A PARTIDA DA MONÇÃO
Vicente de Carvalho
I
Ei-las, as toscas naus de borda rastejante
À flor das águas, naus de estreitos rios quietos;
Ei-las, prestes a abrir para o sertão distante
O seu voo, arrastado e sem glória, de insetos.
Nem o porte arrogante, o sobranceiro aprumo
— Altivo no descanso e ousado nos tufões —
Dessas águias que vão bordejando sem rumo
Pelo acaso do mar, feito de turbilhões;
Nem a airosa altivez de velas desfraldadas
Fulgindo ao sol, ao vento abroquelando o bojo;
Nem proas a romper ondas e espumaradas,
Pelos parcéis em fúria arroteando o rebojo;
Nada disso que faz o petulante orgulho
De afoitos bergantins e galeras reais:
Calcar a onda, rompê-la, ouvindo no marulho
A comemoração de seus passos triunfais;
Nem adiante, acirrando o desejo atrevido
De aventura e perigo, ânsias de glória, em suma,
— A infinita extensão do mar ermo, perdido
Nos confins do horizonte amortalhado em bruma;
Nem o arroubo, a poesia, a esperança fogosa
De ir ao longe, através das ondas, conquistar
A nudeza pagã e a virgindade ociosa
De ermas ilhas em flor nas solidões do mar
II
Humildes, toscas naus de borda rastejante
À tona d’água, naus de estreitos rios quietos,
Vão apenas abrir para o sertão distante
O seu voo, arrastado e sem glória, de insetos.
Levadas no pendor macio da corrente,
Irão seguindo, irão seguindo sem rumor
E sem vontade, mole e resignadamente,
Por um rumo servil, forçado e encantador.
A raiva dos tufões (como a grita afastada
De eco em eco se adoça em suspiro de mágoas)
Esvaída, a morrer de quebrada em quebrada,
Mal roçará de leve a face azul das águas.
Em todo o curso, a terra ao lado, seio amigo,
Companheira constante e proteção fiel,
Pondo o socorro à mão nas ânsias do perigo,
Dando ao gozo do olhar delícias de um vergel.
E o rio, manso, manso, a ondular, murmurando
O seu murmúrio igual, monótono estribilho,
Morosa cantilena, em voz baixa e em tom brando,
De mãe que embala o berço onde repousa o filho.
E o rio, manso, manso, a embalá-las, descendo,
No balanço sutil da mole ondulação,
E a arrastá-las, de leve, assim, para o tremendo,
Para o longínquo, vago, infinito sertão.
III
Hão de em breve surgir, pelas margens sinuosas
Florestas virgens de onde um confuso rumor
Sobe de solidões profundas, misteriosas,
Como um uivo agourento, um uivo ameaçador.
Voz sem eco, a não ser na alma de quem a escuta,
Surdo resfolegar de monstro provocado
Que de repente acorda e, prestes para a luta,
Abre a goela de sombra, e espera, sossegado.
Sossegado, seguro, apercebido, espera,
Os que lhe vêm trazer, fanática oblação,
Corações para a flecha e sangue para a fera,
Carniça para o abutre e ossadas para o chão.
A oculta sucuri, das ervas no disfarce,
Ergue a cabeça, afirma o olhar esconso e fusco,
E vagarosamente, e como a espreguiçar-se,
Desenrodilha o corpo e apresta o salto brusco.
Na sombra eternamente apagada, noturna,
De fundos socavões virgens da luz solar,
Em cada gruta, em cada escuro, em cada furna,
Relampejam fuzis nos olhos de um jaguar
IV
Depois da mata escura, o campo undoso e verde,
Banhado em sol, fechado em céu ao longe; e assim
Tão vasto e nu, que o olhar se fatiga e se perde
Num esplendor sem sombra e num ermo sem fim.
Paira, grassa em redor, toda a melancolia
De uma paisagem morta, igual, deserta e imensa,
Pondo nos olhos e nas almas que enfastia
Um peso ainda maior que a dor, a indiferença.
Desanimado, absorto, ante essa indefinida
Solidão que se espraia além, além, o olhar
Tem a impressão que faz a tristeza da vida:
De ir seguindo, seguindo, e nunca mais voltar.
Sobre os dias irão caindo as noites. Vastas
Noites de um céu que é todo azul de lado a lado,
Quando, oh triste luar das planícies, afastas
Ainda mais, ainda mais, o horizonte afastado.
V
De repente, uma flecha alígera sibila.
De onde veio? Da sombra. E a sombra, de repente,
— Traição da cascavel numa alfombra tranquila —
Principia a silvar com silvos de serpente.
Por toda parte a larga escuridão se anima
Desse leve rumor que espalha a morte, e sai
Do chão e voa, ou vem rastejante, ou, de cima,
Salpicado, vivaz, como um granizo, cai.
Bruscamente borbulha em fantasmas a margem
Agitada do rio. O clarão da metralha
Responde à sombra. E de eco em eco a imensa vargem
Reboa de um fragor de guerra e de batalha.
Eis o caminho aberto ao triunfo e à conquista.
— Como a corça ferida escapa e foge em vão,
Deixando atrás, deixando, úmida e fresca, a pista
De seu flanco rasgado e sangrando no chão;
Fugitiva e dispersa, a turba dos vencidos
Atrai, guia, conduz para a tribo distante,
Para a perdida paz de seus lares traídos,
A guerra, o cativeiro, a morte: o bandeirante.
Ferve a luta. De serra a serra voa o rouco
Som da inúbia, acordando ecos e legiões;
Ouriço monstruoso, o sertão, pouco a pouco
Todo se erriça das flechas de cem nações.
VI
Ei-las, as toscas naus de borda rastejante,
À flor das águas, naus de estreitos rios quietos;
Ei-las, prestes a abrir para o sertão distante,
Para assombros de glória, o seu voo de insetos.
Apinhem-se na praia os velhos, derramando
De encarquilhadas mãos inúteis para mais
A bênção dos que já se sentem bruxuleando
Aos que lhes vão tornar os nomes imortais.
Mães, deixai que, sonhando, a vista embevecida
De vossos filhos pouse, e se ilumine, e aprenda
Nessa formosa folha em que o livro da vida
Tem estrofes de poema e proporções de lenda.
Noivas, com os corações envoltos na penumbra
Indecisa do amor que se orgulha e se doe,
Vinde trazer-lhes vosso olhar de que ressumbra
Saudade pelo amante e enlevo pelo herói.
Ao largo, enfim! Clarins e buzinas atroam.
E as canoas, na luz da manhã cor de rosa,
Pairam por um momento em pleno rio; aproam
Para o sertão. E rompe a marcha vagarosa.
Nos barrancos, até rente d’água investidos
De filhos a sorrir e de mães a chorar,
Lancem as frouxas mãos e os olhos comovidos
O derradeiro adeus e o derradeiro olhar
VII
Longe, na solidão do campo undoso e verde,
O rio serpenteia. Em cada contorção
Mais se afasta. E a fugir, pouco a pouco se perde
No majestoso, vago, infinito sertão.