CRISTO
Euclides da Cunha
A Filinto d'Almeida
Era uma idade atroz... forte e grandiosa.
Levantando altivíssima a alterosa
E fulgurante coma
Nas ruínas das nações se erguia Roma...
Trágica e má – das raças quebradas,
Das velhas raças de remota história,
Afogando a existência, a força e a glória
– Num dilúvio flamívomo de espadas! –
Não havia aplacá-la, nem dos perros
A queixa vil, nem dos heróis nos ferros;
Embalde o pranto acerbo
Sufocando, Mitríades, soberbo,
Se erguera na Ásia aos rígidos embates
De férvidas paixões para, possante,
Lançar um trono no bulcão troante
Do torvelinho horrível dos combates!
Tombara Filopoeme _ altivo o aspeito,
Concentrando no velho e frio peito
Todo o vigor guerreiro,
Todo o heroísmo de um país inteiro...
– E o que passou então foi sublimado –
A Grécia, que era morta, morta e escrava,
Transmudou-se num túmulo – heróica e brava –
Para guardar seu último soldado...
No Egito, o horror dos dramas lutuosos...
Rotos, sombrios, pávidos, raivosos,
Os últimos heróis
Sofriam pela pátria... oh! dor atroz –
Oh! dor fatal que o coração adstringes!
E passavam, cingindo as velhas clâmides,
– Entre a sombra funérea das pirâmides
E o olhar petrificado das esfinges!
A Ibéria exangue – nem sequer o insano
Louco gemer do eterno amante – o Oceano
Ouvia, lhe atirando às plantas frias
Grandes canções – vestidas de ardentias...
Amante imenso, de um amor profundo,
Que mais tarde, grandioso, para erguê-la,
– Não podendo engastá-la numa estrela –
Lançou-lhe aos pés – um mundo!
Nos corações as recalcadas penas
Doíam sem um só gemido... apenas
Numa loucura brava.
O Parta palmo a palmo recuava;
No terreno sagrado de seus pais;
Caía – como o raio – fulminando,
E morria – as espadas agitando
Como sabem morrer os imortais!
Mas de onde vinha esse fatal domínio?
Lançai à história o olhar. Vede:
Um triclínio.
Das taças arrebenta
Formidolosa a embriaguez sangrenta...
Um truão se ergue: em seu olhar cintila
A febre, às vozes doces de um saltério,
Ébrio e trôpego dança... Ei-lo Tibério...
–Tibério cambaleia – e o mundo oscila!
Foi nessa idade atroz e má, repleta
De crimes, que Jesus, incruento atleta –
Ergueu como uma aurora,
Por entre a multidão, a fronte loura...
E nova vida palpitou na terra;
Vacilaram os ferros sanguinários
Nas manoplas dos rudes legionários;
– Em frente à paz estremeceu – a guerra...
Dissolveram-se em prantos os ressábios
Das concentradas dores, e nos lábios
Sublime, pairou esse
Bafejo ardente da nossa alma... a prece...
E livre dessas noites que se somem
Ante os fulgores da razão de um justo,
O mundo inteiro se soerguendo a custo,
Respirava p'la boca de um só homem!
Da antiga idade, os deuses combalidos
Oscilaram, quebrados, derruídos,
Ante o clarão brilhante
Daquela consciência rutilante...
E, cobardes, num círculo de lanças,
Cheios de um grande espanto, vacilaram
Os déspotas, torvados... e recuaram
Ante um homem cercado de crianças...
E quando ele caiu... o mundo antigo,
O seu ingrato e trágico inimigo,
– Alucinado e insano _
Deslumbrou-se ante um quadro sobre-humano:
Aureolava-o ignota claridade...
E aquele morto... frio, macerado,
Tendo no lábio um riso ensanguentado,
Na espádua roxa – erguia a Humanidade...