COM A BOCA NO TROMBONE
Raimundo Floriano
Pronto, acabou-se o tabu! Depois que a Tv Globo exibiu a novela Roda de Fogo, no horário nobre e no Vale a Pena Ver de Novo, com o personagem Tabaco, simpático e astucioso trambiqueiro, competentemente interpretado pelo ator Osmar Prado, essa palavra, que já teve uma conotação chula, passou a ser pronunciada nos salões mais seletos, no ambiente familiar, virando, simplesmente, nome de gente. É o caso também de pentelho – como sinônimo de quem é enxerido, atrapalha, perturba –, que hoje é empregada até nas redações infantis.
Faço essa introdução para poder contar, mais adiante, a forma pela qual descobri minha devoção pela música popular brasileira e o fascínio por um instrumento que me proporcionou muita alegria e realização, de que ora falo com saudade, eis que dele afastado devido a motivos anatômicos.
Vi-o, pela primeira vez, em 1947, em Balsas, minha terra natal, trazido por uma missionária protestante, a Miss Ila – pronuncia-se missiáila –, louríssima americana dos seus dois metros de altura, que, para ensinar aos catecúmenos as melodias dos hinos, antes as executava num trombone de vara, até que ficassem bem assimiladas.
A impressão inicial, que perdurou por três anos, foi a de que o trombone de vara era exclusivo e característico das igrejas de crentes, assim como, me parecia, o harmônio só servia para tocar em templos católicos.
Para continuar, devo proclamar aqui: nasci, me criei e estudei o primário no Maranhão; e o secundário, no Piauí!
Em 1950, aos catorze anos, recém-chegado a Teresina, nova descoberta. Passando, por acaso, perto de uma solenidade militar, vi um magote de músicos fardados, em formatura, interpretando uma bonita e excitante marcha. Para mim, mais de cinco músicos juntos era coisa inusitada, maravilha com que jamais sonhara. De um colega de escola, a quem manifestei meu espanto, recebi a explicação de que tal agrupamento se chamava “banda”, aquela era a Banda do 25º Batalhão de Caçadores, e a marcha que ouvíamos era um “dobrado”.
Naquela banda, o que mais me chamou a atenção foi a presença de dois trombones de vara, tocando ao mesmo tempo e com movimentos diferentes, fazendo-me reformular o conceito inicial: trombone de vara era apropriado para músicas sacras e marchas militares.
O som por ele produzido com intensidade, firmeza e longo alcance, sempre me causou espécie. Se uma banda estava tocando à distância, digamos, de um quilômetro, os únicos instrumentos que se ouviam eram o surdão e o trombone de vara. Só de perto, é que os outros apareciam, à exceção do pistom, terceiro na escala do barulho.
No segundo semestre de 1950, fui morar com minha tia Antônia, residente na capital piauiense, à rua Teodoro Pacheco, esquina com a João Cabral. A um quarteirão, ficava a rua Paissandu, a partir da qual concentravam-se a vida noturna, a vida boêmia, a doce vida de teresinenses. Desde a primeira noite que ali passei, o som de um longínquo trombone de vara vinha acalentar-me e acariciar-me o sono. Eram melodias diferentes daquelas ouvidas nos cultos e nas paradas, fazendo-me ficar em minha rede a me revolver, procurando a melhor posição para a escuta e a imaginar quem estaria, sem saber, embalando-me os devaneios.
Não demorou muito e, em certas madrugadas, quando todos de casa estavam a dormir, eu saía para o quintal, escalava o muro, e rumava para o som. Com o intuito de apreciá-lo, protegia-me na escuridão das paredes e dos pomares, pois se a polícia me flagrasse no ponto, adeus, saudade! O local ficava a uns trezentos metros, na rua João Cabral, no meio do quarteirão entre a Paissandu e a Félix Pacheco. Chamava-se Boate Sete Tabacos. Esse nome derivava das sete marcas de cigarro ali vendidas – Continental, Astória, Hollywood, Yolanda, Lincoln, Beverly e Selma.
Bem no centro da Sete Tabacos, arrodeado por sete quartos, correspondentes às sete irmãs proprietárias e relações públicas do estabelecimento, ficava o salão de danças, obrigatório em todos os cabarés daquele tempo. A um canto, sobre pequeno estrado, acomodava-se o conjunto regional, composto de baterista, pandeirista, sanfoneiro, banjoísta e um trombonista muito setenta, que marcou minha existência e me abriu os olhos para a grande revelação: o trombone de vara servia para tocar samba, frevo, rumba, bolero, baião, mambo, enfim, traçava qualquer gênero da música popular, qualquer ritmo, não importando a velocidade de seu andamento.
A partir de então, passei a admirar todos os trombonistas de vara e a fantasiar como seria minha vida, em afirmação e alegria, se eu também fosse um deles.
O tempo marchou. Em 1972, aqui em Brasília, ao contar essa quimera para um velho amigo dos tempos da caserna, Ricardo Caparaó, de Belo Horizonte, seresteiro e aprontador, obtive a promessa da doação de um trombone de vara, o que se concretizou em seguida. Ao recebê-lo, fui logo colocando-o na boca, soprando como se fosse um berrante e tentando graduar o som com o vaivém da vara. Aí, é que eu vi que o buraco era mais em cima.
Quando ouço alguém a enaltecer os dotes musicais de pessoa que toca mais de dez instrumentos, e os especifica: surdo, repenique, tarol, cavaquinho, banjo, violão, bandolim, sanfona, piano, órgão, clarineta, saxofone e outros mais, todos de percussão, corda, teclado e palheta, não resisto à tentação de especular:
– E quantos de bocal?
– Bom, de bocal, nenhum – é a resposta.
Porque, meus camaradinhas, com instrumento de bocal é preciso estudo, é essencial força no bico, é imprescindível a firmeza no lábio superior, a trombada é federal. Conheci, durante todo esse tempo em que tenho convivido com a iluminada classe, um único músico que, num baile, ficava a se revezar no trombone, no saxofone, na clarineta e no pistom, por cinco, seis horas, sem jamais quebrar as embocaduras, as notas mais cristalinas e redondas à medida em que a função se prolongava. Não bastasse tudo isso, era um virtuoso na gaita-de-boca. Refiro-me ao maestro, arranjador, compositor, instrumentista, autodidata, o fora de série, que atende pelo nome de Leonizard Braúna, para mim o Beethoven do sertão sul-maranhense. De um mortal comum o instrumento de bocal requer muito esforço, dedicação e persistência.
A 20 de maio de 1972, o Correio Braziliense publicava este anúncio:
PROFESSOR DE TROMBONE DE VARA
Preciso de um, para os sábados, das duas às quatro da tarde. Não quero erudição, o meu negócio é botar a Banda Urubu na rua, tocando algumas marchinhas e alguns frevinhos para arder e encardir. Tratar com Floriano –
Fone: 223-2763.
Como de praxe, não faltaram os tradicionais trotes, como este:
–Você quer mesmo é um professor de trombone?
–Sim! – dizia eu, esperançoso.
– E a vara, você não quer?
No dia 12 de junho, apareceu um mestre de verdade, na pessoa do sargento Daniel Nascimento de Souza, hoje oficial e maestro do Exército Brasileiro, que, com muito empenho, entusiasmo, boa vontade e eficiência, me colocou em condições de, já no Carnaval de 1973, alegrar as superquadras e avenidas de Brasília, com os desfiles e retretas de nossa gloriosa banda.
Meu mandato de trombonista durou de 1973 a 1988, quando fiz a última tocata, integrando a Banda do Pacotão. Naquele ano, a perda da firmeza na arcada dentária superior me confiscou a embocadura. Não posso afirmar que definitivamente. A tecnologia odontológica poderá me reintegrar à atividade musical. É o que garantem os doutores Delfino Damas Soares, implantodontista nova-iorquino – nasceu em Nova Iorque, MA –, e Jorge Probst, protético catarinense.
Veremos!
Houve, no entanto, entre o Carnaval de 1973 e o de 1988, a Banda da Capital Federal, cuja história será rememorada em outra oportunidade.
Leonizard, o Beethoven do sertão, e Daniel, o eficiente professor