beijo, a palpitar e a arder, Não achará, na minha boca, Outro para o acolher.
Não há mais beijos, nem mais pranto! Lembras-te? quando te perdi Beijei-te tanto, chorei tanto, Com tanto amor por ti,
Que os olhos, vês? já tenho enxutos, E a minha boca se cansou: A árvore já não tem mais frutos! Adeus! tudo acabou!
Outras paixões, outras idades! Sejam os nossos corações Dois relicários de saudades E de recordações.
Ah! esqueçamos, esqueçamos! Durma tranqüilo o nosso amor Na cova rasa onde o enterramos Entre os rosais em flor...
Poemas e Poesias segunda, 14 de março de 2022
O VOO (POEMA DO PAULISTA MENOTTI DEL PICCHIA)
O VOO
Menotti Del Picchia (Grafia original)
Goza a euforia do vôo do anjo perdido em ti. Não indagues se nossas estradas, tempo e vento, desabam no abismo. Que sabes tu do fim? Se temes que teu mistério seja uma noite, enche-o de estrelas. Conserva a ilusão de que teu vôo te leva sempre para o mais alto. No deslumbramento da ascensão se pressentires que amanhã estarás mudo esgota, como um pássaro, as canções que tens na garganta. Canta. Canta para conservar a ilusão de festa e de vitória.
Talvez as canções adormeçam as feras que esperam devorar o pássaro. Desde que nasceste não és mais que um vôo no tempo. Rumo do céu? Que importa a rota. Voa e canta enquanto resistirem as asas.
Poemas e Poesias domingo, 13 de março de 2022
ESPERANÇA (POEMA DO GAÚCHO MÁRIO QUINTANA)
ESPERANÇA
Mário Quintana
Lá bem no alto do décimo segundo andar do Ano Vive uma louca chamada Esperança E ela pensa que quando todas as sirenas Todas as buzinas Todos os reco-recos tocarem Atira-se E — ó delicioso vôo! Ela será encontrada miraculosamente incólume na calçada, Outra vez criança... E em torno dela indagará o povo: — Como é teu nome, meninazinha de olhos verdes? E ela lhes dirá (É preciso dizer-lhes tudo de novo!) Ela lhes dirá bem devagarinho, para que não esqueçam: — O meu nome é ES-PE-RAN-ÇA...
Poemas e Poesias sábado, 12 de março de 2022
O VOLÚVEL (POEMA DA MARANHENSE MARIA FIRMINA DOS REIS, NA VOZ DE SOCORRO LIMA)
Maria Firmina dos Reis
Poemas e Poesias sexta, 11 de março de 2022
CARTAS DE MEU AVÔ (POEMA DO PERNAMBUCANO MANUEL BANDEIRA)
CARTAS DE MEU AVÔ
Manuel Bandeira
A tarde cai, por demais Erma, úmida e silente… A chuva, em gotas glaciais, Chora monotonamente.
E enquanto anoitece, vou Lendo, sossegado e só, As cartas que meu avô Escrevia a minha avó.
Enternecido sorrio Do fervor desses carinhos: É que os conheci velhinhos, Quando o fogo era já frio. Cartas de antes do noivado…
Cartas de amor que começa, Inquieto, maravilhado, E sem saber o que peça. Temendo a cada momento
Ofendê-la, desgostá-la, Quer ler em seu pensamento E balbucia, não fala… A mão pálida tremia
Contando o seu grande bem. Mas, como o dele, batia Dela o coração também. A paixão, medrosa dantes,
Cresceu, dominou-o todo. E as confissões hesitantes Mudaram logo de modo. Depois o espinho do ciúme…
A dor… a visão da morte… Mas, calmado o vento, o lume Brilhou, mais puro e mais forte. E eu bendigo, envergonhado,
esse amor, avô do meu… Do meu – fruto sem cuidado Que inda verde apodreceu. O meu semblante está enxuto.
Mas a alma, em gotas mansas, Chora, abismada no luto Das minhas desesperanças… E a noite vem, por demais
Erma, úmida e silente… A chuva em pingos glaciais, Cai melancolicamente.
E enquanto anoitece, vou lendo, sossegado e só, As cartas que meu avô Escrevia a minha avó.
Poemas e Poesias quinta, 10 de março de 2022
MURMÚRIOS O RECITAM SOBRE A TARDE - II
MURMURIOS O RECITAM SOBRE A TARDE - II
Manoel de Barros
Em suas ruínas
Homizia sapos
Formigas carregam suas latas
Devaneiam palavras
Poemas e Poesias quarta, 09 de março de 2022
JOIA DA COROA (POEMA DO PERNAMBUCANO LUÍS TURIBA)
JOIA DA COROA
Luís Turiba
diamantina é um extraordinário quebra-cabeça do sonho lusitano em terras brasileiras a jóia da coroa no arraial do tejuco bem acima da vila rica do ouro bruto
dínamo dos diamantes música para amantes
com quantas pedras foi construída? quantas almas sangues vidas quantos escravos homens mulheres mandos desmanchos grandezas detalhes pepitas petardos?
praça das missões rua da glória rua da luz macau de cima caminho do escravo macau de baixo macau do meio beco do tejuco
brasil é um beco do mota romanceiro inconfidente o som do clube de esquina liberdade sol do oriente
Poemas e Poesias terça, 08 de março de 2022
OLHOS ALEGRES (POEMA DO CARIOCA LUÍS EDMUNDO)
OLHOS ALEGRES
Luís Edmundo
Há uma lágrima, sempre, atenta em nossos olhos,
Uma lágrima branca, uma lágrima pura,
E assim como no mar os traiçoeiros escolhos,
Ela, escondida, a flor das pálpebras procura.
Aí fica parada; os íntimos refolhos
Da nossa alma reflete, e, quando uma ventura
Em riso nos entreabre os lábios, com doçura,
Ela, a lágrima fica a nos tremer nos olhos.
Tu, que és moço e que ris e não sabes da mágoa
Do mundo, tem cuidado, olha essa gota d’água,
Se não queres da vida achar-te entre os abrolhos;
Ri, mas ri devagar, que a lágrima traiçoeira,
Talvez, vendo-te rir assim dessa maneira,
Trema e caia afinal um dia dos teus olhos!
Poemas e Poesias segunda, 07 de março de 2022
A NOVIÇA (POEMA DO PORTUGUÊS JÚLIO DINIS)
A NOVIÇA (NO ÁLBUM DA EX.MA SR.ª D. JÚLIA ALVES PASSOS)
Júlio Dinis
«Oh! vem, querida irmã, do santuário do templo, Já desce a receber-te o celestial Esposo. Vem ser da nossa fé sublime o vivo exemplo; Vem, deixa sem pesar do mundo o falso gozo.
«Vem; dos círios à luz, ao som de alegres hinos, Cinge o hábito escuro, emblema da humildade, E, abrasada no ardor dos teus estos divinos, Despe, ao entrar no claustro, as galas da vaidade,
«Esposa do Senhor, virgem cândida e pura, Do teu noviciado expiram hoje os dias. Não tremas ao fitar as portas da clausura; Também na estreita cela há brandas alegrias.»
Assim das monjas soa o religioso canto: Juntas, em procissão pelas extensas naves, Espalham-se na igreja as vozes do hino santo, Melancólica voz de aprisionadas aves.
Caído o longo véu por sobre a fronte airosa Caminha lentamente a pálida noviça; Nos olhos lhe fulgura uma aura misteriosa, Um como cintilar de lâmpada mortiça.
Sobre os degraus do altar humilde se ajoelha E ao culto fervorosa as trancas sacrifica. «Recolhe-te ao redil, imaculada ovelha, Teus tesouros d’amor nas aras santifica.»
E o coro ergue outra vez o ritual hosana, Entre nuvens de incenso, à voz do órgão sagrado; Responde-lhe o rezar da multidão profana, Que transpôs curiosa o pórtico elevado.
A cerimônia é finda; a monja de joelhos Permanece, inclinada a face sobre a terra; Era no ocaso o Sol; e seus clarões vermelhos Vinham tingir o altar, tingindo ao longe a serra.
Longo tempo ali esteve, as pálpebras descidas. Imóvel, silenciosa, em êxtase absorta. Ergueram-na afinal as monjas comovidas: Doloroso mistério… a pobre estava morta!
Poemas e Poesias domingo, 06 de março de 2022
DE NOVOA PONTE INAUGURA (POEMA DO MARANHENSE JOSÉ CHAGAS)
DE NOVO A PONTE INAUGURA
José Chagas
ponte pronta
ida e
vinda
VIDA
as ruas
o rio
os pés
o peso
as sementes
o cimento
os barcos
o arco
ponte ponte
fluvial pluvial
colunas colinas
abóbada abóbora
flor e cimento
ponte ponte ponto
Poemas e Poesias sábado, 05 de março de 2022
PELO SILÊNCIO (POEMA DO ALAGOANO JORGE DE LIMA)
PELO SILÊNCIO
Jorge de Lima
elo silêncio que a envolveu, por essa aparente distância inatingida, pela disposição de seus cabelos arremessados sobre a noite escura:
pela imobilidade que começa a afastá-la talvez da humana vida provocando-nos o hábito de vê-la entre estrelas do espaço e da loucura;
pelos pequenos astros e satélites formando nos cabelos um diadema a iluminar o seu formoso manto,
vós que julgais extinta Mira-Celi observai neste mapa o vivo poema que é a vida oculta dessa eterna infanta.
Poemas e Poesias sexta, 04 de março de 2022
O MAR E O CANAVIAL (POEMA DO PERNAMBUCANO JOÃO CABRAL DE MELO NETO)
O MAR E O CANAVIAL
João Cabral de Melo Neto
O que o mar sim aprende do canavial: a elocução horizontal de seu verso; a geórgica de cordel, ininterrupta, narrada em voz e silêncio paralelos. O que o mar não aprende do canavial: a veemência passional da preamar; a mão-de-pilão das ondas na areia, moída e miúda, pilada do que pilar.
*
O que o canavial sim aprende do mar: o avançar em linha rasteira da onda; o espraiar-se minucioso, de líquido, alagando cova a cova onde se alonga. O que o canavial não aprende do mar: o desmedido do derramar-se da cana; o comedimento do latifúndio do mar, que menos lastradamente se derrama.
Poemas e Poesias quinta, 03 de março de 2022
CARTA A UM AMOR IMPOSSÍVEL (POEMA DO ACRIANO J. G. DE ARAÚJO JORGE)
CARTA A UM AMOR IMPOSSÍVEL
J. G. de Araújo Jorge
Recebi tua carta, - e ainda sob o peso da emoção que me trouxe, eu te escrevo, surpreso, reavivando na minha lembrança esquecida certos traços sem cor de uma história perdida: - falo dos poucos dias que passamos juntos...
Tão longe agora estas Quantos belos assuntos, a que eu não quis, nem soube mesmo dar valor, relembras com um estranho e desvelado amor... Tua carta é tão doce, e tão cheia de cores que, dir-se-ia a escreveste com o mel que há nas flores, sobre o azul de um papel tão azul, que o papel faz a gente pensar num pedaço de céu! Impregnado nas folhas chegou até mim, um perfume sutil e agreste de jasmim e um pouco do ar sadio e puro de montanha!
Estranha a tua carta, inesperada e estranha!
Deixas nas minhas mãos a tua alma confiante, ante a revelação desse amor deslumbrante e abres teu coração, num gesto de ansiedade, sob a opressão cruel de uma imensa saudade. Dizes que só por mim tu vives, - que a tristeza é a companheira fiel que tens por toda parte, e me falas assim com tamanha franqueza que eu nem sei que dizer receando magoar-te! Não compreendo esse amor que revelas por mim nem mereço a ternura e o enlevo sem fim de um só trecho sequer de tudo o que escreveste, - por exemplo, - de um trecho belo e bom, como este:
"Teu olhar é o meu sol! Vivo da sua luz! - e mesmo que esse amor seja como uma cruz eu o levarei comigo em meu itinerário! e o bendirei na dor ascendendo ao Calvário! Sem ele não existo; e sem ti, meu destino será vazio, assim como o bronze de um sino que ficou mutilado e emudeceu seus sons na orquestra matinal dos outros carrilhões! Quero ser tua sombra até, - e quando tudo te abandonar na vida, e o frio, e quedo, e mudo, encerrarem teu corpo em paz sob um lajedo, eu ficarei contigo ao teu lado, sem medo, e sozinha e sem medo eu descerei contigo oh! meu único amor! oh! meu querido amigo! - para que os nossos corpos juntos, abraçados, fiquem na mesma terra em terra transformados!"
Escreves tudo assim, - e eu nem sei que te diga nesta amarga resposta, oh! minha pobre amiga!
Tarde, tarde demais... Bem me arrependo agora do amor que te inspirei, daquele amor de outrora que eu julgava um brinquedo a mais em minha vida e a quem davas tua alma inteira e irrefletida... Releio a tua carta, e confesso que sinto o ter-te que falar sobre esse amor extinto, um prelúdio de amor que ficou sem enredo e que só tu tocaste em surdina, em segredo...
Dizes que o que eu mandar, farás... e que és tão minha que mesmo que não te ame e que fiques sozinha bastará para ti a lembrança feliz dos dias de ilusão em que nunca te quis! E escreves, continuando essa carta que eu leio com uma vontade louca de parar no meio:
"Minha vontade é a tua! E meu destino enredo no teu!... És o meu Deus! Teu desejo é o meu credo! Creio na tua força e no teu pensamento, e nem um só segundo e nem um só momento deixarei de seguir-te aonde quer que tu fores, seja a estrada coberta de espinhos ou flores, te aureole a fronte a glória e te sirva a riqueza ou vivas no abandono e sofras na pobreza! Serei outra Eleonora Duse, e te amarei com um amor infinito, sem razão nem lei. Tu serás o meu Poeta imortal, - meu Senhor, a quem entregarei minha alma e o meu amor!
Creio na tua força e no teu pensamento! - faço dela um arrimo, e tenho nele o alento da única razão que dirige meus atos; - é a lógica fatal das cousas e dos fatos! Orgulho-me de ser a matéria plasmável onde o teu gênio inquieto, e nervoso, e insaciável,
há de esculpir uma obra à tua semelhanças! Junto a ti sou feliz e me sinto criança curiosa de te ouvir, fascinada e atraída pela tua palavra alegre e colorida! E se falas da vida ou se o mundo desvendas os assuntos ressoam na alma como lendas e tudo é novo e é belo, e tudo prende e atrai, de um simples botão que se abre a um pingo d'água que caí.
Há em tudo uma alma nova! Há em tudo um novo encanto! Tantas vezes te ouvi! E sempre o mesmo espanto quando tu me dizias, que era tarde, era a hora em que eu ia dormir em que te ias embora... Muitas vezes, deitada, - eu rezava baixinho uma prece que fiz só para o meu carinho:
com meus beijos de amor matarei tua sede, com os meus cabelos tecerei a rede onde adormecerás feliz, imaginado que é a noite que te envolve e te embala cantando; formarei com os meus braços o ninho amoroso onde terás na volta o almejado repouso;
minhas mãos te darão o mais terno carinho e julgarás que é o vento a soprar de mansinho sussurrando canções e desfeito em desvelos a desmanchar de leve os teus claros cabelos! No meu seio, - que a uma onda talvez se pareça, recostarei feliz, enfim, tua cabeça, e nada, nenhum ruído há de te perturbar! - meu próprio coração mais baixo há de pulsar... Quando o sol castigar as frondes e as raízes com o meu corpo farei a sombra que precises, e se o inverno chegar, ou se sentires frio, em mim hás de achar todo o calor do estio!
Não te rias, - bem sei que te digo tolices, mas ah! se compreendesses tudo, ou se sentisses a alegria que sinto ao te falar assim, talvez que não te risses, meu amor, de mim... Isto tudo, - é obra apenas da fatalidade, - quando o amor é uma doença e é uma febre a saudade."
Tua carta é uma frase inteira de ternura, como uma renda fina, cuja tessitura trai a mão delicada e a alma de quem a fez Ela é bem a expressão da mulher, que uma vez... (mas não, não recordemos estas cousas mais, - para o teu bem, deixemos o passado em paz se o não posso trazer num augúrio feliz para a prolongação de um sonho que eu desfiz...)
Tua carta é o reflexo da tua beleza, e há no seu ofertório a singela pureza desse amor que te empolga e te invade e domina! (Uma alma de mulher num corpo de menina!) Reli-a muito, a sós... - Mais adiante tu dizes, com esse místico dom das criaturas felizes:
"Amo, para a alegria suprema e indizível de humilhar-me aos teus pés tanto quanto possível, e viverei feliz, como a poeira da estrada se erguer-me ao teu passar, numa nuvem dourada cheia de sol e luz, - nessa glória fugaz de acompanhar-te os passos aonde quer que vás! Não importa que eu role depois no caminho, não importa que eu fique abandonada e só, - quem nasceu para espinho há de ser sempre espinho!... - quem nasceu para pó, há de sempre ser pó!"
Faz-me mal tua carta, muito mal... Receio pelo amor infeliz que abrigaste em teu seio, e uma angústia mortal me oprime e me castiga, deixa que te confesse, oh! minha pobre amiga!
Não pensei... Não pensei que te afeiçoasses tanto, nem desejava ver a tristeza do pranto ensombrecer teus olhos... Quando tu partiste, não compreendia bem por que ficaste triste nem quis acreditar no que estavas sentindo... Hoje, - hoje eu descubro que o teu sonho lindo era mais do que um sonho, - era mesmo, em verdade uma grande esperança de felicidade!
Me perdoarás no entanto... ah! não fosses tão boa! E eu insisto de joelhos a teus pés: - perdoa! Se eu soubesse, ou se ao menos eu adivinhasse o que não pude ver além de tua face e o que não soube ler velado em teu olhar, não teria deixado esse amor te empolgar...
Perdoa o involuntário mal que te causei! A carta que escreveste, e há bem pouco guardei, um grande mal também causou-me sem querer: - é bem rude e bem triste a gente perceber que encontrou seu ideal, - o seu ideal mais belo, - e o destruir, tal como eu, que agora o desmantelo! É doloroso a gente em mil anos sonhá-lo e inesperadamente ter que abandoná-lo!
Se algum amor eu quis, esse era igual ao teu que tudo me ofertou e nada recebeu; ingênuo e puro amor, simples, sem artifícios, capaz como bem dizes "de mil sacrifícios, e de mil concessões, chorando muito embora, só para ver feliz o ente que quer e adora!"
E pensar que isso tudo que tu me ofereces: -teu raro e imenso amor, teus beijos tuas preces, a tua alma de criança ainda em primeiro anseio; e o teu corpo, onde a forma ondulante do seio não atingiu sequer seu máximo esplendor; tua boca, ainda pura aos contatos do amor; - e dizer que isso tudo, isso tudo afinal que era o meu velho sonho e o meu maior ideal, abandono, desprezo, renuncio e largo com um gesto vil como este, indiferente e amargo!
Enfim, já estás vingada... E porque ainda és criança há de este falso amor te ficar na lembrança como uma experiência... (a primeira vencida das muitas que talvez ainda encontres na vida... )
E um dia então... - quem sabe se não será breve? - descobrirás na vida aquele amor que deve transformar teu destino e realizar teu sonho... Antevendo esse dia de festa, risonho, comporei, como um véu de noiva, para as bodas, a mais bela poesia, a mais bela de todas... (... Recebendo-a, dirás, esquecida e contente: - "quem teria enviado este estranho presente?")
Sé feliz, minha amiga ... eu me despeço aqui... Lamento o meu destino, porque te perdi e maldigo esta carta pelo que ela diz... Não chores, - porque eu sei que ainda serás feliz...
E que as lágrimas de hoje, - enxuguem-se ao calor de um verdadeiro, eterno e imorredouro amor!
P. S. - Sê feliz. Amanhã tudo isto será lenda ... E pede a Deus, por mim, - que eu nunca me arrependa...
Poemas e Poesias quarta, 02 de março de 2022
DEZ CHAMAMENTOS AO AMIGO (POEMA DA PAULISTA HILDA HILST)
DEZ CHAMAMENTOS AO AMIGO
Hilda Hilst
Dez chamamentos ao amigo (in Júbilo, memória, noviciado da paixão)
I Se te pareço noturna e imperfeita Olha-me de novo. Porque esta noite Olhei-me a mim, como se tu me olhasses. E era como se a água Desejasse
Escapar de sua casa que é o rio E deslizando apenas, nem tocar a margem
Te olhei. E há tanto tempo Espero Que o teu corpo de água mais fraterno Se estenda sobre o meu. Pastor e nauta
Olha-me de novo. Com menos altivez. E mais atento.
II Ama-me. É tempo ainda. Interroga-me. E eu te direi que nosso tempo é ágora. Esplêndida avidez, vasta ventura Porque é mais vasto o sonho que elabora
Há tanto tempo sua própria tessitura.
Ama-me. Embora eu te pareça Demasiado intensa. E de aspereza. E transitória se tu me repensas.
III Se refazer o tempo, a mim, me fosse dado Faria do meu rosto de parábola Rede de mel, ofício de magia
E naquela encantada livraria Onde os raros amigos me sorriam Onde a meus olhos eras torre e trigo
Meu todo corajoso de Poesia Te tomava. Aventurança, amigo, Tão extremada e larga
E amavio contente o amor teria sido
IV Minha medida? Amor. E tua boca na minha Imerecida.
Minha vergonha? O verso Ardente. E o meu rosto Reverso de quem sonha.
Meu chamamento? Sagitário Ao meu lado Enlaçado ao Touro.
Minha riqueza? Procura Obstinada, tua presença Em tudo: julho, agosto Zodíaco antevisto, página
Ilustrada da revista Editorial, jornal Teia cindida.
Em cada canto da Casa Evidência veemente Do teu rosto.
V Nós dois passamos. E os amigos E toda minha seiva, meu suplício De jamais ver, teu desamor também Há de passar. Sou apenas poeta
E tu, lúcido, fazedor da palavra, Inconsentido, nítido
Nós dois passamos porque assim é sempre. E singular e raro este tempo inventivo Circundando a palavra. Trevo escuro
Desmemoriado, coincidido e ardente NO meu tempo de vida tão maduro.
VI Sorrio quando penso Em que lugar da sala Guardarás o meu verso. Distanciado Dos teus livros políticos? Na primeira gaveta Mais próxima à janela? Tu sorris quando lês Ou te cansas de ver Tamanha perdição Amorável centelha No meu rosto maduro? E te pareço bela Ou apenas pareço Mais poeta talvez E menos séria? O que pensa o homem Do poeta? Que não há verdade Na minha embriaguez E que me preferes Amiga mais pacífica E menos aventura? Que é de todo impossível Guardar na tua sala Vestígio passional Da minha linguagem? Eu te pareço louca? Eu te pareço pura? Eu te pareço moça?
Ou é mesmo verdade
Que nunca me soubeste?
VII Foi Julho sim. E nunca mais esqueço. O ouro em mim, a palavra Irisada na minha boca A urgência de me dizer em amor Tatuada de memória e confidência. Setembro em enorme silêncio Distancia meu rosto. Te pergunto: De Julho em mim ainda se lembras?
Disseram-me os amigos que Saturno Se refaz este ano. E é tigre E é verdugo. E que os amantes
Pensativos, glaciais Ficarão surdos ao canto comovido. E em sendo assim, amor, De que me adianta a mim, te dizer mais?
VIII De lulas, desatino e aguaceiro Todas as noites que não foram tuas. Amigos e meninos de ternura
Intocada meu rosto-pensamento Intocado meu corpo e tão mais triste Sempre à procura do teu corpo exato.
Livra-me de ti. Que eu reconstrua Meus pequenos amores. A ciência De me deixar amar Sem amargura. E que me deem
A enorme incoerência De desamar, amando. E te lembrando
— Fazedor de desgosto — Que eu te esqueça.
IX Esse poeta em mim sempre morrendo Se tenta repetir salmodiado: Como te conhecer, arquiteto do tempo Como saber de mim, sem te saber? Algidez do teu gesto, minha cegueira E o casto incendiado momento Se ao teu lado me vejo. As tardes Fiandeiras, as tardes que eu amava, Matéria da solidão, íntimas, claras Sofrem a sonolência de umas águas Como se um barco recusasse sempre A liquidez. Minhas tardes dilatas
Sobre-existindo apenas Porque à noite retomo a minha verdade: Teu contorno, teu rosto, álgido sim
E por isso, quem sabe, tão amado.
X Não é apenas um vago, modulado sentimento O que me faz cantar enormemente A memória de nós. É mais. É como um sopro De fogo, é fraterno e leal, é ardoroso É como se a despedida se fizesse o gozo De saber Que há no teu todo e no meu um espaço Oloroso, onde não vive o adeus
Não é apenas vaidade de querer Que aos cinquenta Tua alma e teu corpo se enterneçam De graça, da justeza do poema. É mais. E porisso perdoa todo esse amor de mim
E me perdoa de ti a indiferença.
Poemas e Poesias terça, 01 de março de 2022
ÁGUIA FERIDA (POEMA DO SERGIPANO HERMES FONTES) DECLAMAÇÃO - VÍDEO
Poemas e Poesias segunda, 28 de fevereiro de 2022
CIGARRA (POEMA DO PAULISTA GUILHERME DE ALMEIDA)
CIGARRA
Guilherme de Almeida
Diamante. Vidraça. Arisca, áspera asa risca o ar. E brilha. E passa.
Poemas e Poesias sábado, 26 de fevereiro de 2022
EMOTIVIDADE DA COR (POEMA DA CARIOCA GILKA MACHADO)
EMOTIVIDADE DA COR
Gilka Machado
A Dolores Marques Caplonch e a Miguel Caplonch
Sete cores — sete notas erradias, sete notas da música do olhar, sete notas de etéreas melodias, de sons encantadores que se compõem entre si, formando outras tantas cores, do cinzento que cisma ao jade que sorri.
Há momentos em que a cor nos modifica os sentimentos, ora fazendo bem, ora fazendo mal; em tons calmos ou violentos, a cor é sempre comunicativa, amortece, reaviva, tal a sua expressão emocional.
Lançai olhares investigadores para a mancha dos poentes: há cores que são ecos de outras cores, cores sem vibrações, cores esfalecentes, melodias que o olhar somente escuta, na quietude absoluta, ao Sol se pôr... Quem há que inda não tenha percebido o subjetivo ruído da harmonia da cor?
(...)
— A Cor é o aroma em corpo e embriaga pelo olhar. Cor é soluço, cor é gargalhada, cor é lamento, é suspiro, e grito de alma desesperada! Muitas vezes a cor ao som prefiro porque a minha emoção é igual à sua: — parada, estatelada dizendo tudo, sem que diga nada, no prazer ou na dor.
Olhar a cor é ouvi-la, numa expressão tranquila, falar de todas as sensações caladas, dos corações; no entanto, a cor tem brados, mas brados estrangulados, mágoas contidas, mudo querer, ânsia, fervor, emotividade de desconhecidas vidas, que se ficaram na vontade, que não conseguiram ser...
Cores são vagas, sugestivas toadas...
Cores são emoções paralisadas...
(...)
Poemas e Poesias sexta, 25 de fevereiro de 2022
SENHORA, EU ME CONTENTO (POEMA DO PORTUGUÊS GIL VICENTE)
SENHORA, EU ME CONTENTO
Gil Vicente
Senhora, eu me contento Receber vos como estais: Se vós vos não contentais, O vosso contentamento Pode falecer no mais.
LATÃO (Como fala! VIDAL E ela como se cala! Tem atento o ouvido... Este há-de ser seu marido, Segundo a coisa s'abala.) ESCUDEIRO Eu não tenho mais de meu, Somente ser comprador Do Marichal meu senhor E são escudeiro seu. Sei bem ler E muito bem escrever E bom jogador de bola, E quanto a tanger viola, Logo me vereis tanger Moço, que estais lá olhando? MOÇO Que manda Vossa Mercê? ESCUDEIRO Que venhais cá. MOÇO Pera quê? ESCUDEIRO Por que faças o que eu mando! MOÇO Logo vou. (O Diabo me tomou: Sair me de João Montês Por servir um tavanês Mor doudo que Deus criou!) ESCUDEIRO Fui despedir um rapaz Que valia Perpinhão, Por tomar este ladrão. Moço!
MOÇO Que vos praz? ESCUDEIRO A viola. MOÇO (Oh! como ficará tola Se não fosse casar ante Co mais sáfio bargante Que coma pão e cebola!). Ei-la aqui bem temperada, Não tendes que temperar ESCUDEIRO Faria bem de ta quebrar Na cabeça bem migada! MOÇO E se ela é emprestada, Quem na havia de pagar? Meu amo, eu quero m'ir. ESCUDEIRO E quando queres partir? MOÇO Ante que venha o Inverno, Porque vós não dais governo Pera vos ninguém servir
ESCUDEIRO Não dormes tu que te farte? MOÇO No chão, e o telhado por manta... E çarra-se m'a garganta Com fome. ESCUDEIRO Isso tem arte... MOÇO Vós sempre zombais assi. ESCUDEIRO Oh que boas vozes tem Esta viola aqui! Leixa-me casar a mi, Depois eu te farei bem.
MÃE Agora vos digo eu Que Inês está no Paraíso! INÊS Que tendes de ver co isso? Todo o mal há-de ser meu. MÃE Quanta doudice! INÊS Oh! como é seca a velhice! Leixai-me ouvir e folgar, Que não me hei-de contentar De casar com parvoíce. Pode ser maior riqueza Que um homem avisado? MÃE Muitas vezes, mal pecado, é milhor boa simpreza. LATÃO Ora oivi, e oivireis. Escudeiro, cantareis Alguma boa cantadela. Namorai esta donzela E esta cantiga direis:
Canta o Judeu
«Canas do amor, canas, canas do amor Polo longo dum rio Canaval vi florido, Canas do amo.»
Poemas e Poesias quinta, 24 de fevereiro de 2022
A UM ARTISTA, POEMA DA PAULISTA FRANCISCA JÚLIA
A UM ARTISTA
Francisca Júlia
Mergulha o teu olhar de fino colarista
No azul: medita um pouco, e escreve; um nada quase:
Um trecho só de prosa, uma estrofe, uma frase
Que patenteie a mão de um requintado artista.
Escreve! Molha a pena, o leve estilo enrista!
Pinta um canto do céu, uma nuvem de gaze
Solta, brilhante ao sol; e que a alma se te vaze
Na cópia dessa luz que nos deslumbra a vista.
Escreve!... Um céu ostenta o matiz da celagem
Onde erra o sol, moroso, entre vapores brancos,
Irisando, ao de leve, o verde da paisagem...
Uma ave banha ao sol o esplêndido plumacho...
Num recanto de bosque, a lamber os barrancos,
Espumeja em cachões uma cachoeira embaixo...
Poemas e Poesias quarta, 23 de fevereiro de 2022
ANGÚSTIA (POEMA DA PORTUGUESA FLORBELA ESPANCA)
ANGÚSTIA
Florbela Espanca
Tortura do pensar! Triste lamento! Quem nos dera calar a tua voz! Quem nos dera cá dentro, muito a sós, Estrangular a hidra num momento!
Sempre a morder-nos bem, dentro de nós... Q’rer apagar no Céu – Ó sonho atroz! – O brilho duma estrela, como o vento!...
Vem sempre rastejando como a vaga... Vem sempre perguntando: “O que te resta?...”
Poemas e Poesias terça, 22 de fevereiro de 2022
ANTICONSUMO (POEMA DO MARANHENSE FERREIRA GULLAR)
ANTICONSUMO
Ferreira Gullar
Como vai longe o dia, Maninho, em que a gente podia ser comum
Entre ervas burras, folhas molhadas de mamona e salsa a gente podia ser simplesmente nossas mãos nossos pés nossos cabelos e o que queimava dentro no escuro
Como vai longe o tempo como as águas batendo na amurada alegremente como os peixes vivendo no seu músculo o mistério do mundo
Poemas e Poesias segunda, 21 de fevereiro de 2022
CHOVE? NENHUMA CHUVA CAI (POEMA DO PORTUGUÊS FERNANDO PESSOA)
CHOVE? NENHUMA CHUVA CAI
Fernando Pessoa
Chove? Nenhuma chuva cai… Então onde é que eu sinto um dia Em que ruído da chuva atrai A minha inútil agonia ?
Onde é que chove, que eu o ouço? Onde é que é triste, ó claro céu? Eu quero sorrir-te, e não posso, Ó céu azul, chamar-te meu…
E o escuro ruído da chuva É constante em meu pensamento. Meu ser é a invisível curva Traçada pelo som do vento…
E eis que ante o sol e o azul do dia, Como se a hora me estorvasse, Eu sofro… E a luz e a sua alegria Cai aos meus pés como um disfarce.
Ah, na minha alma sempre chove. Há sempre escuro dentro de mim. Se escuro, alguém dentro de mim ouve A chuva, como a voz de um fim…
Os céus da tua face, e os derradeiros Tons do poente segredam nas arcadas…
No claustro sequestrando a lucidez Um espasmo apagado em ódio à ânsia Põe dias de ilhas vistas do convés
No meu cansaço perdido entre os gelos, E a cor do outono é um funeral de apelos Pela estrada da minha dissonância…
Poemas e Poesias domingo, 20 de fevereiro de 2022
O RIACHO É UM CAVALO LÍQUIDO (POEMA DO GAÚCHO FABRÍCIO CARPINEJAR)
O RIACHO É UM CAVALO LÍQUIDO
Fabrício Carpinejar
O riacho é um cavalo líquido, a pedra é um cavalo preso. As borboletas são flores com abelhas dentro. Liberdade é apenas mudar a forma, o que não diminui a solidão do nascimento.
Poemas e Poesias sábado, 19 de fevereiro de 2022
DEDICATÓRIA (POEMA DO FLUMINENSE EUCLIDES DA CUNHA )
DEDICATÓRIA
Euclides da Cunha
Se acaso uma alma se fotografasse
de sorte que, nos mesmos negativos,
A mesma luz pusesse em traços vivos
O nosso coração e a nossa face;
E os nossos ideais, e os mais cativos
De nossos sonhos... Se a emoção que nasce
Em nós, também nas chapas se gravasse
Mesmo em ligeiros traços fugitivos;
Amigo! tu terias com certeza
A mais completa e insólita surpresa
Notando - deste grupo bem no meio -
Que o mais belo, o mais forte, o mais ardente
Destes sujeitos é precisamente
O mais triste, o mais pálido, o mais feio.
Poemas e Poesias sexta, 18 de fevereiro de 2022
TROVAS HUMORÍSTICAS - 12 - (POEMA DO PARANAENSE ENO TEODORO WANKE)
TROVA HUMORÍSTICA 12
Eno Teodoro Wanke
Se queres um bom conselho
Darei um e irei embora
Nunca sigas um conselho
Inslusive o dado agora
Poemas e Poesias quinta, 17 de fevereiro de 2022
NA MORTE DO MEU SEGUNDO FILHO (POEMA DO CARIOCA DOM PEDRO II) - DECLAMAÇÃO - VÍDEO
Poemas e Poesias quarta, 16 de fevereiro de 2022
ÊXTASE (POEMA DA MARANHENSE DAGMAR DESTÊRRO)
ÊXTASE
Dagmar Destêrro
Amor, bem sabes tu como te quis... No afeto que minha alma te ofertou, dei-te tudo... Ilusão... Dei-te carinho... uma alma vibrante, — essa taça de vinho que sorveste feliz, o vinho delirante que tua vida embriagou.
Amor, bem sabes tu como te quis. Na volúpia de querer a tua vida, Tua alma na minha alma confundida, retratei-me toda inteira nos meus versos Meus segredos disperses!
Amor, bem sabes tu quanto te quis. No momento supremo, iluminado, que ainda agora o coração bendiz, nos encontramos, e nos amamos o meu olhar no teu continuado.
Meu ser estremeceu, vibrou minha alma, num lampejo. Senti, na terra, o céu. Tive em mim a volúpia de um desejo.
Tudo, agora, porém, é solidão. Já não voltas, não podes mais voltar. A minha alma lamenta em triste pranto, nunca mais te encontrar. Lamenta este meu coração não haver gozado, não haver te dado, carinhos que me deste e eu não aceitei, os beijos que pediste e não te dei...
Poemas e Poesias terça, 15 de fevereiro de 2022
LITANIA DAS HORAS MORTAS
LITANIA DAS HORAS MORTAS
Da Costa e Silva
Por estas horas de silêncio e solidão, Eu gosto de ficar só com o meu coração. É nestas horas de prazer quase divino Que eu me sinto feliz com o meu próprio destino.
Por estas horas é que a cisma me conduz Por estradas de treva e caminhos de luz.
É nestas horas, quando em êxtase medito, Que sinto em mim a nostalgia do infinito.
Por estas horas, quando a sombra estende os véus, A fé me leva além dos mais remotos céus.
É nestas horas de tristeza e de saudade Que desperta em meu ser a ânsia da Eternidade.
Por estas horas, minhas naus ousam partir Para Istambul, para Golconda, para Ofir...
É nestas horas, Noite amiga, em teu regaço, Que eu me difundo pelo Tempo e pelo Espaço.
Por estas horas eu somente aspiro ao Bem, Que em vida se tornou minha Jerusalém.
É nestas horas, quando o espírito descansa, Que me depões na fronte o teu beijo, Esperança!
Por estas horas é que eu sinto florescer, Como os astros no céu, o jardim do meu ser,
É nestas horas de quietude que deponho, Ó Noite! em teu altar, minha lâmpada — o Sonho.
Por estas horas é que eu gosto de sonhar, Para ter ilusões brancas como o luar.
É nestas horas de mistério e beatitude Que a Glória me fascina e a Poesia me ilude.
Por estas horas de tranqüila e doce paz, Quanta serenidade o espírito me traz!
É nestas horas, quando a treva se constela, Que ouço o teu canto nas estrelas, Filomela!
Por estas horas, a minh'alma anseia por Teu encanto, Ventura! e teu engano, Amor!
É nestas horas de tristeza e esquecimento Que eu gosto de ficar só com o meu pensamento.
Por estas horas eu me julgo Parsifal Para ir pela renúncia à conquista do Graal.
É nestas horas que, como um eco profundo, Repercute no meu o coração do mundo.
Por estas horas transitórias e imortais Se desvanecem minhas dúvidas fatais.
É nestas horas de harmonia indefinida Que eu tento decifrar o teu enigma, Vida!
Por estas horas, meu instinto morre, com A intenção de ser justo, o anseio de ser bom.
É nestas horas de fantástico transporte Que eu busco interrogar a tua esfinge, Morte!
Por estas horas, eu me enlevo assim, porque Vela no lodo humano a luz que tudo vê...
Por tuas horas silenciosas, benfazejas, Deusa da Solidão, Noite! bendita sejas!
Poemas e Poesias segunda, 14 de fevereiro de 2022
BESOUROS (POEMA DO CATARINENSE CRUZ E SOUSA)
BESOUROS
Cruz e Sousa
Marche, marche, marche a verve! Bandeiras, clarins, tambores, Marchar!
A poncheira ideal, que ferve, Sons, aromas, chamas, cores! Cantar!
Que este diabo vem, saudoso, Das profundezas do arcano, Viver!
O vinho maravilhoso Da forma raro e renano, Beber!
Vem beber o vinho iriado, O Falerno, claro e quente, Haurir!
Num paladar requintado, Todo inflamado e fremente Sentir!
Que o sangue da verve vibre Raja, raja, raja, raja, Taful!
E a alma do sol se equilibre Para que mais sonhos haja No azul!...
Mas este diabo tão fino, Que de tudo dá o acorde Genial!
Este capróide genuíno, Verde, verde, morde, morde, Fatal.
Poemas e Poesias domingo, 13 de fevereiro de 2022
O CÂNTICO DA TERRA (POEMA DA GOIANA CORA CORALINA)
O CÂNTICO DA TERRA
Cora Coralina
Eu sou a terra, eu sou a vida. Do meu barro primeiro veio o homem. De mim veio a mulher e veio o amor. Veio a árvore, veio a fonte. Vem o fruto e vem a flor.
Eu sou a fonte original de toda vida. Sou o chão que se prende à tua casa. Sou a telha da coberta de teu lar. A mina constante de teu poço. Sou a espiga generosa de teu gado e certeza tranqüila ao teu esforço. Sou a razão de tua vida. De mim vieste pela mão do Criador, e a mim tu voltarás no fim da lida. Só em mim acharás descanso e Paz.
Eu sou a grande Mãe Universal. Tua filha, tua noiva e desposada. A mulher e o ventre que fecundas. Sou a gleba, a gestação, eu sou o amor.
A ti, ó lavrador, tudo quanto é meu. Teu arado, tua foice, teu machado. O berço pequenino de teu filho. O algodão de tua veste e o pão de tua casa.
E um dia bem distante a mim tu voltarás. E no canteiro materno de meu seio tranqüilo dormirás.
Plantemos a roça. Lavremos a gleba. Cuidemos do ninho, do gado e da tulha. Fartura teremos e donos de sítio felizes seremos.
Poemas e Poesias sábado, 12 de fevereiro de 2022
SONETO 1 (POEMA DO CARIOCA CLÁUDIO MANOEL DA COSTA)
SONETO 1
Cláudio Manoel da Costa
Para cantar de amor tenros cuidados, Tomo entre vós, ó montes, o instrumento; Ouvi pois o meu fúnebre lamento; Se é, que de compaixão sois animados:
Já vós vistes, que aos ecos magoados Do trácio Orfeu parava o mesmo vento; Da lira de Anfião ao doce acento Se viram os rochedos abalados.
Bem sei, que de outros gênios o Destino, Para cingir de Apolo a verde rama, Lhes influiu na lira estro divino:
O canto, pois, que a minha voz derrama, Porque ao menos o entoa um peregrino, Se faz digno entre vós também de fama.
Poemas e Poesias sexta, 11 de fevereiro de 2022
SOU... (POEMA DA UCRANIANA BRASILEIRA CLARICE LISPECTOR)
SOU...
Clarice Lispector
Sou os brinquedos que brinquei, as gírias que usei, os nervosos e felicidades que já passei.
Sou minha praia preferida, Garopaba, Maresias, Ipanema, sou os amores que vivi, as conversas sérias que tive com meu pai:
Eu sou o que me faz lembrar!!!
Sou a saudade que sinto, sou um sonho desfeito ao acaso, sou a infância que vivi, sou a dor de não ter dado certo, sou o sorriso por tudo que conquistei, sou a emoção de um trecho de livro, da cena de filme que me arrancou lágrimas: Eu sou o que me faz chorar!!!
Sou a raiva de não ter alcançado, sou a impotência diante das injustiças que não posso mudar, sou o desprezo pelo que os outros mentem, sou o desapontamento com o governo, o ódio que isso tudo dá.
Sou o que eu remo, sou o que eu não desisto, sou o que eu luto, sou a indignação com o lixo jogado do carro, a ardência da revolta ao ver um animal abandonado: Eu sou o que me corrói!!!
Eu sou o que eu luto, o que consigo gerar através de minhas verdades, sou os direitos que tenho e os deveres a que me obrigo, sou a estrada por onde corro, sou o que ensino e, sobretudo, o que aprendo:
Eu sou o que eu pleiteio!!! Eu não sou da forma como me visto, não sou da forma como me comporto, não sou o que eu como, muito menos o que eu bebo.
Não sou o que aparento ser: EU SOU O QUE NINGUÉM VÊ!!!
Poemas e Poesias quinta, 10 de fevereiro de 2022
CANTO PRIMEIRO (POEMA DO MARANHENSE SOUSÂNDRADE)
CANTO PRIMEIRO
Sousândrade
Eia, imaginação divina! Os Andes Vulcânicos elevam cumes calvos, Circundados de gelos, mudos, alvos, Nuvens flutuando — que espetac'los grandes!
Lá, onde o ponto do condor negreja, Cintilando no espaço como brilhos D'olhos, e cai a prumo sobre os filhos Do lhama descuidado; onde lampeja
Da tempestade o raio; onde deserto, O azul sertão, formoso e deslumbrante, Arde do sol o incêndio, delirante Coração vivo em céu profundo aberto!
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"Nos áureos tempos, nos jardins da América Infante adoração dobrando a crença Ante o belo sinal, nuvem ibérica Em sua noite a envolveu ruidosa e densa.
"Cândidos Incas! Quando já campeiam Os heróis vencedores do inocente Índio nu; quando os templos s'incendeiam, Já sem virgens, sem ouro reluzente,
"Sem as sombras dos reis filhos de Manco, Viu-se... (que tinham feito? e pouco havia A fazer-se...) num leito puro e branco A corrupção, que os braços estendia!
"E da existência meiga, afortunada, O róseo fio nesse albor ameno Foi destruído. Como ensanguentada A terra fez sorrir ao céu sereno!
"Foi tal a maldição dos que caídos Morderam dessa mãe querida o seio, A contrair-se aos beijos, denegridos, O desespero se imprimi-los veio, —
"Que ressentiu-se, verdejante e válido, O floripôndio em flor; e quando o vento Mugindo estorce-o doloroso, pálido, Gemidos se ouvem no amplo firmamento!
"E o Sol, que resplandece na montanha As noivas não encontra, não se abraçam No puro amor; e os fanfarrões d'Espanha, Em sangue edêneo os pés lavando, passam.
"Caiu a noite da nação formosa; Cervais romperam por nevado armento, Quando com a ave a corte deliciosa Festejava o purpúreo nascimento."
Assim volvia o olhar o Guesa Errante Às meneadas cimas qual altares Do gênio pátrio, que a ficar distante S`eleva a alma beijando-o além dos ares.
E enfraquecido coração, perdoa Pungentes males que lhe estão dos seus — Talvez feridas setas abençoa Na hora saudosa, murmurando adeus.
Poemas e Poesias quarta, 09 de fevereiro de 2022
TREZE HORAS (POEMA DO MARANHENSE JOSÉ CHAGAS)
TREZE HORAS
José Chagas
Aqui onde um gato conclui seu abandono, cria-se a tarde e o seu vento. O sol ilumina o secreto ofício das cousas, o mar está longe mas seu existir nos banha. E naves de silêncio iniciam viagens para trás para dentro de mim e do tempo. A paisagem se cumpre sobre velhas casas que sustentam séculos no ar.
Poemas e Poesias terça, 08 de fevereiro de 2022
CORRIDA (POEMA DA MARANHENSE DAGMAR DESTÊRRO)
CORRIDA
Dagmar Destêrro
No avanço do tempo corre a vida, mas nesse tempo há pedras espalhadas, pedras agudas, carnes esfarrapadas, sangue jorrando de cada ferida.
o tempo açoita a vida noite e dia e ele chora, tropeça, levanta e continua. Só e esperança anima a travessia; e a alma corre, descabelada e nua.
E a vida não tem tempo, ao tempo, em meio, de ver o belo existente no caminho; não perder na corrida é o seu anseio; sua atenção conserva em desalinho.
No embrião da vida, no tempo, avanço. Subidas e descidas — tantas conheço: e na vertigem do correr me canso. Procuro, em vão, meu horizonte do começo.
Poemas e Poesias segunda, 07 de fevereiro de 2022
E, ENORME, NESTA MASSA IRREGULAR (POEMA DO PORTUGUÊS CESÁRIO VERDE)
E, ENORME, NESTA MASSA IRREGULAR
Cesário Verde
E, enorme, nesta massa irregular De prédios sepulcrais, com dimensões de montes, A Dor humana busca os amplos horizontes, E tem marés de fel como um sinistro mar!
Poemas e Poesias domingo, 06 de fevereiro de 2022
MARCHA (POEMA DA CARIOCA CECÍLIA MEIRELES)
MARCHA
Cecília Meireles
As ordens da madrugada romperam por sobre os montes: nosso caminho se alarga sem campos verdes nem fontes. Apenas o sol redondo e alguma esmola de vento quebraram as formas do sono com a idéia do movimento.
Vamos a passo e de longe; entre nós dois anda o mundo, com alguns vivos pela tona, com alguns mortos pelo fundo. As aves trazem mentiras de países sem sofrimento. Por mais que alargue as pupilas, mais minha dúvida aumento.
Também não pretendo nada senão ir andando à toa, como um número que se arma e em seguida se esboroa, -- e cair no mesmo poço de inércia e de esquecimento, onde o fim do tempo soma pedras, águas, pensamento.
Gosto da minha palavra pelo sabor que lhe deste: mesmo quando é linda, amarga como qualquer fruto agreste. Mesmo assim amarga, é tudo que tenho, entre o sol e o vento: meu vestido, minha musica, meu sonho, meu alimento.
Quando penso no teu rosto, fecho os olhos de saudades; tenho visto muita coisa, menos a felicidade. Soltam-se os meus dedos tristes, dos sonhos claros que invento. Nem aquilo que imagino já me dá contentamento.
Como tudo sempre acaba, oxalá seja bem cedo! A esperança que falava tem lábios brancos de medo. O horizonte corta a vida isento de tudo, isento... Não há lagrima nem grito: apenas consentimento.
Poemas e Poesias sexta, 04 de fevereiro de 2022
AHASVERUS E O GÊNIO (POEMA DO BAIANO CASTRO ALVES)
AHASVERUS E O GÊNIO
Castro Alves
ao poeta e amigo J. Felizardo Júnior
Sabes quem foi Ahasverus?...— o precito, O mísero Judeu, que tinha escrito Na fronte o selo atroz! Eterno viajor de eterna senda... Espantado a fugir de tenda em tenda, Fugindo embalde à vingadora voz!
Misérrimo! Correu o mundo inteiro, E no mundo tão grande... o forasteiro Não teve onde... pousar. Coa mão vazia — viu a terra cheia. O deserto negou-lhe — o grão de areia, A gota dágua — rejeitou-lhe o mar.
DÁsia as florestas — lhe negaram sombra A savana sem fim — negou-lhe alfombra. O chão negou-lhe o pó!... Tabas, serralhos, tendas e solares... Ninguém lhe abriu a porta de seus lares E o triste seguiu só.
Viu povos de mil climas, viu mil raças, E não pôde entre tantas populaças Beijar uma só mão ... Desde a virgem do Norte à de Sevilhas, Desde a inglesa à crioula das Antilhas Não teve um coração! ...
E caminhou!... E as tribos se afastavam E as mulheres tremendo murmuravam Com respeito e pavor. Ai! Fazia tremer do vale à serra... Ele que só pedia sobre a terra — Silêncio, paz e amor! —
No entanto à noite, se o Hebreu passava, Um murmúrio de inveja se elevava, Desde a flor da campina ao colibri. "Ele não morre", a multidão dizia... E o precito consigo respondia: — "Ai! mas nunca vivi!" —
O Gênio é como Ahasverus... solitário A marchar, a marchar no itinerário Sem termo do existir. Invejado! a invejar os invejosos. Vendo a sombra dos álamos frondosos... E sempre a caminhar... sempre a seguir...
Pede ua mão de amigo — dão-lhe palmas: Pede um beijo de amor — e as outras almas Fogem pasmas de si. E o mísero de glória em glória corre... Mas quando a terra diz: — "Ele não morre" Responde o desgraçado: — "Eu não vivi!..."
Poemas e Poesias quinta, 03 de fevereiro de 2022
QUEIXUMES (POEMA DO FLUMINENSE CASIMIRO DE ABREU)
QUEIXUMES
Casimiro de Abreu
Olho e vejo... tudo é gala, Tudo canta e tudo fala, Só minh'alma Não se acalma, Muda e triste não se ri! Minha mente já delira, E meu peito só suspira Por ti! Por ti!
Ai! quem me dera essa vida Tão bela e doce vivida Nos meus lares Sem pesares No sossego só dali! Não tinha-te visto as tranças, Nem rasgado as esperanças Por ti! Por ti!
Perdi as flores da idade, E na flor da mocidade É meu canto - Todo pranto - Qual a voz da juriti! No teu sorriso embebido Deixei meu sonho querido Por ti! Por ti!
Ai! se eu pudesse, formosa, Roçar-te os lábios de rosa Como às flores - Seus amores - Faz o louco colibri; Esta minh'alma nos hinos Erguera cantos divinos Por ti! Por ti!
Ai! assim viver não posso! Morrerei, meu Deus, bem moço, - Qual n'aurora Que descora, Desfolhado bogari; Mas lá da campa na beira Será a voz derradeira Por ti! Por ti!
Ai! não m'esqueças já morto! À minh'alma dá conforto, Diz na lousa: - "Ele repousa, "Coitado! descansa aqui!" - Ai! não t'esqueças, senhora, Da flor pendida n'aurora Por ti! Por ti!...
Poemas e Poesias quarta, 02 de fevereiro de 2022
OLINDA, DO ALTO DO MOSTEIRO (POEM DO PERNAMBUCANO CARLOS PENA FILHO)
OLINDA, DO ALTO DO MOSTEIRO
Carlos Pena Filho
De limpeza e claridade é a paisagem defronte. Tão limpa que se dissolve a linha do horizonte.
As paisagens muito claras não são paisagens, são lentes. São íris, sol, aguaverde ou claridade somente.
Olinda é só para os olhos, não se apalpa, é só desejo. Ninguém diz: é lá que eu moro. Diz somente: é lá que eu vejo.
Tem verdágua e não se sabe, a não ser quando se sai. Não porque antes se visse, mas porque não se vê mais.
As claras paisagens dormem no olhar, quando em existência. Diluídas, evaporadas, só se reúnem na ausência.
Limpeza tal só imagino que possa haver nas vivendas das aves, nas áreas altas, muito além do além das lendas.
Os acidentes, na luz, não são, existem por ela. Não há nem pontos ao menos, nem há mar, nem céu, nem velas.
Quando a luz é muito intensa É quando mais frágil é: planície, que de tão plana parecesse em pé
Poemas e Poesias terça, 01 de fevereiro de 2022
AMOR E SEU TEMPO (POEMA DO MINEIRO CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE)
AMOR E SEU TEMPO
Carlos Drummond de Andrade
Amor é privilégio de maduros Estendidos na mais estreita cama, Que se torna a mais larga e mais relvosa, Roçando, em cada poro, o céu do corpo.
É isto, amor: o ganho não previsto, O prêmio subterrâneo e coruscante, Leitura de relâmpago cifrado, Que, decifrado, nada mais existe
Valendo a pena e o preço do terrestre, Salvo o minuto de ouro no relógio Minúsculo, vibrando no crepúsculo.
Amor é o que se aprende no limite, Depois de se arquivar toda a ciência Herdada, ouvida. amor começa tarde.
Poemas e Poesias segunda, 31 de janeiro de 2022
SONETO 152 - DEPOIS QUE VIU CIBELE O CORPO HUMANO (POEMA DO PORTUGUÊS LUÍS DE CAMÕES)
DEPOIS QUE VIU CIBELE O CORPO HUMANO
Soneto 152
Luís de Camões
Despois que vio Cibele o corpo humano Do formoso Atys seu verde pinheiro, Em piedade o vão furor primeiro Convertido, chorava o grave dano.
E, á sua dor fazendo illustre engano, A Jupiter pedio, que o verdadeiro Preço da nobre palma e do loureiro Ao seu pinheiro désse, soberano.
Mais lhe concede o filho poderoso Que, crescendo, as estrellas tocar possa, Vendo os segredos lá do ceo superno.
Oh ditoso pinheiro! oh mais ditoso Quem se vir coroar da rama vossa, Cantando á vossa sombra verso eterno!
Poemas e Poesias domingo, 30 de janeiro de 2022
SONETO DA DAMA CAGANDO (POEMA DO PORTUGUÊS MANUEL MARIA BARBOSAS DU BOCAGE)
SONETO DA DAMA CAGANDO
Bocage
Cagando estava a dama mais formosa,
E nunca se viu cu de tanta alvura;
Porém o ver cagar a formosura
Mete nojo à vontade mais gulosa!
Ela a massa expulsou fedentinosa
Com algum custo, porque estava dura;
Uma carta d'amores de alimpadura
Serviu àquela parte malcheirosa:
Ora mandem à moça mais bonita
Um escrito d'amor que lisonjeiro
Afetos move, corações incita:
Para o ir ver servir de reposteiro
À porta, onde o fedor, e a trampa habita,
Do sombrio palácio do alcatreiro!
Poemas e Poesias sábado, 29 de janeiro de 2022
CEM TROVAS - 002 (POEMA DE BELMIRO BRAGA)
CEM TROVAS
Belmiro Braga
TROVA 002
Em ti, minha mãe, se encerra
Todo o meu maior troféu:
Guardas num corpo de terra
Uma alma feita de céu
Poemas e Poesias sexta, 28 de janeiro de 2022
SONETOS (POEMA DO CAPIXABA AUGUSTO DOS ANJOS) DECLAMAÇÃO
SONETOS
Augusto dos Anjos
(Declamação)
Poemas e Poesias quarta, 26 de janeiro de 2022
SONETO DE BABILÔNIA E SERTÃO (POEMA DO PARAIBANO ARIANO SUASSUNA)
SONETO DE BABILÔNIA E SERTÃO
Ariano Suassuna
Com tema de Tupan-Sete
Aqui, o Corvo azul da Suspeição
apodrece nas frutas violetas,
e a Febre-escusa, a Rosa-da-infecção,
canta aos Tigres de verde e malhas-pretas.
Lá, no pêlo de cobre do Alazão,
o Bilro-de-ouro fia a Lã-vermelha.
Um Pio-de-metal é o Gaviãoe
são mansas as Cabras e as Ovelhas.
Aqui, o lodo mancha o Gato-Pardo:
a Lua esverdeada sai do Manguee
apodrece, no Medo, o Desbarato.
Lá, é fogo e limalha a Estrela-esparsa:
o Sol-da-morte luz no sol do Sangue,
mas cresce a Solidão e sonha a Garça.
Poemas e Poesias terça, 25 de janeiro de 2022
ESPERANÇAS (POEMA DO PAULISTA ÁLVARES DE AZEVEDO)
ESPERANÇAS
Álvares de Azevedo
Se a ilusão de minh'alma foi mentida E, leviana, da árvore da vida, As flores desbotei... Se por sonhos do amor de uma donzela Imolei meu porvir e o ser por ela Em prantos esgotei...
Se a alma consumi na dor que mata E banhei de uma lágrima insensata A última esperança, Oh! não me odeies, não! eu te amo ainda, Como dos mares pela noite infinda A estrela da bonança!
Como nas folhas do Missal do templo Os mistérios de Deus em ti contemplo E na tu'alma os sinto! Às vezes, delirante, se eu maldigo As esperanças que sonhei contigo, Perdoa-me, que minto!
Oh! não me odeies, não! eu te amo ainda, Como do peito a aspiração infinda Que me influi o viver... E como a nuvem de azulado incenso... Como eu amo esse afeto único, imenso Que me fará morrer!
Rompeste a alva túnica luzente Que eu doirava por ti de amor demente E aromei de abusões... Deste-me em troco lágrimas aspérrimas... Ah! que morreram a sangrar misérrimas As minhas ilusões!
Nos encantos das fadas da ventura Podes dormir ao sol da formosura Sempre bela e feliz! Irmã dos anjos, sonharei contigo: A alma a quem negaste o último abrigo Chora... não te maldiz!
Chora e sonha e espera: a negra sina Talvez no céu se apague em purpurina Alvorada de amor... E eu acorde no céu num teu abraço E repouse tremendo em teu regaço Teu pobre sonhador!
Poemas e Poesias segunda, 24 de janeiro de 2022
SONHO POÉTICO (POEMA DO CARIOCA ALVARENGA PEIXOTO)
SONHO POÉTICO
Alvarenga Peixoto
Oh, que sonho, oh, que sonho eu tive nesta feliz, ditosa, sossegada sesta! Eu vi o Pão d'Açúcar levantar-se, e no meio das ondas transformar-se na figura do Índio mais gentil, representando só todo o Brasil. Pendente a tiracol de branco arminho, côncavo dente de animal marinho as preciosas armas lhe guardava: era tesouro e juntamente aljava. De pontas de diamante eram as setas, as hásteas de ouro, mas as penas pretas; que o Índio valeroso, ativo e forte, não manda seta em que não mande a morte. Zona de penas de vistosas cores, guarnecida de bárbaros lavores, de folhetas e pérolas pendentes, finos cristais, topázios transparentes, em recamadas peles de saíras, rubins, e diamantes e safiras, em campo de esmeralda escurecia a linda estrela que nos traz o dia. No cocar... oh! que assombro, oh! que riqueza! Vi tudo quanto pode a natureza: no peito, em grandes letras de diamante, o nome da Augustíssima Imperante. De inteiriço coral novo instrumento as mãos lhe ocupa, enquanto ao doce acento das saudosas palhetas, que afinava, Píndaro Americano assim cantava: "Sou vassalo, sou leal; como tal, fiel constante, sirvo à glória da imperante, sirvo à grandeza real. Aos Elísios descerei, fiel sempre a Portugal, ao famoso vice-rei, ao ilustre general, às bandeiras que jurei. Insultando o fado e a sorte e a fortuna desigual, a quem morrer sabe, a morte nem é morte nem é mal."
Poemas e Poesias domingo, 23 de janeiro de 2022
BARCA BELA (POEMA DO PORTUGUÊS ALMEIDA GARRETT)
BARCA BELA
Almeida Garrett
Pescador da barca bela, Onde vais pescar com ela. Que é tão bela, Oh pescador?
Não vês que a última estrela No céu nublado se vela? Colhe a vela, Oh pescador!
Deita o lanço com cautela, Que a sereia canta bela... Mas cautela, Oh pescador!
Não se enrede a rede nela, Que perdido é remo e vela, Só de vê-la, Oh pescador.
Pescador da barca bela, Inda é tempo, foge dela Foge dela Oh pescador!
Poemas e Poesias sábado, 22 de janeiro de 2022
CÍTARA (POEMA DO GAÚCHO ALCEU WAMOSY)
CÍTARA
Alceu Wamosy
Firo-te as cordas, cítara dormente, Velha cítara poenta, abandonada, Que um régio artista fez vibrar, pulsada Pela divina mão, antigamente.
E assim, por um instante despertada, Na mesma vibração profunda e ardente De outrora freme, cítara dolente, Toda a tua alma, trêmula, acordada.
Nessa maviosa música embebido, Escuto as notas, múrmuras, chegando Como um coro celeste, ao meu ouvido.
E eu julgo, então, sentir, no derradeiro, No último som que morre, a alma, chorando, Desse que as cordas te tangeu primeiro.
Poemas e Poesias sexta, 21 de janeiro de 2022
CEU FLUMINENSE (POEMA DO FLUMINENSE ALBERTO DE OLIVEIRA)
CÉU FLUMINENSE
Alberto de Oliveira
Chamas-me a ver os céus de outros países,
Também claros, azuis ou de ígneas cores,
Mas não violentos, não abrasadores
Como este, bárbaro e implacável – dizes.
O céu que ofendes e de que maldizes,
Basta-me no entanto; amo-o com os seus fulgores,
Amam-no poetas, amam-no pintores,
Os que vivem do sonho, e os infelizes.
Desde a infância, as mãos postas, ajoelhado,
Rezando ao pé de minha mãe, que o vejo.
Segue-me sempre… E ora da vida ao fim,
Em vindo o último sono, é o meu desejo
Tê-lo sereno assim, todo estrelado,
Ou todo sol, aberto sobre mim.
Poemas e Poesias quinta, 20 de janeiro de 2022
CONFLUÊNCIA (POEMA DO MINEIRO AFFONSO ROMANO DE SANT*ANNA)
CONFLUÊNCIA
Affonso Romano de Sant'Anna
Ter-te amado, a fantasia exata se cumprindo sem distância. Ter-te amado convertendo em mel o que era ânsia. Ter-te amado a boca, o tato, o cheiro: intumescente encontro de reentrâncias. Ter-te amado fez-me sentir:
no corpo teu, o meu desejo – é ancorada errância.
Poemas e Poesias quarta, 19 de janeiro de 2022
FOTOGRAFIA (POEMA DA MINEIRA ADÉLIA PRADO)
FOTOGRAFIA
Adélia Prado
Quando a minha mãe posou para este que foi seu único retrato, mal consentiu em ter as têmporas curvas. Contudo, há um desejo de beleza no seu rosto que uma doutrina dura fez contido. A boca é conspícua, mas as orelhas se mostram. O vestido é preto e fechado. O temor de Deus circunda seu semblante, como cadeia. Luminosa. Mas cadeia. Seria um retrato triste se não visse em seus olhos um jardim. Não daqui. Mas jardim.
Poemas e Poesias terça, 18 de janeiro de 2022
MISTÉRIO (POEMA DA CARIOCA ADALGISA NERY)
MISTÉRIO
Adalgisa Nery
Há vozes dentro da noite que clamam por mim, Há vozes nas fontes que gritam meu nome. Minha alma distende seus ouvidos E minha memória desce aos abismos escuros Procurando quem chama.
Há vozes que correm nos ventos clamando por mim. Há vozes debaixo das pedras que gemem meu nome E eu olho para as árvores tranqüilas E para as montanhas impassíveis Procurando quem chama.
Há vozes na boca das rosas cantando meu nome E as ondas batem nas praias Deixando exaustas um grito por mim E meus olhos caem na lembrança do paraíso Para saber quem chama.
Há vozes nos corpos sem vida, Há vozes no meu caminhar, Há vozes no sono de meus filhos E meu pensamento como um relâmpago risca O limite da minha existência... na ânsia de saber quem grita.
Poemas e Poesias segunda, 17 de janeiro de 2022
ÊXTASE (POEMA DA PORTUGUESA VIRGÍNIA VICTORINO)
ÊXTASE
Virgínia Victorino
Não sofras mais, amor, não digas nada!
Vem comigo; eu te levo. A noite é densa
e agora a voz do mar ficou suspensa,
dolorida, vibrante, apaixonada!
Não tarda muito a luz da madrugada...
Vem comigo! Não penses! Não se pensa!
Vem à conquista da aventura imensa,
vê, como eu vou, feliz e deslumbrada!
Um grande sonho me enlouquece e invade!
Vem procurar comigo a Eternidade
esse país tão vago, tão distante...
Vem, que eu busco o palácio da quimera,
lá, onde seja eterna a primavera,
e a voz divina das estrelas cante!
Poemas e Poesias domingo, 16 de janeiro de 2022
A FRUTA ABERTA (POEMA DO AMAZONENSE THIAGO DE MELLO)
A FRUTA ABERTA
Thiago de Mello
Agora sei quem sou. Sou pouco, mas sei muito, porque sei o poder imenso que morava comigo, mas adormecido como um peixe grande no fundo escuro e silencioso do rio e que hoje é como uma árvore plantada bem alta no meio da minha vida.
Agora sei as coisas como são. Sei porque a água escorre meiga e porque acalanto é o seu ruído na noite estrelada que se deita no chão da nova casa. Agora sei as coisas poderosas que valem dentro de um homem.
Aprendi contigo, amada. Aprendi com a tua beleza, com a macia beleza de tuas mãos, teus longos dedos de pétalas de prata, a ternura oceânica do teu olhar, verde de todas as cores e sem nenhum horizonte; com a tua pele fresca e enluarada, a tua infância permanente, tua sabedoria fabulária brilhando distraída no teu rosto.
Grandes coisas simples aprendi contigo, com o teu parentesco com os mitos mais terrestres, com as espigas douradas no vento, com as chuvas de verão e com as linhas da minha mão.
Contigo aprendi que o amor reparte mas sobretudo acrescenta, e a cada instante mais aprendo com o teu jeito de andar pela cidade como se caminhasses de mãos dadas com o ar, com o teu gosto de erva molhada, com a luz dos teus dentes, tuas delicadezas secretas, a alegria do teu amor maravilhado, e com a tua voz radiosa que sai da tua boca inesperada como um arco-íris partindo ao meio e unindo os extremos da vida, e mostrando a verdade como uma fruta aberta.
Poemas e Poesias sábado, 15 de janeiro de 2022
A HORA ÍNTIMA (POEMA DO CARIOCA VINÍCIUS DE MORAES)
A HORA ÍNTIMA
Vinícius de Moraes
Quem pagará o enterro e as flores Se eu me morrer de amores? Quem, dentre amigos, tão amigo Para estar no caixão comigo? Quem, em meio ao funeral Dirá de mim: - Nunca fez mal... Quem, bêbedo, chorará em voz alta De não me ter trazido nada? Quem virá despetalar pétalas No meu túmulo de poeta? Quem jogará timidamente Na terra um grão de semente? Quem elevará o olhar covarde Até a estrela da tarde? Quem me dirá palavras mágicas Capazes de empalidecer o mármore? Quem, oculta em véus escuros Se crucificará nos muros? Quem, macerada de desgosto Sorrirá: - Rei morto, rei posto... Quantas, debruçadas sobre o báratro Sentirão as dores do parto? Qual a que, branca de receio Tocará o botão do seio? Quem, louca, se jogará de bruços A soluçar tantos soluços Que há de despertar receios? Quantos, os maxilares contraídos O sangue a pulsar nas cicatrizes Dirão: - Foi um doido amigo... Quem, criança, olhando a terra Ao ver movimentar-se um verme Observará um ar de critério? Quem, em circunstância oficial Há de propor meu pedestal? Quais os que, vindos da montanha Terão circunspecção tamanha Que eu hei de rir branco de cal? Qual a que, o rosto sulcado de vento Lançará um punhado de sal Na minha cova de cimento? Quem cantará canções de amigo No dia do meu funeral? Qual a que não estará presente Por motivo circunstancial? Quem cravará no seio duro Uma lâmina enferrujada? Quem, em seu verbo inconsútil Há de orar: - Deus o tenha em sua guarda. Qual o amigo que a sós consigo Pensará: - Não há de ser nada... Quem será a estranha figura A um tronco de árvore encostada Com um olhar frio e um ar de dúvida? Quem se abraçará comigo Que terá de ser arrancada?
Quem vai pagar o enterro e as flores Se eu me morrer de amores?
Poemas e Poesias sexta, 14 de janeiro de 2022
HORAS DE AMOR (POEMA DO PAULISTA VICENTE DE CARVALHO)
HORAS DE AMOR
Vicente de Carvalho
Só vivo as horas que passo Junto de ti, meu amor, Tua cintura em meu braço, Meu beijo em tua bocca em flor...
Só assim vivo, querida, Pois tudo mais não é vida.
Ventura que mal gotteja, Triste do amor que se esconde, E só acha de onde em onde Um acaso que o proteja;
Só alcanço o teu carinho Nesta sombra de folhagem, Onde, como ave selvagem, Nosso amor tem o seu ninho.
Por entre as moitas vagueio, Caminho, paro, indeciso... Virás ou não? E agoniso Entre a esperança e o receio.
Por toda a floresta, cheia De um rumor vago e perdido, Cuido escutar o ruido Dos teus pésinhos na areia.
Volto-me sobresaltado Só porque uma ave deteve O vôo, e um ramo, de leve, Estremeceu ao meu lado.
E emquanto na sombra curto Essa impaciencia hesitante Por ternuras de um instante, Por beijos dados a furto,
Cheio de inveja reparo Nas borboletas que em bando Passam felizes, amando Na plena luz do sol claro...
Ventura que mal gotteja, Triste do amor que se esconde, E só acha de onde em onde Um acaso que o proteja.
Amor que a sombra encarcera, E foge ao sol e ás estradas... Fossemos nós de mãos dadas Pela vida e a primavera!
De subito, ouço teus passos: D’entre folhagens de arbusto Olhas, tremula de susto, Caes palpitante em meus braços.
E como a cançada abelha Que suga a flor, e adormece, Meu beijo poisa, e se esquece Em tua bocca vermelha...
Logro só de espaço a espaço Algum momento de amor, Tua cintura em meu braço, Meu beijo em tua bocca em flor.