O PARAÍSO DOS MEDÍOCRES
Euclides da Cunha
(Uma página que Dante destruiu)
Perto do inferno existe uma paragem
Onde cai monótona e ressoa
Uma torrente enregelada e dura
Sulcando a pedra na erosão eterna.
Fomos por ela em fora, lento e lento
Vacilantes subindo. Mas no alto
Precisamente quando a minha vista
Divisava dos céus tão anelados
Um fragmento longínquo, vi-me só.
Inopinadamente se evadira
O bucólico guia que me dera
O clarão de sua alma incomparável,
Entre as sombras dos giros infernais.
Então alucinado, o peito opresso,
A fronte em fogo, onde batiam ríspidas
As lufadas friíssimas do abismo,
Atirei entre os ecos apagados
Das vozes do demônio uma súplica:
Virgílio. E estas três sílabas belíssimas
Rolaram longamente no silêncio
Como se no silêncio desabasse
Uma falange de cristais partidos.
Mas não as repeti: de uma vereda
À esquerda, junto ao círculo Judas,
Vi que surgiu uma figura estranha,
Homem ou gênio, e todo desgracioso
Lembrava um sambenito: a fronte nua
Escampada e brunida completava
A face cheia e lisa sem refegos,
Sem um só desses vincos, dessas rugas
Que são os golpes do buril do espírito
Sobre os blocos de músculos e nervos.
Sorria e eu vi seus dentes magníficos
Numa expressão alvar. Aproximou-se.
Disse-lhe então: Quem sois? Por que acudistes?
Quando eu chamei por outro tão diverso?
Teme um momo adorável, agitou
Num gesto longo de elegância altiva
A véstia e o porte erecto e o olhar fulgente
E o rosto novamente derramando-se
Num riso imbecil e triunfante
Volveu pondo-me ao ombro a mão cuidada:
"Sou Marcellus Pompônio, 'o purista'
O guia que me trouxe, esse Virgílio,
Esta ama-seca que apelidas tanto
Não me suportaria; eu sou capaz
De mostrar solecismos nas "Geórgicas"...
Fez bem: fugiu. E tu certo conheces
O gênio prodigioso que venceu
Certa causa notável, apontando
Um erro de gramática nos autos:
Sou eu. Sou imortal... Tu és feliz,
Lucraste com a troca. Folga, ri,
Agradece ao teu Deus e dá-me o braço.
Eu vou mostrar o que outrem não faria.
Já viste o inferno, vou levar-te agora
Ao purgatório e ao céu. Mas antes deles
Há uma terra ideal onde domina
A santa mediania de virtude
E se chama o 'Paraíso dos Medíocres' ".
"É ali", disse. E depois me foi levando
Por um trilho escarpado. a breve trecho,
Vingando um cerro abrupto, tive em frente
O mais belo país que eu inda vira
Que terra encantadora. O meu olhar
Desatou-se folgando na amplitude
Dos horizontes vastos onde eternos
Fulgores de uma primavera eterna
Se revezam co'as noites estreladas.