A MEU IRMÃO
(JOSÉ JOAQUIM GOMES COELHO)
Júlio Dinis
Também tu, meu irmão, inda aos vinte anos, Dizes ao mundo teu extremo adeus!
Deixas-me só e partes! os arcanos
Vais da vida sondar aos pés de Deus?
Inda há bem pouco aspirações ridentes, Despertadas ao sol da juventude,
Te apontavam futuros resplendentes
De mil glórias, de amor e de virtude.
Há pouco em devaneios tão risonhos, Cantavas em sentida poesia
As meigas ilusões, dourados sonhos
Que te adejavam sempre à fantasia.
Há pouco tu julgavas do horizonte
Ver dum belo porvir sorrir-te a aurora,
Bem como a áurea luz c’roando o monte,
Do Sol preced e a chama animadora.
Tudo isso era ilusão, simples quimera, Que aos vinte anos sonhamos acordados; Curta página a sorte te escrevera
No grande livro incógnito dos fados
E enquanto descuidado te entregavas
Aos sonhos da exaltada fantasia,
Sob a florea vereda que trilhavas
A morte, a fria morte, se escondia!
Tu viste uma por uma emurchecerem
As mais viçosas flores da tua vida;
E as esperanças seu verdor perderem
Com a aridez da existência desflorida.
Não te lamento, irmão; a tua sorte, Ao que padece, inveja só produz;
Porque às trevas finais da hora da morte
Seguem-se anos sem fim de imensa luz.
Eras justo, no Céu gozas a palma,
Que ao mundo, aqui debalde pedirias,
E os anjos acolheram a tua alma
Num coro de suaves harmonias.
Mas eu, que te amei, pra quem tu eras
Mais que irmão, mais que pai, mais que amigo,
Eu, a quem desde infante ofereceras,
Pra suprir o de mãe fraterno abrigo.
Mais infeliz fui eu;
Junto a meu lado
Vago está o lugar que abandonaste.
Vivo só, com as saudades do passado,
Do tempo que de encantos povoaste.
Nesta acerba aridez do meu presente
Recordo-me da vida que passou,
E bem vejo que a sorte fatalmente
Na vida do infortúnio me lançou.
Como a do nauta desditosa sorte,
Que o mar arrosta em tormentosa viagem,
E viu nas ondas que enfurece a morte
Sucumbir todo o resto da equipagem;
Tal o destino meu; entrei no mundo
E saudei-o com hinos de alegria;
Nos êxtases dum júbilo profundo,
O dom da vida a Deus agradecia.
Em ambiente de amor desabrocharam
Na infância as flores da existência minha.
Amor de pai, de mãe, de irmãos, douraram
A amena senda, que ante mim eu tinha.
O belo céu, que nos sorriu na infância,
Em brev e se mostrou turbado e triste;
A terna mãe pedira a outra estância
A paz, que neste mundo não existe.
E ai daquele, que no alvor da vida
Perdeu pra sempre maternais afagos,
Ai, que bem cedo a vê ser consumida
Por mil anelos, mil desejos vagos.
Ai, bem cedo o sentimos! Separados
Do sol que a infância em luz nos envolvia,
Quais estioladas plantas, assombrados,
A fronte inda infantil, já nos pendia.
E assim viveste! e quando a idade ardente
De mil aspirações te enchia o peito,
Olhaste, e vendo a isolação somente,
Cansado, te deitaste em frio leito.
E eu, em vão no ataúde me curvava,
Em vão hei procurado a tua campa;
A morte de mistérios te falava,
Mas nos lábios do morto o dedo estampa.
Em vão te perguntei: Nessa morada
Outros fúlgidos sonhos imaginas?
Ao sair da vida deparaste o nada?
Ou acordaste em regiões divinas?
Mudo ficaste.
Os ventos perpassaram,
Soltando queixas no volver das folhas,
E teus lábios imóveis não falaram,
Nem sequer o irmão saudoso olhas.
Meu Deus! permite que através da lousa
Possa ele ouvir a minha voz ainda,
E desse leito, onde afinal repousa,
Me diga: A vida neste pó não finda;
Me diga: A crença que na leda infância
Aprendemos da mãe é verdadeira;
Há outra vida, há uma outra estância,
Tão feliz, quanto esta é passageira;
Que se encontram os entes mais queridos,
E em eterno amplexo a Deus se humilham;
Oue os prazeres em sonhos concebidos
Só há no espaço onde as estrelas brilham.
E então, ó Senhor, com a fé mais pura
Eu ansiarei pelo supremo instante
Em que, livre da humana desventura,
Demandar tua estância radiante.
Deixa que o amigo ao amigo só revele Os segredos que a morte lhe confia, Esta incerteza… em vão a fé repele,
A dúvida cruel continuo a cria.
Porque negas, Senhor, ao peregrino
Que vai cumprindo só esta romagem ,
Um raio ao menos do saber divino,
Que lhe brade na dúvida: Coragem !?
Porque não ha-de a lousa funerária
Erguer-se à voz saudosa da amizade,
Para falar à alma solitária
Que anela por saber toda a verdade ?
Porquê?…
Mas, Deus, perdoa! eu creio! eu creio!
No seu leito de morte o conheci:
Sim, nesse instante de tormentos cheio,
No peito a voz da crença bem ouvi!
E por isso prostrei-me de joelhos,
E os lábios murmuravam a oração,
E cri então no Deus dos Evangelhos,
E a dúvida deixou-me o coração.
Repousa, irmão, à sombra do cipreste;
Não repousar na terra é desventura.
Dorme no mundo e acorda à luz celeste,
Cruzando o limiar da sepultura.
Dezembro de 1859.
Nota do Autor. – Duvidar da verdade desta poesia, era duvidar dos meus sentimentos mais puros, dos meus mais queridos afectos e nesse caso, não sei de palavras que me pudessem justificar.