A MORTE DO POETA
Júlio Dinis
Calou-se a lira! E a criação nos coros
De menos uma voz aos céus revoa!
Na imensa harpa, em que o universo entoa
Seus cânticos, de menos uma corda!
Que foi? que nota falta às harmonias?
Que foi? que mão deixou quebrar a lira?
O poeta morreu, o canto expira,
Cessam seus hinos do sepulcro à borda !
Morreu o teu cantor, ó Armamento! Teu sacerdote ardente, ó poesia!
Ó Deus, ó Pátria, a última agonia
Gelou a voz que hosanas vos sagrara!
Crente inspirado, os brados do entusiasmo
Não lhe esfriou dos homens a indiferença,
E a venenosa taça da descrença
Dos generosos lábios arrojara!
O poeta morreu! E o Sol e os astros Que ele cantou, e a abóbada celeste De lutuosas trevas se não veste;
E tu, ó Pátria, que ele amava tanto, Tu dormes inda esse gelado sono ?! Não te acorda o seu último gemido? Sente-lhe a morte, se não hás sentido De animação e glória o eterno canto
Mas não; os homens vêem pasmar o féretro, Vêem do sepulcro alevantar-se a lousa,
E, olhando a nobre fronte que repousa,
— Quem é ? perguntam com cruel frieza.
— É um poeta, lhes respondem poucos. Um poeta! palavra incompreensível!
Por ele a multidão passa insensível,
E a campa desampara com presteza.
E um poeta morreu! listas palavras
Nada vos dizem, povos, que as ouvistes?
Não as há mais solenes nem mais tristes.
Oh! nelas reflecti um só momento!
Não sabeis o que diz a morte do homem
Que se encaminha à campa que lhe ergueram
Seguido apenas dos que ainda veneram
O culto da poesia e pensamento?
Não ouvis esse dobre, que o lamenta? É como a voz do século, que brada :
— «Chorai, ó multidões, que na cruzada
Da civilização vos alistastes,
Chorai, um dos soldados que hà caído,
Deus lhe dera a bandeira que vos guia,
O estandarte da idéia, a poesia;
Mas vós na heróica empresa o abandonastes !
«Lamenta, ó liberdade, o teu apóstolo! Amor, o coração que te entendia!
Tu, Pátria, o filho que melhor podia
Entre as nações da terra engrandecer-te!
Religião, ai! chora o sacerdote,
Que, entoando no templo os sacros hinos,
Chamara os povos aos altares divinos
E cultos sem iguais pudera erguer-te!»
E tu, 0 mundo, o vês quase indiferente! Curva a cabeça ante essa campa aberta, Ajoelha-te, e a fronte descoberta,
Venera as cinzas que deixou na Terra; Os restos são da mais violenta chama, Que o fogo do Céu no mundo ateia;
A chama ardente de inspirada idéia, Fogo que a mente do poeta encerra I
Verte, oh! verte uma lágrima na tumba; Uma lágrima só. Outros desejam
Soberbos mausoléus onde se vejam Fulgir os nomes seus em letras d’ouro; Ele não. Flores e lágrimas, eis tudo!
Eis o diadema a que o poeta aspira; Porque lho negas? Que paixão te inspirar Delas fizeste, ó mundo, o teu tesouro?
Ai, não ; umas e outras as desprezas: As flores procuram as campinas,
Porque a turba, ao passar, calca as boninas, E o sopro das cidades as murchava.
As lágrimas, as flores do sentimento, Não as diviso já nos olhos do homem, Ou das paixões as lavas as consomem,
Ou morto é o sentimento que as gerava.
Fazes bem em passar, mundo, se ignoras
Desta cena a solene majestade,
Impassível ficar era impiedade.
Parte, vai; a indiferença era um insulto.
Oh! mil vezes mais grato o isolamento…
Mas não, o isolamento não existe:
Junto da campa se reúne triste
Longo cortejo de lutuoso vulto.
Ei-los; do vasto templo se avizinham, Trazem no rosto a dor, que os consome. Esses veneram do poeta o nome,
Do féretro ao passar, curvam a fronte, Respeitai esse pranto, que é sentido; Longe, indiferentes, que o lugar é santo! Os que entenderam seu sublime canto, Saúdam-no ao sumir-se no horizonte I
Silêncio! A Pátria do seu sono acorda! Sono talvez, que precursor da morte, Do filho só lamenta a triste sorte,
3eme saudosa com magoado acento! Ai, nos seus dias de passada glória,
De mãe o desespero a voz lhe erguera, E, em seu clamor, às praias estendera
Das nações mais longínquas o alto alento.
Mas hoje, já de forças exaurida,
É fraca a sua voz ante essa tumba;
Do peito vem, porém já não retumba
Nos ecos das nações mais poderosas.
Apenas sua irmã, a mais vizinha,
Que quase a mesma linguagem fala,
Compassiva parece lamentá-la,
Ouvindo suas queixas dolorosas.
Poeta, dorme pois: a tua campa
Não ficará sem lágrimas nem flores,
As liras soltam fúnebres clamores
E os ventos reproduzem suas queixas.
Dorme, dorme, poeta, que teu sono
A turba inquietaria com seus passos;
Mas qual o infante nos maternos braços,
Dorme ao som dessas lânguidas endeixas.
Dorme, dorme em sossego… mas, silêncio! Para que solto a voz? Cala-te ó lira!
Se o gênio da poesia não te inspira, Para que o seu cultor lamentas triste? Diante da mudez deste sepulcro
Teus ais de dor, ó coração, suspende;
Vê em silêncio o Sol, que ao ocaso pende
Como em silêncio no zénite o viste.