Almanaque Raimundo Floriano
Fundado em 24.09.2016
(Cultural, sem fins comerciais, lucrativos ou financeiros)


Raimundo Floriano de Albuquerque e Silva, Editor deste Almanaque, também conhecido como Velho Fulô, Palhaço Seu Mundinho e Mundico Trazendowski, nascido em Balsas , Maranhão, a 3 de julho de 1936, Católico Apostólico Romano, Contador, Oficial da Reserva do Exército Brasileiro, Funcionário Público aposentado da Câmara dos Deputados, Titular da Cadeira nº 10 da Academia Passa Disco da Música Nordestina, cuja patrona é a cantora Elba Ramalho, Mestre e Fundador da Banda da Capital Federal, Pesquisador da MPB, especializado em Velha Guarda, Música Militar, Carnaval e Forró, Cardeal Fundador da Igreja Sertaneja, Pioneiro de Brasília, Xerife nos Mares do Caribe, Cordelista e Glosador, Amigo do Rio das Balsas, Inventor da Descida de Boia, em julho de 1952, Amigo da Fanfarra do 1° RCG, autor dos livros O Acordo PDS/PTB, coletânea de charges, Sinais de Revisão e Regras de Pontuação, normativo, Do Jumento ao Parlamento, com episódios da vida real, De Balsas para o Mundo, centrado na navegação fluvial Balsas/Oceano Atlântico, Pétalas do Rosa, saga da Família Albuquerque e Silva, Memorial Balsense, dedicado à história de sua terra natal, e Caindo na Gandaia, humorístico apimentado, é casado, tem quatro filhos, uma nora, dois genros e dois netos e reside em Brasília, Distrito Federal, desde dezembro de 1960.

Poemas e Poesias sábado, 17 de outubro de 2020

SONHOS DE VIRGEM (POEMA DO FLUMINENSE CASIMIRO DE ABREU)

SONHOS DE VIRGEM

Casimiro de Abreu

 

A M.***

I
Que sonhas, virgem, nos sonhos
Que à mente te vem risonhos
Na primavera inda em flor?
No celeste devaneio,
No doce bater do seio,
Que sonhas virgem? - amor?

Que céus, que jardins, que flores,
Que longos cantos de amores
Nos lindos sonhos te vem?
E quando a mente delira,
E quando o peito suspira,
Suspira o peito - por quem?

Sonhando mesmo acordada,
Pendida a fronte adorada
Num cismar vago e sem fim;
Do olhar o fogo tão vivo,
A voz, o riso lascivo,
O pensamento é - por mim?!

II
Quando tu dormes tranqüila,
Cerrada a negra pupila
E o lábio doce a sorrir;
Então o sonho dourado
Nas dobras do cortinado
Vem esmaltar teu dormir!

Oh! sonha! - Feliz a idade
Das rosas da virgindade,
Dos sonhos do coração!
- Puro vergel de açucenas
Ou lago d'águas serenas
Que estremece à viração!

Feliz! Feliz quem pudera
Colher-te na primavera
De galas rica e louçã!
Feliz oh! flor dos amores,
Quem te beber os odores
Nos orvalhos da manhã!


Poemas e Poesias sexta, 16 de outubro de 2020

MARINHA (POEMA DO PERNAMBUCANO CARLOS PENA FILHO)

MARINHA

Carlos Pena Filho

 

Tu nasceste no mundo do sargaço
da gestação de búzios, nas areias.
Correm águas do mar em tuas veias,
dormem peixes de prata em teu regaço.

Descobri tua origem, teu espaço,
pelas canções marinhas que semeias.
Por isso as tuas mãos são tão alheias,
Por isso teu olhar é triste e baço.

Mas teu segredo é meu, ó, não me digas
onde é tua pousada, onde é teu porto,
e onde moram sereias tão amigas.

Quem te ouvir, ficará sem teu conforto
pois não entenderá essas cantigas
que trouxeste do fundo do mar morto


Poemas e Poesias quarta, 14 de outubro de 2020

AINDA QUE MAL (POEMA DO MINEIRO CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE)

AINDA QUE MAL

Carlos Drummond de Andrade

 

 

Ainda que mal pergunte,
ainda que mal respondas;
ainda que mal te entenda,
ainda que mal repitas;
ainda que mal insista,
ainda que mal desculpes;
ainda que mal me exprima,
ainda que mal me julgues;
ainda que mal me mostre,
ainda que mal me vejas;
ainda que mal te encare,
ainda que mal te furtes;
ainda que mal te siga,
ainda que mal te voltes;
ainda que mal te ame,
ainda que mal o saibas;
ainda que mal te agarre,
ainda que mal te mates;
ainda assim te pergunto
e me queimando em teu seio,
me salvo e me dano: amor.

 


Poemas e Poesias terça, 13 de outubro de 2020

SONETO 071 - COMO FIZESTE, PÓRCIA, TAL FERIDA? (POEMA DO PORTUGUÊS LUÍS DE CAMÕES)

COMO FIZESTE, PÓRCIA, TAL FERIDA?

Soneto 071

Luís de Camões

 

(Grafia original)

 

Como fizeste, Pórcia, tal ferida?
Foi voluntária, ou foi por inocência?
-Mas foi fazer Amor experiência
se podia sofrer tirar me a vida.

-E com teu próprio sangue te convida
a não pores à vida resistência?
-Ando me acostumando à paciência,
porque o temor a morte não impida.

-Pois porque comes, logo, fogo ardente,
se a ferro te costumas?-Porque ordena
Amor que morra e pene juntamente.

E tens a dor do ferro por pequena?
-Si: que a dor costumada não se sente;
e eu não quero a morte sem a pena.


Poemas e Poesias segunda, 12 de outubro de 2020

SONETO DRAMÁTICO (POEMA DO PORTUGUÊS MANUEL MARIA BARBOSA DU BOCAGE)

SONETO DRAMÁTICO

Bocage

 

Na cena em quadra trágico-invernosa

Zaida se impingiu (fradesco drama!)

Apareceu depois, com sede à fama,

Tragédia mais igual, mais lastimosa:

 

O autor pranteia em frase aparatosa

Esfaqueado arrais, pimpão d'Alfama;

Corno o protagonista, e puta a dama,

O machão é Simeão, e a mula é Rosa:

 

Espicha o rabo (eu tremo ao proferi-lo)

Espicha o rabo ali o herói na rua,

Qual Muratão nos areais do Nilo!

 

Elmiro na tarefa contínua,

Já todos pela escolha, e pelo estilo

Rosnam que a nova peça é obra sua.


Poemas e Poesias domingo, 11 de outubro de 2020

CONSELHOS A MEUS FILHOS - 2 (POEMA DA MINEIRA BÁRBARA HELIODORA)

CONSELHOS A MEUS FILHOS - 2 

Bárbara Heliodora

 

 

VII.

Se é tempo de professar
De taful o quarto voto,
Procurai capote roto,
Pé de banco de um bilhar,
Que seja sábio piloto
Nas regras de calcular.

VIII.

Se vos mandarem chamar
Para ver uma função,
Respondei sempre que não,
Que tendes em que cuidar;
Assim se entende o rifão:
Quem está bem deixa-se estar.

IX.

Deveis-vos acautelar,
Em jogos de paro e topo
Prontos em passar o copo
Nas angolinhas do azar;
Tais as fábulas de Esopo,
Que vós deveis estudar.

X.

Quem fala, escreve no ar,
Sem pôr vírgulas nos pontos,
E pode quem conta os contos,
Mil pontos acrescentar:
Fica um rebanho de tontos
Sem nenhum adivinhar.

XI.

Com Deus e o rei não brincar,
É servir e obedecer,
Amar por muito temer,
Mas temer por muito amar,
Santo temor de ofender
A quem se deve adorar!

XII.

Até aqui pode bastar,
Mais havia o que dizer;
Mas eu tenho que fazer,
Não me posso demorar
E quem sabe discorrer,
Pode o resto adivinhar.


Poemas e Poesias sábado, 10 de outubro de 2020

DECADÊNCIA (POEMA DO CAPIXABA AUGUSTO DOS ANJOS)

DECADÊNCIA 

Augusto dos Anjos

 

 

Iguais ás linhas perpendiculares
Caíram, como cruéis e hórridas hastas,
Nas suas 33 vértebras gastas
Quase todas as pedras tumulares!

A frialdade dos círculos polares,
Em sucessivas atuações nefastas,
Penetrara-lhe os próprios neuroplastas,
Estragara-lhe os centros medulares!

Como quem quebra o objeto mais querido
E começa a apanhar piedosamente
Todas as microscópicas partículas,

Ele hoje vê que, após tudo perdido,
Só lhe restam agora o ultimo dente
E a armação funerária das clavículas!


Poemas e Poesias sexta, 09 de outubro de 2020

A DÉLIA (POEMA DO PORTUGUÊS ALMEIDA GARRETT)

A DÉLIA

Almeida Garrett

 

 

Cuidas tu que a rosa chora,
Que é tamanha a sua dor,
Quando, já passada a aurora,
O Sol, ardente de amor,
Com seus beijos a devora?
- Feche virgíneo pudor
O que inda é botão agora
E amanhã há-de ser flor;
Mas ela é rosa nesta hora,
Rosa no aroma e na cor.

- Para amanhã o prazer
Deixe o que amanhã viver.
Hoje, Délia, é nossa a vida;
Amanhã... o que há-de ser?
A hora de amor perdida
Quem sabe se há-de volver?
Não desperdices, querida,
A duvidar e a sofrer
O que é mal gasto da vida
Quando o não gasta o prazer.


Poemas e Poesias quinta, 08 de outubro de 2020

OROPA, FRANÇA E BAHIA (POEMA DO PERNAMBUCANO ASCENSO FERREIRA)

 

OROPA, FRANÇA E BAHIA

Ascenso Ferreira

OROPA, FRANÇA E BAHIA

       

 

      (Romance)

 
                Para os 3 Manuéis:
                    Manuel Bandeira
                    Manuel de Sousa Barros
                    Manuel Gomes Maranhão
  

Num sobrado arruinado,
tristonho, mal assombrado,
que dava pros fundos da terra.
("Pra ver marujos,
Tirulilluliu!
quando vão pra guerra...")
E dava fundos pro mar.
("Pra ver marujos,
Tiruliluliu!
ao desembarcar").
 
          ...Morava Manuel Furtado
          português apatacado,
          com Maria de Alencar!
 
Maria era uma cafuza,
cheia de grandes feitiços.
Ah! os seus braços roliços!
Ah! os seus peitos maciços!
Faziam Manuel babar...
 
         A vida de Manuel,
         que louco alguém o dizia,
         era vigiar das janelas
         toda a noite e todo o dia,
         as naus que ao longe passavam,
         de "Oropa, França e Bahia"!
 
— Me dá uma nau daquelas,
lhe suplicava Maria.
— Estás idiota, Maria.
Essas naus foram vintena
que eu herdei de minha tia!
por todo o ouro do mundo
eu jamais as trocaria!
 
          Dou-te tudo o que quiseres:
          Dou-te xale de Tonquim!
          Dou-te uma saia bordada!
          Dou-te leques de marfim!
          Queijos da Serra da Estrela,
          perfumes de benjoim...
 
Nada.
A mulata só queria
que Seu Manuel lhe desse
uma nauzinha daquelas,
inda a amais pichititinha,
pra ela ir ver essas terras
de "Oropa, França e Bahia"...
 
           — Ó Maria, hoje nós temos
          vinhos da Quinta do Aguirre,
          umas queijadas de Sintra,
          só pra tu te distraíre
          desse pensamento ruim...
          — Seu Manuel, isso é besteira!
          Eu prefiro macaxeira
          com galinha de oxinxim!
 
"Ó lua que alumiais
esse mundo do meu Deus
alumia a mim também
que ando fora dos meus..."
Cantava Seu Manuel
espantando os males seus.
 
             "Eu sou mulata dengosa,
             linda, faceira, mimosa,
             qual outras brancas não são"...
             Cantava forte Maria,
             pisando fubá de milho,
             lentamente no pilão...
 
Uma noite de luar
que estava mesmo taful,
mais de 400 naus,
surgiram vindas do Sul...
— Ah, Seu Manuel, isto chega...
Danou-se de escada abaixo,
se atirou no mar azul.
 
            — "Onde vais mulhé?"
            — "Vou me daná no carrossé!
            — "Tu não vais, mulhé,
            mulhé, você não vai lá..."
 
Maria atirou-se n'água,
Seu Manuel seguiu atrás...
— Quero a mais pichititinha!
— Raios te partam, Maria!
Essas naus são meus tesouros,
ganhou-as matando mouros
o marido de minha tia!
Vêm dos confins do mundo...
De "Oropa, França e Bahia"!
 
             Nadavam de mar em fora...
             (Manuel atrás de Maria!)
             Passou-se uma hora, outra hora,
             e as naus nenhum atingia...
             Fez-se um silêncio nas águas,
             cadê Manuel e Maria?!
 
De madrugada, na praia,
dois corpos o mar lambia...
Seu Manuel era um "Boi Morto",
Maria, uma "Cotovia"!
 
           E as naus de Manuel Furtado,
           herança de sua tia?
 
— Continuam mar em fora,
navegando noite e dia...
Caminham para "Pasárgada",
para o reino da Poesia!
Herdou-as Manuel Bandeira,
que ante a minha choradeira,
me deu a menor que havia!
 
          — As eternas Naus do Sonho,
          de "Oropa, França e Bahia"...

 


Poemas e Poesias terça, 06 de outubro de 2020

AVE, MUSA INCANDESCENTE (POEMA DO PARAIBANO ARIANO SUASSUNA)

AVE, MUSA INCANDESCENTE

Ariano Suassuna

 

 

Ave, Musa incandescente
do deserto do Sertão!
Forje, no Sol do meu Sangue,
o Trono do meu clarão:
cante as Pedras encantadas
e a Catedral Soterrada,
Castelo deste meu Chão!

Nobres Damas e Senhores
ouçam meu Canto espantoso:
a doida Desaventura
de Sinésio, O Alumioso,
o Cetro e sua centelha
na Bandeira aurivermelha
do meu Sonho perigoso!


Poemas e Poesias segunda, 05 de outubro de 2020

CISMAR (POEMA DO PAULISTA ÁLVARES DE AZEVEDO)

CISMAR

Álvares de Azevedo

 

Fala-me, anjo de luz! és glorioso
À minha vista na janela à noite,
Como divino alado mensageiro
Ao ebrioso olhar dos froixos olhos
Do homem que se ajoelha para vê-lo,
Quando resvala em preguiçosas nuvens
Ou navega no seio do ar da noite.
Romeu

Ai! Quando de noite, sozinha à janela,
Co’a face na mão te vejo ao luar,
Por que, suspirando, tu sonhas donzela?
A noite vai bela,
E a vista desmaia
Ao longe na praia
Do mar!

Por quem essa lágrima orvalha-te os dedos,
Como água da chuva cheiroso jasmim?
Na cisma que anjinho te conta segredos?
Que pálidos medos?
Suave morena,
Acaso tens pena
De mim?

Donzela sombria, na brisa não sentes
A dor que um suspiro em meus lábios tremeu?
E a noite, que inspira no seio dos entes
Os sonhos ardentes,
Não diz-te que a voz
Que fala-te a sós
Sou eu?

Acorda! Não durmas da cisma no véu!
Amemos, vivamos, que amor é sonhar!
Um beijo, donzela! Não ouves? No céu
A brisa gemeu...
As vagas murmuram...
As folhas sussurram:
Amar!


Poemas e Poesias domingo, 04 de outubro de 2020

A SAUDADE (POEMA DO CARIOCA ALVARENGA PEIXOTO)

A SAUDADE

Alvarenta Peixoto

(Grafia original)

 

Não me afflige do potro a viva quina;
Da ferrea maça o golpe não me offende;
Sobre as chammas a mão se não estende;
Não soffro do agulhete a ponta fina.

Grilhão pesado os passos não domina;
Curel arroxo a teste me não fende;
À força a perna ou braço se não rende;
Longa cadêa o collo não me inclina.

Água e pomo faminto não procuro;
Grossa pedra não cansa a humanidade;
O pássaro voraz eu não aturo.

Estes males não sinto; é bem verdade;
Porém sinto outro mal inda mais duro:
— Sinto da esposa e filhos a saudade!


Poemas e Poesias sábado, 03 de outubro de 2020

HÃO DE CHORAR POR ELA OS CINAMOMOS (POEMA DO MINEIRO ALPHONSUS GUIMARAENS)

HÃO DE CHORAR POR ELA OS CINAMOMOS

Alphonsus Guimaraens

 

 

 

Hão de chorar por ela os cinamomos,
Murchando as flores ao tombar do dia.
Dos laranjais hão de cair os pomos,
Lembrando-se daquela que os colhia.


As estrelas dirão: – “Ai! nada somos,
Pois ela se morreu, silente e fria… ”
E pondo os olhos nela como pomos,
Hão de chorar a irmã que lhes sorria.


A lua, que lhe foi mãe carinhosa,
Que a viu nascer e amar, há de envolvê-la
Entre lírios e pétalas de rosa.


Os meus sonhos de amor serão defuntos…
E os arcanjos dirão no azul ao vê-la,
Pensando em mim: – “Por que não vieram juntos?


Poemas e Poesias sexta, 02 de outubro de 2020

A JANELA E O SOL (POEMA DO FLUMINENSE ALBERTO DE OLIVEIRA)

 A JANELA E O SOL

Alberto de Oliveira

 

“Deixa-me entrar, - dizia o sol - suspende
A cortina, soabre-te! Preciso
O íris trêmulo ver que o sonho acende
Em seu sereno virginal sorriso.

Dá-me uma fresta só do paraíso
Vedado, se o ser nele inteiro ofende...
E eu, como o eunuco, estúpido, indeciso,
Ver-lhe-ei o rosto que na sombra esplende.”

E, fechando-se mais, zelosa e firme,
Respondia a janela: “Tem-te, ousado!
Não te deixo passar! Eu, néscia, abrir-me!

E esta que dorme, sol, que não diria
Ao ver-te o olhar por trás do cortinado,
E ao ver-se a um tempo desnudada e fria?!”


Poemas e Poesias quinta, 01 de outubro de 2020

AMOR E MEDO (POEMA DO MINEIRO AFFONSO ROMANO DE SANT,ANNA)

AMOR E MEDO

Affonso Romano de Sant'Anna

 

 

Estou te amando e não percebo,
porque, certo, tenho medo.
Estou te amando, sim, concedo,
mas te amando tanto
que nem a mim mesmo
revelo este segredo.


Poemas e Poesias quarta, 30 de setembro de 2020

CONFEITO (POEMA DA MINEIRA ADÉLIA PRADO)

CONFEITO

Adélia Prado

 

Quero comer bolo de noiva, 

puro açúcar, puro amor carnal 

disfarçado de corações e sininhos: 

um branco, outro cor-de-rosa, 

um branco, outro cor-de-rosa.


Poemas e Poesias terça, 29 de setembro de 2020

CEMITÉRIO ADALGISA (POEMA DA CARIOCA ADALGISA NERY)

CEMITÉRIO ADALGISA

Adalgisa Nery

 

Moram em mim
Fundos de mares, estrelas-d'alva,
Ilhas, esqueletos de animais,
Nuvens que não couberam no céu,
Razões mortas, perdões, condenações,
Gestos de amparo incompleto,
O desejo do meu sexo
E a vontade de atingir a perfeição.
Adolescências cortadas, velhices demoradas,
Os braços de Abel e as pernas de Caim.
Sinto que não moro.
Sou morada pelas coisas como a terra das
                                        [ sepulturas
É habitada pelos corpos.
Moram em mim
Gerações, alegrias em embrião,
Vagos pensamentos de perdão.
Como na terra das sepulturas
Mora em mim o fruto podre,
Que a semente fecunda repetindo a vida
No sereno ritmo da Origem.
Vida e morte,
Terra e céu,
Podridão, germinação,
Destruição e criação.


Poemas e Poesias segunda, 28 de setembro de 2020

A ESPANTOSA ODE A SÃO FRANCISCO DE ASSIS (POEMA DO CARIOCA VINÍCIUS DE MORAES)

A ESPANTOSA ODE A SÃO FRANCISCO DE ASSIS

Vinícius de Moraes

 

1

Meu são Francisco de Assis, Francisco de Assim, poverello, ou como te chame a sabedoria dos povos e dos homens 
Este é Vinicius de Moraes, de quem se podia dizer - o poeta - se jamais alguém o pudesse ser depois de ti. 


2

Este é o impuro, o inconstante, o trágico, o leproso e possivelmente o morto 
Que vem a ti o fiel, o calmo, o humano, o constante. 


3

Este é o que sacrifica a vida pelo prazer da hora, e se desgraça 
Que vem a ti que sacrificaste a vida pela eternidade e pela graça. 


4

Este é o homem da mulher, o homem da carne, o homem da terra 
E que te ama santo da Mulher, santo da Carne, santo da Terra. 


5

Este é o que peca e não se arrepende, o supliciador e o criador do espasmo 
E que te exalta irmão humilde e louco, confidente, e inventor do êxtase. 


6

Este é o mágico do desespero, o inquisidor e o sedutor, o poeta triste 
Que te proclama o rei, entre todos, amante sem mácula. 


7

Meu são Francisco de Assis! acolhe teu amigo e teu criado 
Que partiu para sempre e se perdeu, e nunca mais foi encontrado. 


8

Tenho um mistério a te dizer, mas quem sabe não o ouvirias 
Vendo-me criança - se é que eu fui criança um dia! 


9

Ó dá-me teu sorriso, são Francisco, e me purifica 
E liberta-me da vã palavra de sonho que me impurifica! 


10

Eis que converti meu demônio a mim e meu anjo a mim 
E me sinto demais em mim mesmo e quisera me despedaçar em ti. 


11

Porque me sinto covarde de não poder dormir e precisar fechar a porta 
Ao vento frio ou ao chamado sombrio da pureza morta. 


12

És tu um dom da minha miséria e serias o mesmo 
Se eu fosse como tu mesmo? - e te proclamaria? 


13

E [...] porque amo a miséria em mim que me deposita em ti 
Porque não fosse eu sombra não serias sol nem pensarias em mim. 


14

E [ ... ] porque aceito minha depravação e faço a minha queixa sem piedade 
E de todos tenho piedade menos de mim - e não há salvação para minha piedade 


15

Sou digno como o animal nobre que morre em silêncio e sem lágrimas 
E não tem limbo ou purgatório, céu ou inferno para a sua alma. 


16

Mas sou impuro como a terra que recebe a consumação da carne 
E astuto como o fogo e plástico como a água. 


17

Meu são Francisco, ouve o meu voto e compreende o meu vazio 
E me aquece do frio, e me protege do sonho sombrio. 


18

Tu és a Palavra - a palavra inexistente - a poesia 
Que eu busco sem tréguas, que busco de noite e que busco de dia. 


19

Não creio em Deus mas creio em ti - Deus é minha melancolia 
Tu és minha poesia - ou quando não seja o amor que ela se deseja 


20

Tenho o lar e tenho o mar, e nada tenho 
Tenho a emoção - tenho-a? - nem pranto mais blues. 


21

Na verdade muitas coisas eu tenho, e muita razão de ser feliz 
Se não existisses talvez - mas exististe, São Francisco de Assis! 


22

És a infância não vivida, és a mocidade não merecida 
És tudo de justo feito injusto pela catástrofe da vida. 


23

Ninguém o sabe senão tu - nem mesmo eu sei! nesse momento 
Meu pensamento é tédio mas amanhã pode ser contentamento. 


24

Porque há em mim uma fonte pura de mal que me embriaga 
De bem, mas que subitamente me estanca o que me falta. 


25

É a mulher, essa que me suporta e que me acaricia 
E a quem acaricio, e a quem eu rio e que se ri. 


26

Não fosse ela, e eu estaria como Jó te mentindo, 
Porque o poeta é a semente da mentira se, no desespero, só. 


27

Dou-te meu voto além da mulher! é a criança que te fala 
Quando subitamente se conheceu menino no grande silêncio de uma sala. 


28

Quando brincando com o próprio sexo o surpreendeu sensível 
E o viu inteligente e emocionado e não compreendeu. 


29

E que criou sozinho a primeira forma nua para o prazer contemplativo E que se deu a ela desvairado do mistério de se saber vivo. 


30

E que a transportou na memória em amor e que foi traído 
Pelo toque de outra mão menos pura e mais desmerecida. 


31

E que foi seviciado antes do sêmen pela desventura 
Feito mulher, e a perdoou, e a amou, e a fez sua criatura. 


32

E que foi iniciado nos prazeres da carne como o inocente aprendiz 
A quem a mulher diz - Faz! e ele faz, tal como eu fiz. 


33

Antes do sêmen! e não morri - e bela fiz minha criatura    
Eis por que não há salvação e eu amo a minha degradação e impostura. 


34

Porque eu sou o sedutor, se seduzido, e o erótico, se seviciado 
E o amante, se querido, e o perdido, se privilegiado. 


35

Porque fazemos um - eu e a mulher - e não há dois arrependimentos 
Para um só corpo - nem duas salvações para um só sentimento. 


36

E se alguém não vem comigo eu não quero ir, porque não sou sozinho 
E se eu fosse sozinho não estava nesse momento clamando de ti 


37

Meu são Francisco de Assis! ouve tu ao menos a minha inefável miséria 
Sem perdão e sem consolação e sem fim nos caminhos da Terra. 


38

Ouve o apelo mais íntimo, o que não está nas minhas palavras 
E que está no meu ser infeliz e no ser infeliz que eu crio à minha passagem. 


39

O santo, o herói e o poeta - três penitências do mundo 
Tu, santo, herói e poeta - uma penitência em mim. 


40

Nunca te verei no céu, nem nunca me verás no inferno 
Mas hei de te escutar no estio, e tu me escutarás no inverno. 


41

Não me verás no céu porque não há paixão para a serenidade 
Nem no inferno porque não há castigo para a fatalidade. 


42

Mas eu te escutarei aqui na Terra, entre as grandes árvores 
A cabeça no seio da amiga, e a quem eu falo como ao pássaro. 


43

Um dia deixarei a cidade da minha angústia e sua torre 
E irei a Assis entre colinas me abandonar à tua saudade. 


44

E dá-me nesse dia de chorar todas as lágrimas contidas 
E de me perder em mim o pranto e de me ajoelhar no teu sepulcro. 


45

Ó grande santo louco, meu irmão, taumaturgo em minha alma 
Taumaturgo - palavra que contém silêncio e que me acalma! 


46

Just now I have been in a [ ... ] party in the Magdalen's cloister 
And there was an Armenian [ ... ] all the others. 


47

Good inocent peopte [ ... ] some liquor in their rooms 
But was a bloody phantom between them, so help me God! 


48

Eu sou o conhecimento perfeito das coisas e dos homens 
Linchai-me! eu sei todos os segredos, e eu me abandono. 


49

Nunca criatura criada foi tão pagã como eu, so help me God! 
Arrastando meu ser à execração e à contemplação quieta da morte. 


50

Em vão te direi - ou não? - porque não vens beber meu vinho 
Na minha mesa, e poderíamos falar com mais carinho. 


51

São Francisco de Assis! meu irmão, meu único inimigo 
No céu, eu te maldigo, eu te bendigo. Eu me persigno! 


52

Tive uma jetatura: a mulher; uma aventura: a poesia 
Uma desventura: a delicadeza. Sou delicado, não peço, mendigo! 


53

Mendigo: mendigo o pão de meus pais, o amor de meus amigos 
Mas só a mulher me persegue e só à mulher eu persigo. 


54

Santo! tenho gana de te dizer: foge de mim! evita o meu contato escuro 
Porque eu sou puro na maldade e puro na sinceridade e impuro. 


55

Quatro livros escrevi - e sou tão moço! e nada compreendo de mim 
Senão que sou cruel com a mulher, e que minha angústia não tem fim. 


56

Fui buscado, também. Buscou-me a sociedade, o anfitrião 
E eu fui mendigo em meu salão e me desprezei e disse não. 


57

E me mandaram a Oxford, e eu disse não, e vi jovens viscondes 
Que temeram meu pudor, e eu disse não, e me persigno! 


58

Tudo é magia! Lembras-te? o silêncio fantástico das noites 
E a alma bêbada de emoção? e nenhum pouso. 


59

Ah, que a vida não tem solução. Muitos o disseram em vão 
E o direi em vão, e morrerei, e os que me virem, sorrirão.


Poemas e Poesias domingo, 27 de setembro de 2020

CANTIGAS PRAIANAS (POEMA DO PAULISTA VICENTE DE CARVALHO)

CANTIGAS PRAIANAS

Vicente de Carvalho

 

Ouves acaso quando entardece
Vago murmúrio que vem do mar,
Vago murmúrio que mais parece
Voz de uma prece
Morrendo no ar?

Beijando a areia, batendo as fráguas,
Choram as ondas; choram em vão:
O inútil choro das tristes águas
Enche de mágoas
A solidão...

Duvidas que haja clamor no mundo
Mais vão, mais triste que esse clamor?
Ouve que vozes de moribundo
Sobem do fundo
Do meu amor.


Poemas e Poesias sábado, 26 de setembro de 2020

CANTIGA PARA DJANIRA (POEMA DO MINEIRO PAULO MENDES CAMPOS)

CANTIGA PARA DJANIRA

Paulo Mendes Campos

 

O vento é o aprendiz das horas lentas,
traz suas invisíveis ferramentas,
suas lixas, seus pentes finos,
cinzela seus cabelos pequeninos,
onde não cabem gigantes contrafeitos,
e, sem emendar jamais os seus defeitos,
já rosna descontente e guaia
de aflição e dispara à outra praia,
onde talvez enfim possa assentar
seu momento de areia — e descansar.


Poemas e Poesias sexta, 25 de setembro de 2020

VAZANTE (POEMA DO CEARENSE QUINTINO CUNHA)

VAZANTE

Quintino Cunha

 

O mês de julho mostra um tempo novo

Em tudo: à margem pousa alegre bando

De borboletas, cor de gema de ovo,

O declive das águas anunciando.

 

Da floresta central, de lá de ignotas

Matas, voltam, da imensa arribação,

Os maguaris, as garças e as gaivotas,

- A beleza das praias no verão!

 

E o uirapajé cantando, e a saracura

Cantando, em fim o plácido barulho

Das aves todas, dá-nos a envoltura

Dessas manhãs esplêndidas de julho.

 

A própria vida mais amor exalta,

Nesses dias magníficos, sem-par,

Quando mais se ouve o canto da pernalta,

No alegre anseio de nidificar.


Poemas e Poesias quinta, 24 de setembro de 2020

LUÍS DE CAMÕES, POEMA DE PATATIVA DO ASSARÉ - DECLAMAÇÃO DE LUCILENE SIMÕES


Poemas e Poesias quarta, 23 de setembro de 2020

INVICTUS (POEMA DO CEARENSE PADRE ANTÔNIO TOMÁS)

INVICTUS

Padre Antônio Tomás

 

Mensageiros do Arcanjo revoltoso,
Homens descridos — vão em fero bando
Há dezenove séculos tentando

Roubar-te, ó Cristo, o cetro glorioso.


Mas sempre forte e sempre poderoso,
Tu vais a todos eles suplantando,
E com o teu suave jugo, doce e brando,

Curva-se o mundo humilde e respeitoso.

Tens apesar da guerra a ti movida
Por essas almas fracas e pequenas,
A terra toda ao teu poder jungida.

E ainda hoje a um teu gesto apenas
Voltam de novo os Lázaros à vida
E vão beijar-te os pés as Madalenas.


Poemas e Poesias terça, 22 de setembro de 2020

EM UMA TARDE DE OUTONO (POEMA DO CARIOCA OLAVO BILAC)

EM UMA TARDE DE OUTONO

Olavo Bilac

 

Outono. Em frente ao mar. Escancaro as janelas
Sobre o jardim calado, e as águas miro, absorto.
Outono... Rodopiando, as folhas amarelas
Rolam, caem. Viuvez, velhice, desconforto...

Por que, belo navio, ao clarão das estrelas,
Visitaste este mar inabitado e morto,
Se logo, ao vir do vento, abriste ao vento as velas,
Se logo, ao vir da luz, abandonaste o porto?

A água cantou. Rodeava, aos beijos, os teus flancos
A espuma, desmanchada em riso e flocos brancos...
Mas chegaste com a noite, e fugiste com o sol!

E eu olho o céu deserto, e vejo o oceano triste,
E contemplo o lugar por onde te sumiste,
Banhado no clarão nascente do arrebol...


Poemas e Poesias segunda, 21 de setembro de 2020

FASCINAÇÃO - 1 (POEMA DO PAULISTA MENOTTI DEL PICCHIA)

FASCINAÇÃO - 1

Menotti Del Picchia 

 

Tudo ama!
As estrelas no azul, os insetos na lama,
a luz, a treva, o céu, a terra, tudo,
num tumultuoso amor, num amor quieto e mudo
tudo ama! tudo ama!

Há amor na alucinada
fascinação do abismo,
amor paradoxal humano e forte
que se traduz nas febres do sadismo,
nessa atração perpétua para o Nada,
nessa corrida doida para a Morte.

Por isso quando as lianas
em lascívias florais cercam de abraços
o tronco hirsuto e grosso,
têm, no amplexo mortal, crueldades humanas.
Há no erótico ardor de enlaçá-lo, abraçá-lo,
a assassina violência de dois braços
crispados num pescoço,
atenazando-o para estrangulá-lo!

É que o amor quer a morte. Num momento
resume a vida, os loucos entusiasmos
dos supremos espasmos...
Nesse furor que o invade,
tem a volúpia da ferocidade,
tem o delírio do aniquilamento!

É por isso que sempre vês, por tudo,
uma luta de morte, um desespero mudo:
a insídia da raiz que mina a terra e esgota,
o caule que ergue o fuste, a rama, em sobressalto,
agitando pelo ar a própria dor ignota
no torturante amor do mais puro e mais alto!


Poemas e Poesias domingo, 20 de setembro de 2020

DEZESSETE DE NOVEMBRO (POEMA DO PERNAMBUCANO MEDEIROS E ALBUQUERQUE)

DEZESSETE DE NOVEMBRO

Medeiros e Albuquerque

 

(Por ocasião da partida de D. Pedro II)]

Pobre rei a morrer, da velha raça
dos Braganças perjuros e assassinos,
hoje que o sopro frio da desgraça
leva os teus dias, leva os teus destinos
do duro exílio para o longe abrigo,
hoje, tu que mataste Pedro Ivo,
Nunes Machado e tantos mais valentes,
hoje, a bordo da nau, onde, cativo,
segues, deixando o trono hoje tu sentes
que enfim soou a hora do castigo!

Pobre rei a morrer, - de Sul a Norte,
a valorosa espada de Caxias
com quanta dor e quanta nobre morte
da nossa história não encheu os dias,
de sangue as suas páginas banhando!
Digam-no dos Farrapos as legendas!
Digam-no os bravos de 48!
Falem ainda as almas estupendas
de 17 e 24, afoito
grupo de heróis, que sucumbiu lutando.

Alma podre de rei, que, não podendo
ganhar amigos pelo teu heroísmo,
as outras almas ias corrompendo
pela baixeza, pelo servilismo,
por tudo quanto a consciência abate,
- alma podre de rei, procura em volta
do teu ruído trono desabado
que amigo te ficou, onde a revolta
possa encontrar indômito soldado
que lhe venha por ti dar-nos combate.

De tanta infâmia e tanta covardia -
só covardia e infâmia, eis o que resta!
A matilha, a teu mando, que investia
contra nós, - nesta hora tão funesta,
volta-se contra teu poder passado!
Rei, não se ilude a consciência humana...
Quem traidores buscou - acha traidores!
Os vendidos da fé republicana,
os desertores de ontem - desertores,
hoje voltam do teu pra o nosso lado!

Vai! Que as ondas te levem mansamente...
Por esse mar, que vais singrar agora,
- arrancado a um cadáver ainda quente -
anos há que partiu, oceano a fora,
o coração do heróico Ratcliff.
A mesma vaga que, ao levá-lo, entoava
do livre mar eterno o livre canto,
como o não redirá, sublime e brava,
ao ver que passa no seu largo manto,
da monarquia o lutuoso esquife!


Poemas e Poesias sábado, 19 de setembro de 2020

DA OBSERVAÇÃO (POEMA DO GAÚCHO MÁRIO QUINTANA)

DA OBSERVAÇÃO

Mário Quintana

 

Não te irrites, por mais que te fizerem
Estuda, a frio, o coração alheio.
Farás, assim, do mal que eles te querem,
Teu mais amável e sutil recreio.


Poemas e Poesias sexta, 18 de setembro de 2020

ELA (POEMA DA MARANHENSE MARIA FIRMINA DOS REIS)

ELA

Maria Firmina dos Reis

 

(A pedido)

 

Ela! Quanto é bela, essa donzela,

A quem tenho rendido o coração!

A quem votei minh’alma, a quem meu peito

Num êxtase de amor vive sujeito…

Seu nome!… não ─ meus lábios não dirão!

Ela! minha estrela, viva e bela,

Que ameiga meu sofrer, minha aflição;

Que transmuda meu pranto em mago riso.

Que da terra me eleva ao paraíso…

Seu nome!… Oh! meus lábios não dirão!

Ela! virgem bela, tão singela

Como os anjos de Deus. Ela… oh! não,

Jamais o saberá na terra alguém,

De meus lábios, o nome que ela tem…

Que esse nome meus lábios não dirão.


Poemas e Poesias quinta, 17 de setembro de 2020

BALÕEZINHOS (POEMA DO PERNAMBUCANO MANUEL BANDEIRA)

BALÕEZINHOS

Manuel Bandeira

 

Na feira do arrabaldezinho
Um homem loquaz apregoa balõezinhos de cor:
— "O melhor divertimento para as crianças!"
Em redor dele há um ajuntamento de menininhos pobres,
Fitando com olhos muito redondos os grandes balõezinhos muito redondos.

No entanto a feira burburinha.
Vão chegando as burguesinhas pobres,
E as criadas das burguesinhas ricas,
E mulheres do povo, e as lavadeiras da redondeza.

Nas bancas de peixe,
Nas barraquinhas de cereais,
Junto às cestas de hortaliças
O tostão é regateado com acrimônia.

Os meninos pobres não vêem as ervilhas tenras,
Os tomatinhos vermelhos,
Nem as frutas,
Nem nada.

Sente-se bem que para eles ali na feira os balõezinhos de cor
são a única mercadoria útil e verdadeiramente indispensável.

O vendedor infatigável apregoa:
— "O melhor divertimento para as crianças!"
E em torno do homem loquaz os menininhos pobres fazem
um círculo inamovível de desejo e espanto.


Poemas e Poesias quarta, 16 de setembro de 2020

EU NÃO VOU PERTURBAR A PAZ (POEMA DO MATO-GROSSENSE MANOEL DE BARROS)

EU NÃO VOU PERTURBAR A PAZ

Manoel de Barros

 

De tarde um homem tem esperanças.
Está sozinho, possui um banco.
De tarde um homem sorri.
Se eu me sentasse a seu lado
Saberia de seus mistérios
Ouviria até sua respiração leve.
Se eu me sentasse a seu lado
Descobriria o sinistro
Ou doce alento de vida
Que move suas pernas e braços.

Mas, ah! eu não vou perturbar a paz que ele depôs na
praça, quieto.


Poemas e Poesias terça, 15 de setembro de 2020

RUÍNAS (POEMA DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

RUÍNAS

Machado de Assis

 

 

Cobrem plantas sem flor crestados muros;
Range a porta anciã; o chão de pedra
Gemer parece aos pés do inquieto vate.
Ruína é tudo: a casa, a escada, o horto,
Sítios caros da infância.
                              Austera moça
Junto ao velho portão o vate aguarda;
          Pendem-lhe as tranças soltas
          Por sobre as roxas vestes.
Risos não tem, e em seu magoado gesto
Transluz não sei que dor oculta aos olhos;
— Dor que à face não vem, — medrosa e casta,
Íntima e funda; — e dos cerrados cílios
                     Se uma discreta muda
Lágrima cai, não murcha a flor do rosto;
Melancolia tácita e serena,
Que os ecos não acorda em seus queixumes,
Respira aquele rosto. A mão lhe estende
O abatido poeta. Ei-los percorrem
Com tardo passo os relembrados sítios,
Ermos depois que a mão da fria morte
Tantas almas colhera. Desmaiavam,
                     Nos serros do poente,
                     As rosas do crepúsculo.
“Quem és? pergunta o vate; o sol que foge
No teu lânguido olhar um raio deixa;
— Raio quebrado e frio; — o vento agita
Tímido e frouxo as tuas longas tranças.
Conhecem-te estas pedras; das ruínas
Alma errante pareces condenada
A contemplar teus insepultos ossos.
Conhecem-te estas árvores. E eu mesmo
Sinto não sei que vaga e amortecida
                     Lembrança de teu rosto.”

                     Desceu de todo a noite,
Pelo espaço arrastando o manto escuro
Que a loura Vésper nos seus ombros castos,
Como um diamante, prende. Longas horas
Silenciosas correram. No outro dia,
Quando as vermelhas rosas do oriente
Ao já próximo sol a estrada ornavam
Das ruínas saíam lentamente
                     Duas pálidas sombras:
                     O poeta e a saudade.

 

Poemas e Poesias segunda, 14 de setembro de 2020

DESESTRESSEIO (POEMA DO PERNAMBUCANO LUÍS TURIBA)

DESESTRESSEIO

Luís Turiba

 

Stress é um aperreio
Nasce nos pés
Vem sem freio
Cresce no bigo
Corre nos veio
Inté chegar
No último fio
Dos penteio

Para domá-lo
Pare! Pense!
Puxe os arreio
Vá ao esvazeio!

Seio ou não seio?
Tudo é uma questão
De filosofeio


Poemas e Poesias domingo, 13 de setembro de 2020

CARTA DO ANTI-SANTO (POEMA DO MARANHENSE JOSE SARNEY)

CARTA DO ANTI-SANTO JOSÉ AOS SEUS TRISTES

José Sarney

 

 


EU, de nome José,
rasguei os olhos da vida
em cinza manhã de abril.
Chorei e o campo chovia
onde a cidade pedia
tempos, clemência e amor.
BENDITO sejais chão Pinheiro
com o canto dos bois
e os patos selvagens
que deixam as nuvens
e os ventos gigantes
que lhe guiaram as asas
cruzando oceanos
e pousaram
à beira dos Defuntos
onde sacodem a viagem
e fazem ninhos
na folha das plantas aquáticas
que flutuam como anjos deitados
na mansidão dos lagos.

IRMÃOS:
NÃO me julgueis pelo abandono dessa sombra
que prometeu entregar-me o corpo
de pelúcias de carne para que eu o amasse
com a força de todas as tempestades
e eu nunca o amei.

NÃO me julgueis por haver
começado o meu caminho
naquela canoa de toldos
e ramos que cantavam,
"bendito é o santo nome".

EU fui ferido pelos vampiros gigantes
que esmagaram a sunga de chita colegial
feita de flores pequenas e alças de rendas
onde ficou sepultado para sempre
o seu sexo pequenino
e o meu primeiro olhar
que eu carregava nas mãos
como o cálice
daquele vinho
do corpo de Deus que eu não bebi
para embriagar-me
na fome de amar a pronta carne,
o pão, o fruto, a vida e
os peixes que habitavam os lagos desse campo
que me abriu os olhos numa manhã de abril.

IRMÃOS:
NÃO me julgueis pelo que fui
e jamais fui e sempre serei,
pois de não ser vou sendo
esta noite que não teve pôr de sol.

EU juro que a cadela que latia
junto de tuas mãos e eu dizia que era raiva
devia ter morrido
para que hoje eu não a lembrasse
para matar o meu ódio e ressuscitar o meu nojo
de pensar que eu fui capaz de amar
e os ventos da minha vida
não têm mais velas a empurrar
nem barcos para sair do Rio Pericumã e chegar
ao mar alto da Ponta de Itacolomi
e ali afundar
como afundaram
nas pedras eternas de moluscos
tantas navegações e tantos monstros.

IRMÃOS:
Eu habitei a Rua da Madre de Deus
onde os teares funcionavam dia e noite, no número 127.
Dona Sérgia! eu te beijo cerzideira
que me carregou de amor quando os outros me cuspiam
e as estátuas de porcelana branca que vieram de Portugal
guardavam vigilantes as cumeeiras largas do casario da Fábrica
onde batiam algodão branco e doce
da velha indústria Santa Amélia
e as operárias furtavam
os casulos
para higiene do ciclo menstrual
naquele mundo de louças
fusos, caldeiras e fardos.

A Fonte das Pedras
que de pedras tinha a água que escorria como sangue
das carrancas que jamais aceitaram o suor dos escravos
que Dona Ana Jansen fazia atirar nos poços de lanças
para serem espetados e se transformarem em fantasmas que
enchiam de gemidos todos os becos desta cidade que
nasceu para ser possuída em coitos de agonia e pecado
e em virgindades com cheiro de alfazema
entre o amor e as picadas de arraia.

IRMÃOS:
NÃO me julgueis pelo bonde de minha infância que matei
porque eu o amava e o matei,
como se não mata o amor, mas
pelo indesejo da morte.

ELE não corre e foram minhas mãos
que o trucidaram e trucidaram com ele
as moças todas que estavam na janela
e eu desejava casar para fazer filhos que
de novo pegassem o bonde
e fossem até o fim dos caminhos
e de novo fizessem outros filhos e outros mais
para que o bonde fosse o trilho eterno
e não o fim do filho.

..............................................

IRMÃOS:
NÃO me julguei por não haver fugido
com a trapezista do circo mambembe,
com que todos os meninos
das cidades de cavalos e cabeças-de-cuia
pensam fugir para viver em
acrobacias e picadeiros.
Eu a reencontrei em Brooklin, num janeiro de neve
nessa cidade de Nova Iorque que eu também amei
como se ama a prostituta pintada
que nos acena com uma noite de orgia.

O táxi amarelo parou. De repente ao meu lado
a trapezista que eu tinha amado
e ali repousava de sandálias e tranças.
Ao meu espanto apenas disse:
José!
De repente o mundo voltou ao princípio e eu senti
que os passarinhos podem cantar em Manhatan como
na mangueira velha do quintal da casa do velho José Costa,
meu avô,
que me disse um dia:
Guarda a tua alma e o teu corpo em vinha-dalho,
porque a vida é feita de postas azedas
em que os figos e as melancias não têm nem gosto nem cor.

IRMÃOS:
EU, José,
vos digo que a vida é um bando de itãs
que gritam histéricas
na beira do lago de Viana à espera
da terra parar de repente
e de repente a canarana ter flores eternas
as mangueiras terem galhos de meia légua e
debaixo de sua sombra
os índios pedirem amor com os anjos,
plantando rosas de capim de marreca
e o homem Senhor do destino
possa descansar os seus lábios vermelhos
nos seios das deusas jovens,
adormecidas nas aguadas de ventos,
novilhas de todos os mundos.

IRMÃOS:
PERDOAI-ME de dizer a Deus
que ele não pode pisar meus caminhos
com os pés de cardos
que romperam de sangue a coroa fria e sem glória
desses dias que ele me deu e eu esmaguei.

IRMÃOS:
perdoai-me.
o sonho da morte é uma nuvem
que não cobre as eternas noites da vida.


Poemas e Poesias sábado, 12 de setembro de 2020

INVENÇÕES DE ORFEU (POEMA DO ALAGOANO JORGE DE LIMA)

INVENÇÕES DE ORFEU

Jorge de Lima

 

CANTO III

POEMAS RELATIVOS

I

Caída a noite
o mar se esvai,
aquele monte
desaba e cai
silentemente.

Bronzes diluídos
já não são vozes,
seres na estrada
nem são fantasmas,
aves nos ramos
inexistentes;
tranças noturnas
mais que impalpáveis,
gatos nem gatos,
nem os pés no ar,
nem os silêncios.

O sono está.
E um homem dorme.

II

Queres ler o que
tão só se entrelê
e o resto em ti está?
Flor no ar sem umbela
nem tua lapela;
flor que sem nós há.

Subitamente olhas:
nem lês nem desfolhas;
folha, flor, tiveste-as.

E nem as tocaste:
folha e flor. Tu - haste,
elas reais, mas réstias.

III

qualquer voz alou-se
muito desejada.
Branco fosse o espaço
e ela ardente cor.

Quis o espaço a voz
a voz veio e ampliou-o.

Mas se não houvesse
propriamente voz...

Vamos nós supô-los:
dois sem seus sentidos.

Desejemos mesmo
dois incompreensíveis.

Bom nos ecoarmos
na voz recebida.

E o espaço esvaziado
povoá-lo de vez.

Amá-los tão sem
amada presença,
só com o coração
sem correspondência,
só com a vocação
do verso feliz.

IV

Numas noites chegamos à janela,
e as mandíbulas do ar tanto nos roem,
que os leitos rotos logo deliqüescem
com os nossos corpos complacentemente.

Certos dias olhamos o sol claro;
e a boca hiante das cores nos devora
carnes e sangues, poeiras de costelas,
que ficamos inúteis, sem matéria.

Essas bocas nos sugam noite e dia,
vigiando dia e noite nossas vidas
um minuto no espaço, menos que ai
de chumbo soluçado nos silêncios,
ou cal de fome longa, revelada,
na noite igual ao dia, de tão gêmeos.

V

Agora o sem senso
sorriso nos ares,
minha alma perdida,
os vales lá embaixo
de minhas lonjuras
de não existido,
parado nos antes,
nem sei de pecados,
nem sei de mim mesmo,
eu mesmo não sou
nem nada me vê;
ausentes palavras
não soam no vácuo
dos antes das coisas,
das coisas sem nexo,
nem fluidos. Só o Verbo
chorando por mim.

VI

Agora, escutai-me
que eu falo de mim;
ouvi que sou eu,
sou eu, eu em mim;
tocai esses cravos
já feitos pra mim,
suores de sangue,
pressuados sem poros
verônica herdada.
sem face do ser.

Embora; escutai-me,
que eu falo com a voz
inata que diz
que a voz não é essa
que fala por mim,
talvez minha fala
saída de ti.

VII

Alegria achareis neste poema
como poema ilícito, como um
corpo casual ou vão, como a memória
dura e acídula, como um homem se
conhece respirando, ou como quando
se entristece sem causa ou se doente,
ou se lavando sempre ou comparando-se
às dimensões das coisas relativas;
ou como sente os ombros de seu ser,
transmitidos e opacos, e os avós
responsabilizando-se presentes.

São alegrias rápidas. Lugares,
reencontrados países, becos, passos
sob as chuvas que não vos molharão.

VIII

Se falta alguém nesses versos
pele vento interminável,
pelas arenas de estátuas,
sucedam-lhe os cegos olhos
sacudidos pelos medos,
mãos de chuvas lhe inteiricem
o corpo com algas remissas
e com matérias tranqüilas
tão soturna como os poços,
exasperados invernos,
ombros de escova comida,
as asas secas caídas,
ante seus netos calados;
e incorporem-se a esse alvitre
esse sabor de cortiça,
essas esponjas morridas,
essas marés estanhadas,
essas escunas de espáduas
estritamente fechadas
como casas de abandono,
restringem-se os conciliábulos,
certos sigilos de pez,
certas coisas enlutadas,
refúgios, dramas ocultos,
pois as rosas são de trapos
e os fios menos que teias,
menos que finos agora,
e as camisas sem os pêlos
enterrados nas ilhargas,
vestem enganos e punhos
e crimes em vez de adegas,
mas tudo em vão, mesmo as plumas,
mesmo os ausentes e as vozes
aderidas a fragmentos
aí moram degredadas,
listrando as grades, de faces
que não conhecem espelhos

IX

Numa hora perdida cantos doeram. Os desejos
E flores despenteadas, flores largas e a barbárie
e inconfidentes quase abominadas dos corpos.
por oculta paixão, se intumesceram. E a relatividade
do espírito
Lírios eram pilares de cristal sob o cerco
subindo para as aves; então dardos da matéria.
desceram sobre os mais amados colos
cantando amor com seus sentimentos.

Canção melhor. Mais consentimentos puros olhos. Eu
sei de cor os rebanhos, e olho o mundo.
Tudo contém pequenas doces máscaras.
Mas da selva selvagem desce o pranto
dos que mastigam suas próprias fomes,
sem saliva de pão, e o gosto ausente.

Ninguém consegue assim amar os lírios.
E esse amor é amaríssimo e adstringente
com a memória das dores engolidas.

X

Vós não viveis sozinhos
os outros vos invadem
felizes convivências
agregações incômodas
enfim ambientalismos,
e tudo subsistências
e mais comunidades;
e tantas ventanias
acotovelamentos,
desgastes de antemão,
acréscimos depois,
depois substituições,
a massa vos tragando,
as coisas vos bisando;
os hábitos, os vícios,
as moças embutidas
mudando vossas cartas;
sereis administrados
no sono e nos pecados,
vós mapas e diagramas
com várias delinqüências,
e insanidades várias,
dosando o vosso espaço,
pesando o vosso pão
de tempos racionados;
e não tereis vivido
e não tereis amado,
porém sereis morrido.

XI

Éreis vós Tiago, Diogo, Jaques, Jaime?
Clodoveu ou Clodovigo?
Éreis vós por acaso eles?
Éreis vós aqueles nomes,
estes, e os demais já mortos,
os mortos tão renovados
nós mesmos sempre chamados
Lútero, Lotário, otário,
sim otário tão singelo,
tão puro de todo o mal,
relativo, universal.

Éreis vós Tiago, Diogo, Jaques, Jaime?
Dizei-me se acaso vós
éreis eles ou voz sou
de algum avo tão otário,
tão eu mesmo como voz,
como poema de outros vários.

XII

O simples ar
de uma só corda
em curta raia,
mão de menino,
punhado escasso,
ar perfumado,
sem o alvoroço
dos vendavais;
anjo acolhido
em róseo céu
abrigo instante,
pranto lavado,
chorar em ti
de arrependido,
subir teus vales,
amar teu pólen,
nunca escapar-me
de tuas pétalas
cair com elas.

XIII

Uma janela aberta
e um simples rosto hirto,
e que provavelmente
nela se debruçou;
e nesse gesto puro
do rosto na janela
estava todo o poema
que ninguém escutou;
só a janela aberta
e o espaço dentro dela
que o tempo atravessou.

XIV

O contro era um dia,
um dia futuro,
e dentro do dia
incluído o conforme,
e dentro o que foi
porque fora isso
se tal não se dera,
se o mundo parasse
e o espaço se excluíCANTO III

POEMAS RELATIVOS

I

Caída a noite
o mar se esvai,
aquele monte
desaba e cai
silentemente.

Bronzes diluídos
já não são vozes,
seres na estrada
nem são fantasmas,
aves nos ramos
inexistentes;
tranças noturnas
mais que impalpáveis,
gatos nem gatos,
nem os pés no ar,
nem os silêncios.

O sono está.
E um homem dorme.

II

Queres ler o que
tão só se entrelê
e o resto em ti está?
Flor no ar sem umbela
nem tua lapela;
flor que sem nós há.

Subitamente olhas:
nem lês nem desfolhas;
folha, flor, tiveste-as.

E nem as tocaste:
folha e flor. Tu - haste,
elas reais, mas réstias.

III

qualquer voz alou-se
muito desejada.
Branco fosse o espaço
e ela ardente cor.

Quis o espaço a voz
a voz veio e ampliou-o.

Mas se não houvesse
propriamente voz...

Vamos nós supô-los:
dois sem seus sentidos.

Desejemos mesmo
dois incompreensíveis.

Bom nos ecoarmos
na voz recebida.

E o espaço esvaziado
povoá-lo de vez.

Amá-los tão sem
amada presença,
só com o coração
sem correspondência,
só com a vocação
do verso feliz.

IV

Numas noites chegamos à janela,
e as mandíbulas do ar tanto nos roem,
que os leitos rotos logo deliqüescem
com os nossos corpos complacentemente.

Certos dias olhamos o sol claro;
e a boca hiante das cores nos devora
carnes e sangues, poeiras de costelas,
que ficamos inúteis, sem matéria.

Essas bocas nos sugam noite e dia,
vigiando dia e noite nossas vidas
um minuto no espaço, menos que ai
de chumbo soluçado nos silêncios,
ou cal de fome longa, revelada,
na noite igual ao dia, de tão gêmeos.

V

Agora o sem senso
sorriso nos ares,
minha alma perdida,
os vales lá embaixo
de minhas lonjuras
de não existido,
parado nos antes,
nem sei de pecados,
nem sei de mim mesmo,
eu mesmo não sou
nem nada me vê;
ausentes palavras
não soam no vácuo
dos antes das coisas,
das coisas sem nexo,
nem fluidos. Só o Verbo
chorando por mim.

VI

Agora, escutai-me
que eu falo de mim;
ouvi que sou eu,
sou eu, eu em mim;
tocai esses cravos
já feitos pra mim,
suores de sangue,
pressuados sem poros
verônica herdada.
sem face do ser.

Embora; escutai-me,
que eu falo com a voz
inata que diz
que a voz não é essa
que fala por mim,
talvez minha fala
saída de ti.

VII

Alegria achareis neste poema
como poema ilícito, como um
corpo casual ou vão, como a memória
dura e acídula, como um homem se
conhece respirando, ou como quando
se entristece sem causa ou se doente,
ou se lavando sempre ou comparando-se
às dimensões das coisas relativas;
ou como sente os ombros de seu ser,
transmitidos e opacos, e os avós
responsabilizando-se presentes.

São alegrias rápidas. Lugares,
reencontrados países, becos, passos
sob as chuvas que não vos molharão.

VIII

Se falta alguém nesses versos
pele vento interminável,
pelas arenas de estátuas,
sucedam-lhe os cegos olhos
sacudidos pelos medos,
mãos de chuvas lhe inteiricem
o corpo com algas remissas
e com matérias tranqüilas
tão soturna como os poços,
exasperados invernos,
ombros de escova comida,
as asas secas caídas,
ante seus netos calados;
e incorporem-se a esse alvitre
esse sabor de cortiça,
essas esponjas morridas,
essas marés estanhadas,
essas escunas de espáduas
estritamente fechadas
como casas de abandono,
restringem-se os conciliábulos,
certos sigilos de pez,
certas coisas enlutadas,
refúgios, dramas ocultos,
pois as rosas são de trapos
e os fios menos que teias,
menos que finos agora,
e as camisas sem os pêlos
enterrados nas ilhargas,
vestem enganos e punhos
e crimes em vez de adegas,
mas tudo em vão, mesmo as plumas,
mesmo os ausentes e as vozes
aderidas a fragmentos
aí moram degredadas,
listrando as grades, de faces
que não conhecem espelhos

IX

Numa hora perdida cantos doeram. Os desejos
E flores despenteadas, flores largas e a barbárie
e inconfidentes quase abominadas dos corpos.
por oculta paixão, se intumesceram. E a relatividade
do espírito
Lírios eram pilares de cristal sob o cerco
subindo para as aves; então dardos da matéria.
desceram sobre os mais amados colos
cantando amor com seus sentimentos.

Canção melhor. Mais consentimentos puros olhos. Eu
sei de cor os rebanhos, e olho o mundo.
Tudo contém pequenas doces máscaras.
Mas da selva selvagem desce o pranto
dos que mastigam suas próprias fomes,
sem saliva de pão, e o gosto ausente.

Ninguém consegue assim amar os lírios.
E esse amor é amaríssimo e adstringente
com a memória das dores engolidas.

X

Vós não viveis sozinhos
os outros vos invadem
felizes convivências
agregações incômodas
enfim ambientalismos,
e tudo subsistências
e mais comunidades;
e tantas ventanias
acotovelamentos,
desgastes de antemão,
acréscimos depois,
depois substituições,
a massa vos tragando,
as coisas vos bisando;
os hábitos, os vícios,
as moças embutidas
mudando vossas cartas;
sereis administrados
no sono e nos pecados,
vós mapas e diagramas
com várias delinqüências,
e insanidades várias,
dosando o vosso espaço,
pesando o vosso pão
de tempos racionados;
e não tereis vivido
e não tereis amado,
porém sereis morrido.

XI

Éreis vós Tiago, Diogo, Jaques, Jaime?
Clodoveu ou Clodovigo?
Éreis vós por acaso eles?
Éreis vós aqueles nomes,
estes, e os demais já mortos,
os mortos tão renovados
nós mesmos sempre chamados
Lútero, Lotário, otário,
sim otário tão singelo,
tão puro de todo o mal,
relativo, universal.

Éreis vós Tiago, Diogo, Jaques, Jaime?
Dizei-me se acaso vós
éreis eles ou voz sou
de algum avo tão otário,
tão eu mesmo como voz,
como poema de outros vários.

XII

O simples ar
de uma só corda
em curta raia,
mão de menino,
punhado escasso,
ar perfumado,
sem o alvoroço
dos vendavais;
anjo acolhido
em róseo céu
abrigo instante,
pranto lavado,
chorar em ti
de arrependido,
subir teus vales,
amar teu pólen,
nunca escapar-me
de tuas pétalas
cair com elas.

XIII

Uma janela aberta
e um simples rosto hirto,
e que provavelmente
nela se debruçou;
e nesse gesto puro
do rosto na janela
estava todo o poema
que ninguém escutou;
só a janela aberta
e o espaço dentro dela
que o tempo atravessou.

XIV

O contro era um dia,
um dia futuro,
e dentro do dia
incluído o conforme,
e dentro o que foi
porque fora isso
se tal não se dera,
se o mundo parasse
e o espaço se excluísse


Poemas e Poesias sexta, 11 de setembro de 2020

HOMENAGEM A PICASSO (POEMA DO PERNAMBUCANO JOÃO CABRAL DE MELO NETO)

HOMENAGEM A PICASSO

João Cabral de Melo Neto

 

 

O esquadro disfarça o eclipse
que os homens não querem ver.
Não há música aparentemente
nos violinos fechados.
Apenas os recortes dos jornais diários
acenam para mim como o juízo final.


Poemas e Poesias quinta, 10 de setembro de 2020

AMOR DE MENTIRAS (POEMA DO ACRIANO J. G. DE ARAÚJO JORGE)

AMOR DE MENTIRAS

J. G. de Araújo Jorge

 

Eram beijos de fogo..eram de larvas,
E sabiam a sonhos e ambrosias..
Como pensar que  a boca com que os davas
Era a mesma, afinal, com que mentias ?!
 
 
Se eras a mais humilde das escravas,
Em dádivas, anseios, alegrias..
Como prever que o amor que me juravas
seria mais uma das tuas heresias ?!
 
 
Como supor ser tudo um falso jogo?
E crer que se extinguisse aquele fogo..
que acendia em teus olhos duas piras ?!
 
 
E descobrir.. no instante em que me amavas..
Que em tua boca ansiosa misturavas
Ao mesmo tempo beijos e mentiras ?!
 
 
Eram brancas as mãos..brancas e puras..
Mãos de lã..de pelúcia..mãos amadas..
Como prever..vendo-as fazer ternuras,
Que nas unhas traziam emboscadas ?!
 
 
Era tão doce o olhar..em conjeturas
felizes..e em promessas impensadas...
Como enxergar,  portanto, as amarguras..
E as frias traições nele guardadas ?!
 
 
Como pensar em duas, se somente
uma eu tinha em meus braços..e adorava..
E a outra.. uma impostora..se mantinha ausente..
 
 
E, afinal, como ver, nessa alegria..
Que o amor que tanta vida me ofertava..
Seria o mesmo que me mataria ?!

Poemas e Poesias quarta, 09 de setembro de 2020

1 - DO DESEJO - PORQUE HÁ DESEJO EM MIM, É TUDO CINTILANTE (POEMA DA PAULISTA HILDA HILST)

DO DESEJO - 1

PORQUE HÁ DESEJO EM MIM, É TUDO CINTILANTE

Hilda Hilst

Porque há desejo em mim, é tudo cintilância.
Antes, o cotidiano era um pensar alturas
Buscando Aquele Outro decantado
Surdo à minha humana ladradura.
Visgo e suor, pois nunca se faziam.
Hoje, de carne e osso, laborioso, lascivo
Tomas-me o corpo. E que descanso me dás
Depois das lidas. Sonhei penhascos
Quando havia o jardim aqui ao lado.
Pensei subidas onde não havia rastros.
Extasiada, fodo contigo
Ao invés de ganir diante do Nada.


Poemas e Poesias terça, 08 de setembro de 2020

ALMA HUMANA FORMADA DE COISA NENHUMA (POEMA DO PORTUGUÊS GIL VICENTE)

ALMA HUMANA FORMADA DE COISA NENHUMA

Gil Vicente

(Grafia original)

 

Alma humana formada

De nenhuma cousa, feita

Mui preciosa,

De corrupção separada,

E esmaltada

Naquella frágoa perfeita

Gloriosa;

Planta neste valle posta

Pera dar celestes flores

Olorosas,

E pera serdes tresposta

Em a alta costa

Onde se crião primores

Mais que rosas;

Planta sois e caminheira,

Que ainda que estais, vos is

Donde viestes.

Vossa pátria verdadeira

He ser verdadeira

Da glória que conseguis:

Andae prestes”.


Poemas e Poesias segunda, 07 de setembro de 2020

A NOSSA CASA (POEMA DA PORTUGUESA FLORBELA ESPANCA)

Florbela Espanca

A NOSSA CASA

Florbela Espanca

 

 

A nossa casa, Amor, a nossa casa!
Onte está ela, Amor, que não a vejo?
Na minha doida fantasia em brasa
Costrói-a, num instante, o meu desejo!

Onde está ela, Amor, a nossa casa,
O bem que neste mundo mais invejo?
O brando ninho aonde o nosso beijo
Será mais puro e doce que uma asa?

Sonho... que eu e tu, dois pobrezinhos,
Andamos de mãos dadas, nos caminhos
Duma terra de rosas, num jadim,

Num país de ilusão que nunca vi...
E que eu moro - tão bom! - dentro de ti
E tu, ó meu Amor, dentro de mim...


Poemas e Poesias domingo, 06 de setembro de 2020

PELA RUA (POEMA DO MARANHENSE FERREIRA GULLAR)

PELA RUA

Ferreira Gullar 

 

 

Sem qualquer esperança
Detenho-me diante de uma vitrina de bolsas
Na avenida nossa senhora de copacabana, domingo,
Enquanto o crepúsculo se desata sobre o bairro.

Sem qualquer esperança
Te espero.
Na multidão que vai e vem
Entra e sai dos bares e cinemas
Surge teu rosto e some
Num vislumbre
E o coração dispara.
Te vejo no restaurante
Na fila do cinema, de azul
Diriges um automóvel, a pé
Cruzas a rua
Miragem
Que finalmente se desintegra com a tarde acima dos edifícios
E se esvai nas nuvens.

A cidade é grande
Tem quatro milhões de habitantes e tu és uma só.
Em algum lugar estás a esta hora, parada ou andando,
Talvez na rua ao lado, talvez na praia
Talvez converses num bar distante
Ou no terraço desse edifício em frente,
Talvez estejas vindo ao meu encontro, sem o saberes,
Misturada às pessoas que vejo ao longo da avenida.
Mas que esperança! tenho
Uma chance em quatro milhões.
Ah, se ao menos fosses mil
Disseminada pela cidade.

A noite se ergue comercial
Nas constelações da avenida.
Sem qualquer esperança
Continuo
E meu coração vai repetindo teu nome
Abafado pelo barulho dos motores
Solto ao fumo da gasolina queimada.


Poemas e Poesias sábado, 05 de setembro de 2020

CANÇÃO TRIASTE (POEMA DO PORTUGUÊS FERNANDO PESSOA)

CANÇÃO TRISTE

Fernando Pessoa

 

Sol, que dá nas ruas, não dá

        No meu carinho.

A felicidade quando virá?

        Por que caminho?

 

Horas e horas por fim são meses

        De ansiado bem.

Eu penso em ti indecisas vezes,

        E tu ninguém!

Não tenho barco para a outra margem,

        Nem sei do rio

Ah! E envelheceu já tua imagem

        E eu sinto frio.

 

Não me resigno, não me decido,

        Choro querer...

Sempre eu! Ó sorte, dá-me o olvido

        De pertencer!

 

Enterrei hoje outra vez meu sonho

        Amanhã virá

Tornar-me triste por ser risonho,

        E não ser já.


Poemas e Poesias sexta, 04 de setembro de 2020

AS ROCHAS ENCONTRAM ASAS NA ESPUMA (POEMA DO GAÚCHO FABRÍCIO CARPINEJAR)

AS ROCHAS ENCONTRAM ASAS NA ESPUMA

Fabrício Carpinejar

 

As rochas encontram

asas na espuma.

Nenhuma despedida recompensa

 

a fidelidade da casa.

Como tua memória devolverá

as ruas emprestadas

 

para atalhar a infância?

Qual o eclipse, o calendário,

que vai emborcar

 

a nostalgia do futuro?

Quem inventará o fogo

sem as feições do Criador?


Poemas e Poesias quinta, 03 de setembro de 2020

TROVAS HUMORÍSTICAS - 05 - (POEMA DO PARANAENSE ENO TEODORO WANKE)

TROVA HUMORÍSTICA - 05

Eno Teodoro Wanke

 

Em Hollywood, a uma artista

Jamais será permitido

Em duas festas ser vista

Usando o mesmo... marido

 

 

 

 


Poemas e Poesias quarta, 02 de setembro de 2020

AO VER-TE, ROSEIRA TRISTA (POEMA DO PIAUIENSE DA COSTA E SILVA)

AO VER-TE, ROSEIRA TRISTE

Da Costa e Silva

 

Roseira cheia de espinhos
Crestada ao frio de junho,
São iguais nossos destinos,
Temos o mesmo infortúnio.

A nossa sorte é a mesma; 
Contrariá-la é debalde,
Pois secaste de tristeza
E eu sucumbo de saudade.

Ao ver-te, roseira triste,
Com os teus desfolhados ramos,
Fico a pensar como evite
O mal que sofremos ambos.

E como não têm meus olhos 
Mais pranto para regar-te,
Tecerei com os teus despojos
Minha coroa de mártir.


Poemas e Poesias terça, 01 de setembro de 2020

FLORIPES (POEMA DO CATARINENSE CRUZ E SOUSA)

FLORIPES 

Cruz e Sousa

 

Fazes lembrar as mouras dos castelos,
As errantes visões abandonadas
Que pelo alto das torres encantadas
Suspiravam de trêmulos anelos.

Traços ligeiros, tímidos, singelos
Acordam-te nas formas delicadas
Saudades mortas de regiões sagradas,
Carinhos, beijos, lágrimas, desvelos.

Um requinte de graça e fantasia
Dá-te segredos de melancolia,
Da Lua todo o lânguido abandono...

Desejos vagos, olvidadas queixas
Vão morrer no calor dessas madeixas,
Nas virgens florescências do teu sono.


Poemas e Poesias segunda, 31 de agosto de 2020

LUA-LUAR (POEMA DA GOIANA CORA CORALINA)

LUA-LUAR

Cora Coralina

 

Escuto leve batida.
Levanto descalça, abro a janela
devagarinho.
Alguém bateu?
É a lua-luar que quer entrar.

Entra lua poesia
antes dos astronautas:
Gagarin da terra azul,
Apolo XI que primeiro passeou solo lunar.

Lua que comanda os mares,
a fúria dos vagalhões
que vem morrer na praia.
O banzeiro das pororocas.

Lua dos namorados,
das intrigas de amor,
dos encontros clandestinos.
Lua-luar que entra e sai.

Lua nova, incompleta no seu meio arco.
Lua crescente, velha enorme, fecunda.
Lua de todos os povos
de todos os quadrantes.

Lua que enfurece o mar e em chumbo,
acovarda barcos pesqueiros.
O barqueiro se recolhe.

O pescado volta às redes.
O jangadeiro trava amarras.
Gaivotas fogem dos rochedos.

Lua cúmplice.
Lésbica lua nascente,
andrógina — lua-luar.
Lua dos becos tristes
das esquinas buliçosas.
Luar dos velhos.
Das velhas plantas sentenciadas.
Do sopro morto
dos bordões, rimas, violinos.

Lua que manda
na semeadura dos campos,
na germinação das sementes,
na abundância das colheitas.

Lua boa.
Lua ruim.
Lua de chuva.
Lua de sol.

Lua das gestações do amor.
Do acaso, do passatempo
Irresistível,
responsável, irresponsável.

Lua grande. Lua genésica
que marca a fertilidade da fêmea
e traz o macho para a semeadura.
O fruto aceito —
mal aceito: repudiado, abandonado,
A semente morta
lançada no esgoto.
A semente viva palpitante
deixada em porta alheia.


Poemas e Poesias domingo, 30 de agosto de 2020

SONETO XXVIII (SONETOS) FAZ A IMAGINAÇÃO DE UM BEM-AMADO (POEMA DO CARIOCA CLÁUDIO MANUEL DA COSTA)

XXVIII (SONETOS) FAZ A IMAGINAÇÃO DE UM BEM-AMADO

Cláudio Manuel da Costa

 

Faz a imaginação de um bem-amado,
Que nele se transforme o peito amante;
Daqui vem, que a minha alma delirante
Se não distingue já do meu cuidado.

Nesta doce loucura arrebatado
Anarda cuido ver, bem que distante;
Mas ao passo, que a busco, neste instante
Me vejo no meu mal desenganado.

Pois se Anarda em mim vive, e eu nela vivo,
E por força da idéia me converto
Na bela causa de meu fogo ativo;

Como nas tristes lágrimas, que verto,
Ao querer contrastar seu gênio esquivo,
Tão longe dela estou, e estou tão perto.

 


Poemas e Poesias sábado, 29 de agosto de 2020

MINHA ALMA TEM O PESO DA LUZ (CLARICE LISPECTOR)

MINHA ALMA TEM O PESO DA LUZ 

Clarice Lispector

 

“Minha alma tem o peso da luz.

Tem o peso da música.

Tem o peso da palavra nunca

dita.

prestes quem sabe a ser dita.

Tem o peso de uma lembrança.

Tem o peso de uma saudade.

Tem o peso de um olhar.

Pesa como pesa uma ausência.

E a lágrima que não se chorou.

Tem o imaterial peso da solidão

No meio de outros.”

 


Poemas e Poesias sexta, 28 de agosto de 2020

EPIGRAMA NÚMERO 2 (POEMA DA CARIOCA CECÍLIA MEIRELES)

EPIGRAMA NÚMERO 2

Cecília Meireles

 

És precária e veloz, Felicidade.
Custas a vir e, quando vens, não te demoras.
Foste tu que ensinaste aos homens que havia tempo,
e, para te medir, se inventaram as horas.

Felicidade, és coisa estranha e dolorosa:
Fizeste para sempre a vida ficar triste:
Porque um dia se vê que as horas todas passam,
e um tempo despovoado e profundo, persiste.
Cecília Meireles
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Sou entre flor e nuvem,
estrela e mar. Por que
havemos de ser unicamente
humanos, limitados em chorar?
Não encontro caminhos fáceis
de andar. Meu rosto vário
desorienta as firmes pedras
que não sabem de água e de ar.


Poemas e Poesias quarta, 26 de agosto de 2020

A CACHOEIRA (29ª PARTE DO POEMA A CACHOEIRA DE PAULO AFONSO, DO BAIANO CASTRO ALVES)

A CACHOEIRA

Castro Alves

(Do poema A Cachoeira de Paulo Afonso)

 

Mas súbito da noite no arrepio
Um mugido soturno rompe as trevas...
Titubantes — no álveo do rio —
Tremem as lapas dos titães coevas!...
Que grito é este sepulcral, bravio,
Que espanta as sombras ululantes, sevas?
É o brado atroador da catadupa
Do penhasco batendo na garupa!...

Quando no lodo fértil das paragens
Onde o Paraguaçu rola profundo,
O vermelho novilho nas pastagens
Come os caniços do torrão fecundo;
Inquieto ele aspira nas bafagens
Da negra sucruiúba o cheiro imundo...
Mas já tarde silvando o monstro voa...
E o novilho preado os ares troa!

Então doido de dor, sânie babando,
Coa serpente no dorso parte o touro...
Aos bramidos os vales vão clamando,
Fogem as aves em sentido choro...
Mas súbito ela às águas o arrastando
Contrai-se para o negro sorvedouro...
E enrolando-lhe o corpo quente, exangue,
Quebra-o nas roscas, donde jorra o sangue.

Assim dir-se-ia que a caudal gigante
— Larga sucuruiúba do infinito —
Coas escamas das ondas coruscante
Ferrara o negro touro de granito!...
Hórrido, insano, triste, lacerante
Sobe do abismo um pavoroso grito...
E medonha a suar a rocha brava
As pontas negras na serpente crava!...

Dilacerado o rio espadanando
Chama as águas da extrema do deserto...
Atropela-se, empina, espuma o bando...
E em massa rui no precipício aberto...
Das grutas nas cavernas estourando
O coro dos trovões travam concerto...
E ao vê-lo as águias tontas, eriçadas
Caem de horror no abismo estateladas...

A cachoeira! Paulo Afonso! O abismo!
A briga colossal dos elementos!
As garras do Centauro em paroxismo
Raspando os flancos dos parcéis sangrentos.
Relutantes na dor do cataclismo
Os braços do gigante suarentos
Agüentando a ranger (espanto! assombro!)
O rio inteiro, que lhe cai do ombro.

Grupo enorme do fero Laocoonte
Viva a Grécia acolá e a luta estranha!...
Do sacerdote o punho e a roxa fronte...
E as serpentes de Tênedos em sanha!...
Por hidra — um rio! Por áugure — um monte!
Por aras de Minerva — uma montanha!
E em torno ao pedestal laçados, tredos,
Como filhos — chorando-lhe — os penedos!!!...


Poemas e Poesias terça, 25 de agosto de 2020

O QUÊ? (POEMA DO FLUMINENSE CASIMIRO DE ABREU)

 

O QUÊ?

Casimiro de Abreu

Em que cismas, poeta? Que saudades

Te adormecem na mágica fragrância

Das rosas do passado já pendidas?

Nos sonhos d'alma que te lembra?

- A infância!

 

Que sombra, que fantasma vem banhado

No doce eflúvio dessa quadra linda?

E a mente a folhear os dias idos

Que nome te recorda agora?

- Arinda!

 

Mas se passa essa quadra, fugitiva,

Qual no horizonte solitária vela,

Por que cismar na vida e no passado?

E de quem são essas saudades?

- Dela!

 

E se a virgem viesse agora mesmo

Surgindo bela qual visão de amores,

Tu, p'ra saudá-la bem do imo d'alma

Diz-me, poeta - o que escolhias?

- Flores!

 

E se ela, farta dos aromas doces

Que tem achado nos jardins divinos,

Tão caprichosa machucasse as rosas...

Diz-me, meu louco, o que mais tinhas?

- Hinos!

 

E se, teimosa, rejeitando a lira,

A fronte virgem para ti pendida,

Dum beijo a paga te pedisse altiva...

O que lhe davas, meu poeta?

- A vida!


Poemas e Poesias segunda, 24 de agosto de 2020

MANOEL, JOÃO E JOAQUIM (POEMA DO PERNAMBUCANO CARLOS PENA FILHO)

MANOEL, JOÃO E JOAQUIM

Carlos Pena Filho

 

Desse tempo, é o que resta
para um discreto dizer,
pois quem cantou esse tempo
já não é do meu saber.
Hoje a cidade possui
os seus cantores que podem
ser resumidos assim:
Manoel, João e Joaquim.

No jardim Treze de Maio,
Manoel vai ficar plantado,
para sempre e mais um dia,
sereno, bustificado,
pois quem da terra se ausenta
deve assim ser castigado.
Dali não poderá ver
a casa do seu avô
e nem a rua da Aurora,
nem o que o tempo acabou,
nem o mar nem a sereia
e nem boi morto na cheia
desse rio escuro e triste,
de lama podre no fundo
e baronesas na face,
que vem, modorra e preguiça,
parando pelas campinas
e escorregando nos montes,
até este sítio claro,
onde cobriram seu leito
de pedra, ferro e cimento
organizados em pontes.
Desde a Velha, carcomida,
paisagem para detentos,
que é por onde sempre passa
esse povo marginal,
escuro e anfíbio que habita
o cais dito do Areal,
até à ponte mais nova
que tem o nome mais velho:
a ponte de Duarte Coelho.
Mas tudo o que for do rio,
água, lama, caranguejos,
os peixes e as baronesas
e qualquer embarcação,
está sempre e a todo instante
lembrando o poeta João
que leva o rio consigo
como um cego leva um cão.
Mas vieram de longe as águas
que aqui no Recife estão,
já começaram areia e pedra
lá bem perto do sertão
e é por isso, talvez,
que escuras e tristes são.
Porém não foi só tristeza
sua peregrinação,
em seu trajeto tiveram
a farta satisfação
de dar de beber a secos
homens, cavalos e bois
e em seu incerto caminho
ainda viram depois
os sítios cheios de sombra,
onde dorme o sonho espesso
do poeta Joaquim que foi
fazer uma estação de águas
nos olhos do seu amor
e trouxe nos seus, acesos,
os cajueiros em flor.

 


Poemas e Poesias domingo, 23 de agosto de 2020

ACORDAR, VIVER (POEMA DO MINEIRO CALOS DRUMMOND DE ANDRADE)

ACORDAR, VIVER

Carlos Drummond de Andrade

 

 

Como acordar sem sofrimento?
Recomeçar sem horror?
O sono transportou-me
àquele reino onde não existe vida
e eu quedo inerte sem paixão.

Como repetir, dia seguinte após dia seguinte,
a fábula inconclusa,
suportar a semelhança das coisas ásperas
de amanhã com as coisas ásperas de hoje?

Como proteger-me das feridas
que rasga em mim o acontecimento,
qualquer acontecimento
que lembra a Terra e sua púrpura
demente?
E mais aquela ferida que me inflijo
a cada hora, algoz
do inocente que não sou?

Ninguém responde, a vida é pétrea.


Poemas e Poesias sábado, 22 de agosto de 2020

SONETO 159 - CHORAI, NINFAS OS FADOS PODEROSOS (SONETO DO PORTUGUÊS LUÍS DE CAMÕES)

CHORAI, NINFAS, OS FADOS PODEROSOS

Soneto 159

Luís de Camões

 

 

Chorai, Ninfas, os fados poderosos
daquela soberana fermosura!
Onde foram parar na sepultura
aqueles reais olhos graciosos?

Ó bens do mundo, falsos e enganosos!
Que mágoas para ouvir! Que tal figura
jaza sem resplendor na terra dura,
com tal rostro e cabelos tão fermosos!

Das outras que será, pois poder teve
a morte sobre cousa tanto bela
que ela eclipsava a luz do claro dia?

Mas o mundo não era digno dela;
por isso mais na terra não esteve:
ao Céu subiu, que já se lhe devia.


Poemas e Poesias sexta, 21 de agosto de 2020

AUTORRETRATO (POEMA DO PORTUGUÊS MANUEL MARIA BARBOSA DU BOCAGE)

AUTORRETRATO

Bocage

 

Magro, de olhos azuis, carão moreno,

Bem servido de pés, meão na altura,

Triste de facha, o mesmo de figura,

Nariz alto no meio, e não pequeno;

 

Incapaz de assistir num só terreno,

Mais propenso ao furor do que à ternura;

Bebendo em níveas mãos, por taça escura,

De zelos infernais letal veneno;

 

Devoto incensador de mil deidades

(Digo, de moças mil) num só momento,

E somente no altar amando os frades,

 

 

Eis Bocage em quem luz algum talento;

Saíram dele mesmo estas verdades,

Num dia em que se achou mais pachorrento.


Poemas e Poesias quinta, 20 de agosto de 2020

´CONSELHOS A MEUS FILHOS - 1 (POEMA DA MINEIRA BÁRBARA HELIODORA)

CONSELHOS A MEUS FILHOS - 1

Bárbara Heliodora

 

 

I.

Meninos, eu vou ditar
As regras do bem viver;
Não basta somente ler,
É preciso ponderar,
Que a lição não faz saber,
Quem faz saber é o pensar.

II.

Neste tormentoso mar
De ondas de contradições,
Ninguém soletre feições
Que sempre se há de enganar,
De caras e corações
Há muitas léguas que andar.

III.

Aplicai, ao conversar,
Todos os cinco sentidos,
Que as paredes têm ouvidos
E também podem falar;
Há bichinhos escondidos
Que só vivem de escutar.

IV.

Quem quer males evitar,
Evite-lhe a ocasião,
Que os males por si virão,
Sem ninguém os procurar:
Antes que ronque o trovão
Manda a prudência ferrar.

V.

Não vos deixeis enganar
Por amigos, nem amigas,
Rapazes e raparigas
Não sabem mais que asnear;
As conversas e as intrigas
Servem de precipitar.

VI.

Sempre vos deveis guiar
Pelos antigos conselhos,
Que dizem que ratos velhos
Não há modos de os caçar;
Não batais ferros vermelhos,
Deixai um pouco esfriar.


Poemas e Poesias quarta, 19 de agosto de 2020

O MAR, A ESCADA E O HOMEM (POEMA DO CAPIXABA AUGUSTO DOS ANJOS)

O MAR, A ESCADA E O JOMEM

Augusto dos Anjos

 

 

“Olha agora, mamífero inferior,
“À luz da epicurista ataraxia,
“O fracasso de tua geografia
“E do teu escafandro esmiuçador”

“Ah! Jamais saberás ser superior,
“Homem, a mim, conquanto ainda hoje em dia,
“Com a ampla hélice auxiliar com que outrora ia
“Voando ao vento o vastíssimo vapor.

“Rasgue a água hórrida a nau árdega e singre-me!”
E a verticalidade da Escada íngreme:
“Homem, já transpuseste os meus degraus?!”

E Augusto, o Hércules, o Homem, aos soluços,
Ouvindo a Escada e o Mar, caiu de bruços
No pandemônio aterrador do Caos!


Poemas e Poesias terça, 18 de agosto de 2020

NOTURNO (POEMA DO PERNAMBUCANO ASCENSO FERREIRA)

NOTURNO 

Ascenso Ferreira

 

Sozinho, de noite,
nas ruas desertas
do velho Recife
que atrás do arruado
moderno ficou ...
criança de novo
eu sinto que sou:

Que diabo tu vieste fazer aqui, Ascenso?

O rio soturno
tremendo de frio,
com os dentes batendo
nas pedras do cais,
tomado de susto
sem poder falar...
o rio tem coisas
para me contar:

Corre, senão o Pai-do-Poço te pega, condenado!

Das casas fechadas
e mal-assombradas
com as caras tisnadas
que o incêndio queimou
pelas janelas esburacadas
eu sinto, tremendo,
que um olho de fogo
medonho me olhou:

Olha que o Papa-Figo te agarra, desgraçado!

Dos brutos guindastes
de vultos enormes
ainda maiores
nessa escuridão...
os braços de ferro,
pesados e longos,
parece quererem
suster-me do chão!

Ai! Eu tenho medo dos guindastes
por causa daquele bicão!

Sozinho, de noite,
nas ruas desertas
do velho Recife
que atrás do arruado
moderno ficou...
criança de novo
eu sinto que sou:

- Larga de ser vagabundo, Ascenso!


Poemas e Poesias domingo, 16 de agosto de 2020

AQUI MORAVA UM REI (POEMA DO PARAIBANO ARIANO SUASSUNA)

 

AQUI MORAVA UM REI

Ariano Suassuna

Aqui morava um rei quando eu menino
Vestia ouro e castanho no gibão,
Pedra da Sorte sobre meu Destino,
Pulsava junto ao meu, seu coração.

Para mim, o seu cantar era Divino,
Quando ao som da viola e do bordão,
Cantava com voz rouca, o Desatino,
O Sangue, o riso e as mortes do Sertão.

Mas mataram meu pai. Desde esse dia
Eu me vi, como cego sem meu guia
Que se foi para o Sol, transfigurado.

Sua efígie me queima. Eu sou a presa.
Ele, a brasa que impele ao Fogo acesa
Espada de Ouro em pasto ensanguentado.


Poemas e Poesias sábado, 15 de agosto de 2020

CANTO SEGUNDO (POEMA DO PAULISTA ÁLVARES DE AZEVEDO)

CANTO SEGUNDO

Álvares de Azevedo

 

 

And her head droo'd as when the lily lies
O'er charged with rain.
Don Juan.


I

Dorme! ao colo do amor, pálido amante,
Repousa, sonhador, nos lábios dela!
Qual em seio de mãe, febril infante!
No olhar, nos lábios da infantil donzela
Inebria teu seio palpitante!
O murmúrio do amor em forma bela
Tem doçuras que esmaiam no desejo
Dos sonhos ao vapor, na onda de um beijo!

II

Que importa a perdição manchasse um dia
A alvura virginal das roupas santas
E o mundo a esse corpo que tremia
Rompesse o véu que tímido alevantas?
E à noite lhe pousasse a fronte fria
Nesse leito em que trêmulo te encantas
E ao batejo venal murchasse flores,
Flores que abriam a infantis amores?

III

Que importa? se o amor teu rosto beija,
Se a beijas nua e sobre o peito dela
Teu peito juvenil ama e lateja!
Se tua langue palidez revela
Que tua alma febril sonha e deseja
Desmaiar-lhe de amor, gemer com ela,
Ébrio de vida, a soluçar d'enleio,
Pálido sonhador morrer-lhe ao seio!

IV

Que importa o mundo além? teu mundo é esse
Onde na vida o coração te alegra!
Teu mundo é o serafim que às noites desce
E que lava no amor a mancha negra!
É a névoa de luz onde não lê-se
Escrita à porta vil a infame regra
Que assinala o bordel à mão poluta
E diz nas letras fundas — prostituta!

V

A essa pobre mulher na fronte bela
Anátema, escreveu a turba fria!
Banhe o remorso o travesseiro dela,
Corram-lhe a mil da pálpebra sombria
Prantos do coração, não há erguê-la
A eterna maldição. E quem diria
A solitária dor, da noite ao manto
Que lavra o seio à cortesã em pranto?

VI

Ah! Madalenas míseras! ardentes
Quantos olhos azuis se não inundam
Nos transes do prazer em prantos quentes
Quando os seios febris em ais abundam,
Que o amante nos óculos trementes
Crê sonhos que do amor no mar se afundam!
Que suspiros no beijo que delira
Que são lágrimas só! que são mentira!

VII

E quantas vezes na cheirosa seda
Da longa trança desatada, solta,
Onde o moço de gozos embebeda
A fronte à febre juvenil revolta;
Quando a vida, o frescor, a imagem leda
De esp'rança que morreu ao leito volta;
As lágrimas na dor ferventes correm...
Como em céu de verão estrelas morrem?

(...)

IX

Amar uma perdida! que loucura!
Mas tão bela! que seio de Madona!
Nunca amara tão nívea criatura
Como aquela mulher que ali ressona!
(...)


Poemas e Poesias sexta, 14 de agosto de 2020

AO MUNDO ESCONDE O CÉU SEUS ESPLENDORES (POEMA DO CARIOCA ALVARENGA PEIXOTO)

AO MUNDO ESCONDE O CÉU SEUS ESPLENDORES

Alvarenga Peixoto

 

Ao mundo esconde o Sol seus resplendores,
e a mão da Noite embrulha os horizontes;
não cantam aves, não murmuram fontes,
não fala Pã na boca dos pastores.

Atam as Ninfas, em lugar de flores,
mortais ciprestes sobre as tristes frontes;
erram chorando nos desertos montes,
sem arcos, sem aljavas, os Amores.

Vênus, Palas e as filhas da Memória,
deixando os grandes templos esquecidos,
não se lembram de altares nem de glória.

Andam os elementos confundidos:
ah, Jônia, Jônia, dia de vitória
sempre o mais triste foi para os vencidos!


Poemas e Poesias quinta, 13 de agosto de 2020

VAGUEIAM SUAVEMENTE OS TEUS OLHARES (POEMA DO MINEIRO ALPHONSUS GUIMARAENS)

VAGUEIAM SUAVEMENTE OS TEUS OLHARES

Alphonsus Guimaraens

 

 

 
Vagueiam suavemente os teus olhares
Pelo amplo céu franjado em linho:
Comprazem-te as visões crepusculares...
Tu és uma ave que perdeu o ninho.

Em que nichos doirados, em que altares
Repoisas, anjo errante, de mansinho?
E penso, ao ver-te envolta em véus de luares,
Que vês no azul o teu caixão de pinho.

És a essência de tudo quanto desce
Do solar das celestes maravilhas...
Harpa dos crentes, cítola da prece...

Lua eterna que não tivesse fases,
Cintilas branca, imaculada brilhas,
E poeiras de astros nas sandálias trazes...

Poemas e Poesias quarta, 12 de agosto de 2020

AS CASA DA RUA ABÍLIO (POEMA DO FLUMINENSE ALBERTO DE OLIVEIRA)

A CASA DA RUA ABÍLIO

Alberto de Oliveira

 

A casa que foi minha, hoje é casa de Deus.
Traz no topo uma cruz. Ali vivi com os meus,
Ali nasceu meu filho; ali, só, na orfandade
Fiquei de um grande amor. Às vezes a cidade

Deixo e vou vê-la em meio aos altos muros seus.
Sai de lá uma prece, elevando-se aos céus;
São as freiras rezando. Entre os ferros da grade,
Espreitando o interior, olha a minha saudade.

Um sussurro também, como esse, em sons dispersos,
Ouvia não há muito a casa. Eram meus versos.
De alguns talvez ainda os ecos falarão,

E em seu surto, a buscar o eternamente belo,
Misturados à voz das monjas do Carmelo,
Subirão até Deus nas asas da oração.


Poemas e Poesias terça, 11 de agosto de 2020

AMAR A MORTE (POEMA DO MINEIRO AFFONSO ROMANO DE SANT,ANNA)

AMAR A MORTE

Affonso Romano de Sant'Anna

 

 

 

Amar de peito aberto a morte.
Não de esguelha, de frente.
Amar a morte,
digamos,
despudoradamente.

Amá-la como se ama
uma bela mulher
e inteligente.Amá-la
diariamente
sabendo que por mais
que a amemos
ela se deitará
com uns e outros
indiferente.


Poemas e Poesias segunda, 10 de agosto de 2020

COM LICENÇA POÉTICA (POEMA DA MINEIRA ADÉLIA PRADO)

COM LICENÇA POÉTICA

Adélia Prado

 

Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não sou tão feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
-- dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.


Poemas e Poesias domingo, 09 de agosto de 2020

ASPIRAÇÃO (POEMA DA CARIOCA ADALGISA NERY)

ASPIRAÇÃO

Adalgisa Nery

 

 

Desejo de desmontar meu corpo

E atirá-lo aos quatro ventos do mundo,

De enfrentar a luz do sol

Até que seu calor pulverize meus ossos,

De atirar-me no oceano

Até que o batimento de suas águas

Transforme meus cabelos em algas perdidas,

De gritar contra as montanhas

Até que o eco se ausente de minha voz,

De matar a consciência de mim mesma

          Até que eu possa viver.


Poemas e Poesias sábado, 08 de agosto de 2020

O DIA DA CRIAÇÃO (POEMA DO CARIOCA VINÍCIUS DE MORAES)

 

O DIA DA CRIAÇÃO

Vinícius de Moraes

 

Rio de Janeiro , 1946

Macho e fêmea os criou. 
Bíblia:
 Gênese, 1, 27 



I

Hoje é sábado, amanhã é domingo 
A vida vem em ondas, como o mar 
Os bondes andam em cima dos trilhos 
E Nosso Senhor Jesus Cristo morreu na Cruz para nos salvar. 

Hoje é sábado, amanhã é domingo 
Não há nada como o tempo para passar 
Foi muita bondade de Nosso Senhor Jesus Cristo 
Mas por via das dúvidas livrai-nos meu Deus de todo mal. 

Hoje é sábado, amanhã é domingo 
Amanhã não gosta de ver ninguém bem 
Hoje é que é o dia do presente 
O dia é sábado. 

Impossível fugir a essa dura realidade 
Neste momento todos os bares estão repletos de homens vazios 
Todos os namorados estão de mãos entrelaçadas 
Todos os maridos estão funcionando regularmente 
Todas as mulheres estão atentas 
Porque hoje é sábado. 


II

Neste momento há um casamento 
Porque hoje é sábado. 
Há um divórcio e um violamento 
Porque hoje é sábado. 
Há um homem rico que se mata 
Porque hoje é sábado. 
Há um incesto e uma regata 
Porque hoje é sábado. 
Há um espetáculo de gala 
Porque hoje é sábado. 
Há uma mulher que apanha e cala 
Porque hoje é sábado. 
Há um renovar-se de esperanças 
Porque hoje é sábado. 
Há uma profunda discordância 
Porque hoje é sábado. 
Há um sedutor que tomba morto 
Porque hoje é sábado. 
Há um grande espírito de porco 
Porque hoje é sábado. 
Há uma mulher que vira homem 
Porque hoje é sábado. 
Há criancinhas que não comem 
Porque hoje é sábado. 
Há um piquenique de políticos 
Porque hoje é sábado. 
Há um grande acréscimo de sífilis 
Porque hoje é sábado. 
Há um ariano e uma mulata 
Porque hoje é sábado. 
Há uma tensão inusitada 
Porque hoje é sábado. 
Há adolescências seminuas 
Porque hoje é sábado. 
Há um vampiro pelas ruas 
Porque hoje é sábado. 
Há um grande aumento no consumo 
Porque hoje é sábado. 
Há um noivo louco de ciúmes 
Porque hoje é sábado. 
Há um garden-party na cadeia 
Porque hoje é sábado. 
Há uma impassível lua cheia 
Porque hoje é sábado. 
Há damas de todas as classes 
Porque hoje é sábado. 
Umas difíceis, outras fáceis 
Porque hoje é sábado. 
Há um beber e um dar sem conta 
Porque hoje é sábado.
 
Há uma infeliz que vai de tonta 
Porque hoje é sábado. 
Há um padre passeando à paisana 
Porque hoje é sábado. 
Há um frenesi de dar banana 
Porque hoje é sábado. 
Há a sensação angustiante 
Porque hoje é sábado. 
De uma mulher dentro de um homem 
Porque hoje é sábado. 
Há a comemoração fantástica 
Porque hoje é sábado. 
Da primeira cirurgia plástica 
Porque hoje é sábado. 
E dando os trâmites por findos 
Porque hoje é sábado. 
Há a perspectiva do domingo 
Porque hoje é sábado. 


III

Por todas essas razões deverias ter sido riscado do Livro das Origens, ó Sexto Dia da Criação. 
De fato, depois da Ouverture do Fiat e da divisão de luzes e trevas 
E depois, da separação das águas, e depois, da fecundação da terra 
E depois, da gênese dos peixes e das aves e dos animais da terra 
Melhor fora que o Senhor das Esferas tivesse descansado. 
Na verdade, o homem não era necessário 
Nem tu, mulher, ser vegetal, dona do abismo, que queres como as plantas, imovelmente e nunca saciada
Tu que carregas no meio de ti o vórtice supremo da paixão. 
Mal procedeu o Senhor em não descansar durante os dois últimos dias 
Trinta séculos lutou a humanidade pela semana inglesa 
Descansasse o Senhor e simplesmente não existiríamos 
Seríamos talvez pólos infinitamente pequenos de partículas cósmicas em queda invisível na terra. 
Não viveríamos da degola dos animais e da asfixia dos peixes 
Não seríamos paridos em dor nem suaríamos o pão nosso de cada dia 
Não sofreríamos males de amor nem desejaríamos a mulher do próximo 
Não teríamos escola, serviço militar, casamento civil, imposto sobre a renda e missa de sétimo dia, 
Seria a indizível beleza e harmonia do plano verde das terras e das águas em núpcias 
A paz e o poder maior das plantas e dos astros em colóquio 
A pureza maior do instinto dos peixes, das aves e dos animais em cópula. 
Ao revés, precisamos ser lógicos, freqüentemente dogmáticos 
Precisamos encarar o problema das colocações morais e estéticas 
Ser sociais, cultivar hábitos, rir sem vontade e até praticar amor sem vontade 
Tudo isso porque o Senhor cismou em não descansar no Sexto Dia e sim no Sétimo 
E para não ficar com as vastas mãos abanando 
Resolveu fazer o homem à sua imagem e semelhança 
Possivelmente, isto é, muito provavelmente 
Porque era sábado.

Poemas e Poesias sexta, 07 de agosto de 2020

CANTIGA (DEIXA QUE EU TE FALE, DEIXA) - POEMA DO PAULISTA VICENTE DE CARVALHO

CANTIGA (DEIXA QUE EU TE FALE, DEIXA)

Vicente de Carvalho

 

Deixa que eu te fale, deixa
Que o meu verso dolorido
Vá murmurar-te uma queixa
No ouvido.

Eu te amo tanto... Perdoa!
Por mais que a recalco e esmago-a,
Foge, abre as asas e voa
A mágoa

Já bastante me atormento
De amar e não ser amado;
E calar é sofrimento
Dobrado.

Os amores infelizes
— Tristes roseiras sem rosas —
São como aquelas raízes
Teimosas

Que um vaso estreito encarcera
E que, num sonho constante,
Aspiram à primavera
Distante:

Crescem, a terra solapam,
E, do vaso que partiram,
Por entre as frinchas escapam,
Respiram...

Assim o amor sem ventura
— Raiz na terra escondida —
Abafa, anseia, procura
Saída...

Sei que debalde te estendo
A mão, a mão de mendigo:
Ouves sorrindo o que eu digo
Gemendo;

Bem sei... E se em voz magoada
Assim te digo que te amo,
Eu que nada espero, e nada
Reclamo,

É que demais me atormento
De amar e não ser amado,
E calar é sofrimento
Dobrado.

 

 

 


Poemas e Poesias quarta, 05 de agosto de 2020

AS MÃOS QUE SE PROCURAM (POEMA DO MINEIRO PAULO MENDES CAMPOS)

AS MÃOS QUE SE PROCURAM

Paulo Mendes Campos

 

Quando o olhar adivinhando a vida
Prende-se a outro olhar de criatura
O espaço se converte na moldura
O tempo incide incerto sem medida

As mãos que se procuram ficam presas
Os dedos estreitados lembram garras
Da ave de rapina quando agarra
A carne de outras aves indefesas

A pele encontra a pele e se arrepia
Oprime o peito o peito que estremece
O rosto o outro rosto desafia

A carne entrando a carne se consome
Suspira o corpo todo e desfalece
E triste volta a si com sede e fome.


Poemas e Poesias terça, 04 de agosto de 2020

SPES UNICA! (POEMA DO CEARENSE QUINTINO CUNHA)

SPES UNICA!

Quitino Cunha 

 

Morto, dentro da fria sepultura,

Sem te poder falar?

E tu que me amas, boa criatura,

Indo me visitar...

 

Banhada de suspiros, de soluços,

Desmaiada, talvez...

Muita vez reclinada, até de bruços,

Na altura dos meus pés...

 

Pedindo a Deus o meu viver eterno

Junto das glórias suas;

Que me livre das penas do inferno,

E a chorar continuas,

 

Lembrando nossa vida, a todo instante,

Repassada de dor...

A lembrar-te que fui o teu amante

— O teu único amor!

 

Mal pensando na horrífica caveira,

Em que me transformei,

Exausto de fadiga, de canseira,

Imaginar não sei...

 

Para evitar essa hora amargurada,

Esse quadro de dor, tão verdadeiro,

Deus há de ser servido, minha amada,

Que tu morras primeiro!...


Poemas e Poesias segunda, 03 de agosto de 2020

SE EXISTE INFERNO (POEMA DO CEARENSE PATATIVA DO ASSARÉ)

SE EXISTE INFERNO

Patativa do Assaré

 

Se existe inferno, como diz a Briba,
Se lá de riba é que o castigo vem,
Se o esprito vai se derretê queimado,
Purgá os pecado que o sujeito tem,

Se os home escravo de ôro, prata e cobre,
A quem é pobre com rigor domina,
Fazendo tudo contra a baxa crasse,
Não vê a face da Visão Divina,

Se é grande crime pro dotô Juiz
Traí o país com a crué maliça,
Jurgando as causa só do lado oposto,
Cuspindo o rosto da fié justiça,

Se é pecado o poderoso rico
Fazê fuxico e começá questão,
Pra não pagá seu operáro forte,
Que enfrenta a morte pra ganhá o pão,

Se o cabra ruim quando morrê padece
E triste desce os inferná dregau,
Se os anjo preto lá nos tacho ardente
Dá banho quente castigando os mau,

Se geme as alma dos pió canaia
Nessas fornáia onde o Demônio tá,
Nas brasa acesa desse forno imundo,
O nosso mundo vai se escangaiá!


Poemas e Poesias domingo, 02 de agosto de 2020

FUNERAL (POEMA DO CEARENSE PADRE ANTÔNIO TOMÁS)

FUNERAL

Padre Antônio Tomás

 

Vão-na levando para a sepultura,
Amortalhada em brancos véus de linho,
Dentro de um leve esquife cor de arminho,
Ao fulgor da manhã serena e pura.

Carpindo-a segue o vento e, porventura,
Para incensá-la agita, de mansinho,
Ramos em flor, pendentes do caminho
Cheios de sombras e orlas de verdura.

No entanto o louro enxame das abelhas
Vai atirando pétalas vermelhas
Sobre o caixão franzino que a comporta.

Cai das folhas o orvalho como pranto,
E as meigas aves em piedoso canto
Rezam contritas sufragando a morta.


Poemas e Poesias sábado, 01 de agosto de 2020

A UM VIOLINISTA (POEMAS DO CARIOCA OLAVO BILAC)

A UM VIOLINISTA

Olavo Bilac

I

Quando do teu violino, as asas entreabrindo
Mansamente no espaço, iam-se as notas quérulas,
Anjos de olhos azuis, às duas mãos partindo
Os seus cofres de pérolas,

- Minhas crenças de amor, esquecidas em calma
No fundo da memória, ouvindo-as recebiam
Novo alento, e outra vez do oceano de minh'alma,
Arquipélago verde, à tona apareciam.

E eu via rutilar o meu amor perdido,
Belo, de nova luz e novo encanto cheio,
E um corpo, que supunha há muito consumido,
Agitar-se de novo e oferecer-me o seio.

Tudo ressuscitava ao teu influxo, artista!
E minh'alma revia, alucinada e louca,
Olhos, cujo fulgor me entontecia a vista,
Lábios, cujo sabor me entontecia a boca.

Oh milagre! E, feliz, ajoelhava-me, em pranto,
Como quem, por acaso, um dia, entrando as portas
De um cemitério, vai achar vivas a um canto
As suas ilusões que acreditava mortas,

E ficava a pensar... como se não partia
Essa fraca madeira ao teu toque violento,
Quando com tanta febre a paixão se estorcia
Dentro do pequenino e frágil instrumento!

Porque, nesse instrumento, unidos num só peito,
Todos os corações da terra palpitavam;
E havia dentro dele, em lágrimas desfeito,
O amor universal de todos os que amavam,

Rio largo de sons, tapetado de flores,
A harmonia do céu jorrava ampla e sonora;
E, boiando e cantando, alegrias e dores
Iam corrente em fora...

A Primavera rindo esfolhava as capelas,
E entornava no chão as ânforas cheirosas:
E a canção acordava as rosas e as estrelas,
E enchia de desejo as estrelas e as rosas.

E a água verde do mar, e a água fresca dos rios,
E as ilhas de esmeralda, e o céu resplandecente,
E a cordilheira, e o vale, e os matagais sombrios,
Crespos, e a rocha bruta exposta ao sol ardente:

- Tudo, ouvindo essa voz, tudo cantava e amava!
O amor, caudal de fogo atropelada e acesa,
Entrava pelo sangue e pela seiva entrava,
E ia de corpo em corpo enchendo a Natureza!

E ei-lo triste, no chão, inanimado e frio,
O teu pobre violino, o teu amor primeiro:
E inda nas cordas há, como um leve arrepio,
A última vibração do arpejo derradeiro...

Como, ígneas e imortais, num redemoinho insano,
Longe, a torvelinhar em céus inacessíveis,
Pairam constelações virgens do olhar humano,
Nebulosas sem fim de mundos invisíveis:

- Assim no teu violino, artista! adormecido
À espera do teu arco, em grupos vaporosos,
Dorme, como num céu que não alcança o ouvido,
Um mundo interior de sons misteriosos...

Suspendam-me ao ar livre esse doce instrumento!
Deixem-no ao sol, em glória, em delirante festa!
E ele se embeberá dos perfumes que o vento
Traz dos frescos desvios do vale e da floresta.

Os pássaros virão tecer nele os seus ninhos!
As rosas se abrirão em suas cordas rotas!
E ele derramará sobre os verdes caminhos
Da antiga melodia as esquecidas notas!

Hão de as aves cantar, hão de cantar as flores...
Os astros sorrirão de amor na imensa esfera...
E a terra acordará para os novos amores
De nova primavera!

II

Porque, como Terpandro acrescentou à lira,
Para a tornar mais doce, uma corda mais pura,
Que é a corda onde a paixão desprezada suspira,
E, em lágrimas, a arder, suspira a desventura;

Também desse instrumento às quatro cordas de ouro,
O Desespero, o Amor, a Cólera, a Piedade,
- Tu, nobre alma, chorando acrescentaste o choro
Eterno e a eterna dor da corda da Saudade

É saudade o que sinto, e me enche de ais a boca,
E me arrebata o sonho, e os nervos me fustiga,
Quando te ouço tocar: saudade ansiosa e louca
Do primitivo amor e da beleza antiga...

Para trás! para trás! Basta um simples arpejo,
Basta uma nota só... Todo o espaço estremece:
E, dando aos pés do amado o derradeiro beijo
Quase morta de dor, Madalena aparece...

Ao luar de Verona, a amorosa cabeça
De Julieta desmaia entre os braços do amante:
Não tarda que a alvorada em fogo resplandeça,
E na devesa em flor a cotovia cante...

Viúva triste, que à paz do claustro pede alivio,
Para a sua viuvez, para o seu luto imenso,
Branca, sob o livor do escapulário níveo,
Heloísa ergue as mãos, numa nuvem de incenso...

E na suave espiral das melodias puras,
Vão fugindo, fugindo os vultos infelizes,
Mostrando ao meu amor as suas amarguras,
Mostrando ao meu olhar as suas cicatrizes.

Canta! o rio de sons que do seio te brota
E, entre os parcéis da dor, corre, cascateando,
E vai, de vaga em vaga, e vai, de nota em nota,
Ao sabor da corrente os sonhos arrastando;

Que pelo vale espalha a cabeleira inquieta,
Refrescando os rosais, e, em leve burburinho,
Um gracejo segreda a cada borboleta,
E segreda um queixume a cada passarinho;

Que a todo o desconforto e a todo o sofrimento
Abre maternalmente o regaço das águas,
- É o rio perfumado e azul do Esquecimento,
Onde se vão banhar todas as minhas mágoas.


Poemas e Poesias sexta, 31 de julho de 2020

ESTÁTUAS PERDIDAS (POEMA DO PAULISTA MENOTTI DEL PICCHIA)

ESTÁTUAS PERDIDAS

Menotti Del Picchia

 

Há formas irrealizadas de ti
no côncavo de minha mão
que poderiam fazer cem estátuas.
Instantes de felina beleza
movimentos bruscos de quem freme ou
ou foge às carícias,
detalhe do teu corpo esquivo
feitos de curvas plásticas e inéditas
que ficaram decalcadas na minha pelo,
no meu insatisfeito desejo
como se eu fosse um molde vivo
de obras-primas que esperam
ser fundidas
em bronze, em verso, em música.
Nessas estátuas perdidas
vai-se tua própria mocidade
porque forma teus instantes de amor
que tive em minhas mãos.


Poemas e Poesias quinta, 30 de julho de 2020

CÉREBRO E CORAÇÃO (POEMA DO PERNAMBUCANO MEDEIROS E ALBUQUERQUE)

CÉREBRO E CORAÇÃO

Medeiros e Albuquerque

 

Eu tenho muita vez a estranha pretensão
de me fundir em bronze e aparecer nas praças
para poder ouvir da voz das populaças
    a sincera explosão;

senti-la, quando, em festa, as grandes multidões
aclamam doidamente os fortes vencedores,
e febris, pelo ar, espalham-se os clamores
    das nobres ovações;

senti-la, quando o sopro aspérrimo da dor
nubla de escuro crepe o lúgubre horizonte
e curva para o chão a entristecida fronte
    do povo sofredor;

poder sempre pairar solenemente em pé,
sobre as mágoas cruéis do miserando povo,
e ter sempre no rosto, eternamente novo,
    uma expressão de fé.

E, quando enfim cair do altivo pedestal,
à sacrílega mão do bárbaro estrangeiro,
meu braço descrever no gesto derradeiro
    a maldição final.


Poemas e Poesias quarta, 29 de julho de 2020

DA INQUIETA ESPERANÇA (POEMA DO GAÚCHO MÁRIO QUINTANA)

DA INQUIETA ESPERANÇA

Mário Quintana

 

Bem sabes Tu, Senhor, que o bem melhor é aquele

Que não passa, talvez, de um desejo ilusório.

Nunca me dê o Céu... quero é sonhar com ele

Na inquietação feliz do Purgatório.


Poemas e Poesias segunda, 27 de julho de 2020

CONFISSÃO (POEMA DA MARANHENSE MARIA FIRMINA DOS REIS)

CONFISSÃO

Maria Firmina dos Reis

 

Embalde, te juro, quisera fugir-te,
Negar-te os extremos de ardente paixão:
Embalde, quisera dizer-te: - não sinto
Prender-me à existência profunda afeição.

Embalde! é loucura. Se penso um momento,
Se juro ofendida meus ferros quebrar:
Rebelde meu peito, mais ama querer-te,
Meu peito mais ama de amor delirar.

E as longas vigílias, - e os negros fantasmas,
Que os sonhos povoam, se intento dormir,
Se ameigam aos encantos, que tu me despertas,
Se posso a teu lado venturas fruir.

E as dores no peito dormentes se acalmam.
E eu julgo teu riso credor de um favor:
E eu sinto minh'alma de novo exaltar-se,
Rendida aos sublimes mistérios do amor.

Não digas, é crime - que amar-te não sei,
Que fria te nego meus doces extremos...
Eu amo adorar-te melhor do que a vida,
melhor que a existência que tanto queremos.

Deixara eu de amar-te, quisera um momento,
Que a vida eu deixara também de gozar!
Delírio, ou loucura - sou cega em querer-te,
Sou louca... perdida, só sei te adorar.


Poemas e Poesias domingo, 26 de julho de 2020

BACANAL (POEMA DO PERNAMBUCANO MANUEL BANDEIRA)

BACANAL 

Manuel Bandeira

 

Quero beber! cantar asneiras
No esto brutal das bebedeiras
Que tudo emborca e faz em caco...
Evoé Baco!

Lá se me parte a alma levada
No torvelim da mascarada.
A gargalhar em doudo assomo...
Evoé Momo!

Lacem-na toda, multicores
As serpentinas dos amores,
Cobras de lívidos venenos...
Evoé Vênus!

Se perguntarem: Que mais queres,
Além de versos e mulheres?...
- Vinhos!... o vinho que é meu fracco!...
Evoé Baco!

O alfanje rútilo da lua,
Por degolar a nuca nua
Que me alucina e que eu não domo!...
Evoé Momo!

A Lira etérea, a grande Lira!...
Por que eu extático desfira
Em seu louvor versos obscenos.
Evoé Vênus!

 


Poemas e Poesias sábado, 25 de julho de 2020

ENTRADA (POEMA DO MATO-GROSSENSE MANOEL DE BARROS)

ENTRADA

Manuel de Barros

 

Distâncias somavam a gente para menos. Nossa
morada estava tão perto do abandono que dava até
para a gente pegar nele. Eu conversava bobagens
profundas com os sapos, com as águas e com as
árvores. Meu avô abastecia a solidão. A natureza
avançava nas minhas palavras tipo assim: O dia
está frondoso em borboletas. No amanhecer o sol
põe glórias no meu olho. O cinzento da tarde me
empobrece. E o rio encosta as margens na minha
voz. Essa fusão com a natureza tirava de mim a liberdade
de pensar. Eu queria que as garças me sonhassem.
Eu queria que as palavras me gorjeassem. Então
comecei a fazer desenhos verbais de imagens. Me
dei bem. Perdoem-me os leitores desta entrada mas vou
copiar de mim alguns desenhos verbais que fiz para
este livro. Acho-os como os impossíveis verossímeis de nosso mestre Aristóteles. Dou quatro exemplos:
1) É nos loucos que grassam luarais;
2) Eu queria crescer pra passarinho;
3) Sapo é um pedaço de chão que pula;
4) Poesia é a infância da língua. Sei que os
meus desenhos verbais nada significam. Nada. Mas
se o nada desaparecer a poesia acaba. Eu sei.
Sobre o nada eu tenho profundidades.


Poemas e Poesias sexta, 24 de julho de 2020

RELÍQUIA ÍNTIMA (POEMA DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

RELÍQUIA ÍNTIMA

Machado de Assis

 

 

Ilustríssimo, caro e velho amigo,
Saberás que, por um motivo urgente,
Na quinta-feira, nove do corrente,
Preciso muito de falar contigo. 

E aproveitando o portador te digo,
Que nessa ocasião terás presente,
A esperada gravura de patente
Em que o Dante regressa do Inimigo. 

Manda-me pois dizer pelo bombeiro
Se às três e meia te acharás postado
Junto à porta do Garnier livreiro: 

Senão, escolhe outro lugar azado;
Mas dá logo a resposta ao mensageiro,
E continua a crer no teu Machado.


Poemas e Poesias quinta, 23 de julho de 2020

CERIMONIAL (POEMA DO PERNAMBUCANO LUÍS TURIBA)

CERIMONIAL

Luís Turiba

 

Coloquem Imagine na vitrola

retirem—lhe o coração em frangalhos

e enterrem—no enrolado

na bandeira do Flamengo

 

Quanto ao resto

corpo — subproduto da vida

qualquer cerimônia (simples) cabe


Afinal

a morte é sempre um gol de placa

aos 45 minutos

do segundo tempo da existência.

 

No mais: —foi bom ponta-de-lança

 

Comemorem pois

nada disso lhe pertence mais

 


Poemas e Poesias quarta, 22 de julho de 2020

BREJAL DOS GUAJAS (POEMA DO MARANHENSE JOSÉ SARNEY)

BREJAL DOS GUAJAS

José Sarney

 

Brejal, ai meu Brejal,
Brejal dos Guajajaras,
Morrer em ti, ai Deus,
Morrer em ti, ai Deus,
Tomara ...
Valsa de Zé Binga

Em pace, em pace,
em rua, em rua,
Ai meu Deus, padecendo
sem culpa nenhuma!
Incelência do Olho-d’Água Seco

Brejal, Brejal, terra querida,
Brejal, ai meu Brejal,
Motivo da minha vida,
Dizer adeus a ti, ai Deus,
Não digo tal ...
Valsa de Zé do Bule

 


Poemas e Poesias terça, 21 de julho de 2020

FOME (POEMA DO ALAGOANO JORGE DE LIMA)

FOME

Jorge de Lima

 

Vinte séculos de revolução

e inda há fome do pão que é a poesia.

Quando tento saciá-la, tento em vão:

é meu ritmo perene, noite e dia.

 

Cristo, quero escutar Teu coração:

pendo a cabeça e escuto-o. Essa agonia

de fazer o poema, essa paixão,

na Última Ceia começou. Seria,

 

um de nós... um de nós era suspeito,

um de nós entre os doze Te trairia.

E sob o peso dessa suspeição,

 

repousei a cabeça no Teu peito.

E esse ritmo de vida que eu ouvia

era o ritmo de fome deste pão.


Poemas e Poesias segunda, 20 de julho de 2020

FÁBULA DE UM ARQUITETO (POEMA DO PERNAMBUCANO JOÃO CABRAL DE MELO NETO)

FÁBULA DE UM ARQUITETO

João Cabral de Melo Neto

 

1.

A arquitetura como construir portas,
de abrir; ou como construir o aberto;
construir, não como ilhar e prender,
nem construir como fechar secretos;
construir portas abertas, em portas;
casas exclusivamente portas e teto.
O arquiteto: o que abre para o homem
(tudo se sanearia desde casas abertas)
portas por-onde, jamais portas-contra;
por onde, livres: ar luz razão certa.

2.

Até que, tantos livres o amedrontando,
renegou dar a viver no claro e aberto.
Onde vãos de abrir, ele foi amurando
opacos de fechar; onde vidro, concreto;
até refechar o homem: na capela útero,
com confortos de matriz, outra vez feto.


Poemas e Poesias domingo, 19 de julho de 2020

AMOR DE FANTASIA (POEMA DO ACRIANO J. G. DE ARAÚJO JORGE)

AMOR DE FANTASIA

J. G. de Araújo Jorge

 

O pior, para mim, é ter que encontrar-te todo dia,
falar contigo como a uma estranha,
ver-te linda e distraída,
estender-te a mão, em cumprimentos banais,
quando tu és afinal (que importa se não sabes?)
- a minha Vida...

Em vão me confesso num olhar de ternura
que procura teus olhos, além,
onde ninguém pode chegar,
e o coração se alvoroça! e paro, e me contenho,
numa angústia apaixonada...
E linda, e distraída,
tu nem percebes nada...

Iludo o meu desejo, (esse Fauno em travesti
de velho Pierrot)
a imaginar mil coisas de poeta e de louco,
(Ah! se eu fosse o teu Senhor!)
- e te atiro palavras, como serpentinas
displicentes,
para distrair os outros, os intrusos, - presentes
a este singular carnaval
do meu amor...

Ah! se soubesses o quanto és minha,
nesses instantes proibidos
da imaginação,
mas profundamente verdadeiros,
- tu, linda e distraída,
boneca e criança,
talvez acendesses, na distancia dos teus olhos
para os meus olhos marinheiros
e para a minha vida,
alguma esperança.


Poemas e Poesias sábado, 18 de julho de 2020

DESDE SEMPRE EM MIM (POEMA DA PAULISTA HILDA HILST)

DESDE SEMPRE EM MIM

Hilda Hilst

 

Contente. Contente do instante
Da ressurreição, das insônias heróicas

Contente da assombrada canção
Que no meu peito agora se entrelaça.
Sabes? O fogo iluminou a casa.
E sobre a claridade do capim
Um expandir-se de asa, um trinado

Uma garganta aguda, vitoriosa.

Desde sempre em mim. Desde
Sempre estiveste. Nas arcadas do Tempo
Nas ermas biografias, neste adro solar
No meu mudo momento
Desde sempre, amor, redescoberto em mim.


Poemas e Poesias sexta, 17 de julho de 2020

AGRAVOS DE COLOPÊNDIO (POEMA DO PORTUGUÊS GIL VICENTE)

AGRAVOS DE COLOPÊNDIO

Gil Vicente

 

 

Agravos de Colopêndio
Pois Amor o quis assi,
que meu mal tanto me dura,
não tardes triste ventura,
que a dor não se doi de mi,
e sem ti não tenho cura.

 

Foges-me, sabendo certo
que passo perigo marinho,
e sem ti vou tão deserto
que, quando cuido que acerto,
vou mais fora de caminho.
Porque tais carreiras sigo,
e com tal dita naci
nesta vida, em que não vivo,
que eu cuido que estou comigo,
e ando fora de mi.

 

Quando falo, estou calado;
quando estou, entonces ando;
quando ando, estou quedado;
quando durmo, estou acordado;
quando acordo, estou sonhando;
quando chamo, então respondo;
quando choro, entonces rio;
quando me queimo, hei frio;
quando me mostro, me escondo;
quando espero, desconfio.

 

Não sei se sei o que digo,
que cousa certa não acerto;
se fujo de meu perigo,
cada vez estou mais perto
de ter mor guerra comigo.
Prometem-me uns vãos cuidados
mil mundos favorecidos,
com que serão descansados;
e eu acho-os todos mudados
em outros mundos perdidos.

 

Já não ouso de cuidar,
nem posso estar sem cuidado;
mato-me por me matar,

 

onde estou não posso estar
sem estar desesperado.
Parece-me quanto vejo
Tudo triste com rezão:
cousas que não vem nem vão
essas são as que desejo,
e tôdas pena me dão.

 

Eu remédio não no espero,
porque aquela, em que me fundo,
pera mi, que tanto a quero,
tem o coração de Nero
pera me tirar do mundo.

 


Poemas e Poesias quinta, 16 de julho de 2020

A NOITE DESCE (POEMA DA PORTUGUESA FLORBELA ESPANCA)

A NOITE DESCE

Florbela Espanca

 

 

Como pálpebras roxas que tombassem
Sobre uns olhos cansados, carinhosas,
A noite desce... Ah! doces mãos piedosas
Que os meus olhos tristíssimos fechassem!

Assim mãos de bondade me embalassem!
Assim me adormecessem, caridosas,
E em braçadas de lírios e mimosas,
No crepúsculo que desce me enterrassem!

A noite em sombra e fumo se desfaz...
Perfume de baunilha ou de lilás,
A noite põe-me embriagada, louca!

E a noite voi descendo, muda e calma...
Meu doce Amor, tu beijas a minhalma
Beijnado nesta hora a minha boca!


Poemas e Poesias quarta, 15 de julho de 2020

VERÃO (POEMA DO MARANHENSE FERREIRA GULLAR)

VERÃO

Ferreira Gullar

 

Este fevereiro azul
como a chama da paixão
nascido com a morte certa
com prevista duração

deflagra suas manhãs
sobre as montanhas e o mar
com o desatino de tudo
que está para se acabar.

A carne de fevereiro
tem o sabor suicida
de coisa que está vivendo
vivendo mas já perdida.

Mas como tudo que vive
não desiste de viver,
fevereiro não desiste:
vai morrer, não quer morrer.

E a luta de resistência
se trava em todo lugar:
por cima dos edifícios
por sobre as águas do mar.

O vento que empurra a tarde
arrasta a fera ferida,
rasga-lhe o corpo de nuvens,
dessangra-a sobre a Avenida

Vieira Souto e o Arpoador
numa ampla hemorragia.
Suja de sangue as montanhas,
tinge as águas da baía.

E nesse esquartejamento
a que outros chamam verão,
fevereiro ainda em agonia
resiste mordendo o chão.

Sim, fevereiro resiste
como uma fera ferida.
E essa esperança doida
que é o próprio nome da vida.

Vai morrer, não quer morrer.
Se apega a tudo que existe:
na areia, no mar, na relva,
no meu coração – resiste.


Poemas e Poesias terça, 14 de julho de 2020

BRILHA UMA VOZ NA NOUTE (POEMA DO PORTUGUÊS FERNANDO PESSOA)

BRILHA UMA VOZ NA NOUTE

Fernando Pessoa

 

Brilha uma voz na noute
De dentro de Fora ouvi-a...
Ó Universo, eu sou-te...
Oh, o horror da alegria
Deste pavor, do archote
Se apagar, que me guia!

Cinzas de idéia e de nome
Em mim, e a voz:Ó mundo,
Sermente em ti eu sou-me...
Mero eco demim, me inundo
De ondas de negro lume
Em que pra Deus me afundo.


Poemas e Poesias segunda, 13 de julho de 2020

AS HORAS SÃO AMARGAS (POEMA DO GAÚCHO FABRÍCIO CARPINEJAR)

AS HORAS SÃO AMARGAS

Fabrício Carpinejar

 

As horas são amargas,
derradeiras,
os anjos perderam

a escala dos teus ouvidos,
O destino nos assemelha
mais que o nascimento.

Tuas passadas são curtas,
o perfil, enviesado.
Há uma parelha sendo

levada nas costas.
Fermentas o funcho,
o fungo e o estrume.


Poemas e Poesias domingo, 12 de julho de 2020

TROVAS HUMORÍSTICAS - 04 - (POEMA DO PARANAENSE ENO TEODORO WANKE)

TROVA HUMORÍSTICA - 04

Eno Teodoro Wanke

 

Se a formiga é atarefada

De fato, quero que explique:

Então, por que é que a danada

Nunca falta a um piquenique?


Poemas e Poesias sábado, 11 de julho de 2020

ANATHEMA (POEMA DO PIAUIENSE DA COSTA E SILVA)

ANATHEMA

Da Costa e Silva

Persigam-te as prisões fortes do meu ciúme
—Invisíveis grilhões de desejo e de zelo:
Prendam-te as mãos, os pés, as ondas do cabello,
O olhar, o hálito, a voz e o que em ti se resume.

Vibre o som desse andar, vague o doce perfume
Dessa carne pagã, causa do meu desvelo,
Mando que te acompanhe o eterno pesadelo
Deste amor que ainda mais temo em dor se avolume.

Ronda-te o meu olhar, como o olhar de um morcego
Varando o brumo véo de uma noite de crime,
Prescrutando, a seguir-te —onde chegas eu chego.

Foges? Em vão fugir —o ciúme priva a fuga…
E esse amor que te busca e te cerca e te opprime,
É o mesmo que me afflige, acobarda e subjuga.


Poemas e Poesias sexta, 10 de julho de 2020

COMO UM CISNE, EST,ALMA FRISA (POEMA DO CATARINENSE CRUZ E SOUSA)

COMO UM CISNE, EST'ALMA FRISA

Cruz e Sousa

 

 

       
 

Como um cisne, est'alma frisa

O mar de luz de teus olhos,

   
  ó simpática Adalziza    
  como um cisne, est'alma frisa,    
  vagueia, paira, desliza  5  
  sem naufragar nos escolhos    
  como um cisne, est'alma frisa    
  o mar de luz de teus olhos.

Poemas e Poesias quinta, 09 de julho de 2020

HUMILDADE (POEMA DA GOIANA CORA CORALINA)

HUMILDADE

Cora Coralina

 

Senhor, fazei com que eu aceite
minha pobreza tal como sempre foi.

Que não sinta o que não tenho.
Não lamente o que podia ter
e se perdeu por caminhos errados
e nunca mais voltou.

Dai, Senhor, que minha humildade
seja como a chuva desejada
caindo mansa,
longa noite escura
numa terra sedenta
e num telhado velho.

Que eu possa agradecer a Vós,
minha cama estreita,
minhas coisinhas pobres,
minha casa de chão,
pedras e tábuas remontadas.
E ter sempre um feixe de lenha
debaixo do meu fogão de taipa,
e acender, eu mesma,
o fogo alegre da minha casa
na manhã de um novo dia que começa.


Poemas e Poesias quarta, 08 de julho de 2020

XCVIII (SONETOS) DESTES PENHASCOS FEZ A NATUREZA

XCVIII (SONETOS) DESTES PENHASCOS FEZ A NATUREZA

Cláudio Manuel da Costa

 


Destes penhascos fez a natureza
O berço, em que nasci: oh quem cuidara,
Que entre penhas tão duras se criara
Uma alma terna, um peito sem dureza!

Amor, que vence os tigres, por empresa
Tomou logo render-me; ele declara
Contra o meu coração guerra tão rara,
Que não me foi bastante a fortaleza.

Por mais que eu mesmo conhecesse o dano,
A que dava ocasião minha brandura,
Nunca pude fugir ao cego engano:

Vós, que ostentais a condição mais dura,
Temei, penhas, temei; que Amor tirano,
Onde há mais resistência, mais se apura.

 


Poemas e Poesias terça, 07 de julho de 2020

MEU DEUS, ME DÊ A CORAGEM (POEMA DA UCRANIANA-BRASILEIRA CLARICE LISPECTOR)

MEU DEUS, ME DÊ A CORAGEM

Clarice Lispector

 

Meu Deus, me dê a coragem
De viver trezentos e sessenta e cinco dias e noites,
Todos vazios de Tua presença.
Me dê a coragem de considerar esse vazio
Como uma plenitude.
Faça com que eu seja a Tua amante humilde,
Entrelaçada a Ti em êxtase.
Faça com que eu possa falar
Com este vazio tremendo
E receber como resposta
O amor materno que nutre e embala.
Faça com que eu tenha a coragem de Te amar,
Sem odiar as Tuas ofensas à minha alma e ao meu corpo.
Faça com que a solidão não me destrua.
Faça com que minha solidão me sirva de companhia.
Faça com que eu tenha a coragem de me enfrentar.
Faça com que eu saiba ficar com o nada
E mesmo assim me sentir
Como se estivesse plena de tudo.
Receba em teus braços
O meu pecado de pensar.


Poemas e Poesias segunda, 06 de julho de 2020

DISCURSO (POEMA DA CARIOCA CECÍLIA MEIRELES)

DISCURSO

Cecília Meireles

 

E aqui estou, cantando.

Um poeta é sempre irmão do vento e da água:
deixa seu ritmo por onde passa.

Venho de longe e vou para longe:
mas procurei pelo chão os sinais do meu caminho
e não vi nada, porque as ervas cresceram e as serpentes
andaram.

Também procurei no céu a indicação de uma trajetória,
mas houve sempre muitas nuvens.
E suicidaram-se os operários de Babel.

Pois aqui estou, cantando.

Se eu nem sei onde estou,
como posso esperar que algum ouvido me escute?

Ah! Se eu nem sei quem sou,
como posso esperar que venha alguém gostar de mim?


Poemas e Poesias sábado, 04 de julho de 2020

O SÃO FRANCISCO (28ª PARTE DO POEMA A CACHOEIRA DE PAULO AFONSO, CO BAIANO CASTRO ALVES)

O RIO SÃO FRANCISCO

Castro Alves

(Do poema A Cachoeira de Paulo Afonso)

 

LONGE, bem longe, dos cantões bravios,
Abrindo em alas os barrancos fundos;
Dourando o colo aos perenais estios,
Que o sol atira nos modernos mundos;
Por entre a grita dos ferais gentios,
Que acampam sob os palmeirais profundos;
Do São Francisco a soberana vaga
Léguas e léguas triunfante alaga!

Antemanhã, sob o sendal da bruma,
Ele vagia na vertente ainda,
— Linfa amorosa — coa nitente espuma
Orlava o seio da Mineira linda;
Ao meio-dia, quando o solo fuma
Ao bafo morto de lia calma infinda,
Viram-no aos beijos, delamber demente
As rijas formas da cabocla ardente.

Insano amante! Não lhe mata o fogo
O deleite da indígena lasciva...
Vem — à busca talvez de desafogo
Bater à porta da Baiana altiva.
Nas verdes canas o gemente rogo
Ouve-lhe à tarde a tabaroa esquiva...
E talvez por magia à luz da lua
Mole a criança na caudal flutua.

Rio soberbo! Tuas águas turvas
Por isso descem lentas, peregrinas...
Adormeces ao pé das palmas curvas
Ao músico chorar das casuarinas!
Os poldros soltos — retesando as curvas, —
Ao galope agitando as longas crinas,
Rasgam alegres — relinchando aos ventos —
De tua vaga os turbilhões barrentos.

E tu desces, ó Nilo brasileiro,
As largas ipueiras alagando,
E das aves o coro alvissareiro
Vai nas balças teu hino modilhando!
Como pontes aéreas — do coqueiro
Os cipós escarlates se atirando,
De grinaldas em flor tecendo a arcada
São arcos triunfais de tua estrada!...


Poemas e Poesias sexta, 03 de julho de 2020

VIOLETA (POEMA DO FLUMINENSE CASIMIRO DE ABREU)

VIOLETA

Casimiro de Abreu

 

Sempre teu lábio severo
Me chama de borboleta!
- Se eu deixo as rosas do prado
É só por ti - violeta!

Tu és formosa e modesta,
As outras são tão vaidosas!
Embora vivas na sombra
Amo-te mais do que às rosas.

A borboleta travessa
Vive de sol e de flores.
- Eu quero o sol de teus olhos,
O néctar dos teus amores!

Cativo de teu perfume
Não mais serei borboleta;
- Deixa eu dormir no teu seio,
Dá-me o teu mel - violeta!


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