O CASTIGO DE DEUS
Júlio Dinis
(Grafia original)
Terminara a peleja. Ensangüentado Jaz o campo da atroz carnificina: Um
sinistro clarão avermelhado
Do exército ao longe a marcha ensina.
O incêndio, a ruina e a feroz matança
São as relíquias da já finda guerra.
Ai dos vencidos! Gritos de vingança,
Perseguem os fugidos pela serra.
Ai dos vencidos! A furiosa plebe
Erra nos campos com medonha grita;
Não dá quartel, piedade não concebe;
Um cruento furor a move e agita.
Corre em tropel, corre ébria de vitória, Arrastando os cadáveres
despidos. Maculando os lauréis da sua glória
Na lama, envolta em sangue dos vencidos
Num vale retirado, umbroso, oculto, Estorcia-se um velho agonizante.
Ouve em delírio, um hórrido tumulto, Qual de demônios
infernal descante.
Com o rosto alterado, o olhar extinto, Pálida a fronte, sem vigor, já
fria.
«Ai, que sede cruel esta que sinto!
Água, dai-me água!» diz. Ninguém o ouvia.
«Água, dai-me água!» brada com voz rouca, Que se lhe
prende na árida garganta.
Ao longe, a turba, numa orgia louca, Hinos blasfemos, implacável, canta.
No delírio violento, que alucina,
Julga-se às vezes de um regato à borda ;
Bem-diz, chorando, protecção divina,
Mas ai, que cedo deste sonho acorda.
Acorda, e vê-se à beira de um abismo; Queimam-lhe os lábios
qual ardente frágua, E a custo, em terrível paroxismo,
Sufocado repete : «Água, dai-me água!»
Como se Deus escutasse
O grito do agonizante,
Surge do velho diante
Uma angélica visão;
Com as lágrimas em fio
Pelas faces cor de neve
Caminha com passo leve
Para o prostrado ancião.
Na brandura do semblante,
No olhar magoado e aflito
Lê-se um poema inteiro escrito
De caridade e de amor.
Corre ansiada e pressurosa
E toda cheia de graça
Em socorro da desgraça
Com piedoso fervor.
Junto do velho ajoelhada Ergue-o com meigo desvelo; E as trancas do seu cabelo
Às cãs se vão misturar. Aproxima-lhe dos lábios
A água que ele pedia;
E ao vê-lo bebe r sorria… Sorria… mas a chorar.
E uma lágrima fervente, Gentil pérola preciosa, Caiu na fronte
rugosa
Do velho, que estremeceu.
E só então, como em sonhos,
Foi que o triste moribundo
Fitou um olhar profundo
Neste enviado do Céu.
Ela sorrindo-lhe meiga, Ao vê-lo assim admirado
Lhe disse : «Velho soldado, Bebei, coitado, bebei.
Há dez anos, nestes sítios, Como vós, velho, ferido,
O meu pai estremecido, Após a guerra encontrei.
«Como o vi, meu Deus! Já frio, Já co’a vista embaciada,
A fronte roxa, gelada,
Os lábios em fogo, a arder.
«— Água! — bradava convulso;
— Água! — que de sede morro I »
A fonte vizinha corro…
Cheguei… para o ver morrer.
«Era então criança ainda; Mas esta cena de morte Impressionou-me
de sorte Que nunca mais a esqueci.
Sempre, sempre aquela imagem
Muda, pálida, cruenta,
Nos meus sonhos se apresenta;
Vejo-a ainda como a vi.
«Curvei-me sobre o cadáver
A aquecê-lo com meus beijos;
Ai, baldados meus desejos!
Que esse frio era mortal.
Jurei então, pela Virgem,
No fervor da minha mágoa,
De correr sempre com água
Pelas tendas do arraial.
«Quantas vezes à blasfêmia,
Que o delírio ao peito arranca,
Esta água, que a sede estanca,
Bendita por Deus, pôs fim!…
Quantos nobres cavaleiros,
Quantos moços, quantos velhos,
Eu vi cair de joelhos,
Soluçando ao pé de mim!
«A cada sede que estanco, A cada dor que mitigo, Pareca-me que consigo
Matar a sede a meu pai, Àquele velho soldado
Que há dez anos, nesta selva, Sobre uma cama de relva Exalou o extremo
ai.»
O velho, ouvindo-a, estremece.
«Nestes sítios ! Há dez anos!
Impenetráveis arcanos!
Dedo invisível de Deus!
E és tu quem me socorres ?!
Luz fatal se me revela.
Vingaste teu pai, donzela,
Cumpriste as ordens do Céu!»
E a fronte lívida, exausta Por extremado cansaço, Deixou pender
no regaço
Da pobre órfã que a sustem. Um supremo olhar de angústia
Nela por momentos fita;
Nela, que o encara aflita
Como carinhosa mãe,
«Morre em paz, velho soldado, Por mim meu pai te perdoa,
Se a hora extrema já te soa, Podes alegre partir.
Que seja esta gota d’água
A que te lave do crime;
Possa esta dor, que te oprime
As tuas culpas remir I»
E ao longe a turba infrene tripudiava Sobre o cruento campo da matança;
Dos homens a vingança ali reinava. Reinava aqui de Deus só a
vingança.