A UM VIOLINISTA
Olavo Bilac
I
Quando do teu violino, as asas entreabrindo
Mansamente no espaço, iam-se as notas quérulas,
Anjos de olhos azuis, às duas mãos partindo
Os seus cofres de pérolas,
- Minhas crenças de amor, esquecidas em calma
No fundo da memória, ouvindo-as recebiam
Novo alento, e outra vez do oceano de minh'alma,
Arquipélago verde, à tona apareciam.
E eu via rutilar o meu amor perdido,
Belo, de nova luz e novo encanto cheio,
E um corpo, que supunha há muito consumido,
Agitar-se de novo e oferecer-me o seio.
Tudo ressuscitava ao teu influxo, artista!
E minh'alma revia, alucinada e louca,
Olhos, cujo fulgor me entontecia a vista,
Lábios, cujo sabor me entontecia a boca.
Oh milagre! E, feliz, ajoelhava-me, em pranto,
Como quem, por acaso, um dia, entrando as portas
De um cemitério, vai achar vivas a um canto
As suas ilusões que acreditava mortas,
E ficava a pensar... como se não partia
Essa fraca madeira ao teu toque violento,
Quando com tanta febre a paixão se estorcia
Dentro do pequenino e frágil instrumento!
Porque, nesse instrumento, unidos num só peito,
Todos os corações da terra palpitavam;
E havia dentro dele, em lágrimas desfeito,
O amor universal de todos os que amavam,
Rio largo de sons, tapetado de flores,
A harmonia do céu jorrava ampla e sonora;
E, boiando e cantando, alegrias e dores
Iam corrente em fora...
A Primavera rindo esfolhava as capelas,
E entornava no chão as ânforas cheirosas:
E a canção acordava as rosas e as estrelas,
E enchia de desejo as estrelas e as rosas.
E a água verde do mar, e a água fresca dos rios,
E as ilhas de esmeralda, e o céu resplandecente,
E a cordilheira, e o vale, e os matagais sombrios,
Crespos, e a rocha bruta exposta ao sol ardente:
- Tudo, ouvindo essa voz, tudo cantava e amava!
O amor, caudal de fogo atropelada e acesa,
Entrava pelo sangue e pela seiva entrava,
E ia de corpo em corpo enchendo a Natureza!
E ei-lo triste, no chão, inanimado e frio,
O teu pobre violino, o teu amor primeiro:
E inda nas cordas há, como um leve arrepio,
A última vibração do arpejo derradeiro...
Como, ígneas e imortais, num redemoinho insano,
Longe, a torvelinhar em céus inacessíveis,
Pairam constelações virgens do olhar humano,
Nebulosas sem fim de mundos invisíveis:
- Assim no teu violino, artista! adormecido
À espera do teu arco, em grupos vaporosos,
Dorme, como num céu que não alcança o ouvido,
Um mundo interior de sons misteriosos...
Suspendam-me ao ar livre esse doce instrumento!
Deixem-no ao sol, em glória, em delirante festa!
E ele se embeberá dos perfumes que o vento
Traz dos frescos desvios do vale e da floresta.
Os pássaros virão tecer nele os seus ninhos!
As rosas se abrirão em suas cordas rotas!
E ele derramará sobre os verdes caminhos
Da antiga melodia as esquecidas notas!
Hão de as aves cantar, hão de cantar as flores...
Os astros sorrirão de amor na imensa esfera...
E a terra acordará para os novos amores
De nova primavera!
Porque, como Terpandro acrescentou à lira,
Para a tornar mais doce, uma corda mais pura,
Que é a corda onde a paixão desprezada suspira,
E, em lágrimas, a arder, suspira a desventura;
Também desse instrumento às quatro cordas de ouro,
O Desespero, o Amor, a Cólera, a Piedade,
- Tu, nobre alma, chorando acrescentaste o choro
Eterno e a eterna dor da corda da Saudade
É saudade o que sinto, e me enche de ais a boca,
E me arrebata o sonho, e os nervos me fustiga,
Quando te ouço tocar: saudade ansiosa e louca
Do primitivo amor e da beleza antiga...
Para trás! para trás! Basta um simples arpejo,
Basta uma nota só... Todo o espaço estremece:
E, dando aos pés do amado o derradeiro beijo
Quase morta de dor, Madalena aparece...
Ao luar de Verona, a amorosa cabeça
De Julieta desmaia entre os braços do amante:
Não tarda que a alvorada em fogo resplandeça,
E na devesa em flor a cotovia cante...
Viúva triste, que à paz do claustro pede alivio,
Para a sua viuvez, para o seu luto imenso,
Branca, sob o livor do escapulário níveo,
Heloísa ergue as mãos, numa nuvem de incenso...
E na suave espiral das melodias puras,
Vão fugindo, fugindo os vultos infelizes,
Mostrando ao meu amor as suas amarguras,
Mostrando ao meu olhar as suas cicatrizes.
Canta! o rio de sons que do seio te brota
E, entre os parcéis da dor, corre, cascateando,
E vai, de vaga em vaga, e vai, de nota em nota,
Ao sabor da corrente os sonhos arrastando;
Que pelo vale espalha a cabeleira inquieta,
Refrescando os rosais, e, em leve burburinho,
Um gracejo segreda a cada borboleta,
E segreda um queixume a cada passarinho;
Que a todo o desconforto e a todo o sofrimento
Abre maternalmente o regaço das águas,
- É o rio perfumado e azul do Esquecimento,
Onde se vão banhar todas as minhas mágoas.