Poemas e Poesias segunda, 08 de março de 2021
A FELICIDADE (POEMA DO SERGIPANO HERMES FONTES)

A FELICIDADE
(Hermes Fontes)
Existe. Eu a conheço. Ouço-a e lhe falo: fito
os meus olhos nos seus, e, exaltando-a, me exalto.
Vou tocá-la, porém… — há entre nós o infinito!
— foge o horizonte, o céu esfuma-se em cobalto…
Minha Felicidade!… hei de atingi-la!… salto
muralha por muralha, ergo-me, voo, agito
todas as asas da Alma, ando, de sobressalto
em sobressalto, atrás desse enganoso Mito…
Antes de te sonhar, vi-te, e, antes de buscar-te,
vieste… mas, para amar-te, urge-me que descentre
o Ideal para a Ambição… E ai! dos meus sonhos de arte!
Ai! de mim que sonhei ser feliz, e deponho
minha felicidade e minhas glórias, entre
a guilheta da Vida e a redenção do Sonho!…
Poemas e Poesias domingo, 07 de março de 2021
RUA DE RIMAS (POEMA DO PAULISTA GUILHERME DE ALMEIDA)

RUA DE RIMAS
Guilherme de Almeida
A rua que eu imagino, desde menino, para o meu destino pequenino
é uma rua de poeta, reta, quieta, discreta,
direita, estreita, bem feita, perfeita,
com pregões matinais de jornais, aventais nos portais, animais e varais nos quintais;
e acácias paralelas, todas elas belas, singelas, amarelas,
doiradas, descabeladas,
debruçadas como namoradas para as calçadas;
e um passo, de espaço a espaço, no mormaço de aço baço e lasso,
e algum piano provinciano, quotidiano, desumano,
mas brando e brando, soltando, de vez em quando,
na luz rala de opala de uma sala uma escala clara que embala;
e, no ar de uma tarde que arde, o alarde das crianças do arrabalde;
e de noite, no ócio capadócio,
junto aos espiões, os bordões dos violões;
e a serenata ao luar de prata (mulata ingrata que me mata…);
e depois o silêncio, o denso, o intenso, o imenso silêncio…
A rua que eu imagino, desde menino, para o meu destino pequenino
é uma rua qualquer onde desfolha um malmequer uma mulher que bem me quer;
é uma rua, como todas as ruas, com suas duas calçadas nuas,
correndo paralelamente,
como a sorte, como a sorte diferente de toda a gente, para a frente
para o infinito; mas uma rua que tem escrito um nome bonito, bendito, que sempre repito
e que rima com mocidade, liberdade, tranquilidade: RUA DA FELICIDADE…
Poemas e Poesias sábado, 06 de março de 2021
A TORRE DE BABEL OU A PORRA DO SORIANO (POEMA DO PORTUGUÊS GUERRA JUNQUEIRO)

A TORRE DE BABEL OU A PORRA DO SORIANO
Guerra Junqueiro
Eu canto do Soriano o singular mangalho!
Empresa colossal! Ciclópico trabalho!
Para o cantar inteiro e para o cantar bem
precisava viver como Matusalém.
Dez séculos!
Enfim, nesta pobreza métrica
cantemos essa porra, porra quilométrica,
donde pendem colhões que idéia vaga
das nádegas brutais do Arcebispo de Braga.
Sim, cantemos a porra, o caralho iracundo
que, antes de nervo cru, já foi eixo do Mundo!
Mastro de Leviathan! Iminência revel!
Estando murcho foi a Torre de Babel
Caralho singular! É contemplá-lo
É vê-lo teso!
Atravessaria o quê?
O sete estrelo!!
Em Tebas, em Paris, em Lagos, em Gomorra
juro que ninguém viu tão formidável porra
É uma porra, arquiporra!
É um caralhão atroz
que se lhe podem dar trinta ou quarenta nós
e, ainda assim, fica o caralho preciso
para foder a Terra, Eva no Paraíso!!
É uma porra infinita, é um caralho insone
que nas roscas outrora estrangulou Laoccoonte.
Oh, caralho imortal! Oh glória destes lusos!
Tu podias suprir todos os parafusos
que espremem com vigor os cachos do Alto Douro!
Onde é que há um abismo, onde há um sorvedouro
que assim possa conter esta porra do diabo??!
O Marquês de Valadas em vão mostra o rabo,
em vão mostra o fundo o pavoroso Oceano!
– Nada, nada contém a porra do Soriano!!
Quando morrer, Senhor, que extraordinária cova,
que bainha, meu Deus, para esta porra nova,
esta porra infeliz, esta porra precita,
judia errante atrás duma crica infinita??
– Uma fenda do globo, um sorvedouro ignoto
que lhe dá de abrir talvez um dia um terramoto
para que deságüe, esta porra medonha,
em grossos borbotões de clerical langolha!!!
A porra do Soriano, é um infinito assunto!
Se ela está em Lisboa ou em Coimbra, pergunto?
Onde é que ela começa?
Onde é que ela termina
essa porra, que estando em Braga, está na China,
porra que corre mais que o próprio pensamento
que porra de pardal e porra de jumento??
Porra!
Mil vezes porra!
Porra de bruto
que é capaz de foder o Cosmo num minuto!!
Poemas e Poesias sexta, 05 de março de 2021
DEPOIS DE IDA ROMA, ENTRAM DOIS LAVRADORES (POEMA DO PORTUGUÊS GIL VICENTE)

DEPOIS DE IDA ROMA, ENTRAM DOIS LAVRADORES
Gil Vicente
Depois de ida Roma, entram dous lavradores, um per nome Amâncio Vaz e outro Diniz Lourenço, e diz Amâncio Vaz:
AMÂNCIO VAZ Compadre, vás tu à feira?
DINIZ LOURENÇO À feira, compadre.
AMÂNCIO VAZ Assi,
ora vamos eu e ti
ó longo desta ribeira.
DINIZ LOURENÇO Bofá, vamos.
AMÂNCIO VAZ Folgo bem
de te vir aqui achar.
DINIZ LOURENÇO Vás tu lá buscar alguém,
ou esperas de comprar?
AMÂNCIO VAZ Isso te quero contar,
e iremos patorneando,
e er também aguardando
polas moças do lugar.
Compadre, enha mulher
é muito destemperada,
e agora, se Deus quiser,
faço conta de a vender,
e dá-la-ei por quase nada.
Qu'eu quando casei com ela
diziam-me, «Hétega é».
E eu cuidei pola abofé
que mais cedo morresse ela,
e ela anda inda em pé.
E porque era hétega assim
foi o que m' a mim danou:
avonda qu'ela engordou
e fez-me hétego a mim.
DINIZ LOURENÇO Tens boa mulher de teu:
não sei que tu hás, amigo.
AMÂNCIO VAZ S'ela casara contigo
renegaras tu com' eu
e dixeras o que eu digo.
DINIZ LOURENÇO Pois, compadre, cant'à minha,
é tão mole e desatada,
que nunca dá peneirada
que não derrame a farinha.
E não põe cousa a guardar,
que a tope quanda a cata;
e por mais que homem se mata,
de birra não quer falar.
Trás d' üa pulga andará
três dias, e oito, e dez,
sem lhe lembrar o que fez,
nem tão pouco o que fará.
Pera que t'hei-de falar?
Quando ontem cheguei do mato
pôs üa enguia a assar,
e crua a leixou levar,
por não dizer sape a um gato.
Quant'a mansa, mansa é ela;
dei-m'ê logo conta disso.
AMÂNCIO VAZ Juro-t'eu que mais vale isso
cinquenta vezes qu'ela.
A minha te digo eu
que se a visses assanhada,
parece demoninhada,
ante São#Bertolameu.
DINIZ LOURENÇO Já sequer terá esp'rito:
mas renega da mulher
que ó tempo do mister
não é cabra nem cabrito.
AMÂNCIO VAZ A minha tinh'eu em guarda
pera bem da minha prol,
cuidando que era ourinol,
e tornou-se-me bombarda.
Folga tu que ess'outra tenhas,
porque a minha é tal perigo,
que por nada que lhe digo
logo me salta nas grenhas.
Então tanto punho seco
me chimpa nestes focinhos;
eu chamo polos vizinhos,
e ela nego dar-me em xeco.
DINIZ LOURENÇO Isso é de coraçuda;
não cures de a vender,
que s'alguém te mal fizer,
já sequer tens quem te acuda.
Mas a minha é tão cortês,
que se viesse ora à mão
que m'espancasse um rascão,
não diria, «Mal fazês».
Mas antes s' assentaria
a olhar como eu bradava.
Todavia a mulher brava
é, compadre, a qu'eu queria.
AMÂNCIO VAZ Pardeus! Tanto me farás
que feire a minha contigo.
DINIZ LOURENÇO Se queres feirar comigo,
vejamos que me darás.
AMÂNCIO VAZ Mas antes m' hás-de tornar
pois te dou mulher tão forte,
que te castigue de sorte
que não ouses de falar,
nem no mato nem na corte.
Outro bem terás com ela:
quando vieres da arada,
comerás sardinha assada,
porqu ' ela jenta a panela.
Então geme, pardeus, si,
diz que lhe dói a moleira.
DINIZ LOURENÇO Eu faria per maneira
que esperasse ela por mi.
AMÂNCIO VAZ Que lh'havias de fazer?
DINIZ LOURENÇO Amâncio Vaz, eu o sei bem.
AMÂNCIO VAZ Diniz Lourenço, ei-las cá vêm!
Vamo-nos nós esconder,
vejamos que vêm catar,
qu'elas ambas vêm à feira.
Mete-te nessa silveira,
qu'eu daqui hei-d' espreitar.
Vêm Branca Anes a brava, e Marta Dias a mansa, e vem dizendo a brava:
BRANCA ANES Pois casei má hora, e nela,
e com tal marido, prima,
comprarei cá üa gamela,
para o ter debaixo dela,
e um grão penedo em cima.
Porque vai-se-me às figueiras,
e come verde e maduro;
e quantas uvas penduro
jeita nas gorgomileiras:
parece negro monturo.
Vai-se-m'às ameixieiras
antes que sejam maduras,
ele quebra as cerejeiras,
ele vindima as parreiras,
e não sei que faz das uvas.
Ele não vai à lavrada,
ele todo o dia come,
ele toda a noite dorme,
ele não faz nunca nada,
e sempre me diz que há fome.
Jesu! Jesu! Posso-te dizer
e jurar e tresjurar,
e provar e reprovar,
e andar e revolver,
qu' é melhor pera beber,
que não pera maridar.
O demo que o fez marido,
que assim seco como é
beberá a torre da Sé!
Então arma um arruído
assi debaixo do pé.
MARTA DIAS Pois bom homem parece ele.
DINIZ LOURENÇO Aquela é a minha frouxa.
MARTA DIAS Deu-t'ele a fraldinha roxa?
BRANCA ANES Melhor lh'esfole eu a pele.
Que homem há i da puxa.
Ó diabo que o eu dou,
que o leve em fatiota,
e o ladrão que m'o gabou;
e o frade que me casou
inda o veja na picota.
E rogo à Virgem da Estrela,
e a santa Gerjalém,
e ós choros de Madanela
e à asninha de Belém,
que o veja ir#à#vela
pera donde nunca vem.
DINIZ LOURENÇO Compadre, no mais sofrer:
sai de lá desse silvado.
AMÂNCIO VAZ Pera eu ser arrepelado.
Não havi'eu mais mister.
DINIZ LOURENÇO E não n'hás tu de vender?
AMÂNCIO VAZ Tu dizes que a qués feirar.
DINIZ LOURENÇO Não qu'ela se me tomar
leixar-m'á quando quiser.
Mas demo-las à má estreia;
e voto que nos tornemos,
e er depois tornaremos
com as cachopas d'aldeia:
entonces concertaremos.
AMÂNCIO VAZ Isso me parece a mi
muito melhor que eu ir lá.
Oh, que couces que me dá,
quando me colhe sob si!
DINIZ LOURENÇO Cant' àquela si dará.
DIABO Mulheres, vós que quereis?
Nesta feira que buscais?
MARTA DIAS Queremo-la ver, no mais.
Pera ver em que tratais,
e as cousas que vendeis.
Tendes vós aqui anéis?
DIABO Quejandos? De que feição?
MARTA DIAS D'uns que fazem de latão.
DIABO Pera as mãos, ou pera os pés?
MARTA DIAS Não - Jesu, nome de Jesu,
Deus e homem verdadeiro!
Foge o Diabo e Marta Dias diz:
MARTA DIAS Nunca eu vi bofalinheiro
tão prestes tomar o mu.
Branc'Anes mana, crê tu
que, como Jesu é Jesu,
era este o Diabo inteiro.
BRANCA ANES Não é ele pau de boa lenha,
nem lenha de bom madeiro.
MARTA DIAS Bofá, nunc'ele cá venha.
BRANCA ANES Viagem de Jão Moleiro,
que foi pola cal d'azenha.
MARTA DIAS Pasmada estou eu de Deus
fazer o Demo marchante!
Mana, daqui por diante
não caminhemos nós sós.
BRANCA ANES S'eu soubera quem ele era,
fizera-lhe bom partido:
que me levara o marido,
e quanto tenho lhe dera,
e o touca
Poemas e Poesias quinta, 04 de março de 2021
A CAÇADA (POEMA DA PAULISTA FRANCISCA JÚLIA)

A CAÇADA
Francisca Júlia
(Grafia original)
Ao mirante gentil de construcção bizarra
Acabou de subir naquelle mesmo instante
Em que o seu noivo foi á caça; e, palpitante,
Lá fóra cuida ouvir os sons de uma fanfarra.
E, ao mesmo tempo ouvindo o selvagem descante
Que, entre as folhas, sibila a estridula cigarra,
Ella vae ler a carta onde o seu noivo narra
A dor que ha de soffrer quando estiver distante...
E dorme, vendo o sol que, atravez de uma escassa
Nuvem branca, illumina as ingremes encostas
Dos montes onde ondeja a matilha da caça;
E, bem perto, ao rumor de trompas e ladridos,
O seu noivo gentil que, de espingarda ás costas,
Lhe offerta uma porção de passaros feridos...
Poemas e Poesias quarta, 03 de março de 2021
A VIDA E A MORTE (POEMA DA PORTUGUESA FLORBELA ESPANCA)

A VIDA A MORTE
Florbela Espanca
0 que é a vida e a morte
Aquela infernal inimiga
A vida é o sorriso
E a morte da vida a guarida
A morte tem os desgostos
A vida tem os felizes
A cova tem a tristeza
E a vida tem as raízes
A vida e a morte são
O sorriso lisonjeiro
E o amor tem o navio
E o navio o marinheiro
Poemas e Poesias terça, 02 de março de 2021
PRAIA DO CAJU (POEMA DO MARANHENSE FERREIRA GULLAR)

PRAIA DO CAJU
Ferreira Gullar
Escuta:
o que passou passou
e não há força
capaz de mudar isto.
Nesta tarde de férias, disponível, podes,
se quiseres, relembrar.
Mas nada acenderá de novo
o lume
que na carne das horas se perdeu.
Ah, se perdeu!
Nas águas da piscina se perdeu
sob as folhas da tarde
nas vozes conversando na varanda
no riso de Marília no vermelho
guarda-sol esquecido na calçada.
O que passou passou e, muito embora,
voltas às velhas ruas à procura.
Aqui estão as casas, a amarela,
a branca, a de azulejo, e o sol
que nelas bate é o mesmo sol
que o Universo não mudou nestes vinte anos.
Caminhas no passado e no presente.
Aquela porta, o batente de pedra,
o cimento da calçada, até a falha do cimento.
Não sabes já
se lembras, se descobres.
E com surpresa vês o poste, o muro,
a esquina, o gato na janela,
em soluços quase te perguntas
onde está o menino
igual àquele que cruza a rua agora,
franzino assim, moreno assim.
Se tudo continua, a porta
a calçada a platibanda,
onde está o menino que também
aqui esteve? aqui nesta calçada
se sentou?
E chegas à amurada. O sol é quente
como era, a esta hora. Lá embaixo
a lama fede igual, a poça de água negra
a mesma água o mesmo
urubu pousado ao lado a mesma
lata velha que enferruja.
Entre dois braços d’água
esplende, a croa do Anil. E na intensa
claridade, como sombra,
surge o menino
correndo sobre a areia. É ele, sim,
gritas teu nome:
“Zeca, Zeca!”
Mas a distância é vasta
tão vasta que nenhuma voz alcança.
O que passou passou.
Jamais acenderás de novo
o lume
do tempo que apagou.
Poemas e Poesias segunda, 01 de março de 2021
CERCA DE GRANDES MUROS QUEM TE SONHAS (POEMA DO PORTUGUÊS FERNANDO PESSOA)

CERCA DE GRANDES MUROS QUEM TE SONHAS
Fernando Pessoa
Cerca de grandes muros quem te sonhas.
Depois, onde é visível o jardim
Através do portão de grade dada,
Põe quantas flores são as mais risonhas,
Para que te conheçam só assim.
Onde ninguém o vir não ponhas nada.
Faze canteiros como os que outros têm,
Onde os olhares possam entrever
O teu jardim com lho vais mostrar.
Mas onde és teu, e nunca o vê ninguém,
Deixa as flores que vêm do chão crescer
E deixa as ervas naturais medrar.
Faze de ti um duplo ser guardado;
E que ninguém, que veja e fite, possa
Saber mais que um jardim de quem tu és -
Um jardim ostensivo e reservado,
Por trás do qual a flor nativa roça
A erva tão pobre que nem tu a vês...
Poemas e Poesias domingo, 28 de fevereiro de 2021
FALTA DE TEMPO (POEMA DO GAÚCHO FABRÍCIO CARPINEJAR)

FALTA DE TEMPO
Fabrício Carpinejar
Existe um único antídoto para a falta de tempo. Um único.
Estar apaixonado.
Esquecer de si para inventar o desejo.
O desejo transforma-se no próprio tempo.
Tudo é adiado.
Poemas e Poesias sábado, 27 de fevereiro de 2021
A RIR (POEMA DO FLUMINENSE EUCLIDES DA CUNHA)

A RIR
Euclides da Cunha
Eu já não creio mais... sombrio e calmo enfrento
- O lábio ermo da prece; o peito ermo da crença -
A estrela - rubra e imensa
De meu destino atroz, aspérrimo e sangrento!...
E embora sobre mim flamívoma suspensa
Em minh'alma os clarões fatais ela concentre
Eu suporto-lhe bem o flamejante baque
- Altivamente calmo - entricheirando-me entre
Uma canção de Byron
E um cálix de cognac...
- Não há dor que resista ao som de uma risada! --
Depois - se me exacerbo
E tremo e choro erguendo a prece à alma magoada
Mais me dói essa dor, mais esse mal é acerbo!
Assim - eu resolvi, indiferente e frio
Cheio de orgulho e spleen - como um banqueiro inglês!
Sepultar na ironia o pranto meu sombrio...
Por isso quando atroz na triste palidez
De minha fronte paira amarga ideia - eu rio!...
E quando pouco a pouco
Essa ideia me abate e vence-me alterosa
De amargores repleta - eu rio como um louco...
E se ela inda dói mais e forte e tenebrosa
Sói a último idela de minh'alma aniilar
E vencer-me de todo
Então - eu me ergo mais - e desvairando o olhar
- Divinamente doido -
Eu rio, rio muito e rio - até chorar!...
Poemas e Poesias sexta, 26 de fevereiro de 2021
TROVAS HUMORÍSTICAS - 08 - (POEMA DO PARANAENSE ENO TEODORO WANKE)

TROVA HUMORÍSTICA 08
Eno Teodoro Wanke
Cuspiu na parede e quando
Lhe chamaram a atenção
Mostrou um cartaz rogando
"Favor não curpitr no chão"
Poemas e Poesias quinta, 25 de fevereiro de 2021
A MEUS NETINHOS (POEMA DO CARIOCA DOM PEDRO II)

A MEUS NETINHOS
Dom Pedro II
Versos feitos por mim na mocidade
O mérito só tem sentimento.
Eram, pra assim dizer, um instrumento
Mais que o prazer ecoando-me a saudade.
Pospondo a fantasia sempre à verdade
Melhor encontrei nesta o ornamento
E, no estudo apurando o sentimento,
Quanto tenho a saber disse-me a idade.
É isso o que vos quero eu ensinar,
Amando-vos qual pode um terno avô,
A quem para as suas cãs engrinaldar
Melhor só poderia o que eu vou
Em carícias tão vossas procurar,
Sentindo que de vós inda mais sou.
Poemas e Poesias quarta, 24 de fevereiro de 2021
CURZADA NEGRA (POEMA DO PIAUIENSE DA COSTA E SILVA)

CRUZADA NEGRA
Da Costa e Silva
MORS – em letras de luz gravo no meu escudo.
A divisa imortal de cavaleiro traço
Em campo negro. E, após, visto a armadura de aço.
Preme a cota, a luzir, o meu peito desnudo.
O elmo à cabeça, a espada à cinta, a lança ao braço,
Desço ao pátio e cavalgo o meu corcel sanhudo,
E ele, a resfolegar, indiferente a tudo,
Rasga, como um fuzil, a escuridão do espaço.
Levo a lira no arção. Impassível e forte,
No solar do Não Ser, ante o perfil da Morte,
Cantarei a balada augusta e soberana
De cavaleiro errante menestrel transeunte…
E aonde vou? Aonde vou? Ainda há alguém que o pergunte?
– Busco a Jerusalém remota do Nirvana…
Poemas e Poesias terça, 23 de fevereiro de 2021
NATUREZA (POEMA DO CATARINENSE CRUZ E SOUSA)

NATURREZA
Cruz e Sousa
Tudo por ti resplende e se constela,
Tudo por ti, suavíssimo, flameja;
És o pulmão da racional peleja,
Sempre viril, consoladora e bela.
Teu coração de pérolas se estrela,
E o bom falerno dás a quem deseja
Vigor, saúde a crença que floreja,
Que as expansões do cérebro revela.
Toda essa luz que bebe-se de um hausto
Nos livros sãos, todo esse enorme fausto
Vem das verduras brandas que reluzem!
Esse da idéia esplêndido eletrismo,
O forte, o grande, audaz psicologismo,
Os organismos naturais produzem…
Poemas e Poesias segunda, 22 de fevereiro de 2021
MEU DESTINO (POEMA DA GOIANA CORA CORALINA)

MEU DESTINO
Cora Coralina
Nas palmas de tuas mãos
leio as linhas da minha vida.
Linhas cruzadas, sinuosas,
interferindo no teu destino.
Não te procurei, não me procurastes –
íamos sozinhos por estradas diferentes.
Indiferentes, cruzamos
Passavas com o fardo da vida…
Corri ao teu encontro.
Sorri. Falamos.
Esse dia foi marcado
Poemas e Poesias domingo, 21 de fevereiro de 2021
LXII - JÁ ME ENFADO DE OUVIR ESTE ALARIDO (POEMA DO CARIOCA CLÁUDIO MANUEL DA COSTA)

LXIII - JÁ ME ENFADO DE OUVIR ESTE ALARIDO
Cláudio Maunel da Costa
Já me enfado de ouvir este alarido,
Com que se engana o mundo em seu cuidado;
Quero ver entre as peles, e o cajado,
Se melhora a fortuna de partido.
Canse embora a lisonja ao que ferido
Da enganosa esperança anda magoado;
Que eu tenho de acolher-me sempre ao lado
Do velho desengano apercebido.
Aquele adore as roupas de alto preço,
Um siga a ostentação, outro a vaidade;
Todos se enganam com igual excesso.
Eu não chamo a isto já felicidade:
Ao campo me recolho, e reconheço,
Que não há maior bem, que a soledade.
Poemas e Poesias sábado, 20 de fevereiro de 2021
PASSIONAL (POEMA DA UCRANIANA-BRASILEIRA CLARICE LISPECTOR)

PASSIONAL
Clarice Lispector
Sou um ser totalmente passional.
Sou movida pela emoção, pela paixão…. tenho meus desatinos…
Detesto coisas mais ou menos.
Não sei conviver com pessoas mais ou menos
Não sei amar mais ou menos.
Não me entrego de forma mais ou menos.
Se você procura alguém coerente, sensata, politicamente correta, racional, cheia de moralismo… ESQUEÇA-ME!
Se você sabe conviver com pessoas intempestivas, emotivas, vulneráveis, amáveis, que explodem na emoção… ACOLHA-ME!
Se você se assusta com esse meu jeito de ser, AFASTE-SE!
Se você quiser me conhecer melhor. APROXIME-SE!
Se você não gosta de mim, IGNORE-ME!
E quando eu partir… não chore.
Poemas e Poesias sexta, 19 de fevereiro de 2021
CABELOS (POEMA DO PORTUGUÊS CESÁRIO VERDE)

CABELOS
Cesário Verde
Ó vagas de cabelos esparsas longamente,
Que sois o vasto espelho onde eu me vou mirar,
E tendes o cristal dum lago refulgente
E a rude escuridão dum largo e negro mar;
Cabelos torrenciais daquela que me enleva,
Deixai-me mergulhar as mãos e os braços nus
No báratro febril da vossa grande treva,
Que tem cintilações e meigos céus de luz.
Deixai-me navegar, morosamente, a remos,
Quando ele estiver brando e livre de tufões,
E, ao plácido luar, ó vagas, marulhemos
E enchamos de harmonia as amplas solidões.
Deixai-me naufragar no cimo dos cachopos
Ocultos nesse abismo ebânico e tão bom
Como um licor renano a fermentar nos copos,
Abismo que se espraia em rendas de Alençon!
E ó mágica mulher, ó minha Inigualável,
Que tens o imenso bem de ter cabelos tais,
E os pisas desdenhosa, altiva, imperturbável,
Entre o rumor banal do hinos triunfais;
Consente que eu aspire esse perfume raro,
Que exalas da cabeça erguida com fulgor,
Perfume que estonteia um milionário avaro
E faz morrer de febre um pobre sonhador.
Eu sei que tu possuis balsâmicos desejos,
E vais na direcção constante do querer,
Mas ouço, ao ver-te andar, melódicos harpejos,
Que fazem mansamente amar e enlanguescer.
E a tua cabeleira, errante pelas costas,
Suponho que te serve, em noites de Verão,
De flácido espaldar aonde te recostas
Se sentes o abandono e a morna prostração.
E ela há-de, ela há-de, um dia, em turbilhões insanos,
Nos rolos envolver-me e armar-me do vigor
Que antigamente deu, nos circos dos romanos,
Um óleo para ungir o corpo ao gladiador.
Poemas e Poesias quinta, 18 de fevereiro de 2021
JOGO DE BOLA (POEMA DA CARIOCA CECÍLIA MEIRELES)

JOGO DE BOLA
Cecília Meireles
A bela bola
rola:
a bela bola do Raul.
Bola amarela,
a da Arabela.
A do Raul,
azul.
Rola a amarela
e pula a azul.
A bola é mole,
é mole e rola.
A bola é bela,
é bela e pula.
É bella, rola e pula,
é mole, amarela, azul.
A de Raul é de Arabela,
e a de Arabela é de Raul.
Poemas e Poesias terça, 16 de fevereiro de 2021
DEDICATÓRIA (POEMA DO BAIANO CASTRO ALVES)

DEDICATÓRIA
Castro Alves
(Grafia original)
A pomba daliança o vôo espraia
Na superfície azul do mar imenso,
Rente... rente da espuma já desmaia
Medindo a curva do horizonte extenso...
Mas um disco se avista ao longe... A praia
Rasga nitente o nevoeiro denso!...
Ó pouso! ó monte! ó ramo de oliveira!
Ninho amigo da pomba forasteira! ...
Assim, meu pobre livro as asas larga
Neste oceano sem fim, sombrio, eterno...
O mar atira-lhe a saliva amarga,
O céu lhe atira o temporal de inverno. . .
O triste verga à tão pesada carga!
Quem abre ao triste um coração paterno?...
É tão bom ter por árvore — uns carinhos!
É tão bom de uns afetos — f azer ninhos!
Pobre órfão! Vagando nos espaços
Embalde às solidões mandas um grito!
Que importa? De uma cruz ao longe os braços
Vejo abrirem-se ao mísero precito...
Os túmulos dos teus dão-te regaços!
Ama-te a sombra do salgueiro aflito...
Vai, pois, meu livro! e como louro agreste
Traz-me no bico um ramo de... cipreste!
Poemas e Poesias segunda, 15 de fevereiro de 2021
QUANDO?!...(POEMA DO FLUMINENSE CASIMIRO DE ABREU)

QUANDO?!...
Casimiro de Abreu
(Grafia original)
Não era belo, Maria,
Aquele tempo de amores,
Quando o mundo nos sorria,
Quando a terra era só flores
Da vida na primavera?
– Era!
Não tinha o prado mais rosas,
O sabiá mais gorjeios,
O céu mais nuvens formosas,
E mais puros devaneios
A tua alma inocentinha?
– Tinha!
E como achavas, Maria,
Aqueles doces instantes
De poética harmonia
Em que as brisas doudejantes
Folgavam nos teus cabelos?
– Belos!
Como tremias oh! vida,
Se em mim os olhos fitavas!
Como eras linda, querida,
Quando d’amor suspiravas
Naquela encantada aurora!
– Ora!
E diz-me: não te recordas
– Debaixo do cajueiro –
Lá da lagoa nas bordas
Aquele beijo primeiro?
Ia o dia já findando...
– Quando?!...
Poemas e Poesias domingo, 14 de fevereiro de 2021
NATAL (POEMA DO PERNAMBUCANO CARLOS PENA FILHO)

NATAL
Carlos Pena Filho
Sino, claro, sino
Tocas para quem?
Para o Deus-Menino, que de longe vem!
Pois se O encontrares, traze-Lo ao Meu Amor
E o que lhe ofereces, Velho Pescador?
Minha Fé cansada... meu Vinho, meu Pão!
Meu Silêncio Limpo... Minha Solidão!
Poemas e Poesias sábado, 13 de fevereiro de 2021
AMAR (POEMA DO MINEIRO CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE)

AMAR
Carlos Drummond de Andrde
Que pode uma criatura senão,
entre criaturas, amar?
amar e esquecer, amar e malamar,
amar, desamar, amar?
sempre, e até de olhos vidrados, amar?
Que pode, pergunto, o ser amoroso,
sozinho, em rotação universal,
senão rodar também, e amar?
amar o que o mar traz à praia,
o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,
é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?
Amar solenemente as palmas do deserto,
o que é entrega ou adoração expectante,
e amar o inóspito, o cru,
um vaso sem flor, um chão de ferro,
e o peito inerte, e a rua vista em sonho, e
uma ave de rapina.
Este o nosso destino: amor sem conta,
distribuido pelas coisas pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma completa ingratidão,
e na concha vazia do amor a procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor.
Amar a nossa falta mesma de amor,
e na secura nossa amar a água implícita,
e o beijo tácito, e a sede infinita.
Poemas e Poesias sexta, 12 de fevereiro de 2021
SONETO 103 - CORREM TURVAS AS ÁGUAS DESTE RIO (POEMA DO PORTUGUÊS LUÍS DE CAMÕES)

CORREM TURVAS AS ÁGUAS DESTE RIO
Soneto 104
Luís de Camões
Correm turvas as águas deste rio,
Que as do céu e as do monte as enturbaram;
Os campos florescidos se secaram,
Intratável se fez o vale, e frio.
Passou o Verão, passou o ardente Estio,
Úas cousas por outras se trocaram;
Os fementidos Fados já deixaram
Do mundo o regimento, ou desvario.
Tem o tempo sua ordem já sabida;
O mundo, não; mas anda tão confuso,
Que parece que dele Deus se esquece.
Casos, opiniões, natura e uso
Fazem que nos pareça desta vida
Que não há nela mais que o que parece.
Poemas e Poesias quinta, 11 de fevereiro de 2021
SONETO AO LEITÃO (POEMA DO PORTUGUÊS MANUEL MARIA BARBOSA DU BOCAGE)

SONETO AO LEITÃO
Bocage
(Grafia original)
Pilha aqui, pilha ali, vozeia autores,
Montesquieu, Mirabeau, Voltaire, e vários;
Propõe sistemas, tira corolários,
E usurpa o tom d'enfáticos doutores:
Ciência de livreiros e impressores
Tem da vasta memória nos armários;
E tratando os cristãos de visionários,
Só rende culto a Vênus, e aos Amores:
A mulher, que a barriga lhe tem forra
Do jugo da vital necessidade,
Deixa em casa gemer como em masmorra:
Este biltre, labéu da humanidade,
É um tal bacharel Leitão de borra,
Lascivo como um burro, ou como um frade.
Poemas e Poesias quarta, 10 de fevereiro de 2021
A BUNDA (POEMA DO MINEIRO BELMIRO BRAGA)

A BUNDA
Belmiro Braga
Quando ela passa todo mundo espia,
Não para a cara, que não é formosa,
Mas para a bunda, que é maravilhosa.
Em bunda, nunca vi tanta magia.
Requebra, sobe, treme e rodopia
Dentro de uma expressão maravilhosa.
Deve ser uma bunda cor-de-rosa,
Da cor do céu quando desponta o dia.
E ela sabe que sua bunda é boa.
Vai pela rua rebolando à toa,
Deixando a multidão maravilhada.
Eu a contemplo, num silêncio mudo.
Embora a cara não valesse nada,
Só aquela bunda me valia tudo.
Poemas e Poesias terça, 09 de fevereiro de 2021
SONETO (POEMA DA MINEIRA BÁRBARA HELIODORA)

SONETO
Bárbara Heliodora
Amada filha, é já chegado o dia,
em que a luz da razão, qual tocha acesa,
vem conduzir a simples natureza:
- é hoje que o teu mundo principia.
A mão, que te gerou, teus passos guia;
despreza ofertas de uma vá beleza,
e sacrifica as honras e a riqueza
às santas leis do Filho de Maria.
Estampa na tua alma a Caridade,
que amar a Deus, amar aos semelhantes,
são eternos preceitos da Verdade.
Tudo o mais são idéias delirantes;
procura ser feliz na Eternidade,
que o mundo são brevíssimos instantes.
Poemas e Poesias segunda, 08 de fevereiro de 2021
A UM MASCARADO (POEMA DO CAPIXABA AUGUSTO DOS ANJOS)

A UM MASCARADO
Augusto dos Anjos
Rasga essa máscara ótima de seda
E atira-a á arca ancestral dos palimpsestos..
É noite, e, á noite, a escândalos e incestos
É natural que o instinto humano aceda!
Sem que te arranquem da garganta queda
A interjeição danada dos protestos,
Hás de engolir, igual a um porco, os restos
Duma comida horrivelmente azeda!
A sucessão de hebdômadas medonhas
Reduzirá os mundos que tu sonhas
Ao microcosmos do ovo primitivo...
E tu mesmo, após a árdua e atra refrega,
Terás somente uma vontade cega
E uma tendência obscura de ser vivo!
Poemas e Poesias domingo, 07 de fevereiro de 2021
TORÉ (POEMA DO PERNAMBUCANO ASCENSO FERREIRA)

TORÉ
Ascenso Ferreira
Os dois maracás,
um fino e outro grosso,
fazem alvoroço
nas mãos do Pajé:
— Toré!
— Toré!
Bambus enfeitados,
compridos e ocos,
produzem sons roucos
de querequexé!
— Toré!
— Toré!
Lá vem a asa-branca,
no espaço voando,
vem alto, gritando...
— Meus Deus, o que é?
— Toré!
— Toré!
— É o Caracará
que está na floresta,
vai ver minha besta
de pau catolé...
— Toré!
— Toré!
Cabocla bonita,
do passo quebrado,
teu beiço encarnado,
parece um café
— Toré!
— Toré!
Pra te ver, cabocla!
na minha maloca,
fiando na roça,
torrando pipoca,
eu entro na toca
e mato onça a quicé!
— Toré!
— Toré!
Poemas e Poesias sexta, 05 de fevereiro de 2021
LÁPODE (POEMA DO PARAIBANO ARIANO SUASSUNA)

LÁPIDE
Ariano Suassuna
Quando eu morrer, não soltem meu Cavalo
nas pedras do meu Pasto incendiado:
fustiguem-lhe seu Dorso alardeado,
com a Espora de ouro, até matá-lo.
Um dos meus filhos deve cavalgá-lo
numa Sela de couro esverdeado,
que arraste pelo Chão pedroso e pardo
chapas de Cobre, sinos e badalos.
Assim, com o Raio e o cobre percutido,
tropel de cascos, sangue do Castanho,
talvez se finja o som de Ouro fundido
que, em vão – Sangue insensato e vagabundo —
tentei forjar, no meu Cantar estranho,
à tez da minha Fera e ao Sol do Mundo!
Poemas e Poesias quinta, 04 de fevereiro de 2021
DESÂNIMO (POEMA DO PAULISTA ÁLVARES DE AZEVEDO)

DESÂNIMO
Álvares de Azevedo
Estou agora triste. Há nesta vida
Páginas torvas que se não apagam,
Nódoas que não se lavam... se esquecê-las
De todo não é dado a quem padece...
Ao menos resta ao sonhador consolo
No imaginar dos sonhos de mancebo!
Oh! voltai uma vez! eu sofro tanto!
Meus sonhos, consolai-me! distraí-me!
Anjos das ilusões, as asas brancas
As névoas puras, que outro sol matiza.
Abri ante meus olhos que abraseiam
E lágrimas não tem que a dor do peito
Transbordem um momento...
E tu, imagem,
Ilusão de mulher, querido sonho,
Na hora derradeira, vem sentar-te,
Pensativa e saudosa no meu leito!
O que sofres? que dor desconhecida
Inunda de palor teu rosto virgem?
Por que tu’alma dobra taciturna,
Como um lírio a um bafo d’infortúnio?
Por que tão melancólica suspiras?
Ilusão, ideal, a ti meus sonhos,
Como os cantos a Deus se erguem gemendo!
Por ti meu pobre coração palpita...
Eu sofro tanto! meus exaustos dias
Não sei por que logo ao nascer manchou-os
De negra profecia um Deus irado.
Outros meu fado invejam... Que loucura!
Que valem as ridículas vaidades
De uma vida opulenta, os falsos mimos
De gente que não ama? Até o gênio
Que Deus lançou-me à doentia fronte,
Qual semente perdida num rochedo,
Tudo isso que vale, se padeço!
Nessas horas talvez em mim não pensas:
Pousas sombria a desmaiada face
Na doce mão e pendes-te sonhando
No teu mundo ideal de fantasia...
Se meu orgulho, que fraqueia agora,
Pudesse crer que ao pobre desditoso
Sagravas uma idéia, uma saudade...
Eu seria um instante venturoso!
Mas não... ali no baile fascinante,
Na alegria brutal da noite ardente,
No sorriso ebrioso e tresloucado
Daqueles homens que, pra rir um pouco,
Encobrem sob a máscara o semblante,
Tu não pensas em mim. Na tua idéia
Se minha imagem retratou-se um dia
Foi como a estrela peregrina e pálida
Sobre a face de um lago...
Poemas e Poesias quarta, 03 de fevereiro de 2021
BÁRBARA BELA (POEMA DO CARIOCA ALVARENGA PEIXOTO)

BÁRBARA BELA
Alvarenga Peixoto
Bárbara bela,
do Norte estrela,
que o meu destino
sabes guiar,
de ti ausente,
triste, somente
as horas passo
a suspirar.
Isto é castigo
que Amor me dá.
Por entre as penhas
de incultas brenhas
cansa-me a vista
de te buscar;
porém não vejo
mais que o desejo,
sem esperança
de te encontrar.
Isto é castigo
que Amor me dá.
Eu bem queria
a noite e o dia
sempre contigo
poder passar;
mas orgulhosa
sorte invejosa
desta fortuna
me quer privar.
Isto é castigo
que Amor me dá.
Tu, entre os braços,
ternos abraços
da filha amada
podes gozar.
Priva-me a estrela
de ti e dela,
busca dois modos
de me matar.
Isto é castigo
que Amor me dá.
Poemas e Poesias terça, 02 de fevereiro de 2021
CANÇÃO (POEMA DO MINEIRO ALPHONSUS GUIMARAENS)

CANÇÃO
Alphonsus Guimaraens
Quando chegaste, os violoncelos
Que andam no ar cantaram hinos,
Estrelaram-se todos os castelos,
E até nas nuvens repicam sinos.
Foram-se as brancas horas sem rumo
Tanto sonhadas! Ainda, ainda
Hoje os meus pobres versos perfumo
Com os beijos santos da tua vinda.
Quando te foste, estalaram cordas
Nos violoncelos e nas harpas...
E anjos disseram: - Não mais acordas,
Lírio nascido nas escarpas!
Sinos dobraram no céu e escuto
Dobres eternos na minha ermida.
E os pobres versos ainda hoje enluto
Com os beijos santos da despedida.
Poemas e Poesias segunda, 01 de fevereiro de 2021
A UM AMIGO (POEMA DO PORTUGUÊS ALMEIDA GARRETT)

A UM AMIGO
Almeida Garrett
Fiel ao costume antigo,
Trago ao meu jovem amigo
Versos próprios deste dia.
E que de os ver tão singelos,
Tão simples como eu, não ria:
Qualquer os fará mais belos,
Ninguém tão d’alma os faria.
Que sobre a flor de seus anos
Soprem tarde os desenganos;
Que em torno os bafeje amor,
Amor da esposa querida,
Prolongando a doce vida
Fruto que suceda à flor.
Recebe este voto, amigo,
Que eu, fiel ao uso antigo,
Quis trazer-te neste dia
Em poucos versos singelos.
Qualquer os fará mais belos,
Ninguém tão d’alma os faria.
Poemas e Poesias domingo, 31 de janeiro de 2021
A TI (POEMA DO FLUMINENSE ALBERTO DE OLIVEIRA)

A TI
Alberto de Oliveira
Como o sol nasce do monte
E todo o vale alumia,
Assim no meu horizonte
Nasceu teu olhar, um dia.
Nessa manhã cor-de-rosa,
Que dos teus olhos saía,
Tua voz melodiosa
Foi a voz da cotovia.
E logo na minha mágoa,
Neste canteiro sem flor,
Brotou, qual nascente de água,
O teu amor, meu Amor!
Então fez sol deslumbrante
Nos dias da minha vida:
Já não era a luz distante,
Já não a fonte escondida.
Nuvens, tormentas e dores,
Que enchiam meu coração,
Tudo se cobriu de flores,
A esse divino clarão!
E à luz que os teus olhos deram,
Como faróis redentores,
Mundos no mundo nasceram,
Do amor brotaram amores.
Três aves no nosso ninho
O enchem de um fulgor sagrado:
Já não és o sol sozinho,
Fizeste o céu estrelado!
Deus te proteja e te guarde,
Minha Mulher, minha Irmã,
Ó minha Estrela da Tarde,
Minha Estrela da Manhã!
Poemas e Poesias sábado, 30 de janeiro de 2021
ASSOMBROS (POEMA DO MINEIRO AFFONSO ROMANO DE SANT,ANNA)

ASSOMBROS
Affonso Romano de Sant'Anna
Às vezes, pequenos grandes terremotos
ocorrem do lado esquerdo do meu peito.
Fora, não se dão conta os desatentos.
Entre a aorta e a omoplata rolam
alquebrados sentimentos.
Entre as vértebras e as costelas
há vários esmagamentos.
Os mais íntimos
já me viram remexendo escombros.
Em mim há algo imóvel e soterrado
em permanente assombro.
Poemas e Poesias sexta, 29 de janeiro de 2021
DIREITOS HUMANOS (POEMA DA MINEIRA ADÉLIA PRADO)

DIREITOS HUMANOS
Adélia Prado
Sei que Deus mora em mim
como sua melhor casa.
sou sua paisagem,
sua retorta alquímica
e para sua alegria
seus dois olhos.
Mas esta letra é minha.
Poemas e Poesias quinta, 28 de janeiro de 2021
ESCULTURA (POEMA DA CARIOCA ADALGISA NERY)

ESCULTURA
Adalgisa Nery
Eu já te amava pelas fotografias.
Pelo teu ar triste e decadente dos vencidos,
Pelo teu olhar vago e incerto
Como o dos que não pararam no riso e na alegria.
Te amava por todos os teus complexos de derrota,
Pelo teu jeito contrastando com a glória dos atletas
E até pela indecisão dos teus gestos sem pressa.
Te falei um dia fora da fotografia
Te amei com a mesma ternura
Que há num carinho rodeado de silêncio
E não sentiste quantas vezes
Minhas mãos usaram meu pensamento,
Afagando teus cabelos num êxtase imenso.
E assim te amo, vendo em tua forma e teu olhar
Toda uma existência trabalhada pela força e pela angústia
Que a verdade da vida sempre pede
E que interminavelmente tens que dar!...
Poemas e Poesias quarta, 27 de janeiro de 2021
APAIXONADAMENTE (POEMA DA PORTUGUESA VIRGÍNIA VICTORINO)

APAIXONADAMENTE
Virgínia Victorino
Fui compondo estes versos, absorvida
no ritmo da minh´alma, sempre ansiosa,
para neles ficar, triste ou gloriosa,
uma existência inteira resumida.
Assim os fiz, pela paixão vencida,
— e, porque fui vencida, vitoriosa... —
nesta febre constante de ambiciosa,
mágoa e prazer de toda a minha vida!
Cada verso é uma pedra mais que eu ponho
Na catedral imensa do meu sonho,
... ria embora do Sonho toda a gente!
A vida humana, seja ou não tranquila,
profunda ou não, — só poderá senti-la
quem a sentir apaixonadamente.
Poemas e Poesias terça, 26 de janeiro de 2021
A ESTRELA POLAR (POEMA DO CARIOCA VINÍCIUS DE MORAES)

A ESTRELA POLAR
Vinícius de Moraes
Eu vi a estrela polar
Chorando em cima do mar
Eu vi a estrela polar
Nas costas de Portugal!
Desde então não seja Vênus
A mais pura das estrelas
A estrela polar não brilha
Se humilha no firmamento
Parece uma criancinha
Enjeitada pelo frio
Estrelinha franciscana
Teresinha, mariana
Perdida no Polo Norte
De toda a tristeza humana.
Poemas e Poesias segunda, 25 de janeiro de 2021
DESILUDIDA (POEMA DO PAULISTA VICENTE DE CARVALHO)

DESILUDIDA
Vicente de Carvalho
Sou como a corça ferida
Que vai, sedenta e arquejante,
Gastando uns restos de vida
Em busca de água distante.
Bem sei que já me não ama,
E sigo, amorosa e aflita,
Essa voz que não me chama,
Esse olhar que não me fita.
E reconheço a loucura
Deste amor abandonado
Que se abre em flor, e procura
Viver de um sonho acabado;
E é como a corça ferida
Que vai, sedenta e arquejante,
Gastando uns restos de vida
Em busca da água distante.
Só, perdido no deserto,
Segue empós do seu carinho:
Vai se arrastando... e vai certo
Que morre pelo caminho.
Poemas e Poesias domingo, 24 de janeiro de 2021
AGORA NÃO SE FALA MAIS (POEMA DO PIAUIENSE TORQUATO NETO)

AGORA NÃO SE FALA MAIS
Torquado Neto
Agora não se fala mais
toda palavra guarda uma cilada
e qualquer gesto é o fim
do seu início:
Agora não se fala nada
e tudo é transparente em cada forma
qualquer palavra é um gesto
e em sua orla
os pássaros de sempre cantam
nos hospícios.
Você não tem que me dizer
o número de mundo deste mundo
não tem que me mostrar
a outra face
face ao fim de tudo:
só tem que me dizer
o nome da república do fundo
o sim do fim
do fim de tudo
e o tem do tempo vindo:
não tem que me mostrar
a outra mesma face ao outro mundo
(não se fala. não é permitido:
mudar de idéia. é proibido.
não se permite nunca mais olhares
tensões de cismas crises e outros tempos.
está vetado qualquer movimento
Poemas e Poesias sábado, 23 de janeiro de 2021
ALMAS DESOLADORAMENTE FRIAS (POEMA DO FLUMINENSE RAUL LEÔNI)

ALMAS DESOLADORAMENTE FRIAS
Raul Leôni
Almas desoladoramente frias
De uma aridez tristíssima de areia,
Nelas não vingam essas suaves poesias
Que a alma das cousas, ao passar, semeia…
.
Desesperadamente estéreis e sombrias,
Onde passam (triste aura que as rodeia!)
Deixam uma atmosfera amarga, cheia
De desencantos e melancolias…
.
Nessa árida rudeza de rochedo,
Mesmo fazendo o bem, sua mão é pesada,
Sua própria virtude mete medo…
.
Como são tristes essas vidas sem amor,
Essas sombras que nunca amaram nada,
Essas almas que nunca deram flor…
Poemas e Poesias sexta, 22 de janeiro de 2021
DEPEDE TEU PUDOR (POEMA DO MINEIRO PAULO MENDES CAMPOS)

DESPEDE TEU PUDOR
Paulo Mendes Campos
Despede teu pudor com a camisa
E deixa alada louca sem memória
Uma nudez nascida para a glória
Sofrer de meu olhar que te heroíza
Tudo teu corpo tem, não te humaniza
Uma cegueira fácil de vitória
E como a perfeição não tem história
São leves teus enredos como a brisa
Constante vagaroso combinado
Um anjo em ti se opõe à luta e luto
E tombo como um sol abandonado
Enquanto amor se esvai a paz se eleva
Teus pés roçando nos meus pés escuto
O respirar da noite que te leva.
Poemas e Poesias quinta, 21 de janeiro de 2021
O ROUXINOL E O ANCIÃO (POEMA DO CEARENSE PATATIVA DO ASSARÉ)

O ROUXINOL E O ANCIÃO
Patativa do Assaré
Meu filho querido escuta,
Com verdade absoluta
Quero dar-te uma lição.
Guarda na tua memória
Esta proveitosa história
Do Rouxinol e o ancião.
Um ancião imprevidente
Criava, muito contente,
Na gaiola o rouxinol.
E extasiado escutava
Quando o pássaro cantava
Nas horas do pôr-do-sol.
O bom velho estudou tanto,
Aquele sonoro canto
de melodia sem par,
Com tal cuidado e vantagem
Que daquela ave a linguagem
Aprendeu a decifrar.
Um certo dia ele lendo
Naquele canto e fazendo
Os seus estudos sutis,
Viu que o pobre, com saudade,
Reclamava a liberdade
Para poder ser feliz.
Cantava e fazia acenos,
Pedindo ao senhor, ao menos,
Um pouco de permissão.
Voar um pouco queria,
E de novo voltaria
Para dentro da prisão.
O dono, com muita pena
Daquela prisão pequena
Uma portinhola abriu,
E o preso, as asas abrindo,
Voou, subindo, subindo,
E no espaço se sumiu.
Mas ó, que fatalidade!
Nessa curta liberdade
Para voar na amplidão,
Foi cair tão inocente
Irremediavelmente
Nas garras de um gavião.
O garrancho esfomeado,
Segurando o desgraçado
Ligeiro a terra baixou,
E o ancião sem conforto,
Vendo o passarinho morto,
De arrependimento chorou.
Meu filho, és um passarinho
A quem paternal carinho
Envolve na santa paz.
Nessa poesia rasa,
A gaiola é nossa casa
Onde feliz viverás.
Enquanto os conselhos sábios
Escutares de meus lábios
Ouvindo minhas lições
Como filho obediente,
Não cairás facilmente
Nas garras das seduções.
Poemas e Poesias quarta, 20 de janeiro de 2021
O PALHAÇO (POEMA DO CEARENSE PADRE ANTÔNIO TOMÁS)

O PALHAÇO
Padre Antônio Tomás
Ontem, viu-se-lhe em casa a esposa morta
E a filhinha mais nova, tão doente!
Hoje, o empresário vai bater-lhe à porta,
Que a plateia o reclama, impaciente.
Ao palco, em breve surge... pouco importa
o seu pesar àquela estranha gente...
E ao som das ovações que os ares corta,
trejeita, canta e ri, nervosamente.
Aos aplausos da turba, ele trabalha
para esconder no manto em que se embuça
a cruciante angústia que o retalha.
No entanto, a dor cruel mais se lhe aguça
e enquanto o lábio trêmulo gargalha,
dentro do peito o coração soluça.
Poemas e Poesias terça, 19 de janeiro de 2021
VELHA PÁGINA (POEMA DO CARIOCA OLAVO BILAC)

VELHA PÁGINA
Olavo Bilac
Chove. Que mágoa lá fora!
Que mágoa! Embruscam-se os ares
Sobre este rio que chora
Velhos e eternos pesares.
E sinto o que a terra sente
E a tristeza que diviso,
Eu, de teus olhos ausente,
Ausente de teu sorriso...
As asas loucas abrindo,
Meus versos, num longo anseio,
Morrerão, sem que, sorrindo,
Possa acolhê-los teu seio!
Ah! quem mandou que fizesses
Minh'alma da tua escrava,
E ouvisses as minhas preces,
Chorando como eu chorava?
Por que é que um dia me ouviste,
Tão pálida e alvoroçada,
E, como quem ama, triste,
Como quem ama, calada?
Tu tens um nome celeste...
Quem é do céu é sensível!
Por que é que me não disseste
Toda a verdade terrível?
Por que, fugindo impiedosa,
Desertas o nosso ninho?
- Era tão bela esta rosa!...
Já me tardava este espinho!
Fora melhor, porventura,
Ficar no antigo degredo
Que conhecer a ventura
Para perdê-la tão cedo!
Por que me ouviste, enxugando
O pranto das minhas faces?
Viste que eu vinha chorando...
Antes assim me deixasses!
Antes! Menor me seria
O sofrimento, querida!
Antes! a mão que alivia
A dor, e cura a ferida,
Não deve depois, tranqüila,
Vendo sufocada a mágoa,
Encher de sangue a pupila
Que já vira cheia de água...
Mas junto a mim que te falta?
Que glória maior te chama?
Não sei de glória mais alta
Do que a glória de quem ama!
Talvez te chame a riqueza...
Despreza-a, beija-me, e fica!
Verás que assim, com certeza,
Não há quem seja mais rica!
Como é que quebras os laços
Com que prendi o universo,
Entre os nossos quatro braços,
Na jaula azul do meu verso?
Como hei de eu, de hoje em diante,
Viver, depois que partires?
Como queres tu que eu cante
No dia em que não me ouvires?
Tem pena de mim! tem pena
De alma tão fraca! Como há de
Minh'alma, que é tão pequena,
Poder com tanta saudade?!
Poemas e Poesias segunda, 18 de janeiro de 2021
GERMINAL - V (POEMA DO PAULISTA MENOTTI DEL PICCHIA)

GERMINAL - V
Menotti Del Picchia
Juca Mulato cisma. Olha a lua e estremece.
Dentro dele um desejo abre-se em flor e cresce
e ele pensa, ao sentir esses sonhos ignotos,
que a alma é como uma planta, os sonhos como brotos,
vão rebentando nela e se abrindo em floradas...
Franjam de ouro, o ocidente, as chamas das queimadas
Mal se pode conter de inquieto e satisfeito.
Adivinha que tem qualquer coisa no peito
e, às promessas do amor, a alma escancara ansiado
como os áureos portais de um palácio encantado!...
Mas a mágoa que ronda a alegria de perto
entra no coração sempre que o encontra aberto...
Juca Mulato sofre... Esse olhar calmo e doce
fulgiu-lhe como a luz, como luz apagou-se.
Feliz até então tinha a alma adormecida...
Esse olhar que o fitou o acordou para a vida!
A luz que nele viu deu-lhe a dor que ora o assombra
como o sol que traz a luz e, depois, deixa a sombra...
Poemas e Poesias domingo, 17 de janeiro de 2021
ESTÁTUA (POEMA DO PERNAMBUCANO MEDEIROS E ALBUQUERQUE)

ESTÁTUA
Medeiros e Albuquerque
Eu tenho muita vez a estranha pretensão
de me fundir em bronze e aparecer nas praças
para poder ouvir da voz das populaças
a sincera explosão;
senti-la, quando, em festa, as grandes multidões
aclamam doidamente os fortes vencedores,
e febris, pelo ar, espalham-se os clamores
das nobres ovações;
senti-la, quando o sopro aspérrimo da dor
nubla de escuro crepe o lúgubre horizonte
e curva para o chão a entristecida fronte
do povo sofredor;
poder sempre pairar solenemente em pé,
sobre as mágoas cruéis do miserando povo,
e ter sempre no rosto, eternamente novo,
uma expressão de fé.
E, quando enfim cair do altivo pedestal,
à sacrílega mão do bárbaro estrangeiro,
meu braço descrever no gesto derradeiro
a maldição final.
Poemas e Poesias sábado, 16 de janeiro de 2021
DO AMOROSO ESQUECIMENTO (POEMA DO GAÚCHO MÁRIO QUINTANA)

DO AMOROSO ESQUECIMENTO
Mário Quintana
Eu, agora - que desfecho!
Já nem penso mais em ti...
Mas será que nunca deixo
De lembrar que te esqueci?
Poemas e Poesias sexta, 15 de janeiro de 2021
ESQUECE-A (POEMA DA MARANHENSE MARIA FIRMINA DOS REIS

ESQUECE-A
Maria Firmina dos Reis
Amor é gozo ligeiro,
Mas é grato e lisonjeiro
Como o sorriso infantil;
Promessa doce, e mentida,
Alenta, destrói a vida;
É um delírio febril.
Muito te amei… minha lira,
Que triste agora suspira,
Nesta erma solidão,
Bem sabes ─ ricas de flores,
Cantava os ternos amores,
Do meu terno coração.
Minha afeição era pura.
Não era engano, cordura,
Não era afeto mentido;
Se ela assim te não cativa,
Esquece-a, que sou altiva,
Esquece-a, sim ─ fementido.
Poemas e Poesias quinta, 14 de janeiro de 2021
BELO BELO - II (POEMA DO PERNAMBUCANO MANUEL BANDEIRA)

BELO BELO - II
Manuel Bandeira
Belo belo minha bela
Tenho tudo que não quero
Não tenho nada que quero
Não quero óculos nem tosse
Nem obrigação de voto
Quero quero
Quero a solidão dos píncaros
A água da fonte escondida
A rosa que floresceu
Sobre a escarpa inacessível
A luz da primeira estrela
Piscando no lusco-fusco
Quero quero
Quero dar a volta ao mundo
Só num navio de vela
Quero rever Pernambuco
Quero ver Bagdá e Cusco
Quero quero
Quero o moreno de Estela
Quero a brancura de Elisa
Quero a saliva de Bela
Quero as sardas de Adalgisa
Quero quero tanta coisa
Belo belo
Mas basta de lero-lero
Vida noves fora zero.
Poemas e Poesias quarta, 13 de janeiro de 2021
FRAGMENTOS DE CANÇÕES POEMAS - 2 (POEMA DO MATO-GROSSENSE MANOEL DE BARROS)

FRAGMENTOS DE CANÇÕES E POEMAS - 2
Manoel de Barros
São mil coisas impressentidas
Que me escutam:
O movimento das folhas
O silêncio de onde acabas de voltar
E a luz que divide o corpo do nascente
São mil coisas impressentidas
Que me escutam:
São os pássaros assustados, assustados,
Tuas mãos que descobrem o convite da terra
E os poemas como ilhas submersas…
São mil coisas impressentidas
Que me escutam:
Sou eu apreensivamente
Solicitado pela inflorescência
Redescoberto pelo bulir das folhas…
Poemas e Poesias terça, 12 de janeiro de 2021
TRAVESSA (POEMA DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

TRAVESSA
Machado de Assis
Ai; por Deus, por vida minha
Como és travessa e louquinha!
Gosto de ti — gosto tanto
Dessa tua travessura
Que não me dera o meu encanto,
Que não dera o meu gostar,
Nem por estrelas do céu.
Nem por pérolas ao mar!
Alma toda de quimeras
Que acordou no paraíso
Vinda do leito de Deus;
E que rivais de teus olhos
Só tens dois olhos — os teus!
Pareces mesmo criança
Que só vive e se alimenta
De luz, amor e esperança.
Ave sem medo à tormenta
Que salta e palpita e ri,
As travessas primaveras
Assentam tão bem em ti!
Assentam sim, como as asas
Assentam no beija-flor,
Como o delírio dos beijos
Em uma noite de amor;
Como no véu que se agita
De beleza adormecida
A brisa mole e sentida!
Foi por ver-te assim — travessa
Que eu pus a minha esperança
No imaginar de criança
Dessa formosa cabeça...
Foi por ver-te assim — Que os sonhos
Eu sei como os tens eu sei.
Puros, lindos e risonhos.
Um coração novo e calmo
Onde a lei do amor — é lei;
Foi por ver-te assim, que eu venho
Pôr em ti as fantasias
De meus peregrinos dias.
Como a esperança no céu:
Em ti só, que és tão louquinha,
Em ti só pôr a minha vida!
Poemas e Poesias segunda, 11 de janeiro de 2021
FALECIDO (POEMA DO PERNAMBUCANO LUÍS TURIBA)

FALECIDO
Luís Turiba
Pode ter medo
Até de barata
Menos de amor
Que é o grande barato
Do criador
Quando em mim
Morre um amor
Morro junto
Vou ao velório
Mando flores
Consolo a viúva
Faço missa de sétimo dia
Rei morto, rei posto
Vida que segue
Mesmo a contragosto
Se o falecido morreu
Antes ele, do que eu
Quando eu for
Quero ir como flor
Sorriso no peito
Leve perfume de dor
Poemas e Poesias domingo, 10 de janeiro de 2021
AMOR (POEMA DO CARIOCA LUÍS EDMUNDO)

AMOR
(Luís Edmundo)
Este é um carro triunfal, plaustro de rodas de ouro;
Arrasta-o sobre o mundo em fúria desabrida
Um estranho animal, que lembra na corrida
A bravura de um leão e os ímpetos de um touro.
Nada lhe embarga o passo; o abismo, o sorvedouro,
Tudo calca e subjuga e leva de vencida;
E os homens em tropel cheios de ardor e vida
Vão atrás dele como atrás de algum tesouro.
Triunfalmente altiva, o olhar forte, os cabelos
Irradiando como a luz de setestrelos,
No plaustro, uma mulher passa o mundo fitando;
Na mão esquerda, como um símbolo perfeito,
Leva um lírio que tem o cálice direito,
Na outra, fera e brutal, leva um punhal sangrando...
Poemas e Poesias sábado, 09 de janeiro de 2021
DESPEDIDA DA AMA (POEMA DO PORTUGUÊS JÚLIO DINIS)

A DESPEDIDA DA AMA
Júlio Dinis
(A meu primo e amigo J. J. Pinto
Coelho)
Adeus filho do meu peito, Que do meu peito nutri… Parto.
Vou deixar-te, filho, Ai, que farei eu sem ti? !
Adeus! Já quando acordares
Chorando não me verás;
As noites a acalentar-te
Outra voz escutarás.
Que amor te ganhei, meu filho I Que triste amor este meu!
Se assim tinha de deixar-te, Pra que tanto te quis eu ?
Os teus primeiros gemidos
Tua mãe não quis ouvir;
E a mim, que os calei com beijos,
Mandam-me agora partir!
Pus à volta do teu berço
Todo o amor que um seio tem,
E arrancam-te de meus braços,
Porque eu não sou tua mãe!
Os teus vagidos de infante Fui eu quem os sosseguei; Carinhos que semeava,
Para a outra os semeei !
Parto. Dentro em pouco, filho, Nem tu me hás-de conhecer;
E assim de pequenino
Te ensinam já a esquecer.
Adeus! Nesta despedida
A alma toda se me vai.
E, sem querer, o meu pranto
Sobre a tua fronte cai,
Que desse sono inocente
Te não vá ele acordar;
Que as forças me faltariam
Então, para te deixar.
Vamos, pobre mulher, vamos
Está finda a criação,
Deste vida a este menino,
Não lhe dês o coração.
O coração? Quem to pede ? Pedem-te o leite, não mais.
Vamos, pobre mulher, vamos, Que o acordas com teus ais!
Adeus filho da minha alma, Teus carinhos não são meus, O choro
corta-me a fala,
Mal posso dizer-te… adeus.
Poemas e Poesias sexta, 08 de janeiro de 2021
MEDITAÇÃO SOBRE A BACANGA (POEMA DO MARANHENSE JOSÉ SARNEY)

MEDITAÇÃO SOBRE A BACANGA
José Sarney
As águas passam
É lua e as casas aparecem.
Sou eu. Narciso que se olha
E fenece.
Tudo é sombra, sombra e nada,
água e silêncio nas folhas e vales
rompidos pelo Bacanga em sulcos
de madrugada.
Faixa de vento na montanha a encher e vazar:
címbalos onde o tédio geme.
É o gigante do não esquecer e as vozes do mangue.
Sangue correndo das imagens mordidas
pelos dentes estranguladores da noite.
Narciso se olha
Satanicamente o brilho dos olhares
buscam
o que não existe mais.
Ele vivia além e tinha fome, mas pensava.
Comeu os pensamentos devorando os dias
o nome e a noite.
Doce rio que vem e bóia
na enseada.
Águas barrentas, sujas,
Liberdade que morreu
e se afoga
no Mar.
Medito sobre mim que já sou morto:
as canções fúnebres que me pesam
como pedras no vazio do
lembrar.
— Barquinho de vela
que vai sobre o mar.
Boneca amarela
que me vem roubar.
meus olhos fenecem e o presságio dorme
no espelho das águas que
escorrem.
Poemas e Poesias quinta, 07 de janeiro de 2021
MADORNA DE IAIÁ (POEMA DO ALAGOANO JORGE DE LIMA)

MADORNA DE IAIÁ
Jorge de Lima
Iaiá está
na rede de tucum.
A mucama de Iaiá tange os piuns,
Balança a rede,
Canta um lundum
Tão bambo, tão molengo, tão dengoso,
Que Iaiá tem vontade de dormir
Com quem?
Rem-rem.
Que preguiça, que calor!
Iaiá tira a camisa,
Toma aluá
Prende o cocó,
Limpa o suor
Pula pra rede.
Mas que cheiro gostoso tem Iaiá!
Que vontade doida de dormir,,,
Com quem?
Cheiro de mel da casa das caldeiras!
O saguim de Iaiá dorme num coco.
Iaiá ferra no sono
Pende a cabeça,
Abre-se a rede
Como uma ingá.
Para a mucama de cantar,
Tange os piuns,
Cala o ram-rem,
Abre a janela,
Olha o curral:
- um bruto sossego no curral!
Muito longe uma peitica faz si-dó....
Si-dó.....si-dó......si-dó....
Antes que Iaiá corte a madorna
A moleca de Iaiá
Balança a rede,
Tange os piuns,
Canta um lundum
Tão bambo,
Tão molengo,
Tão dengoso,
Que Iaiá sem se acordar,
Se coça,
Se estira
E se abre toda, na rede de tucum.
Sonha com quem?
Poemas e Poesias quarta, 06 de janeiro de 2021
MORTE E VIDA SEVERINA - O RETIRANTE EXPLICA AO LEITOR QUEM É E A QUE VAI (TRECHO DO POEMA DO PERNAMBUCANO JOÃO CABRAL DE MELO NETO)

MORTE E VIDA SEVERINA - TRECHO
João Cabral de Melo Neto
O RETIRANTE EXPLICA AO LEITOR QUEM É E A QUE VAI
O meu nome é Severino,
como não tenho outro de pia.
Como há muitos Severinos,
que é santo de romaria,
deram então de me chamar
Severino de Maria;
como há muitos Severinos
com mães chamadas Maria,
fiquei sendo o da Maria
do finado Zacarias.
Mas isso ainda diz pouco:
há muitos na freguesia,
por causa de um coronel
que se chamou Zacarias
e que foi o mais antigo
senhor desta sesmaria.
Como então dizer quem fala
ora a Vossas Senhorias?
Vejamos: é o Severino
da Maria do Zacarias,
lá da serra da Costela,
limites da Paraíba.
Mas isso ainda diz pouco:
se ao menos mais cinco havia
com nome de Severino
filhos de tantas Marias
mulheres de outros tantos,
já finados, Zacarias,
vivendo na mesma serra
magra e ossuda em que eu vivia.
Somos muitos Severinos
iguais em tudo na vida:
na mesma cabeça grande
que a custo é que se equilibra,
no mesmo ventre crescido
sobre as mesmas pernas finas,
e iguais também porque o sangue
que usamos tem pouca tinta.
E se somos Severinos
iguais em tudo na vida,
morremos de morte igual,
mesma morte severina:
que é a morte de que se morre
de velhice antes dos trinta,
de emboscada antes dos vinte,
de fome um pouco por dia
(de fraqueza e de doença
é que a morte severina
ataca em qualquer idade,
e até gente não nascida).
Somos muitos Severinos
iguais em tudo e na sina:
a de abrandar estas pedras
suando-se muito em cima,
a de tentar despertar
terra sempre mais extinta,
a de querer arrancar
algum roçado da cinza.
Neste trecho, Severino retirante se apresenta às pessoas e tenta, quando mais possa, logo de início individualizar-se. Para tanto, usa referências pessoais, de sobrenomes e nomes e geográficas. Inútil, ele é apenas um igual a tantos outros Severinos e, desse modo, difícil é desidentificar-se de maneira a distanciar-se deles, os seus iguais em sofrimento, dor, busca, no mesmo espaço geográfico da secura, fome, miséria e ignorância.
Poemas e Poesias terça, 05 de janeiro de 2021
ANGÚSTIA (POEMAS DO ACRIANO J. G. DE ARAÚJO JORGE)

ANGÚSTIA
J. G. de Araújo Jorge
Há uma estranha beleza na noite ! Há uma estranha beleza !
Oh, a transcendente poesia
que verso algum traduz...
A via-láctea, inteiramente acesa
parece a fotografia
de um tufão de luz !
- Quem seria,
quem seria
que pregou lá no céu aquela imensa cruz?
Que infinita serenidade...
Que infinita serenidade misteriosa
nesse infinito azul dos céus e em tudo mais:
nos telhados, nas ruas, na cidade...
( Só os gatos gritam na noite silenciosa
sensualíssimos ais !)
Meu Deus, que noite calma... E aquela trepadeira
feminina e ligeira
veio abrir bem na minha janela
uma flor - como uma boca rubra e bela
que não terei...
- E ainda sinto nos lábios um travo nauseante
do amor que faz bem pouco, há apenas um instante,
paguei...
E o céu azul assim... E essa serenidade!
Silêncio- A noite, o luar ... Tão claro o luar lá fora...
Juraria que há alguém, não sei onde que chora...
Oh, a angústia invencível que me prostra
invade
e me devorar ...
Poemas e Poesias segunda, 04 de janeiro de 2021
3 - DO DESEJO - EXISTE A NOITE, E EXISTE O BREU (POEMA DA PAULISTA HILDA HILST)

3 - DO DESEJO - EXISTE A NOITE, E EXISTE O BREU
Hilda Hilst
Existe a noite, e existe o breu.
Noite é o velado coração de Deus
Esse que por pudor não mais procuro.
Breu é quando tu te afastas ou dizes
Que viajas, e um sol de gelo
Petrifica-me a cara e desobriga-me
De fidelidade e de conjura. O desejo
Esse da carne, a mim não me faz medo.
Assim como me veio, também não me avassala.
Sabes por quê? Lutei com Aquele.
E dele também não fui lacaia.
Poemas e Poesias domingo, 03 de janeiro de 2021
A CIGARRA (POEMA DO SERGIPANO HERMES FONTES)

A CIGARRA
Hermes Fontes
Não, orgulhosa! não, alma nobre e vadia,
nunca foste pedir migalha ao formigueiro!
Dessedenta-te o sol e te nutre a alegria
De viver e morrer cantando, o dia inteiro...
Que infâmia ires ao vizinho celeiro
tu, que tens o celeiro universal do Dia,
e preferes morrer queimada em teu braseiro
íntimo a renunciar a tua fantasia!
Não! tu és superior ao código e ao compêndio,
à Economia, ou à Moral. — Aristocrata,
crês que prever miséria é já um vilipêndio.
Primadona pagã do Jardim e da Mata,
trazes dentro em ti mesma, em teu constante incêndio,
a luz, que te alimenta e o fogo, que te mata...
Poemas e Poesias sábado, 02 de janeiro de 2021
A HÓSPEDE (POEMA DO PAULISTA GUILHERME DE ALMEIDA)

A HÓSPEDE
Guilherme de Almeida
Não precisa bater quando chegares.
Toma a chave de ferro que encontrares
sobre o pilar, ao lado da cancela,
e abre com ela
a porta baixa, antiga e silenciosa.
Entra. Aí tens a poltrona, o livro, a rosa,
o cântaro de barro e o pão de trigo.
O cão amigo
pousará nos teus joelhos a cabeça.
Deixa que a noite, vagarosa, desça.
Cheiram a relva e sol, na arca e nos quartos,
os linhos fartos,
e cheira a lar o azeite da candeia.
Dorme. Sonha. Desperta. Da colméia
nasce a manhã de mel contra a janela.
Fecha a cancela
e vai. Há sol nos frutos dos pomares.
Não olhes para trás quando tomares
o caminho sonâmbulo que desce.
Caminha – e esquece.
Poemas e Poesias sexta, 01 de janeiro de 2021
A. L. (POEMA DO PORTUGUÊS GUERRA JUNQUEIRO)

A. L.
Guerra Junqueiro
Não és a flor olímpica e serena
Que eu vejo em sonhos na amplidão distante;
Não tens as formas ideais de Helena,
As formas da beleza triunfante;
Não és também a mística açucena,
A alva e pura Beatriz do Dante;
És a artista gentil, a flor morena
Cheia de aroma casto e penetrante.
Não sei que graça, que esplendor, que arpejo
Eu sinto dentro d'alma quando vejo
Teu corpo aéreo, matinal, franzino...
Faz-me lembrar as vívidas napeias,
E as formas vaporosas das sereias
Rendilhadas num bronze florentino.
Poemas e Poesias quinta, 31 de dezembro de 2020
CONTRA A MORTE E O AMOR NÃO HÁ QUEM TENHA VALIA (POEMA DO PORTUGUÊS GIL VICENTE)

CONTRA A MORTE E O AMOR NÃO HÁ QUEM TENHA VALIA
Gil Vicente
Era ainda o mês de abril,
de maio antes um dia,
quando lírios e rosas
mostram mais sua alegria;
pela noite mais serena
que fazer o céu podia,
quando Flérida, a formosa
infanta, já se partia,
ela na horta do pai
para as árvores dizia:
“Ficai, adeus, minhas flores,
em que glória ver soía.
Vou-me a terras estrangeiras,
a que ventura me guia.
Se meu pai me for buscar,
que grande bem me queria,
digam-lhe que amor me leva,
e que eu sem culpa o seguia;
que tanto por mim porfiava
que venceu sua porfia.
Triste, não sei aonde vou,
e a mim ninguém o dizia!”
Eis que fala Dom Duardos:
“Não choreis, minha alegria,
que nos reinos de Inglaterra
mais claras águas havia,
e mais formosos jardins,
e vossos, senhora, um dia:
tereis trezentas donzelas
de alta genealogia,
de prata são os palácios
para vossa senhoria;
de esmeraldas e jacintos,
de ouro fino da Turquia,
com letreiros esmaltados
que minha vida à porfia
vão contando, e as vivas cores
que vós me destes no dia
em que com Primaleão
fortemente combatia:
senhora, vós me matastes,
que eu a ele não temia.”
Os seus prantos consolava
Flérida, que tudo ouvia;
foram-se então às galeras
que Dom Duardos havia:
por cinqüenta se contavam,
todas vão em companhia.
Ao som de seus doces remos
a princesa se adormia
nos braços de Dom Duardos,
que bem já lhe pertencia.
Saibam quantos são nascidos
que sentença eu lhes diria:
que contra a morte e o amor
não há quem tenha valia.
Poemas e Poesias quarta, 30 de dezembro de 2020
A VIDA (POEMA DA PORTUGUESA FLORBELA ESPANCA)

VIDA
Florbela Espanca
É vão o amor, o ódio, ou o desdém;
Inútil o desejo e o sentimento...
Lançar um grande amor aos pés de alguém
O mesmo é que lançar flores ao vento!
Todos somos no mundo "Pedro Sem",
Uma alegria é feita dum tormento,
Um riso é sempre o eco dum lamento,
Sabe-se lá um beijo de onde vem!
A mais nobre ilusão morre... desfaz-se...
Uma saudade morta em nós renasce
Que no mesmo momento é já perdida...
Amar-te a vida inteira eu não podia,
A gente esquece sempre o bom de um dia.
Que queres, meu Amor, se é isto a vida!
Poemas e Poesias terça, 29 de dezembro de 2020
A VIDA BATE (POEMA DO MARANHENSE FERREIRA GULLAR)

A VIDA BATE
Ferreira Gullar
Não se trata do poema e sim do homem
e sua vida
– a mentida, a ferida, a consentida
vida já ganha e já perdida e ganha
outra vez.
Não se trata do poema e sim da fome
de vida,
o sôfrego pulsar entre constelações
e embrulhos, entre engulhos.
Alguns viajam, vão
a Nova York, a Santiago
do Chile. Outros ficam
mesmo na Rua da Alfândega, detrás
de balcões e de guichês.
Todos te buscam, facho
de vida, escuro e claro,
que é mais que a água na grama
que o banho no mar, que o beijo
na boca, mais
que a paixão na cama.
Todos te buscam e só alguns te acham. Alguns
te acham e te perdem.
Outros te acham e não te reconhecem
e há os que se perdem por te achar,
ó desatino
ó verdade, ó fome
de vida!
O amor é difícil
mas pode luzir em qualquer ponto da cidade.
E estamos na cidade
sob as nuvens e entre as águas azuis.
A cidade. Vista do alto
ela é fabril e imaginária, se entrega inteira
como se estivesse pronta.
Vista do alto,
com seus bairros e ruas e avenidas, a cidade
é o refúgio do homem, pertence a todos e a ninguém.
Mas vista
de perto,
revela o seu túrbido presente, sua
carnadura de pânico: as
pessoas que vão e vêm
que entram e saem, que passam
sem rir, sem falar, entre apitos e gases. Ah, o escuro
sangue urbano
movido a juros.
São pessoas que passam sem falar
e estão cheias de vozes
e ruínas . És Antônio?
És Francisco? És Mariana?
Onde escondeste o verde
clarão dos dias? Onde
escondeste a vida
que em teu olhar se apaga mal se acende?
E passamos
carregados de flores sufocadas.
Mas, dentro, no coração,
eu sei,
a vida bate. Subterraneamente,
a vida bate.
Em Caracas, no Harlem, em Nova Delhi,
sob as penas da lei,
em teu pulso,
a vida bate.
E é essa clandestina esperança
misturada ao sal do mar
que me sustenta
esta tarde
debruçado à janela de meu quarto em Ipanema
na América Latina.
Poemas e Poesias segunda, 28 de dezembro de 2020
CANSA SENTIR QUANDO SE PENSA (POEMA DO PORTUGUÊS FERNANDO PESSOA)

CANSA SENTIR QUANDO SE PENSA
Fernando Pessoa
TIR
Cansa sentir quando se pensa.
No ar da noite a madrugar
Há uma solidão imensa
Que tem por corpo o frio do ar.
Neste momento insone e triste
Em que não sei quem hei-de ser,
Pesa-me o informe real que existe
Na noite antes de amanhecer.
Tudo isto me parece tudo.
E é uma noite a ter um fim
Um negro astral silêncio surdo
E não poder viver assim.
(Tudo isto me parece tudo.
Mas noite, frio, negro sem fim,
Mundo mudo, silêncio mudo —
Ah, nada é isto, nada é assim!)
Poemas e Poesias domingo, 27 de dezembro de 2020
E QUE SE PONHA A ROUPA DO VENTO (POEMA DO GAÚCHO FABRÍCIO CARPINEJAR)

E QUE SE PONHA A ROUPA DO VENTO
Fabrício Carpinejar
O jogo é inventar a goleira
mais do que a bola.
Garagens são traves,
lápides são traves,
cercas são traves,
chinelos são traves.
O que pode ser levado
com uma mão,
adivinhado pelas pernas.
Postes de luz são traves,
placas são traves,
lixeiras são traves,
bancos são traves.
Marcar o chão numa linha imaginária,
daqui pra ali é o campo.
E o mundo não existe mais
fora do giz branco.
Um quarto está pronto a céu aberto.
Um quintal no meio da casa.
Uma rua cortando a praça.
Corra no jardim sonâmbulo,
pise a grama com raiva, raízes
são cadarços amarrados
nos tornozelos das árvores.
Há coices, quedas, uivos:
nada termina a vida,
essa explosão suspirada.
É um transe, a trave;
trânsito parado, feriado.
O defensor descansa
na tranca dos joelhos.
O pássaro voa de cabeça a cabeça,
descasca a chuva, espalha os cabelos.
A trave é montinho, formigueiro,
capuz de ciscos, ninhos.
Formigas transportam alimento
por dentro dos seus riscos.
Que seja capacete de moto,
um tijolo, um toco,
qualquer troco de mato e entulho.
Dez passos ao lado e uma altura infinita,
fazer endereço para receber cartas,
desenhar gol de letra.
Trave é o quadro-negro dos pés.
Caroço de brilho, queimadura de cometa.
Na praia, no calçadão, no descampado.
Tudo o que foi costurado pelo invisível
entre o corpo e uma porta.
Pedras são traves,
bambus são traves,
frutas são traves.
Até crianças são traves
para o adulto passar
de volta à infância.
Poemas e Poesias sábado, 26 de dezembro de 2020
A FLOR DO CÁRCERE (POEMA DO FLUMINENSE EUCLIDES DA CUNHA)

A FLOR DO CÁRCERE
Euclides da Cunha
Nascera ali – no limo viridente
Dos muros da prisão – como uma esmola
Da natureza a um coração que estiola –
Aquela flor imaculada e olente…
E ele que fora um bruto, e vil descrente,
Quanta vez, numa prece, ungido, cola
O lábio seco, na úmida corola
Daquela flor alvíssima e silente!…
E ele – que sofre e para a dor existe –
Quantas vezes no peito o pranto estanca!..
Quantas vezes na veia a febre acalma,
Fitando aquela flor tão pura e triste!…
– Aquela estrela perfumada e branca,
Que cintila na noite de sua alma…
Poemas e Poesias sexta, 25 de dezembro de 2020
TROVAS HUMORÍSTICAS - 07 - (POEMA DO PARANAENSE ENO TEODORO WANKE)

TROVA HUMORÍSTICA 07
Eno Teodoro Wanke
Lua de mel disse alguém
Depois de alguma cachaça
É o prefácio divertido
De um livro muito sem graça
Poemas e Poesias quarta, 23 de dezembro de 2020
A IDEIA CONSOLADORA (POEMA DO CARIOCA DOM PEDRO II)

A IDEIA CONSOLADORA
Dom Pedro II
Vendo as ondas correr para o ocidente,
Corre mais do que elas a saudade,
Mas espero que a minha enfermidade
O mesmo me consinta brevemente.
Com saúde mais lustre dar à mente
É cousa que enobrece a humanidade;
Contudo agora o paga a amizade
Da pátria, e da família, cruelmente;
Mas consola-me a idéia, — que mais forte
Lhes voltarei para melhor amá-los,
Pois mais anos assim até a morte
Eu mostrarei que sempre quis ligá-los
Na feliz, e também na infeliz sorte
Para, amando-os, ainda consolá-los.
Poemas e Poesias terça, 22 de dezembro de 2020
COMO UMA SOMBRA LUMINOSA (POEMA DO PIAUIENSE DA COSTA E SILVA)

COMO UMA SOMBRA LUMINOSA
Da Costa e Silva
Uma vida de flor ou borboleta
Foi-lhe a existência efêmera e enganosa;
Passou como uma sombra luminosa
De beleza e bondade no planeta.
Na minha solidão de anacoreta,
Surgiu como uma deusa misteriosa...
Era simples e bela como a rosa,
Modesta e singular como a violeta.
Só de vê-la senti toda a inquietude
Que, por encanto, o coração invade,
Quando o amor o desperta, enleva e ilude.
Tive-a a encarnar minha felicidade;
Quis detê-la comigo, mas não pude,
Porque a beleza aspira à eternidade.
Poemas e Poesias segunda, 21 de dezembro de 2020
A PÁTRIA (POEMA DO CARIOCA OLAVO BILAC)

A PÁTRIA
Olavo Bilac
Ama, com fé e orgulho, a terra em que nasceste!
Criança! não verás nenhum país como este!
Olha que céu! que mar! que rios! que floresta!
A Natureza, aqui, perpetuamente em festa,
E um seio de mãe a transbordar carinhos.
Vê que vida há no chão! vê que vida há nos ninhos,
Que se balançam no ar, entre os ramos inquietos!
Vê que luz, que calor, que multidão de insetos!
Vê que grande extensão de matas, onde impera
Fecunda e luminosa, a eterna primavera!
Boa terra! jamais negou a quem trabalha
O pão que mata a fome, o teto que agasalha …
Quem com o seu suor a fecunda e umedece,
Vê pago o seu esforço, e é feliz, e enriquece!
Criança! não verás país nenhum como este:
Imita na grandeza a terra em que nasceste!
Poemas e Poesias segunda, 21 de dezembro de 2020
AO AR LIVRE (POEMA DO CATARINENSE CRUZ E SOUSA)

AO AR LIVRE
Cruz e Sousa
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Tu trazes agora o peito |
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como essas urnas sagradas, |
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repleto de gargalhadas, |
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sonoro, bom, satisfeito. |
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Por dentro cantam assombros |
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e causas esplendorosas |
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como latadas de rosas |
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dos muros entre os escombros. |
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Quando o ideal nos alaga, |
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embora as lutas do mundo, |
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levanta-se um sol fecundo |
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do peito em cada uma chaga. |
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Voltou-se a seiva de outrora, |
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de outro, mais forte e destro, |
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iluminado maestro, |
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das harmonias da aurora. |
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Fulgurem por isso as musas, |
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as belas musas, por isso... |
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Voltou-te o passado viço, |
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foram-se as mágoas, confusas. |
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Agora, quando eu dirijo |
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meus passos, à tua porta, |
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sinto-te um bem que conforta, |
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vejo-te alegre e mais rijo. |
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Porque afinal pela vida |
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nem tudo se desmorona |
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quando se vaga na zona |
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da mocidade florida. |
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Gostas de ver pelos ramos |
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das verdes árvores novas, |
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a chocalhar umas trovas, |
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coleiros e gaturamos. |
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Já podes bem comer frutas, |
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os teus simpáticos jambos, |
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e ouvir alguns ditirambos |
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da natureza nas grutas. |
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Podes olhar as esferas, |
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com ar direito e seguro, |
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de frente para o futuro, |
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de lado para as quimeras. |
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Não tenhas cofres avaros |
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de santos -na luz te afoga, |
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e a alma arremessa e joga |
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por esses páramos claros. |
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Reúne os sonhos dispersos |
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como andorinhas vivaces |
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e o colorido das faces |
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ao coberto dos versos. |
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Como uns lábaros vermelhos, |
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contente como os lilases, |
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as crenças dos bons rapazes |
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tem prismas como os espelhos. |
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Poemas e Poesias domingo, 20 de dezembro de 2020
MASCARADOS (POEMA DA GOIANA CORA CORALINA)

MASCARADOS
Cora Coralina
Saiu o Semeador a semear
Semeou o dia todo
e a noite o apanhou ainda
com as mãos cheias de sementes.
Ele semeava tranqüilo
sem pensar na colheita
porque muito tinha colhido
do que outros semearam.
Jovem, seja você esse semeador
Semeia com otimismo
Semeia com idealismo
as sementes vivas
da Paz e da Justiça.
Poemas e Poesias sábado, 19 de dezembro de 2020
TEMEI, PENHAS (POEMA DO CARIOCA CLÁUDIO MANUEL DA COSTA)

TEMEI, PENHAS
Cláudio Manuel da Costa
Destes penhascos fez a natureza
O berço em que nasci: oh! quem cuidara
Que entre penhas tão duras se criara
Uma alma terna, um peito sem dureza!
Amor, que vence os tigres, por empresa
Tomou logo render-me; ele declara
Contra meu coração guerra tão rara
Que não me foi bastante a fortaleza.
Por mais que eu mesmo conhecesse o dano
A que dava ocasião minha brandura,
Nunca pude fugir ao cego engano;
Vós que ostentais a condição mais dura,
Temei, penhas, temei: que Amor tirano
Onde há mais resistência mais se apura.
Poemas e Poesias sexta, 18 de dezembro de 2020
NOSSA TRUCULÊNCIA (POEMA DA UCRANIANA-BRASILEIRA CLARICE LISPECTOR)

NOSSA TRUCULÊNCIA
Clarice Lispector
Quando penso na alegria voraz
com que comemos galinha ao molho pardo,
dou-me conta de nossa truculência.
Eu, que seria incapaz de matar uma galinha,
tanto gosto delas vivas
mexendo o pescoço feio
e procurando minhocas.
Deveríamos não comê-las e ao seu sangue?
Nunca.
Nós somos canibais,
é preciso não esquecer.
E respeitar a violência que temos.
E, quem sabe, não comêssemos a galinha ao molho pardo,
comeríamos gente com seu sangue.
Minha falta de coragem de matar uma galinha
e no entanto comê-la morta
me confunde, espanta-me,
mas aceito.
A nossa vida é truculenta:
nasce-se com sangue
e com sangue corta-se a união
que é o cordão umbilical.
E quantos morrem com sangue.
É preciso acreditar no sangue
como parte de nossa vida.
A truculência.
É amor também.
Poemas e Poesias quinta, 17 de dezembro de 2020
ARROJOS (POEMA DO PORTUGUÊS CESÁRIO VERDE)

ARROJOS
Cesário Verde
Se a minha amada um longo olhar me desse
Dos seus olhos que ferem como espadas,
Eu domaria o mar que se enfurece
E escalaria as nuvens rendilhadas.
Se ela deixasse, extáctico e suspenso
Tomar-lhe as mãos "mignonnes" e aquecê-las,
Eu com um sopro enorme, um sopro imenso
Apagaria o lume das estrelas.
Se aquela que amo mais que a luz do dia,
Me aniquilasse os males taciturnos,
O brilho dos meus olhos venceria
O clarão dos relâmpagos nocturnos.
Se ela quisesse amar, no azul do espaço,
Casando as suas penas com as minhas,
Eu desfaria o Sol como desfaço
As bolas de sabão das criancinhas.
Se a Laura dos meus loucos desvarios
Fosse menos soberba e menos fria,
Eu pararia o curso aos grandes rios
E a terra sob os pés abalaria.
Se aquela por quem já não tenho risos
Me concedesse apenas dois abraços,
Eu subiria aos róseos paraísos
E a Lua afogaria nos meus braços.
Se ela ouvisse os meus cantos moribundos
E os lamentos das cítaras estranhas,
Eu ergueria os vales mais profundos
E abateria as sólidas montanhas.
E se aquela visão da fantasia
Me estreitasse ao peito alvo como arminho,
Eu nunca, nunca mais me sentaria
Às mesas espelhentas do Martinho.
Poemas e Poesias quarta, 16 de dezembro de 2020
INSCRIÇÃO NA AREIA (POEMA DA CARIOCA CECÍLIA MEIRELES)

INSCRIÇÃO NA AREIA
Cecília Meireles
O meu amor não tem
importância nenhuma.
Não tem o peso nem
de uma rosa de espuma
Desfolha-se por quem?
Para quem se perfuma?
O meu amor não tem
importância nenhuma.
Poemas e Poesias segunda, 14 de dezembro de 2020
LOUCURA DIVINA (31ª PARTE DO POEMA A CACHOEIRA DE PAULO AFONSO, DO BAIANO CASTRO ALVES)

LOUCURA DIVINA
Castro Alves
(Do poema A Cachoeira de Paulo Afonso)
—"SABES que voz é esta?"
Ela cismava!...
— "Sabes, Maria?
— "É uma canção de amores.
Que além gemeu!"
— "É o abismo, criança!..."
A moça rindo
Enlaçou-lhe o pescoço:
— "Oh! não! não mintas!
Bem sei que é o céu!"
—"Doida! Doida! É a voragem que nos chama!..."
—"Eu ouço a Liberdade!"
— "É a morte, infante!
— "Erraste. É a salvação!"
—Negro fantasma é quem me embala o esquife!"
—"Loucura! É tua Mãe ... O esquife é um berço,
Que bóia namplidão!..."
— "Não vês os panos dágua como alvejam
Nos penedos? Que gélido sudário
O rio nos talhou!"
— "Veste-me o cetim branco do noivado...
Roupas alvas de prata... albentes dobras...
Veste-me!... Eu aqui estou."
—JÁ na proa espadana, salta a espuma... "
—São as flores gentis da laranjeira
Que o pego vem nos dar...
Oh! névoa! Eu amo teu sendal de gaze!...
Abram-se as ondas como virgens louras,
Para a Esposa passar!...
"As estrelas palpitam! — São as tochas!
Os rochedos murmuram!... São os monges!
Reza um órgão nos céus!
Que incenso! — Os rolos que do abismo voam!
Que turíbulo enorme — Paulo Afonso!
Que sacerdote! — Deus..."
Poemas e Poesias domingo, 13 de dezembro de 2020
ASSIM! A M.*** (POEMA DO FLUMINENSE CASIMIRO DE ABREU)

ASSIM! AM.***
Casimiro de Abreu
Viste o lírio da campina?
Lá s’inclina
E murcho no hastil pendeu!
- Viste o lírio da campina?
Pois, divina,
Como o lírio assim sou eu!
Nunca ouviste a voz da flauta,
A dor do nauta
Suspirando no alto mar?
- Nunca ouviste a voz da flauta?
Como o nauta
É tão triste o meu cantar!
Não viste a rola sem ninho
No caminho
Gemendo, se a noite vêm?
- Não viste a rola sem ninho?
Pois, anjinho
Assim eu gemo, também!
Não viste a barca perdida,
Sacudida
Nas asas dalgum tufão?
Não viste a barca fendida?
Pois, querida,
Assim vai meu coração!
Poemas e Poesias sábado, 12 de dezembro de 2020
MEMÓRIAS DO BOI SERAPIÃO (POEMA DO PERNAMBUCANO CARLOS PENA FILHO)

MEMÓRIAS DO BOI SERAPIÃO
Carlos Pena Filho
Este campo,
vasto e cinzento,
não tem começo nem fim,
nem de leve desconfia
das coisas que vão em mim.
Deve conhecer, apenas
(porque são pecados nossos)
o pó que cega meus olhos
e a sede que rói meus ossos.
No verão, quando não há
capim na terra
e milho no paiol
solenemente mastigo
areia, pedras e sol.
Às vezes, nas longas tardes
do quieto mês de dezembro
vou a uma serra que sei
e as coisas da infância lembro:
instante azul em meus olhos
vazios de luz e fé
contemplando a festa rude
que a infância dos bichos é …
No lugar onde eu nasci
havia um rio ligeiro
e um campo verde e mais verde
de um janeiro a outro janeiro
havia um homem deitado
na rede azul do terraço
e as filhas dentro do rio
diminuindo o mormaço.
Não tinha as coisas daqui:
homens secos e compridos
e estas mulheres que guardam
o sol na cor dos vestidos
nem estas crianças feitas
de farinha e jerimum
e a grande sede que mora
no abismo de cada um.
Havia este céu de sempre
e, além disto, pouco mais
que as ondas nas superfícies
dos verdes canaviais.
Mas, os homens que moravam
na língua do litoral
falavam se desmanchando
das terras gordas e grossas
daquele canavial
e raras vezes guardavam
suas lembranças mofinas
as fumaças que sujavam
os claros céus que cobriam
as chaminés das usinas.
Às vezes, entre iguarias,
um comentário isolado:
a crônica triste e curta
de um engenho assassinado.
Mas logo à mesa voltavam
que a fome bem pouco espera
e os seus olhos descansavam
em porcelanas da China
e cristais da Baviera.
Naquelas terras da mata
bem poucos amigos fiz,
ou porque não me quiseram
ou então porque eu não quis.
Lembro apenas um boi triste
num lençol de margaridas
que era o encanto do menino
que alegre o tangia para
as colinas coloridas.
Um dia, naquelas terras
foi encontrado um boi morto
e os outros logo disseram
que o seu dono era o homem torto
que em vez de contar as coisas
daqueles canaviais
vivia de mexericos
“entre estas índias de leste
e as Índias Ocidentais”.
A verde flora da mata
(que é azul por ser da infância)
habita: os meus olhos com
serenidade e constância.
Este campo,
vasto e cinzento,
é onde às vezes me escondo
e envolto nestas lembranças
durmo o meu sono redondo,
que o que há de bom por aqui
na terra do não chover
é que não se espera a morte
pois se está sempre a morrer:
Em cada poço que seca
em cada árvore morta
em cada sol que penetra
na frincha de cada porta
em cada passo avançado
no leito de cada rio
por todo tempo em que fica
despido, seco, vazio.
Quando o sol doer nas coisas
da terra e no céu azul
e os homens forem em busca
dos verdes mares do sul,
só eu ficarei aqui
para morrer por completo,
para dar a carne à terra
e ao sol meu branco esqueleto,
nem ao menos tentarei
voltar ao canavial,
pra depois me dividir
entre a fábrica de couro
e o terrível matadouro
municipal.
E pensar que já houve um tempo
em que estes homens compridos
falavam de nós assim:
o meu boi morreu,
que será de mim?
Este campo,
vasto e cinzento,
não tem entrar nem sair
e nem de longe imagina
as coisas que estão por vir,
e enquanto o tempo não vem
nem chega o milho ao paiol
solenemente mastigo
areia, pedras e sol.
Poemas e Poesias sexta, 11 de dezembro de 2020
ALÉM DA TERRA, ALÉM DO CÉU (POEMA DO MINEIRO CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE)

ALÉM DA TERRA, ALÉM DO CÉU
Carlos Drummond de Andrade
Além da terra, além do céu
no trampolim do sem-fim das estrelas,
no rastros dos astros,
na magnólia das nebulosas.
Além, muito além do sistema solar
até onde alcançam o pensamento e o coração,
vamos!
vamos conjugar
o verbo fudamental essencial
o verbo transcendente, acima das gramáticas
e do medo e da moeda e da política,
o verbo sempreamar
o verbo pluriamar,
razão de ser e viver.
Poemas e Poesias quinta, 10 de dezembro de 2020
SONETO 043 - COMO QUANDO DO MAR TEMPESTUOSO (POEMA DO PORTUGUÊS LUÍS DE CAMÕES)

COMO QUANDO DO MAR TEMPESTUOSO
Soneto 043
Luís de Camões
Como quando do mar tempestuoso
o marinheiro, lasso e trabalhado,
de um naufrágio cruel já salvo a nado,
só ouvir falar nele o faz medroso,
e jura que, em que veja bonançoso
o violento mar e sossegado,
não entre nele mais, mas vai, forçado
pelo muito interesse cobiçoso;
assi, Senhora, eu, que da tormenta
de vossa vista fujo, por salvar-me,
jurando de não mais em outra ver-me:
minha alma, que de vós nunca se ausenta,
dá-me por preço ver-vos, faz tornar-me
donde fugi tão perto de perder-me.
Poemas e Poesias quarta, 09 de dezembro de 2020
OUTRO SONETO AO FRANÇA (POEMA DO PORTUGUÊS MANUEL MARIA BARBOSA DU BOCAGE)

OUTRO SONETO AO FRANÇA
Bocage
Rapada, amarelenta, cabeleira,
Vesgos olhos, que o chá, e o doce engoda,
Boca, que à parte esquerda se acomoda,
(Uns afirmam que fede, outros que cheira):
Japona, que da ladra andou na feira;
Ferrugento faim, que já foi moda
No tempo em que Albuquerque fez a poda
Ao soberbo Hidalcão com mão guerreira:
Ruço calção, que esporra no joelho
Meia e sapato, com que ao lodo avança,
Vindo a encontrar-se c'o esburgalhado artelho:
Jarra, com apetites de criança;
Cara com semelhança de besbelho;
Eis o bedel do Pindo, o doutor França.
Poemas e Poesias terça, 08 de dezembro de 2020
O SONHO (POEMA DA MINEIRA BÁRBARA HELIODORA)

O SONHO
Bárbara Heliodora
Oh que sonho! Oh! que sonho eu tive n'esta,
Feliz, ditosa e socegada sésta!
Eu vi o Pão de Assucar levantar-se
E no meio das ondas transformar-se
Na figura de um indio o mais gentil,
Representando só todo o Brazil.
Pendente ao tiracol de branco arminho
Concavo dente de animal marinho
As preciosas armas lhe guardava;
Era thesoiro e juntamente aljava.
De pontas de diamante eram as setas,
As hásteas d'oiro, mas as pennas pretas;
Que o indio valeroso altivo e forte
Não manda seta, em que não mande a morte,
Zona de pennas de vistosas côres
Guarnecida de barbaros lavores,
De folhetas e perolas pendentes,
Finos chrystaes, topazios transparentes,
Em recamadas pelles de sahiras,
Rubins, e diamantes e saphiras,
Em campo de esmeralda escurecia
A linda estrella, que nos traz o dia.
No cocar... oh que assombro! oh que riqueza!
Vi tudo quanto póde a natureza.
No peito em grandes letras de diamante
O nome da augustissima imperante.
De inteiriço coral novo instrumento
As mãos lhe occupa, em quanto ao doce accento
Das saudosas palhetas, que afinava,
Pindaro americano assim cantava.
Sou vassallo e sou leal,
Como tal,
Fiel constante,
Sirvo á glória da imperante,
Sirvo á grandeza real.
Aos elysios descerei
Fiel sempre a Portugal,
Ao famoso vice-rei,
Ao illustre general,
Ás bandeiras, que jurei,
Insultando o fado e a sorte,
E a fortuna desigual,
Qu'a quem morrer sabe, a morte
Nem é morte, nem é mal.
Poemas e Poesias segunda, 07 de dezembro de 2020
RICORDANZA DELLA MIA GIOVENTÚ (POEMA DO CAPIXABA AUGUSTO DOS ANJOS)

RICORDANZA DELLA MIA GIOVENTÚ
Augusto dos Anjos
A minha ama de leite Guilhermina
Furtava as moedas que o doutor me dava.
Sinhá-Mocinha, minha Mãe, ralhava...
Via naquilo a minha própria ruína!
Minha ama, então, hipócrita, afetava
Suscetibilidades de menina:
"- Não, não fora ela! -" E maldizia a sua sina,
Que ela absolutamente não furtava.
Vejo, entretanto, agora em minha cama,
Que a mim somente cabe o furto feito...
Tu só furtaste a moeda, o oiro que brilha...
Furtaste a moeda só, mas eu, minha ama,
Eu furtei mais, porque furtei o peito
Que dava leite para a tua filha!
Poemas e Poesias domingo, 06 de dezembro de 2020
POEMAS MINUTO (POEMA DO PERNAMBUCANO ASCENSO FERREIRA)

POEMAS MINUTO
Ascenso Ferreira
Filosofia
Hora de comer, —comer!
Hora de dormir, — dormir!
Hora de vadiar, — vadiar!
Hora de trabalhar?
— pernas pro ar que ninguém é de ferro!
Sucessão de São Pedro
— Seu vigário!
Está aqui esta galinha gorda
que eu trouxe pro mártir São Sebastião!
— Está falando com ele!
— Está falando com ele!
Poemas e Poesias sexta, 04 de dezembro de 2020
DÍSTICO (POEMA DO PARAIBANO ARIANO SUASSUNA)

DÍSTICO
Ariano Suassuna
Sob o Sol deste Pasto Incendiado,
montado para sempre num Cavalo
que a Morte lhe arreou,
vê-se, aqui, quem, na vida, bravo, ardente
e indeciso, sonhou.
Pelas cordas-de-prata da Viola,
os cantares-de-sangue e o doido riso
de seu Povo cantou.
Foi dono da Palavra de seu tempo,
Cavaleiro da gesta sertaneja,
Vaqueiro e caçador.
Se morreu moço e em sangue, teve tempo
de governar seus pastos e rebanhos,
e a feiosa velhice
jamais o degradou.
Glória, portanto, à Morte e a suas garras,
pois, ao sagrá-lo, assim, da vida ao meio,
do Desprezo o salvou:
poupou-lhe a Cinza triste, a Decadência,
gravou sua grandeza em pedra e fogo,
e assim a conservou.
Poemas e Poesias quinta, 03 de dezembro de 2020
DESALENTO (POEMA DO PAULISTA ÁLVARES DE AZEVEDO)

DESALENTO
Álvares de Azevedo
Feliz daquele que no livro d'alma
Não tem folhas escritas
E nem saudade amarga, arrependida,
Nem lágrimas malditas!
Feliz daquele que de um anjo as tranças
Não respirou sequer
E nem bebeu eflúvios descorando
Numa voz de mulher...
E não sentiu-lhe a mão cheirosa e branca
Perdida em seus cabelos,
Nem resvalou do sonho deleitoso
A reais pesadelos...
Quem nunca te beijou, flor dos amores,
Flor do meu coração,
E não pediu frescor, febril e insano
Da noite à viração!
Ah! feliz quem dormiu no colo ardente
Da huri dos amores,
Que sôfrego bebeu o orvalho santo
Das perfumadas flores...
E pôde vê-la morta ou esquecida
Dos longos beijos seus,
Sem blasfemar das ilusões mais puras
E sem rir-se de Deus!
Mas, nesse doloroso sofrimento
Do pobre peito meu,
Sentir no coração que à dor da vida
A esperança morreu!...
Que me resta, meu Deus? aos meus suspiros
Nem geme a viração...
E dentro, no deserto do meu peito,
Não dorme o coração!
Poemas e Poesias quarta, 02 de dezembro de 2020
AMADA FILHA, É JÁ CHEGADO O DIA (POEMA DO CARIOCA ALVARENGA PEIXOTO)

AMADA FILHA, É JÁ CHEGADO O DIA
Alvarenga Peixoto
Amada filha, é já chegado o dia,
em que a luz da razão, qual tocha acesa
vem conduzir a simples natureza,
é hoje que o teu mundo principia.
A mão que te gerou teus passos guia,
despreza ofertas de uma vã beleza,
e sacrifica as honras e a riqueza
às santas leis do filho de Maria.
Estampa na tua alma a caridade,
que amar a Deus, amar aos semelhantes,
são eternos preceitos da verdade.
Tudo o mais são idéias delirantes;
procura ser feliz na eternidade,
que o mundo são brevíssimos instantes.
Poemas e Poesias terça, 01 de dezembro de 2020
COMO SE MOÇO E NÃO BEM VELHO EU FOSSE (POEMA DO MINEIRO ALPHONSUS GUIMARAENS)

COMO SE MOÇO E NÃO BEM VELHO EU FOSSE
Alphonsus Guimaraens

Como se moço e não bem velho eu fosse,
Uma nova ilusão veio animar-me,
Na minh’alma floriu um novo carme,
O meu ser para o céu alcandorou-se.
Ouvi gritos em mim como um alarme.
E o meu olhar, outrora suave e doce,
Nas ânsias de escalar o azul, tornou-se
Todo em raios, que vinham desolar-me.
Vi-me no cimo eterno da montanha
Tentando unir ao peito a luz dos círios
Que brilhavam na paz da noite estranha.
Acordei do áureo sonho em sobressalto;
Do céu tombei ao caos dos meus martírios,
Sem saber para que subi tão alto…
Poemas e Poesias segunda, 30 de novembro de 2020
A TEMPESTADE (1828) - (POEMA DO PORTUGUÊS ALMEIDA GARRETT)

A TEMPESTADE (1828)
Almeida Garrett
Virgílio,
Coeco carpitur igni
I
Sobre um rochedo
Que o mar batia,
Triste gemia
Um desgraçado,
Terno amador.
Já nem lhe caem
Dos olhos lágrimas,
Suspiros férvidos
Apenas contam
Seu triste amor.
II
Ondas, clamava o mísero,
Ondas que assim bramais,
Ouvi meus tristes ais!
Horrível tempestade,
Medonho furacão,
Não é mais agitado
Do que o meu coração,
O vosso despregado,
Horrisonoo bramar!
Ancia que atropela
Meu lânguido peito,
É mais violenta
Que o tempo desfeito,
Que a onda encapela,
Que a agita a tormenta
No seio do mar.
III
Mas, ah! se o negrume
O sol dissipara
Calmara
Seu nume,
O horror do tufão.
Assim à minha alma
A calma
Daria
De Armia
Um sorriso:
Um raio de esprança
Do paraíso
Traria
A bonança
Ao meu coração.
Poemas e Poesias domingo, 29 de novembro de 2020
À MINHA FILHA (POEMA DO FLUMINENSE ALBERTO DE OLIVEIRA)

À MINHA FILHA
Alberto de Oliveira
Vejo em ti repetida,
A anos de distância,
A minha própria vida,
A minha própria infância.
É tal a semelhança,
É tal a identidade,
Que é só em ti, criança,
Que entendo a eternidade.
Todo o meu ser se exala,
Se reproduz no teu:
É minha a tua fala,
Quem vive em ti, sou eu.
Sorris como eu sorria,
Cismas do meu cismar,
O teu olhar copia,
Espelha o meu olhar.
És como a emanação,
Como o prolongamento,
Quer do meu coração,
Quer do meu pensamento.
Encarnas de tal modo
Minha alma fugitiva,
Que eu não morri de todo
Enquanto sejas viva!
Por que mistério imenso
Se fez a transmissão
De quanto sinto e penso
Para esse coração?
Foi como se eu andasse
Noutra alma a semear
Meu peito, minha face,
Meu riso, meu olhar...
Meus íntimos desejos,
Meus sonhos mais doirados,
Florindo com meus beijos
Os campos semeados.
Bendita é a colheita,
Deus confiou em nós...
Colhi-te, flor perfeita,
Eco da minha voz!
Foi o amor, foi o amor,
Ó filha idolatrada,
O sopro criador
Que te tirou do nada!
Deus bendito e louvado,
Ó filha estremecida,
Por te cá ter mandado
A reviver-me a vida!
Poemas e Poesias sábado, 28 de novembro de 2020
ARTE FINAL (POEMA DO MINEIRO AFFONSO ROMANO DE SANT,ANNA)

ARTE FINAL
Affonso Romano de Sant'Anna
Não basta um grande amor
para fazer poemas.
E o amor dos artistas, não se enganem,
não é mais belo
que o amor da gente.
O grande amante é aquele que silente
se aplica a escrever com o corpo
o que seu corpo deseja e sente.
Uma coisa é a letra,
e outra o ato,
quem toma uma por outra
confunde e mente.
Poemas e Poesias sexta, 27 de novembro de 2020
DIA (POEMA DA MINEIRA ADÉLIA PRADO)

DIA
Adélia Prado
As galinhas com susto abrem o bico
e param daquele jeito imóvel
- ia dizer imoral -
as barbelas e as cristas envermelhadas,
só as artérias palpitando no pescoço.
Uma mulher espantada com sexo:
mas gostando muito.
Poemas e Poesias quinta, 26 de novembro de 2020
DO FIM AO PRINCÍPIO (POEMA DA CARIOCA ADALGISA NERY)

DO FIM AO PRINCÍPIO
Adalgisa Nery
Nada mais acontecerá
Porque tudo Já aconteceu.
Amanhã é ontem e ontem é hoje.
Meu nascimento, minha vida,
Minha morte e meu julgamento
Já chegaram dentro de mim
Antes de chegar para todos.
Sei que ninguém mais nascerá,
Se alguém nasceu foi um instante
E os que vivem foram abafados
Antes de acabar como cosmos, como universo.
Em tudo e para tudo o mundo já começou por acabar dentro de
[mim mesma.
Espero o princípio, porque o fim
Já está comigo desde a minha formação.
Poemas e Poesias quarta, 25 de novembro de 2020
AMOR (POEMA DA PORTUGUESA VIRGÍNIA VICTORINO)

AMOR
Virgínia Victorino
O amor! O amor! Ninguém o definiu.
É sempre o mesmo. Acaba onde começa.
Quem mais o sente menos o confessa,
e quem melhor o diz nunca o sentiu.
Conhece a todos mas ninguém o viu.
Se o procuramos, foge-nos depressa.
Se o desprezamos, todo se interessa,
só está presente quando já fugiu.
É homem feito sendo criança.
E quanto mais se quer menos se alcança,
ninguém o encontra, e em toda parte mora.
Mata a quem dele vive. É sempre assim.
Só principia quando chega o fim,
morreu há muito e nasce a cada hora.