Almanaque Raimundo Floriano
Fundado em 24.09.2016
(Cultural, sem fins comerciais, lucrativos ou financeiros)


Raimundo Floriano de Albuquerque e Silva, Editor deste Almanaque, também conhecido como Velho Fulô, Palhaço Seu Mundinho e Mundico Trazendowski, nascido em Balsas , Maranhão, a 3 de julho de 1936, Católico Apostólico Romano, Contador, Oficial da Reserva do Exército Brasileiro, Funcionário Público aposentado da Câmara dos Deputados, Titular da Cadeira nº 10 da Academia Passa Disco da Música Nordestina, cuja patrona é a cantora Elba Ramalho, Mestre e Fundador da Banda da Capital Federal, Pesquisador da MPB, especializado em Velha Guarda, Música Militar, Carnaval e Forró, Cardeal Fundador da Igreja Sertaneja, Pioneiro de Brasília, Xerife nos Mares do Caribe, Cordelista e Glosador, Amigo do Rio das Balsas, Inventor da Descida de Boia, em julho de 1952, Amigo da Fanfarra do 1° RCG, autor dos livros O Acordo PDS/PTB, coletânea de charges, Sinais de Revisão e Regras de Pontuação, normativo, Do Jumento ao Parlamento, com episódios da vida real, De Balsas para o Mundo, centrado na navegação fluvial Balsas/Oceano Atlântico, Pétalas do Rosa, saga da Família Albuquerque e Silva, Memorial Balsense, dedicado à história de sua terra natal, e Caindo na Gandaia, humorístico apimentado, é casado, tem quatro filhos, uma nora, dois genros e dois netos e reside em Brasília, Distrito Federal, desde dezembro de 1960.

Poemas e Poesias quarta, 06 de fevereiro de 2019

NOS CAMPOS (15ª PARTE DO POEMA A CACHOEIRA DE PAULO AFONSO, DO BAIANO CASTRO ALVES)

NOS CAMPOS

Castro Alves

(Do poema A Cachoeira de Paulo Afonso)

 

"Fugi desvairada!
Na moita intrincada,
Rasgando uma estrada,
Fugaz me embrenhei.
Apenas vestindo
Meus negros cabelos,
E os seios cobrindo
Com os trêmulos dedos,
Ligeira voei!

"Saltei as torrentes.
Trepei dos rochedos
Aos cimos ardentes,
Nos ínvios caminhos,
Cobertos de espinhos,
Meus passos mesquinhos
Com sangue marquei!

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

"Avante! corramos!
Corramos ainda!...
Da selva nos ramos
A sombra é infinda.
A mata possante
Ao filho arquejante
Não nega um abrigo...
Corramos ainda!
Corramos! avante!

"Debalde! A floresta
— Madrasta impiedosa —
A pobre chorosa
Não quis abrigar!
"Pois bem! Ao deserto!

"De novo, é loucura!
Seguindo meus traços
Escuto seus passos
Mais perto! mais perto!
Já queima-me os ombros
Seu hálito ardente.
Já vejo-lhe a sombra
Na úmida alfombra...
Qual negra serpente,
Que vai de repente
Na presa saltar!...
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Na douda
Corrida,
Vencida,
Perdida,

Quem me há de salvar?"


Poemas e Poesias terça, 05 de fevereiro de 2019

PRIMAVERAS (POEMA DO FLUMINENSE CASIMIRO DE ABREU)

PRIMAVERAS

Casimiro de Abreu

 


I
A primavera é a estação dos risos,
Deus fita o mundo com celeste afago,
Tremem as folhas e palpita o lago
Da brisa louca aos amorosos frisos.

Na primavera tudo é viço e gala,
Trinam as aves a canção de amores.
E doce e bela no tapiz das flores
Melhor perfume a violeta exala.

Na primavera tudo é riso e festa,
Brotam aromas do vergel florido,
E o ramo verde de manhã colhido
Enfeita a fronte da aldeã modesta.

A natureza se desperta rindo,
Um hino imenso a criação modula,
Canta a calhandra, a juriti arrula,
O mar é calmo porque o céu é lindo.

Alegre e verde se balança o galho,
Suspira a fonte na linguagem meiga,
Murmura a brisa: - Como é linda a veiga!
Responde a rosa: - Como é doce o orvalho!

II
Mas como às vezes sobre o céu sereno
Corre uma nuvem que a tormenta guia,
Também a lira alguma vez sombria
Solta gemendo de amargura um treno.

São flores murchas; - o jasmim fenece,
Mas bafejado s'erguerá de novo
Bem como o galho do gentil renovo
Durante a noite, quando o orvalho desce.

Se um canto amargo de ironia cheio
Treme nos lábios do cantor mancebo,
Em breve a virgem do seu casto enlevo
Dá-lhe um sorriso e lhe intumesce o seio

Na primavera - na manhã da vida -
Deus às tristezas o sorriso enlaça,
E a tempestade se dissipa e passa
À voz mimosa da mulher querida.

Na mocidade, na estação fogosa,
Ama-se a vida - a mocidade é crença,
E a alma virgem nesta festa imensa
Canta, palpita, s'extasia e goza.

 

Poemas e Poesias segunda, 04 de fevereiro de 2019

SONETO 068 - APARTAVA-SE NISE DE MONTANO (POEMA DO PORTUGUÊS LUÍS DE CAMÕES)

APARTAVA-SE NISE DE MONTANO

Camões

(Respeitada a grafia original)

 

Apartava-se Nise de Montano,
Em cuja alma, partindo-se, ficava;
Que o pastor na memoria a debuxava,
Por poder sustentar-se deste engano.

Por huma praia do Indico Oceano
Sôbre o curvo cajado se encostava,
E os olhos por as águas alongava,
Que pouco se doião de seu dano.

Pois com tamanha mágoa e saudade,
(Dizia) quiz deixar-me a que eu adoro,
Por testimunhas tómo ceo e estrellas.

Mas se em vós, ondas, mora piedade,
Levai tambem as lagrimas que chóro,
Pois assi me levais a causa dellas.


Poemas e Poesias domingo, 03 de fevereiro de 2019

SONETO DA ESCULTURA ESCANDALOSA (POEMA DO PORTUGUÊS MANUEL MARIA BARBOSA DU BOCAGE)

SONETO DA ESCULTURA ESCANDALOSA

Bocage

 

 

Esquentado frisão, brutal masmarro

Girava em Santarém na pobre feira;

Eis que divisa ao longe em couva ceira

Seus bons irmãos seráficos de barro:

 

O bruto, que arremeda um boi de carro

Na carranca feroz, parte à carreira,

Os sagrados bonecos escaqueira,

E arranca de ufania um longo escarro:

 

N'alma o santo furor lhe arqueja, e berra;

Mas vós enchei-vos de íntimo alvoroço,

Povos, que do burel sofreis a guerra:

 

Que dos bonzos de barro o vil destroço

É presságio talvez de irem por terra

Membrudos fradalhões de carne e osso!


Poemas e Poesias sábado, 02 de fevereiro de 2019

LUPANAR (POEMA DO CAPIXABA AUGUSTO DOS ANJOS)

AUGUSTO DOS ANJOS

Lupanar

 

Ah! Por que monstruosíssimo motivo
Prenderam para sempre, nesta rede,
Dentro do ângulo diedro da parede,
A alma do homem polígamo e lascivo?!

Este lugar, moços do mundo, vede:
É o grande bebedouro coletivo, 
Onde os bandalhos, como um gado vivo, 
Todas as noites, vêm matar a sede!

É o afrodístico leito do hetairismo 
A antecâmara lúbrica do abismo, 
Em que é mister que o gênero humano entre,

Quando a promiscuidade aterradora
Matar a última forca geradora
E comer o último óvulo do ventre!


Poemas e Poesias sexta, 01 de fevereiro de 2019

MORS - AMOR (POEMA DO PORTUGUÊS ANTERO DE QUENTAL)

HORS - AMOR

Antero de Quental

 

Esse negro corcel, cujas passadas 
Escuto em sonhos, quando a sombra desce, 
E, passando a galope, me aparece 
Da noite nas fantásticas estradas, 

Donde vem ele? Que regiões sagradas 
E terríveis cruzou, que assim parece 
Tenebroso e sublime, e lhe estremece 
Não sei que horror nas crinas agitadas? 

Um cavaleiro de expressão potente, 
Formidável, mas plácido, no porte, 
Vestido de armadura reluzente, 

Cavalga a fera estranha sem temor: 
E o corcel negro diz: "Eu sou a morte!" 
Responde o cavaleiro: "Eu sou o Amor!" 


Poemas e Poesias quinta, 31 de janeiro de 2019

ÁRIA DO LUAR (POEMA DO MINEIRO ALPHONSUS GUIMARAENS)

ÁRIA DO LUAR

Alphonsus Guimaraens

 

O luar, sonora barcarola,
Aroma de argental caçoula,
Azul, azul em fora rola...

Cauda de virgem lacrimosa,
Sobre montanhas negras pousa,
Da luz na quietação radiosa.

Como lençóis claros de neve,
Que o sol filtrando em luz esteve,
É transparente, é branco, é leve.

Eurritmia celestial das cores,
Parece feito dos menores
E mais transcendentes odores.

Por essas noites, brancas telas,
Cheias de esperanças de estrelas,
O luar é o sonho das donzelas.

Tem cabalísticos poderes
Como os olhares das mulheres:
Melancoliza e enerva os seres.

Afunda na água o alvo cabelo,
E brilha logo, algente e belo,
Em cada lago um sete-estrelo.

Cantos de amor, salmos de prece,
Gemidos, tudo anda por esse
Olhar que Deus à terra desce.

Pela sua asa, no ar revolta,
Ao coração do amante volta
A Alma da amada aos beijos solta.

Rola, sonora barcarola,
Aroma de argental caçoula,
O luar, azul em fora, rola...


Poemas e Poesias quarta, 30 de janeiro de 2019

O VINHO DE HEBE (POEMA DO MARANHENSE RAIMUNDO CORREIA

O VINHO DE HEBE

Raimundo Correia

 

Quando o Olimpo nos festins surgia
Hebe risonha, os deuses majestosos
Os copos estendiam-lhe, ruidosos
E ela passando, os copos lhes enchia...
 
A Mocidade, assim, na rubra orgia
Da vida, alegre e pródiga de gozos,
Passa por nós, e nós também, sequiosos,
Nossas taças estendemos-lhe, vazia...
 
E o vinho do prazer em nossa taça
Verte-nos ela, verte-nos e passa...
Passa, e não torna atrás o seu caminho.
 
Nós chamamo-la em vão; em nossos lábios
Restam apenas, tímidos ressábios,
Como recordações daquele vinho.

Poemas e Poesias terça, 29 de janeiro de 2019

CABOCLA DA MINHA TERRA (POEMA DO CEARENSE PATATIVA DO ASSARÉ)

CABOCLA DA MINHA TERRA

Patativa do Assaré

 


Quem me dera ser poeta 
Da mais rica inspiração 
Pra, na linguagem correta, 
Fazer do choro canção, 
Fazer riso do gemido. 
Ah! Se os esprito sabido 
De Catulo e Juvenal 
Falassem por minha boca, 
Pro mode eu cantá a caboca 
Da minha terra natal. 

Desta terra de gulóra, 
Meu querido Ceará ,
Que é conhecido na históra 
Por “Terra dos Alencar “,
Terra dos índios valentes 
Que mataram muita gente 
De frecha e também de pau, 
E terra onde, primeiro, 
O povo do cativeiro 
Se livrou do bacalhau. 

A sua pobre caboca 
É bela, forte e gentil, 
Porém minha idéia é pouca, 
Mode eu dizê tudo aqui 
Tem ela o corpo composto, 
Também a marca no rosto 
Do quente sol do sertão. 
E tem a cabeça chata 
De tanto carregá lata 
Com água do cacimbão. 

Ela não anda decente 
Nem pissui inducação 
Pois veve constantemente 
De alpargata ou pé no chão. 
Não tem de letra ricurso 
Não sabe fazê discurso 
Não sabe lê nem contá 
Pois não tem sabedoria 
Mas faz renda, cose e fia 
E trabaia no tear. 

É simples, muito singela, 
Porém tem grande valor:
Quem véve pertinho dela 
Tem um anjo potretor !
Ela não tem pele fina, 
Como as donzela granfina 
Que tiveram inducação. 
Nem tem dedo despontado, 
O seu dedo é achatado 
Da enxada e do pilão. 

Mas porém a gente nota 
Nela um jeito, um não sei quê 
Com um risinho ela bota 
Qualquer rapaz pra ruê. 
É boa, amável e bonita 
E quando, de amor, palpita, 
Querendo arranjá xodó, 
Tem caborge, tem feitiço, 
Não precisa de artifíço, 
Não bota ruge nem pó!

Pensando no casamento, 
Véve cheia de prazê. 
O beijo do atrevimento 
Não gosta de recebê. 
Não gosta de certas graça, 
E, muitas vez, até passa 
Dez ano sem namorá! 
Esperando o noivo amado, 
Que saiu do seu estado, 
Pras bandas do Paraná. 

Esta caboca roceira, 
Que na armadia não cai;
Muntas veis morre sorteira, 
Pra num disgostá seu pai. 
Só satisfaz a vontade 
Se o véio dé liberdade, 
Eu conheço muito bem! 
Essa caboca interada, 
Que sabe sofrê, calada, 
As mágoa que o peito tem. 

Eu sei de tudo, e tô certo, 
Do seu prazê e sua dor. 
Eu conheço, bem de perto, 
Sua corage e valor; 
Pois eu tenho visto munto, 
Quando é dia de adjunto, 
Na mais quente animação, 
Ela fazê, com despacho, 
Proeza de cabra macho, 
Com uma enxada na mão! 

Bem cedo, de menhãzinha, 
Quando o sol briando sai, 
Quando ela arruma a cozinha, 
Para o seu roçado vai, 
Pro móde ajudá o marido,
Muitas vêiz, endurecido, 
Sem esperança e sem fé... 
Que só não se desespera, 
Pruque ouve e considera 
Os conseio da muié! 

Caboca, eu bem te compreendo: 
Sinto muito e tenho dó. 
Quando eu te vejo sofrendo, 
Derramando o teu suó, 
Lutando por tua vida.
Caboca desprotegida, 
Eu tenho pena de tu, 
Quando eu encontro teu fio, 
Exposto ao calô e ao frio, 
Doente com fome e nu!

O grande, o maior coidado, 
Que tu nesta vida tem 
É zelá teu fio amado, 
Que tanto adora e qué bem. 
E, muntas vêiz, chega a hora 
De vê teu fio i simbóra, 
De farda, quépe e fuzí, 
Pra se metê nas fiêra, 
Honrando a nossa bandeira, 
Em defesa do Brasí!

Muntas veis te móia o rosto 
O pranto triste que dói! 
Quando teu fio, disposto, 
Fazendo papel de herói, 
Vai se oferecê à guerra. 
Caboca de minha terra, 
Tu devia ser feliz! 
Em recompensa dos fio, 
De tanto valor e brio, 
Que tu tem dado ao país. 

Só a potreção do Eterno 
Te faz corajosa assim!
Quando fáia o nosso inverno, 
Que chega o rigor sem fim, 
Tu, sem pão e emagrecida, 
Deixa a terra bem querida, 
teu caro e doce torrão, 
E vai, toda paciente, 
Com a família na frente, 
Escapar no Maranhão. 

Munta prova tu tem dado, 
Da mais disposta muié! 
Eu, que vivo do teu lado, 
Tô vendo e sei que tu é 
Bela, forte e muito boa, 
Mas, te peço, me perdoa, 
Eu não te posso cantá! 
Pruque num sou protegido 
Pelos esprito sabido 
De Catulo e Juvená


Poemas e Poesias segunda, 28 de janeiro de 2019

IN EXTREMIS (POEMA DO CARIOCA OLAVO BILAC)

IN EXTREMIS

Olavo Bilac

 

 

Nunca morrer assim! Nunca morrer num dia
Assim! de um sol assim!
Tu, desgrenhada e fria,
Fria! postos nos meus os teus olhos molhados,
E apertando nos teus os meus dedos gelados...

E um dia assim! de um sol assim! E assim a esfera
Toda azul, no esplendor do fim da primavera!
Asas, tontas de luz, cortando o firmamento!
Ninhos cantando! Em flor a terra toda! O vento
Despencando os rosais, sacudindo o arvoredo...

E, aqui dentro, o silêncio... E este espanto! e este medo!
Nós dois... e, entre nós dois, implacável e forte,
E arredar-me de ti, cada vez mais, a morte...

Eu, com o frio a crescer no coração, — tão cheio
De ti, até no horror do derradeiro anseio!
Tu, vendo retorcer-se amarguradamente,
A boca que beijava a tua boca ardente,
A boca que foi tua!

E eu morrendo! e eu morrendo
Vendo-te, e vendo o sol, e vendo o céu, e vendo
Tão bela palpitar nos teus olhos, querida,
A delícia da vida! a delícia da vida!


Poemas e Poesias domingo, 27 de janeiro de 2019

DESCOBRIMENTO (POEMA DO PAULISTA MÁRIO DE ANDRADE)

DESCOBRIMENTO

Mário de Andrade

 

 

Abancado à escrivaninha em São Paulo
Na minha casa da rua Lopes Chaves
De supetão senti um friúme por dentro.
Fiquei trêmulo, muito comovido
Com o livro palerma olhando pra mim.

Não vê que me lembrei que lá no Norte, meu Deus!
muito longe de mim
Na escuridão ativa da noite que caiu
Um homem pálido magro de cabelo escorrendo nos olhos,
Depois de fazer uma pele com a borracha do dia,
Faz pouco se deitou, está dormindo.

Esse homem é brasileiro que nem eu.


Poemas e Poesias sábado, 26 de janeiro de 2019

LIVROS E FLORES (POEMA DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

LIVROS E FLORES

Machado de Assis

 

Teus olhos são meus livros.
Que livro há aí melhor,
Em que melhor se leia
A página do amor?

Flores me são teus lábios.
Onde há mais bela flor,
Em que melhor se beba
O bálsamo do amor?


Poemas e Poesias sexta, 25 de janeiro de 2019

AMOR ANTIGO (POEMA DO MARANHENSE JOSÉ ARMANDO RODRIGUES DE SOUSA)


Poemas e Poesias quinta, 24 de janeiro de 2019

A BELA ADORMECIDA (POEMA DO MARANHENSE FERREIRA GULLAR)

A BELA ADORMECIDA

Ferreira Gullar

 

Onde ela dorme
não há lugar senão
o que o sono faz

a grama não é:
cresce perene e azul
rente a seus pés

os pássaros cantam
- é a antiga flor que volta
das vasilhas do pó

e nem move os lábios
dessa que dorme
fora da esperança

E a flora suicida
vai dançando em volta
seus fachos mortais


Poemas e Poesias quarta, 23 de janeiro de 2019

A GRANDE ESFINGE DO EGITO (POEMA DO PORTUGUÊS FERNANDO PESSOA)

A GRANDE ESFINGE DO EGITO

Fernando Pessoa

 

 

A Grande Esfinge do Egito

A Grande Esfinge do Egito sonha por este papel dentro... 
Escrevo — e ela aparece-me através da minha mão transparente 
E ao canto do papel erguem-se as pirâmides... 
Escrevo — perturbo-me de ver o bico da minha pena 
Ser o perfil do rei Quéops ... 
De repente paro... 
Escureceu tudo...

Caio por um abismo feito de tempo...

Estou soterrado sob as pirâmides a escrever versos à luz clara deste candeeiro 
E todo o Egito me esmaga de alto através dos traços que faço com a pena...

Ouço a Esfinge rir por dentro 
O som da minha pena a correr no papel... 
Atravessa o eu não poder vê-la uma mão enorme, 
Varre tudo para o canto do teto que fica por detrás de mim, 
E sobre o papel onde escrevo, entre ele e a pena que escreve 
Jaz o cadáver do rei Quéops, olhando-me com olhos muito abertos, 
E entre os nossos olhares que se cruzam corre o Nilo 
E uma alegria de barcos embandeirados erra 
Numa diagonal difusa 
Entre mim e o que eu penso...

Funerais do rei Quéops em ouro velho e Mim! ...


Poemas e Poesias terça, 22 de janeiro de 2019

TROVAS LÍRICAS E FILOSÓFICAS - 18 (POEMA DO PARANAENSE ENO TEODORO WANKE)

TROVA LÍRICA E FILOSÓFICA - 18

Eno Teodoro Wanke

 

A gente sempre acredita

Em qualquer coisa inventada

Desde que ela seja dita

Ao ouvido, cochichada

 


Poemas e Poesias segunda, 21 de janeiro de 2019

LIRIAL (POEMA DO CATARINENSE CRUZ E SOUSA)

LIRIAL

Cruz e Sousa

Vens com uns tons de searas,
De prados enflorescidos
E trazes os coloridos
Das frescas auroras claras.

E tens as nuances raras
Dos bons prazeres servidos
Nos rostos enlourecidos
Das parisienses preclaras.

Chapéu das finas elites,
De roses e clematites,
Chapéu Pierrette — entre o sol

Passando, esbelta e rosada,
Pareces uma encantada
Canção azul do Tirol.


Poemas e Poesias sábado, 19 de janeiro de 2019

NA FONTE (14ª PARTE DO POEMA A CACHOEIRA DE PAULO AFONSO, BAIANO CASTRO ALVES)

NA FONTE

Castro Alves

(Do poema A Cachoeira de Paulo Afonso)

 

I
"Era hoje ao meio-dia.
Nem uma brisa macia
Pela savana bravia
Arrufava os ervaçais...
Um sol de fogo abrasava;
Tudo a sombra procurava;
Só a cigarra cantava
No tronco dos coqueirais.

II
"Eu cobri-me da mantilha,
Na cabeça pus a bilha,
Tomei do deserto a trilha,
Que lá na fonte vai dar.
Cansada cheguei na mata:
Ali, na sombra, a cascata
As alvas tranças desata
Como u'a moça a brincar.

III
"Era tão densa a espessura!
Corria a brisa tão pura!
Reinava tanta frescura,
Que eu quis me banhar ali.
Olhei em roda... Era quedo
O mato, o campo, o rochedo...
Só nas galhas do arvoredo
Saltava alegre o sagüi.

IV
"Junto às águas cristalinas
Despi-me louca, traquinas,
E as roupas alvas e finas
Atirei sobre os cipós.
Depois mirei-me inocente,
E ri vaidosa... e contente...
Mas voltei-me de repente...
Como que ouvira uma voz!

V
"Quem foi que passou ligeiro,
Mexendo ali no ingazeiro,
E se embrenhou no balceiro,
Rachando as folhas do chão?...
Quem foi?! Da mata sombria
Uma vermelha cutia
Saltou tímida e bravia,
Em procura do sertão.

VI
"Chamei-me então de criança;
A meus pés a onda mansa
Por entre os juncos s'entrança
Como uma cobra a fugir!
Mergulho o pé docemente;
Com o frio fujo à corrente...
De um salto após de repente
Fui dentro d'água cair.

VII
"Quando o sol queima as estradas,
E nas várzeas abrasadas
Do vento as quentes lufadas
Erguem novelos de pó,
Como é doce em meio às canas,
Sob um teto de lianas,
Das ondas nas espadanas
Banhar-se despida e só!...

VIII
"Rugitavam os palmares...
Em torno dos nenufares
Zumbiam pejando os ares
Mil insetos de rubim...
Eu naquele leito brando
Rolava alegre cantando...
Súbito... um ramo estalando
Salta um homem junto a mim!"


Poemas e Poesias sexta, 18 de janeiro de 2019

DEUS (POEMA DO FLUMINENSE CASIMIRO DE ABREU)

DEUS

Casimiro de Abreu

 

Eu me lembro! Eu me lembro! – Era pequeno
E brincava na praia; o mar bramia,
E, erguendo o dorso altivo, sacudia,
A branca espuma para o céu sereno.

E eu disse a minha mãe nesse momento:
“Que dura orquestra! Que furor insano!
Que pode haver de maior do que o oceano
Ou que seja mais forte do que o vento?”

Minha mãe a sorrir, olhou pros céus
E respondeu: – Um ser que nós não vemos,
É maior do que o mar que nós tememos,
Mais forte que o tufão, meu filho, é Deus.


Poemas e Poesias quinta, 17 de janeiro de 2019

SONETO 058 - A MORTE, QUE DA VIDA O NÓ DESATA ( POEMA DO PORTUGUÊS LUÍS DE CAMÕES)

A MORTE, QUE DA VIDA O NÓ DESATA

Luís de Camões


A Morte, que da vida o nó desata,
os nós, que dá o Amor, cortar quisera
na Ausência, que é contra ele espada fera,
e co Tempo, que tudo desbarata.

Duas contrárias, que üa a outra mata,
a Morte contra o Amor ajunta e altera:
üa é Razão contra a Fortuna austera,
outra, contra a Razão, Fortuna ingrata.

Mas mostre a sua imperial potência
a Morte, em apartar dum corpo a alma.
Duas num corpo o Amor ajunte e una;

por que assi leve triunfante a palma
Amor da Morte, apesar da Ausência,
do Tempo, da Razão e da Fortuna.


Poemas e Poesias quarta, 16 de janeiro de 2019

SONETO DA DONZELA ANSIOSA (POEMA DO PORTUGUÊS MANUEL MARIA DU BOCAGE)

SONETO DA DONZELA ANSIOSA

Bocage

 

Arreitada donzela em fofo leito,
Deixando erguer a virginal camisa,
Sobre as roliças coxas se divisa
Entre sombras sutis pachacho estreito:

De louro pêlo um círculo imperfeito
Os papudos beicinhos lhe matiza;
E a branca crica, nacarada e lisa,
Em pingos verte alvo licor desfeito:

A voraz porra as guelras encrespando
Arruma a focinheira, e entre gemidos
A moça treme, os olhos requebrados:

Como é inda boçal, perde os sentidos:
Porém vai com tal ânsia trabalhando,
Que os homens é que vêm a ser fodidos.
 

Poemas e Poesias terça, 15 de janeiro de 2019

MATER ORIGINALES (POEMA DO CAPIXABA AUGUSTO DOS ANJOS)

MATER ORIGINALES

Augusto dos Anjos

 

Forma vermicular desconhecida
Que estacionaste, mísera e mofina,
Como quase impalpável gelatina,
Nos estados prodrômicos da vida;

O hierofante que leu a minha sina
Ignorante é de que és, talvez, nascida
Dessa homogeneidade indefinida
Que o insigne Herbert Spencer nos ensina.

Nenhuma ignota união ou nenhum nexo
À contigência orgânica do sexo
A tua estacionaria alma prendeu...

Ah! De ti foi que, autônoma e sem normas, 
Oh! Mãe original das outras formas, 
A minha forma lúgubre nasceu!


Poemas e Poesias segunda, 14 de janeiro de 2019

SONHO ORIENTAL (POEMA DO PORTUGUÊS ANTERO DE QUENTAL)

SONHO ORIENTAL

Antero de Quental

 

Sonho-me às vezes rei, n'alguma ilha, 
Muito longe, nos mares do Oriente, 
Onde a noite é balsâmica1 e fulgente2 
E a lua cheia sobre as águas brilha... 

O aroma da magnólia e da baunilha 
Paira no ar diáfano e dormente... 
Lambe a orla dos bosques, vagamente, 
O mar com finas ondas de escumilha3... 

E enquanto eu na varanda de marfim 
Me encosto, absorto n'um cismar sem fim, 
Tu, meu amor, divagas ao luar, 

Do profundo jardim pelas clareiras, 
Ou descansas debaixo das palmeiras, 
Tendo aos pés um leão familiar.


Poemas e Poesias domingo, 13 de janeiro de 2019

ÁRIA DOS OLHOS (POEMA DO MINEIRO ALPHONSUS GUIMARAENS)

ÁRIA DOS OLHOS

Alphonsus Guimaraens

 

Mágoas de além
De olhos de quem
Pede esmolas:
Gemidos e ais
Das autunais
Barcarolas:

Cisnes em bando
Sonambulando
Sobre o mar:
Nuvens de incenso
No céu imenso,
Todo luar:

Olhos sutis,
Ah! que me diz
O olhar santo,
Que sobre mim
Volveis assim
Tanto e tanto?

E que esperança
Nessa romança
Cheia de ais,
Olhos nevoentos,
Noites e ventos
Autunais!


Poemas e Poesias sábado, 12 de janeiro de 2019

SER MOÇA E BELA SER (POEMA DO MARANHENSE RAIMUNDO CORREIA)

SER MOÇA E BELA SER

Raimundo Correia

 

 

Ser moça e bela ser, por que é que lhe não basta?
Porque tudo o que tem de fresco e virgem gasta
E destrói? Porque atrás de uma vaga esperança 
Fátua, aérea e fugaz, frenética se lança 
A voar, a voar?... 
                            Também a borboleta, 
Mal rompe a ninfa, o estojo abrindo, ávida e inquieta, 
As antenas agita, ensaia o vôo, adeja; 
O finíssimo pó das asas espaneja;
Pouco habituada à luz, a luz logo a embriaga; 
Bóia do sol na morna e rutilante vaga;
Em grandes doses bebe o azul; tonta, espairece 
No éter; voa em redor, vai e vem; sobe e desce; 
Torna a subir e torna a descer; e ora gira 
Contra as correntes do ar, ora, incauta, se atira 
Contra o tojo e os sarcais; nas puas lancinantes 
Em pedaços faz logo às asas cintilantes; 
Da tênue escama de ouro os resquícios mesquinhos 
Presos lhe vão ficando à ponta dos espinhos; 
Uma porção de si deixa por onde passa, 
E, enquanto há vida ainda, esvoaça, esvoaça, 
Como um leve papel solto à mercê do vento; 
Pousa aqui, voa além, até vir o momento 
Em que de todo, enfim, se rasga e dilacera.

Ó borboleta, pára! ó mocidade, espera!


Poemas e Poesias sexta, 11 de janeiro de 2019

MARIA DE TODO JEITO (POEMA DO CEARENSE PATATIVA DO ASSARÉ)

MARIA DE TODO JEITO

Patativa do Assaré

 

 

Sou um pobre vagabundo
Meu nome é Mané Preá,
Vivo vagando no mundo
Que nem bola de biá
Pelo taco sacudida;
A história de minha vida
É de arrupiá cabelo;
Vou contá pubricamente,
Pra todos ficá ciente
D’onde vem meu dismantelo.

Vou dá uma prova boa,
Por mintira ninguém tome.
A bondade da pessoa
Nada tem havê com nome.
Minha mãe era Maria,
Nome que lhe deu a pia
Numa abençoada hora;
Era carinhosa e bela.
Maria do jeito dela
Só mesmo a Nossa Senhora.

Divido a sua bondade
E o seu nome tão bonito,
Eu tinha grande vontade,
Uma esperança, um parpito
De quando ficá rapaz,
Pra omentá meu cartaz
Meu prazê, minha alegria
E a vida ficá mais boa,
Casá com uma pessoa
Com o nome de Maria.

E quando rapaz fiquei,
Foi sacrifício de morte
Andei, virei, revirei
E a coisa não dava sorte;
Foi um trabaio penoso,
Porém eu sempre teimoso,
Sem mudá meu pensamento,
Queria pruque queria,
Toda Maria que eu via
Lhe falava em casamento.

Naquele meu abandono,
Eu incabulado andava,
De noite não tinha sono,
De dia não trabaiava
E de tanto maginá
Naquele meu grande azá
Ainda uns dia passei
Leso, de cabeça tonta,
Não sei nem dizê a conta
Das malas que eu arrastei.

Lá mesmo no meu distrito
Morava umas dez Maria
Mas por parte do mardito
As mesmas não me quiria
Quando do assunto eu tratava,
Muntas inté se zangava.
Era um grande caipora.
E eu vendo que não achava
No lugá onde morava
Dei um broqueio pra fora.

A gente só desingana
Dispois que chega no fim;
Se deu no sitio Imburana
Um animado festim
E fui com munta alegria
Percurá uma Maria,
Porém, não deu risurtado,
Tive uma sorte misquinha
Na festa as moça já tinha
Cada quá seu namorado.

Porém dispois de hora e meia
Vi chegá perto de mim
Uma moça gorda e feia
Do cabelo pichuin;
Tinha aquela criatura
O corpo inguá, sem cintura.
O pescoço era incuído
Sua venta era achatada
Os óio munto cumprido
E as pestana bem faiada.

Como quem amô percura
Aquela rola de gente,
Com toda sua feiúra
Se sentou na minha frente
E eu fiz que não tava vendo
Dispois fiquei conhecendo
Que a gurducha da Imburana
Me arreparava e surria
Piscava os óio e batia
Aquelas quatro pestana.

Eu vendo aquela figura
Se atirando pra meu lado,
Divido a sua feiúra
Fiquei bastante acanhado
Com aquela arrumação;
Mas dixe com meus botão
Ela não tem um siná
De beleza e simpatia
Mais, porém, se fô Maria
Ainda vou me arriscá.

Casamento não se apela,
Por não ser isto brinquedo:
Me cheguei pra perto dela
Como quem fica com medo
Quando vê uma visage;
Dispois criando corage,
Preguntei com inergia
Que naci foi pra sê home:
Moça, me diga seu nome
E ela respondeu: – Maria

Com esta resposta bela,
Meu coração se buliu
E a feiúra da donzela
Depressa diminuiu;
Pois tinha o nome sagrado
Tão querido e abençoado
Da mamãe que Deus me deu.
E eu repreto de alegria
Preguntei logo: Maria,
Você qué casá com eu?

Ela não teve demora
Foi respondendo: pois não!
Graças a Deus eu agora
Descansei meu coração
Sempre sempre tinha andado
Percurando um namorado
E vivendo sempre só
No mundo do desengano
Já tou com trinta e dois ano
E nunca achei um xodó.

Eu, com o prazê que tive
Tratei logo de casá
O mais dipressa pussive,
Com medo de si acabá.
Falando com o vigaro,
Fui cuidá de meus preparo
Naquela mesma sumana,
E com doze ou quinze dia,
Eu já tava com Maria
Dentro da minha chupana.

Eu, com a minha Maria,
Fumo tratá de vivê;
Era uma amizade fria
Mas dava pra se ruê.
Porém veja o que ela fez,
Dispois de none ou dez mês
Que o casamento se deu,
Maria tava sisuda
Munto grossêra e bicuda
Sem querê falá com eu.

Mamãe munto me queria,
Era carinhosa e boa,
Mas minha muié Maria
Era o demônio in pessoa.
Tanta força que botei
Pra casá; quando casei
Não tive felicidade,
O maió desgosto tive,
Vivendo assim como vive
Um criminoso na grade.

Quando eu saía pra roça,
Maria ficava in casa,
Sisuda, de cara grossa,
Raivosa pisando em brasa,
E um certo jeito ela tinha
Que in vez de tá na cozinha
Se largava a passiá;
Quando eu vortava do roçado,
O fogo inda tava apagado
E o feijão sem cuzinhá

E se um jeitinho eu caçava,
Nas minhas arrumação
E uma carninha comprava
Pra misturá com feijão,
Pra mim de nada sirvia.
Quando pro roçado eu ia,
Munta vez aconteceu,
A safada na cuzinha
Cumê a carne suzinha
E largá o feijão pra eu.

Dimenhã quando eu dizia:
Maria, alevanta e faça o café,
Ela, bruta, respondia:
Faça ocê, se quizé
Não gosto de sê mandada
E nem sou sua empregada;
Era o que fartava agora!
Sua preguiça era tanta
Que merenda, armoço e janta
Tudo era fora da hora.

E assim Maria passava
Toda noite e todo dia;
Aquilo que eu preguntava
Munta vez não respondia.
Umas palavra de agrado
Não dizia pra meu lado
Tava sempre zuruó,
E além de sê priguiçosa
Bruta, grossêra e teimosa
Tinha farta mais pió.

Sem confiá no marido,
Muntas vez ela mandava
Arguém me botá sintido
Pra sabê se eu namorava.
E toda minha sentença,
Sofria com paciença,
Mas porém achava feio
Aquele seu mau custume,
Pois além de tê ciúme
Gostava dos home aleio.

Foi bem triste a vida minha
Foi bem triste o meu estado
Os objetos que eu tinha
Dentro da mala guardado
Maria dava sumiço.
Só Jesus sabe o supriço
Que eu sufri nas unha dela,
Filizmente, um missanguêro
Que passou no meu terrêro,
Um dia carregou ela.

E hoje, só, no meu caminho,
Vou pensando no ditado:
É mió vivê suzinho
Do que malacompanhado -
Foi esta a maió lição
Passada inriba do chão.
Não fiz meu prano direito,
E agora conheço bem
Que este mundo véio tem
Maria de todo jeito.


Poemas e Poesias quinta, 10 de janeiro de 2019

TERCETOS (POEMA DO CAROCA OLAVO BILAC)

TERCETOS 

Olavo Bilac

 


Noite ainda, quando ela me pedia 
Entre dois beijos que me fosse embora, 
Eu, com os olhos em lágrimas, dizia: 

"Espera ao menos que desponte a aurora! 
Tua alcova é cheirosa como um ninho... 
E olha que escuridão há lá por fora! 

Como queres que eu vá, triste e sozinho, 
Casando a treva e o frio de meu peito 
Ao frio e à treva que há pelo caminho?! 

Ouves? é o vento! é um temporal desfeito! 
Não me arrojes à chuva e à tempestade! 
Não me exiles do vale do teu leito! 

Morrerei de aflição e de saudade... 
Espera! até que o dia resplandeça, 
Aquece-me com a tua mocidade! 

Sobre o teu colo deixa-me a cabeça 
Repousar, como há pouco repousava... 
Espera um pouco! deixa que amanheça!" 

E ela abria-me os braços. E eu ficava.


Poemas e Poesias quarta, 09 de janeiro de 2019

POEMAS DA AMIGA (POEMA DO PAULISTA MÁRIO DE ANDRADE)

POEMAS DA AMIGA

Mário de Andrade

 

A tarde se deitava nos meus olhos
E a fuga da hora me entregava abril,
Um sabor familiar de até-logo criava
Um ar, e, não sei por que, te percebi.

Voltei-me em flor. Mas era apenas tua lembrança.
Estavas longe doce amiga e só vi no perfil da cidade
O arcanjo forte do arranha-céu cor de rosa,
Mexendo asas azuis dentro da tarde.

Quando eu morrer quero ficar,
Não contem aos meus amigos,
Sepultado em minha cidade,
Saudade.

Meus pés enterrem na rua Aurora,
No Paissandu deixem meu sexo,
Na Lopes Chaves a cabeça
Esqueçam.

No Pátio do Colégio afundem
O meu coração paulistano:
Um coração vivo e um defunto
Bem juntos.

Escondam no Correio o ouvido
Direito, o esquerdo nos Telégrafos,
Quero saber da vida alheia
Sereia.

O nariz guardem nos rosais,
A língua no alto do Ipiranga
Para cantar a liberdade.
Saudade...

Os olhos lá no Jaraguá
Assistirão ao que há de vir,
O joelho na Universidade,
Saudade...

As mãos atirem por aí,
Que desvivam como viveram,
As tripas atirem pro Diabo,
Que o espírito será de Deus.
Adeus.


Poemas e Poesias terça, 08 de janeiro de 2019

HORAS VIVAS (POEMA DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

HORAS VIVAS

Machado de Assis

 

Noite: abrem-se as flôres...
        Que explendores!
Cynthia sonha amores
        Pelo céu.
Tenues os neblinas
        Ás campinas
Descem das collinas,
        Como um véu.


Mãos em mãos travadas,
        Animadas,
Vão aquellas fadas
        Pelo ar;
Soltos os cabellos,
        Em novellos,
Puros, louros, bellos,
        A voar.

— «Homem, nos teus dias
        Que agonias,
Sonhos, utopias.
        Ambições;
Vivas e fagueiras,
        As primeiras,
Como as derradeiras
        Illusões!

— «Quantas, quantas vidas
        Vão perdidas,
Pombas mal feridas
        Pelo mal!

Annos apoz annos,
        Tão insanos,
Vem os desenganos
        Afinal.

— «Dorme: se os pesares
        Repousares,
Vês?—por estes ares
        Vamos rir;
Mortas, não; festivas,
        E lascivas,
Somos — horas vivas
        De dormir! — »

 

Poemas e Poesias segunda, 07 de janeiro de 2019

RECADO (POEMA DO MARANHENSE FERREIRA GULLAR)

RECADO

Ferreira Gullar

 

Os dias, os canteiros,
deram agora para morrer como nos museus
em crepúsculos de convalescença e verniz
a ferrugem substituída ao pólen vivo.
São frutas de parafina
pintadas de amarelo e afinadas
na perspectiva de febre que mente a morte.

Ao responsável por isso,
quem quer que seja,
mando dizer que tenho um sexo
e um nome que é mais que um púcaro de fogo;
meu corpo mutilado em fachos.
Às mortes que me preparam e me servem
na bandeja,
sobrevivo,
que a minha eu mesmo a faço, sobre a carne da perna,
certo,
como abro as páginas de um livro
- e obrigo o tempo a ser verdade


Poemas e Poesias domingo, 06 de janeiro de 2019

ABISMO (POEMA DO PORTUGUÊS FERNANDO PESSOA)

ABISMO

Fernando Pessoa

 

 

Olho o Tejo, e de tal arte 
Que me esquece olhar olhando, 
E súbito isto me bate 
De encontro ao devaneando — 
O que é sério, e correr? 
O que é está-lo eu a ver? 

Sinto de repente pouco, 
Vácuo, o momento, o lugar. 
Tudo de repente é oco — 
Mesmo o meu estar a pensar. 
Tudo — eu e o mundo em redor — 
Fica mais que exterior. 

Perde tudo o ser, ficar, 
E do pensar se me some. 
Fico sem poder ligar 
Ser, idéia, alma de nome 
A mim, à terra e aos céus... 

E súbito encontro Deus. 


Poemas e Poesias sábado, 05 de janeiro de 2019

TROVAS LÍRICAS E FILOSÓFICAS - 17 (POEMA DO PARANAENSE ENO TEODORO WANKE)

TROVA LÍRICA E FILOSÓFICA 17

Eno Teodoro Wanke

 

Invejo a felicidade

De quem saudoso se diz

Quem hoje sente maldade

Já foi, um dia, feliz

"


Poemas e Poesias sexta, 04 de janeiro de 2019

ETERNO SONHO (POEMA DO CATARINENSE CRUZ E SOUSA)

ETERNO SONHO

Cruz e Sousa

 

 

 

Talvez alguém estes meus versos lendo
Não entenda que amor neles palpita,
Nem que saudade trágica, infinita
Por dentro dele sempre está vivendo.

Talvez que ela não fique percebendo
A paixão que me enleva e que me agita,
Como de uma alma dolorosa, aflita
Que um sentimento vai desfalecendo.

E talvez que ela ao ler-me, com piedade,
Diga, a sorrir, num pouco de amizade,
Boa, gentil e carinhosa e franca:

— Ah! bem conheço o teu afeto triste...
E se em minha alma o mesmo não existe,
É que tens essa cor e é que eu sou branca!


Poemas e Poesias quarta, 02 de janeiro de 2019

MUDO E QUEDO (13ª PARTE DO POEMA A CACHOEIRA DE PAULO AFONSO, DO BAIANO CASTRO ALVES)

MUDO E QUEDO

Castro Alves

(Do poema A Cachoeira de Paulo Afonso)

 

E Calado Ficou... De pranto as bagas
Pelo moreno rosto deslizaram,
qual da braúna, que o machado fere,
Lágrimas saltam de um sabor amargo
Mudos, quedos os dois neste momento
Mergulhavam no dédalo dangústia,
No labirinto escuro que desgraça...
Labirinto sem luz, sem ar, sem fio ...

Que dor, que drama torvo de agonias
Não vai naquelas almas! ... Dor sombria
De ver quebrado aquele amor tão santo,
De lembrar que o passado está passado...
Que a esperança morreu, que surge a morte! ...
Tanta ilusão! ... tanta carícia meiga!...
Tanto castelo de ventura feito
À beira do riacho, ou na campanha!...
Tanto êxtase inocente de amorosos!...
Tanto beijo na porta da choupana,
Quando a lua invejosa no infinito
Com uma bênção de luz sagrava os noivos!...

Não mais! não mais! O raio, quando esgalha
O ipê secular, atira ao longe
Flores, que há pouco se beijavam nhástea,
Que unidas nascem, juntas viver pensam,
E que jamais na terra hão de encontrar-se?

Passou-se muito tempo... Rio abaixo
A canoa corria ao tom das vagas.

De repente ele ergueu-se hirto, severo,
— O olhar em fogo, o riso convulsivo —
Em golfadas lançando a voz do peito! ...

"Maria! — diz-me tudo... Fala! fala
Enquanto eu posso ouvir... Criança, escuta!
Não vês o rio?... é negro!... é um leito fundo...

A correnteza, estrepitando, arrasta
Uma palmeira, quanto mais um homem! ...
Pois bem! Do seio túrgido do abismo
Há de romper a maldição do morto;
Depois o meu cadáver negro, lívido,
Irá seguindo a esteira da canoa
Pedir-te inda que fales, desgraçada,
Que ao morto digas o que ao vivo ocultas!...

Era tremenda aquela dor selvagem,
Que rebentava enfim, partindo os diques
Na fúria desmedida!...
Em meio às ondas
Ia Lucas rolar
Um grito fraco,
Uma trêmula mão susteve o escravo...
E a pálida criança, desvairada.
Aos pés caiu-lhe a desfazer-se em pranto.
Ela encostou-se ao peito do selvagem
— Como a violeta, as faces escondendo
Sob a chuva noturna dos cabelos —!
Lenta e sombria após contou destarte
A treda história desse tredo crime! ...


Poemas e Poesias terça, 01 de janeiro de 2019

BÁLSAMO (POEMA DO FLUMINENSE CASIMIRO DE ABREU)

BÁLSAMO

Casimiro de Abreu

 

 

Eu vi-a lacrimosa sobre as pedras

Rojar-se essa mulher que a dor ferira!

A morte lhe roubara dum só golpe

Marido e filho, encaneceu-lhe a fronte,

E deixou-a sozinha e desgrenhada

– Estátua da aflição aos pés dum túmulo! –

O esquálido coveiro p’ra dois corpos

Ergueu a mesma enxada, e nessa noite

A mesma cova os teve!

E a mãe chorava,

E mais alto que o choro erguia as vozes!

.....................................................................................

No entanto o sacerdote – fronte branca

Pelo gelo dos anos – a seu lado

Tentava consolá-la

A mãe aflita

Sublime desse belo desespero

As vozes não lhe ouvia; a dor suprema

Toldava-lhe a razão no duro trance.

“Oh! padre! – disse a pobre s’estorcendo

Co’a voz cortada dos soluços d’alma –

“Onde o bálsamo, as falas d’esperança,

“O alívio à minha dor?!”

Grave e solene,

O padre não falou – mostrou-lhe o céu!


Poemas e Poesias segunda, 31 de dezembro de 2018

SONETO 042 - AMOR, QUE O GESTO HUMANO N,ALMA ESCREVE (POEMA DO PORTUGUÊS LUÍS DE CAMÕES)

AMOR, QUE O GESTO HUMANO N'ALMA ESCREVE

Luís de Camões

 

 

Amor, que o gesto humano n'alma escreve,
Vivas faíscas me mostrou um dia,
Donde um puro cristal se derretia
Por entre vivas rosas e alva neve.

A vista, que em si mesma não se atreve,
Por se certificar do que ali via,
Foi convertida em fonte, que fazia
A dor ao sofrimento doce e leve.

Jura Amor que brandura de vontade
Causa o primeiro efeito; o pensamento
Endoudece, se cuida que é verdade.

Olhai como Amor gera, num momento
De lágrimas de honesta piedade,
Lágrimas de imortal contentamento.


Poemas e Poesias domingo, 30 de dezembro de 2018

SONETO DA CAGADA (POEMA DO PORTUGUÊS MANOEL MARIA DU BOCAGE)

SONETO DA CAGADA

Bocage

 

Vae cagar o mestiço e não vae só;
Convida a algum, que esteja no Gará,
E com as longas calças na mão ja
Pede ao cafre canudo e tambió:

Destapa o banco, atira o seu fuscó,
Depois que ao liso cu assento dá,
Diz ao outro: "Ó amigo, como está
A Rittinha? O que é feito da Nhonhó?"

"Vieste do Palmar? Foste a Pangin?
Não me darás noticias da Russu,
Que desde o outro dia inda a não vi?"

Assim prosegue, e farto ja de gu,
O branco, e respeitavel canarim
Deita fora o cachimbo, e lava o cu.

Poemas e Poesias sábado, 29 de dezembro de 2018

SOLITÁRIO (POEMA DO CAPIXABA AUGUSTO DOS ANJOS)

SOLITÁRIO

Augusto dos Anjos

 

 

Como um fantasma que se refugia
Na solidão da natureza morta,
Por trás dos ermos túmulos, um dia,
Eu fui refugiar-me à tua porta!

Fazia frio e o frio que fazia
Não era esse que a carne nos conforta
Cortava assim como em carniçaria
O aço das facas incisivas corta!

Mas tu não vieste ver minha Desgraça!
E eu saí, como quem tudo repele,
— Velho caixão a carregar destroços —

Levando apenas na tumbas carcaça
O pergaminho singular da pele
E o chocalho fatídico dos ossos!


Poemas e Poesias sexta, 28 de dezembro de 2018

MÃE (POEMA DO PORTUGUÊS ANTERO DE QUENTAL)

MÃE

Antero de Quental

 

Mãe ‑ que adormente este viver dorido.
E me vele esta noite de tal frio,
E com as mãos piedosas até o fio
Do meu pobre existir, meio partido...

Que me leve consigo, adormecido,
Ao passar pelo sítio mais sombrio...
Me banhe e lave a alma lá no rio
Da clara luz do seu olhar querido...

Eu dava o meu orgulho de homem – dava
Minha estéril ciência, sem receio,
E em débil criancinha me tornava,

Descuidada, feliz, dócil também,
Se eu pudesse dormir sobre o teu seio,
Se tu fosses, querida, a minha mãe!


Poemas e Poesias quinta, 27 de dezembro de 2018

ÁRIAS E CANÇÕES - IV - OUVINDO UM TRIO DE VIOLINO, VIOLETA E VIOLONCELO (POEMA DO MINEIRO ALPHONSUS GUIMARAENS)

OUVINDO UM TRIO DE VIOLINO, VIOLETA E VIOLONCELO

Alphonsus Guimaraens

 

Simbolicamente vestida de roxo
(Eram flores roxas num vestido preto)
Tão tentadora estava que um diabo coxo
Fez rugir a carne no meu esqueleto.

Toda a pureza do meu amor por ela
Se foi num sopro tombar no pó.
Os seus olhos intercederam por ela...
Mais uma vez eu vi que não me achava só.

Simbolicamente vestida de roxo
(Talvez saudade de vida mais calma)
Tão macerada estava que a asa de um mocho
Adejou agoureira pela minha Alma.

Todos os sonhos do meu amor por ela
Vieram atormentar-me sem dó.
Mas ninguém na terra intercedeu por ela...
Para divinizá-la era bastante eu só.


Poemas e Poesias quarta, 26 de dezembro de 2018

ANOITECER (POEMA DO MARANHENSE RAIMUNDO CORREIA)

ANOITECER

Raimundo Correia

 

A Adelino Fontoura


Esbraseia o Ocidente na agonia
O sol... Aves em bandos destacados,
Por céus de oiro e de púrpura raiados
Fogem... Fecha-se a pálpebra do dia...

Delineiam-se, além, da serrania
Os vértices de chama aureolados,
E em tudo, em torno, esbatem derramados
Uns tons suaves de melancolia...

Um mundo de vapores no ar flutua...
Como uma informe nódoa, avulta e cresce
A sombra à proporção que a luz recua...

A natureza apática esmaece...
Pouco a pouco, entre as árvores, a lua
Surge trêmula, trêmula... Anoitece.


Poemas e Poesias terça, 25 de dezembro de 2018

CABOCLO ROCEIRO (POEMA DO CEARENSE PATATIVA DO ASSARÉ)

CABOCLO ROCEIRO

Patativa do Assaré

 

Caboclo Roceiro, das plaga do Norte
Que vive sem sorte, sem terra e sem lar
A tua desdita é tristonho que canto
Se escuto o meu pranto me ponho a chorar

Ninguém te oferece um feliz lenitivo
És rude e cativo, não tens liberdade
A roça é teu mundo e também tua escola
Teu braço é a mola que move a cidade

De noite tu vives na tua palhoça
De dia na roça de enxada na mão
Julgando que Deus é um pai vingativo
Não vês o motivo da tua opressão

Tu pensas, amigo, que a vida que levas
De dores e trevas debaixo da cruz
E as crides constantes, quais sinas e espadas
São penas mandadas por nosso Jesus

Tu és nesta vida o fiel penitente
Um pobre inocente no banco do réu
Caboclo não guarda contigo esta crença
A tua sentença não parte do céu

O mestre divino que é sábio profundo
Não faz neste mundo teu fardo infeliz
As tuas desgraças com tua desordem
Não nascem das ordens do eterno juiz

A lua se apaga sem ter empecilho
O sol do seu brilho jamais te negou
Porém os ingratos, com ódio e com guerra
Tomaram-te a terra que Deus te entregou

De noite tu vives na tua palhoça
De dia na roça, de enxada na mão
Caboclo roceiro, sem lar, sem abrigo
Tu és meu amigo, tu és meu irmão


Poemas e Poesias segunda, 24 de dezembro de 2018

VANITAS (POEMA DO CARIOCA OLAVO BILAC)

VANITAS

Olavo Bilac

 

Cego, em febre a cabeça, a mão nervosa e fria, 
Trabalha. A alma lhe sai da pena, alucinada, 
E enche-lhe, a palpitar, a estrofe iluminada 
De gritos de triunfo e gritos de agonia. 

Prende a idéia fugaz; doma a rima bravia, 
Trabalha... E a obra, por fim, resplandece acabada: 
"Mundo, que as minhas mãos arrancaram do nada! 
Filha do meu trabalho! ergue-te à luz do dia! 

Cheia da minha febre e da minha alma cheia, 
Arranquei-te da vida ao ádito profundo, 
Arranquei-te do amor à mina ampla e secreta! 

Posso agora morrer, porque vives!" E o Poeta 
Pensa que vai cair, exausto, ao pé de um mundo, 
E cai - vaidade humana! - ao pé de um grão de areia... 


Poemas e Poesias domingo, 23 de dezembro de 2018

MOÇA LINDA BEM TRATADA (POEMA DO PAULISTA MÁRIO DE ANDRADE)

MOÇA LINDA BEM TRATADA

Mário de Andrade

 

Moça linda bem tratada,
Três séculos de família,
Burra como uma porta:
Um amor.

Grã-fino do despudor,
Esporte, ignorância e sexo,
Burro como uma porta:
Um coió.

Mulher gordaça, filó,
De ouro por todos os poros
Burra como uma porta:
Paciência...

Plutocrata sem consciência,
Nada porta, terremoto
Que a porta de pobre arromba:
Uma bomba.


Poemas e Poesias sábado, 22 de dezembro de 2018

HORAS VIVAS (POEMA DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

HORAS VIVAS

Machado de Assis

 

Noite: abrem-se as flôres...
        Que explendores!
Cynthia sonha amores
        Pelo céu.
Tenues os neblinas
        Ás campinas
Descem das collinas,
        Como um véu.


Mãos em mãos travadas,
        Animadas,
Vão aquellas fadas
        Pelo ar;
Soltos os cabellos,
        Em novellos,
Puros, louros, bellos,
        A voar.

— «Homem, nos teus dias
        Que agonias,
Sonhos, utopias.
        Ambições;
Vivas e fagueiras,
        As primeiras,
Como as derradeiras
        Illusões!

— «Quantas, quantas vidas
        Vão perdidas,
Pombas mal feridas
        Pelo mal!

Annos apoz annos,
        Tão insanos,
Vem os desenganos
        Afinal.

— «Dorme: se os pesares
        Repousares,
Vês?—por estes ares
        Vamos rir;
Mortas, não; festivas,
        E lascivas,
Somos — horas vivas
        De dormir! — »


Poemas e Poesias sexta, 21 de dezembro de 2018

UM HOMEM RI (POEMA DO MARANHENSE FERREIRA GULLAR)

 

UM HOMEM RI

Ferreira Gullar

 
 

Ele ria da cintura para cima. Abaixo
da cintura, atrás, sua mão
furtiva
inspecionava na roupa
Na frente e sobretudo no rosto, ele ria,
expelia um clarão, um sumo
servil
feito uma flor carnívora se esforça na beleza da corola
na doçura do mel
Atrás dessa auréola, saindo
dela feito um galho, descia o braço
com a mão e os dedos
e à altura das nádegas trabalhavam
no brim azul das calças
(como um animal no campo na primavera
visto de longe, mas
visto de perto, o focinho, sinistro,
de calor e osso come o capim do chão)
O homem lançava o riso como o polvo lança a sua
[tinta e foge
Mas a mão buscava o cós da cueca
talvez desabotoada
um calombo que coçava
uma pulga sob a roupa
qualquer coisa que fazia a vida pior


Poemas e Poesias quinta, 20 de dezembro de 2018

ABDICAÇÃO (POEMA DO PORTUGUÊS FERNANDO PESSOA)

ABDICAÇÃO

Fernando Pessoa

 

Toma-me, ó noite eterna, nos teus braços

E chama-me teu filho.

        Eu sou um rei

Que voluntariamente abandonei

O meu trono de sonhos e cansaços.

 

Minha espada, pesada a braços lassos,

Em mãos viris e calmas entreguei;

E meu ceptro e coroa, — eu os deixei

Na antecâmara, feitos em pedaços.

 

Minha cota de malha, tão inútil

Minhas esporas, de um tinir tão fútil,

Deixei-as pela fria escadaria.

 

Despi a realeza, corpo e alma,

E regressei à noite antiga e calma

Como a paisagem ao morrer do dia.


Poemas e Poesias quarta, 19 de dezembro de 2018

TROVAS LÍRICAS E FILOSÓFICAS - 16 (POEMA DO PARANAENSE ENO TEODORO WANKE)

TROVA LÍRICA E FILOSÓFICA 16

Eno Teodoro Wanke

 

O Rio de fevereiro

Até no céu se intromete

A lua vira pandeiro

Estrelas viram confete


Poemas e Poesias terça, 18 de dezembro de 2018

CRENÇA (POEMA DO CATARINENSE CRUZ E SOUSA)

CRENÇA

Cruz e Sousa

 

Filha do céu, a pura crença é isto

Que eu vejo em ti, na vastidão das cousas,

Nessa mudez castíssima das lousas,

No belo rosto sonhador do Cristo.

 

A crença é tudo quanto tenho visto

Nos olhos teus, quando a cabeça pousas

Sobre o meu colo e que dizer não ousas

Todo esse amor que eu venço e que conquisto.

 

A crença é ter os peregrinos olhos

Abertos sempre aos ríspidos escolhos;

Tê-los à frente de qualquer farol

 

E conservá-los, simplesmente acesos

Como dois fachos — engastados, presos

Nas radiações prismáticas do sol!


Poemas e Poesias domingo, 16 de dezembro de 2018

ADEUS (12ª PARTE DO POEMA A CACHOEIRA DE PAULO AFONSO, DO BAIANO CASTRO ALVES)

ADEUS

Castro Alves

(Do poema A Cachoeira de Paulo Afonso)

 

— Adeus — Ai criança ingrata!
Pois tu me disseste — adeus — ?
Loucura! melhor seria
Separar a terra e os céus.

— Adeus — palavra sombria!
De uma alma gelada e fria
És a derradeira flor.

— Adeus! — miséria! mentira
De um seio que não suspira,
De um coração sem amor.

Ai, Senhor! A rola agreste
Morre se o par lhe faltou.
O raio que abrasa o cedro
A parasita abrasou.

O astro namora o orvalho:
— Um é a estrela do galho,
— Outro o orvalho da amplidão.

Mas, à luz do sol nascente,
Morre a estrela — no poente!
O orvalho — morre no chão!

Nunca as neblinas do vale
Souberam dizer-se — adeus —
Se unidas partem da terra,
Perdem-se unidas nos céus.

A onda expira na plaga...
Porém vem logo outra vaga
P'ra morrer da mesma dor...

— Adeus — palavra sombria!
Não digas — adeus —, Maria!
Ou não me fales de amor!


Poemas e Poesias sábado, 15 de dezembro de 2018

SONETO 005 - AMOR É UM FOGO QUE ARDE SM SE VER (POEMA DO PORTUGUÊS LUÍS DE CAMÕES)

POEMA 005

AMOR É UM FOGO QUE ARDE SEM SE VER

Luís de Camões

 

Amor é um fogo que arde sem se ver; 
É ferida que dói, e não se sente; 
É um contentamento descontente; 
É dor que desatina sem doer. 

É um não querer mais que bem querer; 
É um andar solitário entre a gente; 
É nunca contentar-se e contente; 
É um cuidar que ganha em se perder; 

É querer estar preso por vontade; 
É servir a quem vence, o vencedor; 
É ter com quem nos mata, lealdade. 

Mas como causar pode seu favor 
Nos corações humanos amizade, 
Se tão contrário a si é o mesmo Amor?


Poemas e Poesias sexta, 14 de dezembro de 2018

SONETO DO VELHO ESCANDALOSO (POEMA DO PORTUGUÊS BOCAGE)

SONETO DO VELHO ESCANDALOSO

Manuel Maria Du Bocage

 

 

 
Tu, oh demente velho descarado,
Escândalo do sexo masculino,
Que por alta justiça do Destino
Tens o impotente membro decepado:

Tu, que, em torpe furor incendiado
Sofres d'ímpia paixão ardor maligno,
E a consorte gentil, de que és indigno,
Entregas a infrutífero castrado:

Tu, que tendo bebido o méstruo imundo,
Esse amor indiscreto te não gasta
D'ímpia mulher o orgulho furibundo;

Em castigo do vício, que te arrasta,
Saiba a ínclita Lísia, e todo o mundo 
Que és vil por gênio, que és cabrão, e basta

 


Poemas e Poesias quinta, 13 de dezembro de 2018

SONHO DE UM MONISTA (POEMA DO CAPIXABA AUGUSTO DOS ANJOS)

SONHO DE UM MONISTA

Augusto dos Anjos

 

Eu e o esqueleto esquálido de Esquilo
Viajávamos, com uma ânsia sibarita,
Por toda a pró-dinâmica infinita,
Na consciência de um zoófito tranquilo.

A verdade espantosa de Protilo
Me aterrava, mas dentro da alma aflita
Via Deus - essa mônada esquisita -
Coordenando e animando tudo aquilo!

E eu bendizia, com o esqueleto ao lado,
Na guturalidade do meu brado,
Alheio ao velho cálculo dos dias,

Como um pagão no altar de Proserpina,
A energia intracósmica divina
Que é o pai e é a mãe das outras energias!

"


Poemas e Poesias quarta, 12 de dezembro de 2018

A SUAVE CASTELÃ DAS HORAS MORTAS (POEMA DO MINEIRO ALPHONSUS GUIMARAENS

A SUAVE CASTELÃ DAS HORAS MORTAS

Alphonsus Guimaraens 

 

 

ÁRIAS E CANÇÕES

III

A suave castelã das horas mortas
Assoma à torre do castelo. As portas,
Que o rubro ocaso em onda ensangüentara,
Brilham do luar à Luz celeste e clara.
Como em órbitas de fatais caveiras
Olhos que fossem de defuntas freiras,
Os astros morrem pelo céu pressago…
São como círios a tombar num lago.
E o céu, diante de mim, todo escurece…
E eu nem sei de cor uma só prece!
Pobre Alma, que me queres, que me queres?
São assim todas, todas as mulheres.
Hirta e branca… Repousa a sua áurea cabeça
Numa almofada de cetim bordada em lírios.
Ei-la morta afinal como quem adormeça
Aqui para sofrer Além novos martírios.
De mãos postas, num sonho ausente, a sombra espessa
Do seu corpo escurece a luz dos quatro círios:
Ela faz-me pensar numa ancestral Condessa
Da Idade Média, morta em sagrados delírios.
Os poentes sepulcrais do extremo desengano
Vão enchendo de luto as paredes vazias,
E velam para sempre o seu olhar humano.
Expira, ao longe, o vento, e o luar, longinquamente,
Alveja, embalsamando as brancas agonias
Na sonolenta paz desta Câmara-ardente…


Poemas e Poesias terça, 11 de dezembro de 2018

JULIETA (POEMA DO MARANHENSE RAIMUNDO CORREIA)

JULIETA

Raimundo Correia

 

A loura Julieta enamorada,
Triste, lânguida, pálida, abatida, 
Aparece radiante na sacada 
Dos raios brancos do luar ferida.

Engolfa o olhar na sombra condensada, 
Perscruta, busca em torno... e na avenida
Surge Romeu; da valerosa espada
Esplende a clara lâmina polida...

Sente-se o arfar de sôfregos desejos, 
Estoura no ar um turbilhão de beijos,
Mas o dia reponta!... Ó indiscreta

Da cotovia matinal garganta!
Ó perigo do amor, que o amor quebranta!
Ó noites de Verona! Ó Julieta!


Poemas e Poesias segunda, 10 de dezembro de 2018

MÃE PRETA, POEMA DO CEARENSE PATATIVA DO ASSARÉ

MÃE PRETA

Patativa do Assaré

 

 

O coração do inocente, 
É como a terra estrumada, 
Qui a gente pranta a simente 
E a mesma nace corada, 
Lutrida e munto viçosa. 
Na nossa infança ditosa, 
Quando o amô e a simpatia 
Toma conta da criança, 
Esta sodosa lembrança 
Vai batê na cova fria.

Quem pela infança passou, 
O meu dito considera, 
Eu quero, com grande amô, 
Dizê Mãe Preta quem era. 
- Mãe Preta dava a impressão 
Da noite de iscuridão, 
Com seus mistero profundo, 
Iscondendo seus praneta; 
Foi ela a preta mais preta 
Das preta qui eu vi no mundo.

Mas porém, sua arma pura, 
Era branca como a orora, 
E tinha a doce ternura 
Da Virge Nossa Senhora. 
Quando amanhecia o dia, 
Pra minha rede ela ia 
Dizendo palavra bela; 
Pra cuzinha me levava 
E um cafezim eu tomava 
Sentado no colo dela.

Quando as minha brincadêra 
Causava contrariedade 
A minha mãe verdadêra 
Com a sua otoridade, 
As vez brigava comigo 
E num gesto de castigo, 
Botava os óio pra mim, 
Mas porém, não me batia, 
Somente pruque sabia 
Qui mãe preta achava ruim.

Por isso eu não tinha medo, 
Sempre contente vivia 
Mexendo nos meus brinquedo 
E fazendo istripolia. 
Dentro de nossa morada, 
Pra mim não fartava nada, 
O meu mundo era Mãe Preta; 
Foi ela quem me ensinou 
Muntas cantiga de amô, 
E brincá de carrapeta.

Se as vez eu brincando tava 
De barbuleta a pegá, 
E impaciente ficava 
Inraivicido a chorá, 
Ela com munta alegria, 
Um certo jeito fazia, 
Com carinho e com amô, 
Apanhava as barbuleta; 
Foi ela uma santa preta, 
Que o mundo de Deus criou.

Se chegava a noite iscura 
Com seus negrume sem fim, 
Ela com toda ternura, 
Chegava perto de mim 
Uma coisa cochichava 
E depois qui me bejava, 
Me levava pra dromida 
Sobre os seus braços lustroso. 
Aquilo sim, era gozo, 
Aquilo sim, era vida.

E despois de me deitá 
Na minha pequena rede, 
Balançava devagá 
Pra não batê na parede, 
Contando estes lindos verso 
Qui neste grande universo 
Ôtros mais belo não vi, 
E enquanto ela balançava 
E estes versinho cantava, 
Eu percurava dromi.

- Dorme, dorme, meu menino, 
Já chegou a escuridão, 
A treva da noite escura 
Está cheia de papão.

No teu sono terás beijos 
Da rosa e do bugari 
E os espíritos benfazejos 
Te defendem do saci.

Dorme, dorme, meu menino, 
Já chegou a escuridão 
A treva da noite escura 
Está cheia de papão.

Dorme teu sono inocente 
Com Jesus e com Maria, 
Até chegar novamente 
O clarão do novo dia.

Iscutando com respeito 
Estes verso pequenino, 
Eu sintia no meu peito 
Tudo quanto era divino; 
Nem tuada sertaneja, 
Nem os bendito da igreja, 
Nem os toque de retreta, 
In mim ficaro gravado, 
Como estes versos cantado 
Por minha boa Mãe Preta.

Mas porém, eu bem menino, 
Qui nem sabia pecá, 
Os ispinho do destino 
Começaro a me furá. 
Mãe Preta qui era contente, 
tava um dia deferente. 
Preguntei o que ela tinha 
E assim que ela oiô pra eu 
Dois pingo d'água desceu 
Dos óio da coitadinha.

Daquele dia pra cá, 
Minha amorosa Mãe Preta, 
Não pôde mais me ajudá 
Nas pega de barbuleta, 
Sem prazê, sem alegria 
Dentro de um quarto vivia, 
O dia e a noite intêra, 
Sem achá consolação, 
Inriba de seu croxão 
De foia de bananera.

Quando ela pra mim oiava, 
Como quem sente um desgosto, 
A minha mão apertava 
E o pranto banhava o rosto. 
Divido este sofrimento, 
Naquele seu aposento, 
No quarto onde ela viva, 
Me improibiro de entrá, 
Promode não magoá 
As dô que a pobe sintia.

Eu mesmo dizê não sei 
Qual foi a surpresa minha, 
Quando um dia eu acordei, 
Bem cedo domenhãzinha 
Entrei na sala e dei fé 
Qui um magote de muié 
Tava rezando oração; 
E vi Mãe Preta vestida 
Numa ropona comprida, 
Arva, da cô de argodão.

Sinti no peito um cansaço, 
Depois uns home chegaro 
Levantaro ela nos braço 
E numa rede botaro. 
A rede tava amarrada 
Numa peça perparada 
De madêra bem polida, 
E naquela mesma hora, 
Levaro de estrada afora 
Minha Mãe Preta querida.

Mamãe com todo carinho, 
Chorando um bêjo me deu 
E me disse - meu fiinho, 
Sua Mãe Preta morreu! 
E ôtras coisa me dizendo, 
Sinti meu corpo tremendo, 
Me jurguei um pobre réu, 
Sem consolo e sem prazê, 
Com vontade de morrê, 
Pra vê Mãe Preta no céu.

O coração do inocente, 
É como terra estrumada 
Que a gente pranta a semente, 
E a mesma nasce corada 
Lutrida e munto viçosa; 
Na nossa infança ditosa, 
Quando o amô e a simpatia 
Toma conta da criança, 
Esta sodosa lembrança 
Vai batê na cova fria.


Poemas e Poesias domingo, 09 de dezembro de 2018

ACEITARÁS O AMOR COMO EU O ENCARO? (POEMA DO PAULISTA MÁRIO DE ANDRADE)

ACEITARÁS O AMOR COMO EU O ENCARO?

Mário de Andrade

 

 

Aceitarás o amor como eu o encaro ?...
...Azul bem leve, um nimbo, suavemente
Guarda-te a imagem, como um anteparo
Contra estes móveis de banal presente.
 
Tudo o que há de melhor e de mais raro
Vive em teu corpo nu de adolescente,
A perna assim jogada e o braço, o claro
Olhar preso no meu, perdidamente.
 
Não exijas mais nada. Não desejo
Também mais nada, só te olhar, enquanto
A realidade é simples, e isto apenas.
 
Que grandeza... a evasão total do pejo
Que nasce das imperfeições. O encanto
Que nasce das adorações serenas.
 

Poemas e Poesias sábado, 08 de dezembro de 2018

ESTA NOITE (POEMA DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

ESTA NOITE

Machado de Assis

 


Os teus beijos ardentes,
Teus afagos mais veementes,
Guarda, guarda-os, anjo meu;
Esta noite entre mil flores,
Um sonho todo de amores
Nos dará de amor um céu!


Poemas e Poesias sexta, 07 de dezembro de 2018

ABAT-JOUR (POEMA DO PORTUGUÊS FERNANDO PESSOA)

ABAT-JOUR

Fernando Pessoa

 

 

A lâmpada acesa 
(Outrem a acendeu) 
Baixa uma beleza 

Sobre o chão que é meu. 
No quarto deserto 
Salvo o meu sonhar, 
Faz no chão incerto 
Um círculo a ondear. 

E entre a sombra e a luz 
Que oscila no chão 
Meu sonho conduz 
Minha inatenção. 

Bem sei ... Era dia 
E longe de aqui... 
Quanto me sorria 
O que nunca vi! 

E no quarto silente 
Com a luz a ondear 
Deixei vagamente 
Até de sonhar... 


Poemas e Poesias quinta, 06 de dezembro de 2018

MADRUGADA (POEMA DO MARANHENSE FERREIRA GULLAR)

MADRUGADA

Ferreira Gullar

 

Do fundo de meu quarto, do fundo 
de meu corpo 
clandestino 
ouço (não vejo) ouço 
crescer no osso e no músculo da noite 
a noite 

a noite ocidental obscenamente acesa 
sobre meu país dividido em classes 


Poemas e Poesias quarta, 05 de dezembro de 2018

TROVAS LÍRICAS E FILOSÓFICAS - 15 (POEMA DO PARANAENSE ENO TEODORO WANKE)

TROVA LÍRICA E FILÓSÓFICA 15

Eno Teodoro Wanke

 

O destino despetala

A rosa... Porém, ainda

Resta a lembrança, que fala

De quanto a rosa era linda

 

 


Poemas e Poesias terça, 04 de dezembro de 2018

DORMINDO (POEMA DO CATARINENSE CRUZ E SOUSA)

DORMINDO

Cruz e Sousa

 

Pálida, bela, escultural, clorótica
Sobre o divã suavíssimo deitada,
Ela lembrava – a pálpebra cerrada –
Uma ilusão esplendida de ótica.

A peregrina carnação das formas,
– o sensual e límpido contorno,
Tinham esse quê de avérnico e de morno,
Davam a Zola as mais corretas normas!…

Ela dormia como a Vênus casta
E a negra coma aveludada e basta
Lhe resvalava sobre o doce flanco…

Enquanto o luar – pela janela aberta –
– como uma vaga exclamação – incerta
Entrava a flux – cascateado – branco!!…


Poemas e Poesias domingo, 02 de dezembro de 2018

NO BARCO (11ª PARTE DO POEMA A CACHOEIRA DE PAULO AFONSO, DO BAIANO CASTRO ALVES)

NO BARCO

Castro Alves

(Do poema A Cachoeira de Paulo Afonso)

 

— Lucas — Maria! murmuraram juntos...
E a moça em pranto lhe caiu nos braços.
Jamais a parasita em flóreos laços
Assim lígou-se ao piquiá robusto...

Eram-lhe as tranças a cair no busto
Os esparsos festões da granadilha...
Tépido aljofar o seu pranto brilha,
Depois resvala no moreno seio...

Oh! doces horas de suave enleio!
Quando o peito da virgem mais arqueja,
Como o casal da rola sertaneja,
Se a ventania lhe sacode o ninho.

Cantai, ó brisas, mas cantai baixinho!
Passai, ó vagas..., mais passai de manso!
Não perturbeis-lhe o plácido remanso,
Vozes do ar! emanações do rio!

"Maria, falara — "Que acordar sombrio",
Murmura a triste com um sorriso louco,
"No Paraíso eu descansava um pouco...
Tu me fizeste despertar na vida ...

"Por que não me deixaste assim pendida
Morrer coa fronte oculta no teu peito?
Lembrei-me os sonhos do materno leito
Nesse momento divinal ... Quimporta? ...

"Toda esperança para mim sta morta...
Sou flor manchada por cruel serpente...
56 de encontro nas rochas pode a enchente
Lavar-me as nódoas, mesfolhado a vida.

"Deíxa-me! Deixa-me a vagar perdida
Tu! — Partel Volve para os lares teus.
Nada perguntes... é um segredo horrível...
Eu te amo ainda... mas agora — adeus!"

 


Poemas e Poesias sábado, 01 de dezembro de 2018

SONETO DE TODOS OS CORNOS (POEMA DO PORTUGUÊS MANUEL MARIA DU BOCAGE)

SONETO DE TODOS OS CORNOS

Bocage

 

 

Não lamentes, Alcino, o teu estado,
Corno tem sido muita gente boa;
Corníssimos fidalgos tem Lisboa,
Milhões de vezes cornos têm reinado.

Siqueu foi corno, e corno de um soldado:
Marco Antonio por corno perdeu a c’roa;
Anfitrião com toda a sua proa
Na Fábula não passa por honrado;

Um rei Fernando foi cabrão famoso
(Segundo a antiga letra da gazeta)
E entre mil cornos expirou vaidoso;

Tudo no mundo é sujeito à greta:
Não fiques mais, Alcino, duvidoso
Que isto de ser corno é tudo peta.

 

 


Poemas e Poesias sexta, 30 de novembro de 2018

BUDISMO MODERNO (POEMA DO CAPIXABA AUGUSTO DOS ANJOS)

BUDISMO MODERNO

Augusto dos Anjos

 

Tome, Dr., esta tesoura, e... corte
Minha singularíssima pessoa.
Que importa a mim que a bicharia roa
Todo o meu coração, depois da morte?!

Ah! Um urubu pousou na minha sorte!
Também, das diatomáceas da lagoa
A criptógama cápsula se esbroa
Ao contacto de bronca dextra forte!

Dissolva-se, portanto, minha vida
Igualmente a uma célula caída
Na aberração de um óvulo infecundo;

Mas o agregado abstrato das saudades
Fique batendo nas perpétuas grades
Do último verso que eu fizer no mundo!


Poemas e Poesias quinta, 29 de novembro de 2018

NIRVANA (POEMA DO PORTUGUÊS ANTERO DE QUENTAL)

NIRVANA

Antero de Quental

 

Viver assim: sem ciúmes, sem saudades, 
Sem amor, sem anseios, sem carinhos, 
Livre de angústias e felicidades, 
Deixando pelo chão rosas e espinhos; 

Poder viver em todas as idades; 
Poder andar por todos os caminhos; 
Indiferente ao bem e às falsidades, 
Confundindo chacais e passarinhos; 

Passear pela terra, e achar tristonho 
Tudo que em torno se vê, nela espalhado; 
A vida olhar como através de um sonho; 

Chegar onde eu cheguei, subir à altura 
Onde agora me encontro - é ter chegado 
Aos extremos da Paz e da Ventura! 


Poemas e Poesias quarta, 28 de novembro de 2018

ISMÁLIA (POEMA DO MINEIRO ALPHONSUS GUIMARAENS)

ISMÁLIA

Alphonsus Guimaraens

 

 

Quando Ismália enlouqueceu
Pôs-se na torre a sonhar
Viu uma lua no céu
Viu outra lua no mar

No sonho em que se perdeu
Banhou-se toda em luar
Queria subir ao céu
Queria descer ao mar

E num desvario seu
Na torre pôs-se a cantar
Estava perto do céu
Estava longe do mar

E como um anjo pendeu
As asas para voar
Queria a lua do céu
Queria a lua do mar

As asas que Deus lhe deu
Ruflaram de par em par
Sua alma subiu ao céu
Seu corpo desceu ao mar


Poemas e Poesias terça, 27 de novembro de 2018

OFÉLIA (POEMA DO MARANHENSE RAIMUNDO CORREIA)

OFÉLIA

Raimundo Correia

 

Num recesso da selva ínvia e sombria,
Estrelada de flores, vicejante,
Onde um rio entre seixos, espumante, 
Cursando o vale, túrgido, fluía;

A coma esparsa, lívido o semblante, 
Desvairados os olhos, como fria
Aparição dos túmulos, um dia 
Surgiu de Hamlet a lacrimosa amante;

Símplices flores o seu porte lindo
Ornavam... como um pranto, iam caindo 
As folhas de um salgueiro na corrente...

E na corrente ela também tombando, 
Foi-se-lhe o corpo alvíssimo boiando
Por sobre as águas indolentemente.


Poemas e Poesias segunda, 26 de novembro de 2018

COISAS DO MEU SERTÃO (POEMA DO CEARENSE PATATIVA DO ASSARÉ)

COISAS DO MEU SERTÃO

Patativa do Assaré

 

 

Seu dotô, que é da cidade
Tem diproma e posição
E estudou derne minino
Sem perdê uma lição,
Conhece o nome dos rios,
Que corre inriba do chão,
Sabe o nome de estrela
Que forma constelação,
Conhece todas as coisa
Da historia da criação
E agora qué i na Lua
Causando admiração,
Vou fazê uma pergunta,
Me preste bem atenção:
Pruque não quis aprendê
As coisa do meu sertão?

Por favô, não negue não
Quero que o sinhô me diga
Pruquê não quis o roçado
Onde se sofre de fadiga,
Pisando inriba do toco,
Lacraia, cobra e formiga,
Cocerento de friêra,
Incalombado de urtiga,
Muntas vez inté duente,
Sofrendo dô de barriga,
Mas o jeito é trabaiá
Que a necessidade obriga.


Poemas e Poesias domingo, 25 de novembro de 2018

NOITE DE INVERNO (POEMA DO CARIOCA OLAVO BILAC)

NOITE DE INVERNO

Olavo Bilac

 

Sonho que estás à porta...

Estás – abro-te os braços! – Quase morta,

Quase morta de amor e de ansiedade...

De onde ouviste o meu grito, que voava,

E sobre as asas trêmulas levava

As preces da saudade?

 

Corro à porta... ninguém! Silêncio e treva.

Hirta, na sombra, a Solidão eleva

Os longos braços rígidos, de gelo...

E há pelo corredor ermo e comprido

O suave rumor de teu vestido,

E o perfume subtil de teu cabelo.

 

Ah! Se agora chegasses!

Se eu sentisse bater em minhas faces

A luz celeste que teus olhos banha;

Se este quarto se enchesse de repente

Da melodia, e do clarão ardente

Que os passos te acompanha:

 

Beijos, presos no cárcere da boca,

Sofreando a custo toda a sede louca,

Toda a sede infinita que os devora,

- Beijos de fogo, palpitando, cheios

De gritos, de gemidos e de anseios,

Transbordariam por teu corpo afora!...

 

Rio aceso, banhando

Teu corpo, cada beijo, rutilando,

Se apressaria, acachoado e grosso:

E, cascateando, em pérolas desfeito,

Subiria a colina de teu peito,

Lambendo-te o pescoço...

 

Estrela humana que do céu desceste!

Desterrada do céu, a luz perdeste

Dos fulvos raios, amplos e serenos;

E na pele morena e perfumada

Guardaste apenas essa cor dourada

Que é a mesma cor de Sírius e de Vênus.

 

Sob a chuva de fogo

De meus beijos, amor! Terias logo

Todo o esplendor do brilho primitivo;

E, eternamente presa entre meus braços,

Bela, protegerias os meus passos,

-Astro formoso e vivo!

 

Mas... talvez te ofendesse o meu desejo...

E, ao teu contato gélido, meu beijo

Fosse cair por terra, desprezado...

Embora! Que eu ao menos te olharia,

E, presa do respeito, ficaria

Silencioso e imóvel a teu lado.

 

Fitando o olhar ansioso

No teu, lendo esse livro misterioso,

Eu descortinaria a minha sorte...

Até que ouvisse, desse olhar ao fundo,

Soar, num dobre lúgubre e profundo,

A hora da minha morte!

 

Longe embora de mim teu pensamento,

Ouvirias aqui, louco e violento,

Bater meu coração em cada canto;

E ouvirias, como uma melopeia,

Longe embora de mim a tua ideia,

A música abafada de meu pranto.

 

Dormirias, querida...

E eu, guardando-te, bela e adormecida,

Orgulhoso e feliz com o meu tesouro,

Tiraria os meus versos do abandono,

E eles embalariam o teu sono,

Como uma rede de ouro.

 

Mas não bens! Não virás! Silêncio e treva...

Hirta, na sombra, a Solidão eleva

Os longos braços rígidos de gelo;

E há, pelo corredor ermo e comprido,

O suave rumor de teu vestido

E o perfume subtil de teu cabelo...


Poemas e Poesias sábado, 24 de novembro de 2018

A SERRA DO ROLA-MOÇA (POEMA DO PAULISTA MÁRIO DE ANDRADE)

A SERRA DO ROLA-MOÇA

Mário de Andrade

 

 

A Serra do Rola-Moça
Não tinha esse nome não...

Eles eram do outro lado,
Vieram na vila casar.
E atravessaram a serra,
O noivo com a noiva dele
Cada qual no seu cavalo.

Antes que chegasse a noite
Se lembraram de voltar.
Disseram adeus pra todos
E se puserem de novo
Pelos atalhos da serra
Cada qual no seu cavalo.

Os dois estavam felizes,
Na altura tudo era paz.
Pelos caminhos estreitos
Ele na frente, ela atrás.
E riam. Como eles riam!
Riam até sem razão.

A Serra do Rola-Moça
Não tinha esse nome não.

As tribos rubras da tarde
Rapidamente fugiam
E apressadas se escondiam
Lá embaixo nos socavões,
Temendo a noite que vinha.

Porém os dois continuavam
Cada qual no seu cavalo,
E riam. Como eles riam!
E os risos também casavam
Com as risadas dos cascalhos,
Que pulando levianinhos
Da vereda se soltavam,
Buscando o despenhadeiro.

Ali, Fortuna inviolável!
O casco pisara em falso.
Dão noiva e cavalo um salto
Precipitados no abismo.
Nem o baque se escutou.
Faz um silêncio de morte,
Na altura tudo era paz ...
Chicoteado o seu cavalo,
No vão do despenhadeiro
O noivo se despenhou.

E a Serra do Rola-Moça
Rola-Moça se chamou.


Poemas e Poesias sexta, 23 de novembro de 2018

ESPINOSA (POEMA DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

ESPINOSA

Machado de Assis

Gosto de ver-te, grave e solitário,
Sob o fumo de esquálida candeia,
Nas mãos a ferramenta de operário,
E na cabeça a coruscante idéia.

E enquanto o pensamento delineia
Uma filosofia, o pão diário
A tua mão a labutar granjeia
E achas na independência o teu salário.

Soem cá fora agitações e lutas,
Sibile o bafo aspérrimo do inverno,
Tu trabalhas, tu pensas, e executas

Sóbrio, tranquilo, desvelado e terno,
A lei comum, e morres, e transmutas
O suado labor no prêmio eterno.


Poemas e Poesias quinta, 22 de novembro de 2018

O HERÓI (POEMA DO MARANHENSE FERREIRA GULLAR)

O HERÓI 

Ferreira Gullar

 

Ele amadurece

Alhures

Certas frutass

Fende seu açúcar

 

Que ele seja palha

Mas seja toque

 

Vida, sabes a urina

Neste obsceno claustro


Poemas e Poesias quarta, 21 de novembro de 2018

TROVA LÍRICA E FILOSÓFICA -14 (TROVA DO PARANAENSE ENO TEODORO WANKE)

TROVA LÍRICA E FILOSÓFICA - 14

Eno Teodoro Wanke

 

 

Felicidade consiste

Às vezes, num quase nada

O encanto de um verso triste

Vibrando na madrugada


Poemas e Poesias terça, 20 de novembro de 2018

APÓS O NOIVADO (POEMA DO CATARINENSE CRUZ E SOUZA

APÓS O NOIVADO

Cruz e Sousa

 

Em flácido divã ela resvala

Na alcova — bem feliz, alegremente,

E o fresco penteador alvinitente,

De nardo e benjoim o aroma exala.

 

E o noivo todo amor, assim lhe fala,

Por entre vibrações do olhar ardente:

Pertences-me afinal, pomba dormente,

Parece que a razão de gozo, estala.

 

Mas eis — corre-se então nívea cortina;

E a plácida, a ideal, a branca lua

Derrama nos vergéis a luz divina...

 

Depois... Oh! Musa audaz, ousada, e nua,

Não rompas esse véu de gaze fina

Que encerra um madrigal — Vamos... recua!...

 


Poemas e Poesias domingo, 18 de novembro de 2018

O NADADOR (10ª PARTE DO POEMA A CACHOEIRA DE PAULO AFONSO, DO BAIANO CASTRO ALVES)

 

O NADADOR

Castro Alves

(Do poema A Cachoeira de Paulo Afonso)

 

 

E-lo que ao rio arroja-se.
As vagas bipartiram-se;
Mas rijas contraíram-se
Por sobre o nadador...
Depois sentreabre lúgubre
Um círculo simbólico...
É o riso diabólico
Do pego zombador!

Mas não! Do abismo — indômito
Surge-me um rosto pálido,
Como o Netuno esquálido,
Que amaina a crina ao mar;
Fita o batel longínquo
Na sombra do crepúsculo...
Rasga com férreo músculo
O rio par a par,
Vagas! Dalilas pérfidas!
Moças, que abris um túmulo,
Quando do amor no cúmulo
Fingis nos abraçar!
O nadador intrépido
Vos toca as tetas cérulas...
E após — zombando — as pérolas
Vos quebra do colar.
Vagas! Curvai-vos tímidas!

Abri fileiras pávidas
Às mãos possantes, ávidas
Do nadador audaz!...
Belo, de força olímpica
— Soltos cabelos úmidos —
Braços hercúleos, túmidos...
o rei dos vendavais!

Mas ai! Lá ruge próxima
A correnteza hórrida,
Como da zona tórrida
A boicininga a urrar...
É lá que o rio indômito,
Como o corcel da Ucrânia,
Rincha a saltar de insânia,
Freme e se atira ao mar.
Tremeste? Não! Quimporta-te
Da correnteza o estríduío?
Se ao longe vês teu ídolo,
Ao longe irás também...
Salta à garupa úmida
Deste corcel titânico...
— Novo Mazeppa oceânico —
Além! além! além!...


Poemas e Poesias sábado, 17 de novembro de 2018

ORAÇÕES (POEMA DO FLUMINENSE CASIMIRO DE ABREU)

ORAÇÕES

Casimiro de Abreu

 

A ***

A alma, como o incenso, ao céu s'eleva
Da férvida oração nas asas puras,
E Deus recebe como um longo hosana
O cântico de amor das criaturas.

Do trono d'ouro que circundam anjos
Sorrindo ao mundo a Virgem-Mãe s'inclina
Ouvindo as vozes d'inocência bela
Dos lábios virginais duma menina.

Da tarde morta o murmurar se cala
Ante a prece infantil, que sobe e voa
Fresca e serena qual perfume doce
Das frescas rosas de gentil coroa.

As doces falas de tua alma santa
Valem mais do que eu valho oh! querubim!
Quando rezares por teu mano
Não t'esqueças também - reza por mim!


Poemas e Poesias sexta, 16 de novembro de 2018

SONETO 083 - AMOR CO A ESPERANÇA JÁ PERDIDA (POEMA DO PORTUGUÊS LUÍS DE CAMÕES)

SONETO 083

AMOR CO'A ESPERNÇA JÁ PERDIDA

Luís de Camões

 

Amor, co'a esperança já perdida,
teu soberano templo visitei;
por sinal do naufrágio que passei,
em lugar dos vestidos, pus a vida.

Que queres mais de mim, que destruída
me tens a glória toda que alcancei?
Não cuides de forçar-me, que não sei
tornar a entrar onde não há saída.

Vês aqui alma, vida e esperança,
despojos doces de meu bem passado,
enquanto o quis aquela que eu adoro:

nelas podes tomar de mim vingança;
e se inda não estás de mim vingado,
contenta-te co'as lágrimas que choro.

 


Poemas e Poesias quinta, 15 de novembro de 2018

SONETO DE TODAS AS PUTAS (POEMA DO PORTUGUÊS BOCAGE)

SONETO DE TODAS AS PUTAS

Manuel Maria Barbosa Du Bocage

 

 

Não lamentes, ó Nize, o teu estado;
Puta tem sido muita gente boa;
Putissimas fidalgas tem Lisboa,
Milhões de vezes putas teem reinado:

Dido foi puta, e puta d'um soldado;
Cleopatra por puta alcança a c'roa;
Tu, Lucrecia, com toda a tua proa,
O teu conno não passa por honrado:

Essa da Russia imperatriz famosa,
Que inda ha pouco morreu (diz a Gazeta)
Entre mil porras expirou vaidosa:

Todas no mundo dão a sua greta:
Não fiques pois, ó Nize, duvidosa
Que isso de virgo e honra é tudo peta.

Poemas e Poesias quarta, 14 de novembro de 2018

AS CISMAS DO DESTINO (POEMA DO CAPIXABA AUGUSTO DOS ANJOS)

AS CISMAS DO DESTINO

Augusto dos Anjos

 



I

Recife. Ponte Buarque de Macedo.
Eu, indo em direção à casa do Agra,
Assombrado com a minha sombra magra,
Pensava no Destino, e tinha medo!

Na austera abóbada alta o fósforo alvo
Das estrelas luzia... O calçamento
Sáxeo, de asfalto rijo, atro e vidrento,
Copiava a polidez de um crânio calvo.

Lembro-me bem. A ponte era comprida,
E a minha sombra enorme enchia a ponte,
Como uma pele de rinoceronte
Estendida por toda a minha vida!

A noite fecundava o ovo dos vícios
Animais. Do carvão da treva imensa
Caía um ar danado de doença
Sobre a cara geral dos edifícios!

Tal uma horda feroz de cães famintos,
Atravessando uma estação deserta,
Uivava dentro do eu, com a boca aberta,
A matilha espantada dos instintos!

Era como se, na alma da cidade,
Profundamente lúbrica e revolta,
Mostrando as carnes, uma besta solta
Soltasse o berro da animalidade.

E aprofundando o raciocínio obscuro,
Eu vi, então, à luz de áureos reflexos,
O trabalho genésico dos sexos,
Fazendo à noite os homens do Futuro.

Livres de microscópios e escalpelos,
Dançavam, parodiando saraus cínicos,
Biliões de centrosomas apolínicos
Na câmara promíscua do vitellus.

Mas, a irritar-me os globos oculares,
Apregoando e alardeando a cor nojenta,
Fetos magros, ainda na placenta,
Estendiam-me as mãos rudimentares!

Mostravam-me o apriorismo incognoscível
Dessa fatalidade igualitária,
Que fez minha família originária
Do antro daquela fábrica terrível!

A corrente atmosférica mais forte 
Zunia. E, na ígnea crosta do Cruzeiro, 
Julgava eu ver o fúnebre candeeiro 
Que há de me alumiar na hora da morte.

Ninguém compreendia o meu soluço,
Nem mesmo Deus! Da roupa pelas brechas,
O vento bravo me atirava flechas
E aplicações hiemais de gelo russo.

A vingança dos mundos astronômicos
Enviava à terra extraordinária faca,
Posta em rija adesão de goma laca
Sobre os meus elementos anatômicos.

Ah! Com certeza, Deus me castigava!
Por toda a parte, como um réu confesso,
Havia um juiz que lia o meu processo
E uma forca especial que me esperava!

Mas o vento cessara por instantes
Ou, pelo menos, o ignis sapiens do Orco
Abafava-me o peito arqueado e porco
Num núcleo de substâncias abrasantes.

É bem possível que eu um dia cegue.
No ardor desta letal tórrida zona,
A cor do sangue é a cor que me impressiona 
E a que mais neste mundo me persegue!

Essa obsessão cromática me abate.
Não sei por que me vêm sempre à lembrança
O estômago esfaqueado de uma criança
E um pedaço de víscera escarlate.

Quisera qualquer coisa provisória
Que a minha cerebral caverna entrasse,
E até ao fim, cortasse e recortasse
A faculdade aziaga da memória.

Na ascensão barométrica da calma,
Eu bem sabia, ansiado e contrafeito,
Que uma população doente do peito
Tossia sem remédio na minh'alma!

E o cuspo que essa hereditária tosse
Golfava, à guisa de ácido resíduo,
Não era o cuspo só de um indivíduo
Minado pela tísica precoce.

Não! Não era o meu cuspo, com certeza
Era a expectoração pútrida e crassa
Dos brônquios pulmonares de uma raça
Que violou as leis da Natureza!

Era antes uma tosse úbiqua, estranha,
Igual ao ruído de um calhau redondo
Arremessado no apogeu do estrondo,
Pelos fundibulários da montanha!

E a saliva daqueles infelizes
Inchava, em minha boca, de tal arte,
Que eu, para não cuspir por toda a parte,
Ia engolindo, aos poucos, a hemoptísis!

Na alta alucinação de minhas cismas
O microcosmos líquido da gota
Tinha a abundância de uma artéria rota,
Arrebentada pelos aneurismas.

Chegou-me o estado máximo da mágoa!
Duas, três, quatro, cinco, seis e sete
Vezes que eu me furei com um canivete,
A hemoglobina vinha cheia de água!

Cuspo, cujas caudais meus beiços regam,
Sob a forma de mínimas camândulas,
Benditas sejam todas essas glândulas,
Que, quotidianamente, te segregam!

Escarrar de um abismo noutro abismo,
Mandando ao Céu o fumo de um cigarro,
Há mais filosofia neste escarro
Do que em toda a moral do Cristianismo!

Porque, se no orbe oval que os meus pés tocam 
Eu não deixasse o meu cuspo carrasco, 
Jamais exprimiria o acérrimo asco
Que os canalhas do mundo me provocam!

II

Foi no horror dessa noite tão funérea
Que eu descobri, maior talvez que Vinci,
Com a força visualística do lince,
A falta de unidade na matéria!

Os esqueletos desarticulados,
Livres do acre fedor das carnes mortas,
Rodopiavam, com as brancas tíbias tortas,
Numa dança de números quebrados!

Todas as divindades malfazejas,
Siva e Arimã, os duendes, o In e os trasgos, 
Imitando o barulho dos engasgos,
Davam pancadas no adro das igrejas.

Nessa hora de monólogos sublimes,
A companhia dos ladrões da noite,
Buscando uma taverna que os acoite,
Vai pela escuridão pensando crimes.

Perpetravam-se os actos mais funestos,
E o luar, da cor de um doente de icterícia, 
Iluminava, a rir, sem pudicícia,
A camisa vermelha dos incestos.

Ninguém, de certo, estava ali, a espiar-me,
Mas um lampião, lembrava ante o meu rosto, 
Um sugestionador olho, ali posto
De propósito, para hipnotizar-me!

Em tudo, então, meus olhos distinguiram 
Da miniatura singular de uma aspa, 
À anatomia mínima da caspa, 
Embriões de mundos que não progrediram!

Pois quem não vê aí, em qualquer rua,
Com a fina nitidez de um claro jorro,
Na paciência budista do cachorro
A alma embrionária que não continua?!

Ser cachorro! Ganir incompreendidos
Verbos! Querer dizer-nos que não finge,
E a palavra embrulhar-se no laringe,
Escapando-se apenas em latidos!

Despir a putrescível forma tosca,
Na atra dissolução que tudo inverte,
Deixar cair sobre a barriga inerte
O apetite necrófago da mosca!

A alma dos animais! Pego-a, distingo-a,
Acho-a nesse interior duelo secreto
Entre a ânsia de um vocábulo completo
E uma expressão que não chegou à língua!

Surpreendo-a em quatriliões de corpos vivos, 
Nos antiperistálticos abalos
Que produzem nos bois e nos cavalos 
A contracção dos gritos instintivos!

Tempo viria, em que, daquele horrendo
Caos de corpos orgânicos disformes
Rebentariam cérebros enormes,
Como bolhas febris de água, fervendo!

Nessa época que os sábios não ensinam, 
A pedra dura, os montes argilosos 
Criariam feixes de cordões nervosos 
E o neuroplasma dos que raciocinam!

Almas pigméias! Deus subjuga-as, cinge-as
À imperfeição! Mas vem o Tempo, e vence-O, 
E o meu sonho crescia no silêncio,
Maior que as epopéias carolíngias!

Era a revolta trágica dos tipos 
Ontogênicos mais elementares, 
Desde os foraminíferos dos mares 
À grei liliputiana dos pólipos.

Todos os personagens da tragédia, 
Cansados de viver na paz de Buda, 
Pareciam pedir com a boca muda 
A ganglionária célula intermédia.

A planta que a canícula ígnea torra,
E as coisas inorgânicas mais nulas
Apregoavam encéfalos, medulas
Na alegria guerreira da desforra!

Os protistas e o obscuro acervo rijo
Dos espongiários e dos infusórios
Recebiam com os seus órgãos sensórios
O triunfo emocional do regozijo!

E apesar de já ser assim tão tarde, 
Aquela humanidade parasita,
Como um bicho inferior, berrava, aflita, 
No meu temperamento de covarde!

Mas, refletindo, a sós, sobre o meu caso, 
Vi que, igual a um amniota subterrâneo, 
Jazia atravessada no meu crânio 
A intercessão fatídica do atraso!

A hipótese genial do microzima
Me estrangulava o pensamento guapo,
E eu me encolhia todo como um sapo
Que tem um peso incômodo por cima!

Nas agonias do delirium-tremens,
Os bêbedos alvares que me olhavam,
Com os copos cheios esterilizavam
A substância prolífica dos semens!

Enterram as mãos dentro das goelas,
E sacudidos de um tremor indômito
Expeliam, na dor forte do vômito,
Um conjunto de gosmas amarelas.

Iam depois dormir nos lupanares
Onde, na glória da concupiscência,
Depositavam quase sem consciência
As derradeiras forças musculares.

Fabricavam destarte os blastodermas, 
Em cujo repugnante receptáculo 
Minha perscrutação via o espetáculo 
De uma progênie idiota de palermas.

Prostituição ou outro qualquer nome,
Por tua causa, embora o homem te aceite, 
É que as mulheres ruins ficam sem leite 
E os meninos sem pai morrem de fome!

Por que há de haver aqui tantos enterros?
Lá no "Engenho" também, a morte é ingrata...
Há o malvado carbúnculo que mata
A sociedade infante dos bezerros!

Quantas moças que o túmulo reclama!
E após a podridão de tantas moças,
Os porcos esponjando-se nas poças
Da virgindade reduzida à lama!

Morte, ponto final da última cena,
Forma difusa da matéria embele,
Minha filosofia te repele,
Meu raciocínio enorme te condena!

Diante de ti, nas catedrais mais ricas,
Rolam sem eficácia os amuletos,
Oh! Senhora dos nossos esqueletos
E das caveiras diárias que fabricas!

E eu desejava ter, numa ânsia rara,
Ao pensar nas pessoas que perdera,
A inconsciência das máscaras de cera
Que a gente prega, com um cordão, na cara!

Era um sonho ladrão de submergir-me 
Na vida universal, e, em tudo imerso, 
Fazer da parte abstracta do Universo, 
Minha morada equilibrada e firme!

Nisto, pior que o remorso do assassino, 
Reboou, tal qual, num fundo de caverna, 
Numa impressionadora voz interna, 
O eco particular do meu Destino:

III

"Homem! por mais que a Idéia desintegres, 
Nessas perquisições que não têm pausa, 
Jamais, magro homem, saberás a causa 
De todos os fenômenos alegres!

Em vão, com a bronca enxada árdega, sondas
A estéril terra, e a hialina lâmpada oca,
Trazes, por perscrutar (oh! ciência louca!)
O conteúdo das lágrimas hediondas.

Negro e sem fim é esse em que te mergulhas 
Lugar do Cosmos, onde a dor infrene 
É feita como é feito o querosene
Nos recôncavos úmidos das hulhas!

Porque, para que a Dor perscrutes, fora
Mister que, não como és, em síntese, antes
Fosses, a reflectir teus semelhantes,
A própria humanidade sofredora!

A universal complexidade é que Ela
Compreende. E se, por vezes, se divide,
Mesmo ainda assim, seu todo não reside
No quociente isolado da parcela!

Ah! Como o ar imortal a Dor não finda!
Das papilas nervosas que há nos tatos
Veio e vai desde os tempos mais transatos
Para outros tempos que hão de vir ainda!

Como o machucamento das insônias
Te estraga, quando toda a estuada Idéia
Dás ao sôfrego estudo da ninféia
E de outras plantas dicotiledôneas!

A diáfana água alvíssima e a hórrida áscua
Que da ígnea flama bruta, estriada, espirra;
A formação molecular da mirra,
O cordeiro simbólico da Páscoa;

As rebeladas cóleras que rugem
No homem civilizado, e a ele se prendem
Como às pulseiras que os mascates vendem
A aderência teimosa da ferrugem;

O orbe feraz que bastos tojos acres
Produz; a rebelião que, na batalha,
Deixa os homens deitados, sem mortalha,
Na sangueira concreta dos massacres;

Os sanguinolentíssimos chicotes
Da hemorragia; as nódoas mais espessas,
O achatamento ignóbil das cabeças,
Que ainda degrada os povos hotentotes;

O Amor e a Fome, a fera ultriz que o fojo
Entra, à espera que a mansa vítima o entre, 
— Tudo que gera no materno ventre
A causa fisiológica do nojo;

As pálpebras inchadas na vigília,
As aves moças que perderam a asa,
O fogão apagado de uma casa,
Onde morreu o chefe da família;

O trem particular que um corpo arrasta
Sinistramente pela via-férrea,
A cristalização da massa térrea,
O tecido da roupa que se gasta;

A água arbitrária que hiulcos caules grossos
Carrega e come; as negras formas feias
Dos aracnídeos e das centopéias,
O fogo-fátuo que ilumina os ossos;

As projecções flamívomas que ofuscam,
Como uma pincelada rembrandtesca,
A sensação que uma coalhada fresca
Transmite às mãos nervosas dos que a buscam;

O antagonismo de Tifon e Osíris,
O homem grande oprimindo o homem pequeno,
A lua falsa de um parasseleno,
A mentira mateórica do arco-íris;

Os terremotos que, abalando os solos,
Lembram paióis de pólvora explodindo,
A rotação dos fluidos produzindo
A depressão geológica dos pólos;

O instinto de procriar, a ânsia legítima 
Da alma, afrontando ovante aziagos riscos,
O juramento dos guerreiros priscos
Metendo as mãos nas glândulas da vítima;

As diferenciações que o psicoplasma
Humano sofre na mania mística,
A pesada opressão característica
Dos dez minutos de um acesso de asma;

E, (conquanto contra isto ódios regougues)
A utilidade fúnebre da corda
Que arrasta a rês, depois que a rês engorda, 
A morte desgraçada dos açougues...

Tudo isto que o terráqueo abismo encerra
Forma a complicação desse barulho
Travado entre o dragão do humano orgulho
E as forças inorgânicas da terra!

Por descobrir tudo isso, embalde cansas!
Ignoto é o gérmen dessa força ativa
Que engendra, em cada célula passiva,
A heterogeneidade das mudanças!

Poeta, feto malsão, criado com os sucos
De um leite mau, carnívoro asqueroso,
Gerado no atavismo monstruoso
Da alma desordenada dos malucos;

Última das criaturas inferiores 
Governada por átomos mesquinhos, 
Teu pé mata a uberdade dos caminhos 
E esteriliza os ventres geradores!

O áspero mal que a tudo, em torno, trazes,
Análogo é ao que, negro e a seu turno,
Traz o ávido filóstomo noturno,
Ao sangue dos mamíferos vorazes!

Ah! Por mais que, com o espírito, trabalhes 
A perfeição dos seres existentes,
Hás de mostrar a cárie dos teus dentes 
Na anatomia horrenda dos detalhes!

O Espaço — esta abstração spenceriana 
Que abrange as relações de coexistência
É só! Não tem nenhuma dependência
Com as vértebras mortais da espécie humana!

As radiantes elipses que as estrelas
Traçam, e ao espectador falsas se antolham 
São verdades de luz que os homens olham 
Sem poder, no entretanto, compreendê-las.

Em vão, com a mão corrupta, outro éter pedes 
Que essa mão, de esqueléticas falanges,
Dentro dessa água que com a vista abranges, 
Também prova o princípio de Arquimedes!

A fadiga feroz que te esbordoa
Há de deixar-te essa medonha marca,
Que, nos corpos inchados de anasarca,
Deixam os dedos de qualquer pessoa!

Nem terás no trabalho que tiveste
A misericordiosa toalha amiga,
Que afaga os homens doentes de bexiga
E enxuga, à noite, as pústulas da peste!

Quando chegar depois a hora tranqüila,
Tu serás arrastado, na carreira,
Como um cepo inconsciente de madeira
Na evolução orgânica da argila!

Um dia comparado com um milênio
Seja, pois, o teu último Evangelho...
E a evolução do novo para o velho
E do homogêneo para o heterogêneo!

Adeus! Fica-te aí, com o abdômen largo
A apodrecer!. .. És poeira, e embalde vibras!
O corvo que comer as tuas fibras
Há de achar nelas um sabor amargo!"

IV

Calou-se a voz. A noite era funesta.
E os queixos, a exibir trismos danados,
Eu puxava os cabelos desgrenhados
Como o Rei Lear, no meio da floresta!

Maldizia, com apóstrofes veementes,
No estentorde mil línguas insurrectas,
O convencionalismo das Pandectas
E os textos maus dos códigos recentes!

Minha imaginação atormentada
Paria absurdos... Como diabos juntos,
Perseguiam-me os olhos dos defuntos
Com a carne da esclerótica esverdeada.

Secara a clorofila das lavouras.
Igual aos sostenidos de uma endeixa, 
Vinha me às cordas glóticas a queixa 
Das coletividades sofredoras.

O mundo resignava-se invertido
Nas forças principais do seu trabalho...
A gravidade era um princípio falho,
A análise espectral tinha mentido!

O Estado, a Associação, os Municípios
Eram mortos. De todo aquele mundo
Restava um mecanismo moribundo
E uma teleologia sem princípios.

Eu queria correr, ir para o inferno,
Para que, da psique no oculto jogo,
Morressem sufocadas pelo fogo
Todas as impressões do mundo externo!

Mas a Terra negava-me o equilíbrio...
Na Natureza, uma mulher de luto
Cantava, espiando as árvores sem fruto,
A canção prostituta do ludíbrio!


Poemas e Poesias terça, 13 de novembro de 2018

AI DOS QUE VIVEM, SE NÃO FORA O SONO, POEMA DO MINEIRO ALPHONSUS GUIMARAENS

AI DOS QUE VIVEM, SE NÃO FORA O SONO

Alphonsus Guimaraens

 

 

Ai dos que vivem, se não fora o sono!
O sol, brilhando em pleno espaço, cai
Em cascatas de luz; desce do trono
E beija a terra inquieta, como um pai.

E surge a primavera. O áureo patrono
Da terra é sempre o mesmo sol. Mas ai
Da primavera, se não fora o outono,
Que vem e vai, e volta, e outra vez vai.

Ao níveo luar que vaga nos outeiros
Sucedem sombras. Sempre a lua tem
A escuridão dos sonhos agoureiros.

Tudo vem, tudo vai, do mundo é a sorte...
Só a vida, que se esvai, não mais nos vem.
Mas ai da vida, se não fora a morte!


Poemas e Poesias segunda, 12 de novembro de 2018

VÉSPER (POEMA DO MARANHENSE RAIMUNDO CORREIA)

VÉSPER

Raimundo Correia

 

Do seu fastígio azul, serena e fria,
Desce a noite outonal, augusta e bela;
Vésper fulgura além... Vésper! Só ela
Todo o céu, doce e pálida, alumia.

De um mosteiro na cúpula irradia

Com frouxa luz... Em sua humilde cela,
Contemplativa e lânguida à janela, 
Triste freira, fitando-a, se extasia...

Vésper, envolta em deslumbrante alvura, 

Ó nuvens, que ides pelo espaço afora!
A quem tão longo olhar volve da altura?

Que olhar, irmão do seu, procura agora 

Na terra o astro do amor? O olhar procura 
Da solitária freira que o namora.


Poemas e Poesias domingo, 11 de novembro de 2018

DOIS QUADROS (POEMA DO CEARENSE PATATIVA DO ASSARÉ)

 

DOIS QUADROS

Patativa do Assaré

 

 

Dois quadros

Na seca inclemente do nosso Nordeste, 
O sol é mais quente e o céu mais azul 
E o povo se achando sem pão e sem veste, 
Viaja à procura das terra do Sul.

De nuvem no espaço, não há um farrapo, 
Se acaba a esperança da gente roceira, 
Na mesma lagoa da festa do sapo, 
Agita-se o vento levando a poeira.

A grama no campo não nasce, não cresce: 
Outrora este campo tão verde e tão rico, 
Agora é tão quente que até nos parece 
Um forno queimando madeira de angico.

Na copa redonda de algum juazeiro 
A aguda cigarra seu canto desata 
E a linda araponga que chamam Ferreiro, 
Martela o seu ferro por dentro da mata.

O dia desponta mostrando-se ingrato, 
Um manto de cinza por cima da serra 
E o sol do Nordeste nos mostra o retrato 
De um bolo de sangue nascendo da terra.

Porém, quando chove, tudo é riso e festa, 
O campo e a floresta prometem fartura, 
Escutam-se as notas agudas e graves 
Do canto das aves louvando a natura.

Alegre esvoaça e gargalha o jacu, 
Apita o nambu e geme a juriti 
E a brisa farfalha por entre as verduras, 
Beijando os primores do meu Cariri.

De noite notamos as graças eternas 
Nas lindas lanternas de mil vagalumes. 
Na copa da mata os ramos embalam 
E as flores exalam suaves perfumes.

Se o dia desponta, que doce harmonia! 
A gente aprecia o mais belo compasso. 
Além do balido das mansas ovelhas, 
Enxames de abelhas zumbindo no espaço.

E o forte caboclo da sua palhoça, 
No rumo da roça, de marcha apressada 
Vai cheio de vida sorrindo, contente, 
Lançar a semente na terra molhada.

Das mãos deste bravo caboclo roceiro 
Fiel, prazenteiro, modesto e feliz, 
É que o ouro branco sai para o processo 
Fazer o progresso de nosso país.


Poemas e Poesias sábado, 10 de novembro de 2018

IDA (POEMA DO CARIOCA OLAVO BILAC)

IDA

Olavo Bilac

 

Para a porta do céu, pálida e bela, 
Ida as asas levanta e as nuvens corta.
Correm os anjos: e a criança morta 
Foge dos anjos namorados dela.


Longe do amor materno o céu que importa?
O pranto os olhos límpidos lhe estrela...
Sob as rosas de neve da capela,
Ida soluça, vendo abrir-se a porta.


Quem lhe dera outra vez o escuro canto 
Da escura terra, onde, a sangrar, sozinho, 
Um coração de mãe desfaz-se em pranto!


Cerra-se a porta: os anjos todos voam. 
Como fica distante aquele ninho, 
Que as mães adoram... mas amaldiçoam!


Poemas e Poesias sexta, 09 de novembro de 2018

ERRO (POEMA DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

ERRO

Machado de Assis

 

Erro é teu. Amei-te um dia 
Com esse amor passageiro 
Que nasce na fantasia 
E não chega ao coração; 
Nem foi amor, foi apenas 
Uma ligeira impressão; 
Um querer indiferente, 
Em tua presença vivo, 
Nulo se estavas ausente. 
E se ora me vês esquivo, 
Se, como outrora, não vês 
Meus incensos de poeta 
Ir eu queimar a teus pés, 
É que, — como obra de um dia, 
Passou-me essa fantasia. 

Para eu amar-te devias 
Outra ser e não como eras. 
Tuas frívolas quimeras, 
Teu vão amor de ti mesma, 
Essa pêndula gelada 
Que chamavas coração, 
Eram bem fracos liames 
Para que a alma enamorada 
Me conseguissem prender; 
Foram baldados tentames, 
Saiu contra ti o azar, 
E embora pouca, perdeste 
A glória de me arrastar 
Ao teu carro...Vãs quimeras! 
Para eu amar-te devias 
Outra ser e não como eras... 


Poemas e Poesias quinta, 08 de novembro de 2018

BEATRIZ, POEMA DO MARANHENSE HUMBERTO DE CAMPOS

 

BEATRIZ

Humberto de Campos

Bandeirante a sonhar com pedrarias
Com tesouros e minas fabulosas,
Do amor entrei, por ínvias e sombrias
Estradas, as florestas tenebrosas.

Tive sonhos de louco, à Fernão Dias...
Vi tesouros sem conta: entre as umbrosas
Selvas, o outro encontrei, e o ônix, e as frias
Turquesas, e esmeraldas luminosas...

E por eles passei. Vivi sete anos
Na floresta sem fim. Senti ressábios
De amarguras, de dor, de desenganos.

Mas voltei, afinal, vencendo escolhos,
Com o rubi palpitante dos seus lábios
E os dois grandes topázios dos seus olhos!


Poemas e Poesias terça, 06 de novembro de 2018

O CORNETEIRO (POEMA DO MARANHENSE FERREIRA GULLAR)

 

O CORNETEIRO

Ferreira Gullar

 

O meu toque

Ergue

Muros reais

 

O meu toque

É palha

As traças o espreitam

 

O meu toque é traça

Palha que se espreita

 

 O meu toque é traço

Letra, sol fictício

 

Ele é pássaro

Cujo voo, sozinho

Se alça

E o pássaro fica


Poemas e Poesias segunda, 05 de novembro de 2018

TROVA LÍRICA E FILOSÓFICA - 13 (TROVA DO PARANAENSE ENO TEODORO WANKE)

TROVA LÍRICA E FILÓSOFICA - 13

Eno Teodoro Wanke

Desconfio que em teus braços

Reside, morno e feliz

O segredo do fracasso

Das trovas que eu nunca fiz


Poemas e Poesias domingo, 04 de novembro de 2018

NA MAZURKA (POEMA DO CATARINENSE CRUZ E SOUSA)

NA MAZURKA

Cruz e Sousa

 

Morava num palácio — estranha Babilônia

De arcadas colossais, de impávidos zimbórios,

Alcovas de damasco e torreões marmóreos,

Volutas primorais de arquitetura jônia.

 

Assim, quando surgia em meio aos peristilos

Descendo, qual mulher de Séfora, vaidosa,

Envolta em ouropéis, em sedas, luxuosa,

Cercavam-na do belo os místicos sigilos!

 

E quando nos saraus, assim como um rainúnculo,

O lábio lhe tremia e o olhar, vivo carbúnculo,

Vibrava nos salões, como uma adaga turca,

 

Ou como o sol em cheio e rubro sobre o Bósforo,

— Nos crânios os Homens sentiam ter mais fósforo...

Ao vê-la escultural no passo da Mazurka...


Poemas e Poesias sexta, 02 de novembro de 2018

DIÁLOGO DOS ECOS (9ª PARTE DO POEMA A CACHOEIRA DE PAULO AFONSO DO BAIANO CASTRO ALVES)

DIÁLOGO DOS ECOS

Castro Alves

(Do poema A Cachoeira de Paulo Afonso)

 

 

E chegou-se pra a vivenda
Risonho, calmo, feliz...
Escutou... mas só ao longe
Cantavam as juritis...
Murmurou: "Vou surpr’endê-la!"
E a porta ao toque cedeu...
"Talvez agora sonhando
Diz meu nome o lábio seu,
Que a dormir nada prevê..."

E o eco responde: — Vê! ...

"Como a casa está tão triste!
Que aperto no coração! ...
Maria!... Ninguém responde!
Maria, não ouves, não?...
Aqui vejo uma saudade
Nos braços de sua cruz...
Que querem dizer tais prantos,
Que rolam tantos, tantos,
Sobre as faces da saudade
Sobre os braços de Jesus?...
Oh! quem me empresta uma luz?...
Quem me arranca a ansiedade,
Que no meu peito nasceu?
Quem deste negro mistério
Me rasga o sombrio véu?...

E o eco responde: — Eu! ...

E chegou-se para o leito
Da casta flor do sertão...
Apertou coa mão convulsa
O punhal e o coração! ...
Stava inda tépido o ninho
Cheio de aromas suaves...
E — como a pena, que as aves
Deixam no musgo ao voar, —
Um anel de seus cabelos
Jazia cortado a esmo
Como relíquia no altar! ...
Talvez prendendo nos elos
Mil suspiros, mil anelos,
Mil soluços, mil desvelos,
Que ela deu-lhes pra guardar!...
E o pranto em baga a rolar ...

"Onde a pomba foi perder-se?
Que céu minha estrela encerra?
Maria, pobre criança,
Que fazes tu sobre a terra?"

E o eco responde: — Erra!

"Partiste! Nem te lembraste
Deste martírio sem fim!...
Não! perdoa... tu choraste
E os prantos, que derramaste
Foram vertidos por mim...
Houve pois um braço estranho
Robusto, feroz, tamanho,
Que pôde esmagar-te assim?...

E o eco responde: — Sim!

E rugiu: "Vingança! guerra!
Pela flor, que me deixaste,
Pela cruz em que rezaste,
E que teus prantos encerra!
Eu juro guerra de morte
A quem feriu desta sorte
O anjo puro da terra...
Vê como este braço é forte!
Vê como é rijo este ferro !
Meu golpe é certo... não erro.
Onde há sangue, sangue escorre!...
Vilão! Deste ferro e braço,
Nem a terra, nem o espaço,
Nem mesmo Deus te socorre !!..."

E o eco responde: — Corre !
Como o cão ele em tomo o ar aspira,
Depois se orientou.
Fareja as ervas... descobriu a pista
E rápido marchou.

....................................

No entanto sobre as águas, que cintilam,
Como o dorso de enorme crocodilo,
Já manso e manso escoa-se a canoa;
Parecia assim vista — ao sol poente —
Esses ninhos, que o vento lança às águas,
E que na enchente vão boiando à toa! ...


Poemas e Poesias quinta, 01 de novembro de 2018

POESIA E AMOR (POEMA DO FLUMINENSE CASIMIRO DE ABREU)

POESIA E AMOR

Casimiro de Abreu

 

 

A tarde que expira,
A flor que suspira,
O canto da lira,
Da lua o clarão;
Dos mares na raia
A luz que desmaia,
E as ondas na praia
Lambendo-lhe o chão;

Da noite a harmonia
Melhor que a do dia,
E a viva ardentia
Das águas do mar;
A virgem incauta,
As vozes da flauta,
E o canto do nauta
Chorando o seu lar;

Os trêmulos lumes,
Da fonte os queixumes,
E os meigos perfumes
Que solta o vergel;
As noites brilhantes,
E os doces instantes
Dos noivos amantes
Na lua de mel;

Do templo nas naves
As notas suaves,
E o trino das aves
Saudando o arrebol;
As tardes estivas,
E as rosas lascivas
Erguendo-se altivas
Aos raios do sol;

A gota de orvalho
Tremendo no galho
Do velho carvalho,
Nas folhas do ingá;
O bater do seio,
Dos bosques no meio
O doce gorjeio
Dalgum sabiá;

A órfã que chora,
A flor que se cora
Aos raios da aurora,
No albor da manhã;
Os sonhos eternos,
Os gozos mais ternos,
Os beijos maternos
E as vozes de irmã;

O sino da torre
Carpindo quem morre,
E o rio que corre
Banhando o chorão;
O triste que vela
Cantando à donzela
A trova singela
Do seu coração;

A luz da alvorada,
E a nuvem dourada
Qual berço de fada
Num céu todo azul;
No lago e nos brejos
Os férvidos beijos
E os loucos bafejos
Das brisas do sul;

Toda essa ternura
Que a rica natura
Soletra e murmura
Nos hálitos seus,
Da terra os encantos,
Das noites os prantos,
São hinos, são cantos
Que sobem a Deus!

Os trêmulos lumes,
Da veiga os perfumes,
Da fonte os queixumes,
Dos prados a flor,
Do mar a ardentia
Da noite a harmonia,
Tudo isso é – poesia!
Tudo isso é – amor!


Poemas e Poesias quarta, 31 de outubro de 2018

SONETO 080 - ALMA MINHA GENTIL, QUE TE PARTISTE (POEMA DO PORTUGUÊS LUÍS DE CAMÕES)

SONETO 080

ALMA MINHA GENTIL, QUE TE PARTISTE

Luís de Camões

 

Alma minha gentil, que te partiste
Tão cedo desta vida descontente,
Repousa lá no Céu eternamente
E viva eu cá na terra sempre triste.

Se lá no assento etéreo, onde subiste,
Memória desta vida se consente,
Não te esqueças daquele amor ardente
Que já nos olhos meus tão puro viste.

E se vires que pode merecer-te
Alguma cousa a dor que me ficou 
Da mágoa, sem remédio, de perder-te,

Roga a Deus, que teus anos encurtou,
Que tão cedo de cá me leve a ver-te,
Quão cedo de meus olhos te levou.


Poemas e Poesias terça, 30 de outubro de 2018

SONETO AO ARCADE FRANÇA (POEMA DO PORTUGUÊS BOCAGE)

SONETO AO ARCADE FRANÇA

Manuel Maria Barbosa Du Bocage

 

No canto de um venal salão de dança,
Ao som de uma rebeca desgrudada,
Olhos em alvo, a porra arrebitada,
Bocage, o folgazão, rostia o França: 
 
Este, com mogigangas de criança,
Com a mão pelos ovos encrespada,
Brandia sobre a roxa fronte alçada
Do assanhado porraz, que quer lambança:
 
Veterana se faz a mão bisonha;
Tanto a tempo meneia, e sua o bicho,
Que em Bocage o tesão vence a vergonha:
 
Quis vir-me por luxúria, ou por capricho;
Mas em vez de acudir-lhe alva langonha
Rebenta-lhe do cu merdoso esguicho.


Poemas e Poesias segunda, 29 de outubro de 2018

DEBAIXO DO TAMARINDO (POEMA DO CAPIXABA AUGUSTO DOS ANJOS)

DEBAIXO DO TAMARINDO

Augusto dos Anjos

 

No tempo de meu Pai, sob estes galhos,
Como uma vela fúnebre de cera,
Chorei biliões de vezes com a canseira
De inexorabilíssimos trabalhos!

Hoje, esta árvore, de amplos agasalhos,
Guarda, como uma caixa derradeira,
O passado da Flora Brasileira
E a paleontologia dos Carvalhos!

Quando pararem todos os relógios
De minha vida, e a voz dos necrológios
Gritar nos noticiários que eu morri,

Voltando à pátria da homogeneidade,
Abraçada com a própria Eternidade
A minha sombra há de ficar aqui!


Poemas e Poesias domingo, 28 de outubro de 2018

PLENILÚNIO (POEMA DO MARANHENSE RAIMUNDO CORREIA)

PLENILÚNIO

Raimundo Correia

 

Além nos ares, tremulamente, 
Que visão branca das nuvens sai! 
Luz entre as franças, fria e silente; 
Assim nos ares, tremulamente, 
Balão aceso subindo vai...

Há tantos olhos nela arroubados, 
No magnetismo do seu fulgor! 
Lua dos tristes e enamorados, 
Golfão de cismas fascinador!

Astro dos loucos, sol da demência, 
Vaga, noctâmbula aparição! 
Quantos, bebendo-te a refulgência, 
Quantos por isso, sol da demência, 
Lua dos loucos, loucos estão!

Quantos à noite, de alva sereia 
O falaz canto na febre a ouvir, 
No argênteo fluxo da lua cheia, 
Alucinados se deixam ir...

Também outrora, num mar de lua, 
Voguei na esteira de um louco ideal; 
Exposta aos euros a fronte nua, 
Dei-me ao relento, num mar de lua, 
Banhos de lua que fazem mal.

Ah! quantas vezes, absorto nela, 
Por horas mortas postar-me vim 
Cogitabundo, triste, à janela, 
Tardas vigílias passando assim!

E assim, fitando-a noites inteiras, 
Seu disco argênteo n'alma imprimi; 
Olhos pisados, fundas olheiras, 
Passei fitando-a noites inteiras, 
Fitei-a tanto que enlouqueci!

Tantos serenos tão doentios, 
Friagens tantas padeci eu; 
Chuva de raios de prata frios 
A fronte em brasa me arrefeceu!

Lunárias flores, ao feral lume, 
-Caçoilas de ópio, de embriaguez- 
Evaporavam letal perfume... 
E os lençóis d'água, do feral lume 
Se amortalhavam na lividez...

Fúlgida névoa vem-me ofuscante 
De um pesadelo de luz encher, 
E a tudo em roda, desde esse instante, 
Da cor da lua começo a ver.

E erguem por vias enluaradas 
Minhas sandálias chispas a flux... 
Há pó de estrelas pelas estradas... 
E por estradas enluaradas 
Eu sigo às tontas, cego de luz...

Um luar amplo me inunda, e eu ando 
Em visionária luz a nadar. 
Por toda parte louco arrastando 
O largo manto do meu luar...


Poemas e Poesias sábado, 27 de outubro de 2018

A ESCRAVA DO DINHEIRO (POEMA DO CEARENSE PATATIVA DO ASSARÉ)

A ESCRAVA DO DINHEIRO

Patativa do Assaré 

 

A sua fala não era

Como as fala do sertão.

Tinha todo o requifife

Da coisa de inducação,

Mas não valia de nada,

Era inducação formada

De pena, tinta e papé.

Era inducação no jeito,

Mas tinha dentro do peito

Veneno de cascavé.

 

Naquela noite de festa,

Provou com seu mau costume

Que a inducação dele era

Fora do santo rejume.

Quando ele oiou pra Regina,

Pra beleza da menina,

Vi logo que ele ficou

Mardando e se penerando,

Como gavião oiando

Pra rola fogo-pagou.

 

Regina oiava pra ele

Mas sem pensá em xodó,

Sua ceguêra era o enfeito

Da gola do palitó,

Eu tava vendo e sabia

Que não era simpatia,

Era inveja, era imbição,

Não era amô nem caboje,

Era os ôro, era o reloge,

A corrente e os anelão.

 

Agora vocemincêis

Preste atenção e me escute,

Pra sabê como o dinhêro

Faz a pintura do fute.

Apois aquele sujeito,

Me fartando com o respeito

E abrindo pertinho d’eu

Uma borsa atopetada

De nota verde e rajada,

Regina se derreteu.

 

Regina se transformou

E com inveja sem fim

Piscava os óio pro cara,

Sem querê sabê de mim.

E pra encurtá minha histora,

Mais tarde umas certas hora

Qué sabê o que ela fez?

Me engabelou sem escrupo

E logo, traz-zás num vupo,

Foi se embora com o freguês.

 

Pras banda do Pioí

O descarado azulou,

Com Regina, a sertaneja,

A causa da minha dô.

Por isso é que eu disse e digo:

Dinhêro é grande inimigo,

Dinhêro é farso e crué,

E ainda mais faz afronta

Quando ele toma de conta

De um coração de muié.

 

Ninguém vá pensá que eu conto

Histora que uvi contá,

Isso se passô comigo

Numa noite de Natá,

Vinte e quatro de dezembro.

Inda hoje, quando me lembro

Daquela farsa Regina,

Daquela ingrata cabôca,

Eu sinto no céu da boca

Um gosto de quina-quina.

 

Já tou véio e sou casado,

Não tenho mais inlusão,

Mas inda vejo Regina

Na minha maginação,

Essa mágua inda padeço,

Pelejo mas não me esqueço

Do má que ela fez a mim,

Inda me fere e me dói,

Não sei pra que Deus estrói

Beleza com gente ruim.

 

Ô natureza de cobra!

Bem dizia o meu avô

Que há gente pra tudo e sobra

Neste mundo enganadô.

Eu fiquei horrorizado,

Quage doido, amalucado,

De vê aquela muié

Se atranvancá nos abismo

Por causa de uns argarismo

E uns pedaço de papé.

 

Dinhêro é um fogo ardente

Que faz munto coração

Se derretê como cera

Na quintura do tição.

Dinhêro trensforma tudo,

Faz de um alegre um sisudo,

Dá nó e desmancha nó,

E finalmente o dinhêro

É o maió feiticêro,

É o Rei do Catimbó.


Poemas e Poesias sexta, 26 de outubro de 2018

O CAVALEIRO POBRE (POEMA DO CARIOCA OLAVO BILAC)

O CAVALEIRO POBRE

Olavo Bilac

 

Ninguém soube quem era o Cavaleiro Pobre,

Que viveu solitário, e morreu sem falar:

Era simples e sóbrio, era valente e nobre,

E pálido como o luar.

 

Antes de se entregar às fadigas da guerra,

Dizem que um dia viu qualquer cousa do céu:

E achou tudo vazio... e pareceu-lhe a terra

Um vasto e inútil mausoléu.

 

Desde então, uma atroz devoradora chama

Calcinou-lhe o desejo, e o reduziu a pó.

E nunca mais o Pobre olhou uma só dama,

- Nem uma só! Nem uma só!

 

Conservou, desde então, a viseira abaixada:

E, fiel à Visão, e ao seu amor fiel,

Trazia uma inscrição de três letras, gravada

A fogo e sangue no broquel.

 

Foi aos prélios da Fé. Na Palestina, quando,

No ardor do seu guerreiro e piedoso mister,

Cada filho da Cruz se batia, invocando

Um nome caro de mulher,

 

Ela rouco, brandindo o pique no ar, clamava:

“Lumen coeli Regina!” E, ao clamor dessa voz,

Nas hostes dos incréus como uma tromba entrava,

Irresistível e feroz.

 

Mil vezes sem morrer viu a morte de perto,

E negou-lhe o destino outra vida melhor:

Foi viver no deserto... E era imenso o deserto!

Mas o seu Sonho era maior!

 

E um dia, a se estorcer, aos saltos, desgrenhado,

Louco, velho, feroz, - naquela solidão

Morreu: - mudo, rilhando os dentes, devorado

Pelo seu próprio coração.


Poemas e Poesias quinta, 25 de outubro de 2018

CÍRCULO VICIOSO (POEMA DO CARIOCA MACHADO DE ASSIS)

CÍRCULO VICIOSO

Machado de Assis

 

 

Bailando no ar, gemia inquieto vagalume:
“Quem me dera que eu fosse aquela loira estrela
Que arde no eterno azul, como uma eterna vela!
“Mas a estrela, fitando a lua, com ciúme:

“Pudesse eu copiar-te o transparente lume,
Que, da grega coluna à gótica janela,
Contemplou, suspirosa, a fronte amada e bela
“Mas a lua, fitando o sol com azedume:

“Mísera! Tivesse eu aquela enorme, aquela
Claridade imortal, que toda a luz resume”!
Mas o sol, inclinando a rútila capela:


Pesa-me esta brilhante auréola de nume…
Enfara-me esta luz e desmedida umbela…
Por que não nasci eu um simples vagalume?”…


Poemas e Poesias quarta, 24 de outubro de 2018

RETROSPECTO (POEMA DO MARANHENSE HUMBERTO DE CAMPOS)

RETROSPECTO

Humberto de Campos

Vinte e seis anos, trinta amores: trinta 
vezes a alma de sonhos fatigada. 
e, ao fim de tudo, como ao fim de cada 
amor, a alma de amor sempre faminta! 

Ó mocidade que foges! brada 
aos meus ouvidos teu futuro, e pinta 
aos meus olhos mortais, com toda a tinta, 
os remorsos da vida dissipada! 

Derramo os olhos por mim mesmo... E, nesta 
muda consulta ao coração cansado, 
que é que vejo? que sinto? que me resta? 

Nada: ao fim do caminho percorrido, 
o ódio de trinta vezes ter jurado 
e o horror de trinta vezes ter mentido!


Poemas e Poesias segunda, 22 de outubro de 2018

A BAIONETA (POEMA DO MARANHENSE FERREIRA GULLAR)

A BAIONETA

Ferreira Gullar

 

Defendo

a fome que

no aço come;

a felcidade

do vrerão das armas;

e, sobretudo, uma

mentira:

para os que não amam

o comércio

nemo cultivo

de cerejas

nem os riscos 

da avicultura


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