OS ALECTOROMAQUISTAS
Raimundo Floriano
Em junho de 1988, fiz um pedido de elepês e livros à Funarte, que anunciava um grande lançamento de obras destacando, sonora e graficamente, nomes consagrados da Velha Guarda da Música Popular Brasileira. Para que não se confundissem quanto ao endereço, e também para lhe dar publicidade, anexei meu cartão de visita. Nele, e em todas as edições posteriores, me declaro alectoromaquista – pessoa que gosta de assistir a brigas de galo. Esse termo é derivado do grego. Alectoro quer dizer galo, e maquia significa combate.
A diretora-executiva da Funarte, achando-o original, mostrou-o ao humorista Millôr Fernandes, meu guru, que tinha uma coluna diária no Jornal do Brasil. No dia 6 daquele mês, Millôr publicou o cartãozinho em seu espaço no JB, e o sucesso foi mais que o inesperado, conforme já tive o ensejo de contar.
No quente da campanha eleitoral, em 1º de agosto de 1988, a página que Millôr assinava na revista IstoÉ Senhor ostentava esta matéria: Por que não tentar a alectoromancia? Essa palavra também vem do grego. Alectoro, galo, mais mancia, que é adivinhação. Com muita inteligência e graça, o autor explicava o modo de se escolher um candidato utilizando-se a antiga arte de predizer por meio de um galo que ia comendo os grãos de milho colocados sobre letras que formavam palavras. A coisa funcionava assim: se comesse os grãos sobre as letras s-v-o-a-c, formava Covas. No caso dum galo guloso, que devorasse i-n-r-u-e-n-a-l-a, o candidato escolhido seria Aureliano.
Fiquei orgulhoso. Meu guru – supus – inspirara-se em atributo meu para escrever tão bela peça literária!
O tempo se passou. E muito. Em dezembro de 2001, compareci ao Salão Negro do Congresso Nacional para o lançamento do livro Casos & Coisas, do publicitário Duda Mendonça, marqueteiro vitorioso dos grandes nomes da política brasileira. Após receber o autógrafo, fui apresentado a Alexandre Mendes de Oliveira, gerente de divulgações da Editora Globo, que patrocinava o evento.
Conversa vai, conversa vem, mostrei-lhe meu cartão. Alexandre gostou do que viu e me pediu que o destrinchasse. Ao decifrar-lhe alectoromaquia, ele me revelou:
– Então, o Duda também tem o mesmo gosto que você!
– Por quê?
– Possui mais de duzentos galos de briga!
– Então eu vou falar novamente com ele!
E fui. Aproximei-me dele, dando-lhe meu cartão:
– Duda, desculpe-me, eu até já peguei seu autógrafo, mas voltei, porque o Alexandre me informou que você, como eu, é alectoromaquista. Duda, surpreso, me interrogou:
– O que é isso?
E eu, peito inflado, falei bem alto, para que todos ali em volta me escutassem:
– É quem gosta de briga de galo!
– Que coisa, rapaz, eu não sabia!
E não sabia mesmo. Em Casos & Coisas, por cinco vezes menciona seu hobby, porém, em nenhum momento, cita a palavrinha mágica. Sinal de que o grande publicitário aprendera alguma coisa naquela noite.
Mas também me ensinara. De seu excelente texto, acessível e interessante para qualquer um que goste da boa leitura, extraí esta lição: tudo o que aconteceu de ruim em sua vida foi para seu próprio bem. Por isso, quando alguma coisa ruim aparece em seu caminho, ele logo vislumbra algo de bom se aproximando.
E a quem devo essa riqueza de vocabulário que inclui palavras tão exóticas? A resposta é uma só: ao doutor Antônio Neuber Ribas, meu primeiro chefe na Câmara dos Deputados.
Seu Ribas, como todos o chamávamos, mesmo depois dele colar grau em Direito e Administração, era um homem de vasta sapiência, grande cavalheirismo, seriíssimo no desempenho da função pública e um folgazão nas horas de lazer. Na Seção de Material da Diretoria do Patrimônio, exarava despachos, pareceres, ou esboçava correspondências a serem assinadas por autoridades do escalão superior, os quais eu tinha a incumbência de datilografar com o esmero exigido na confecção de todos os papéis daquela Casa. Aprofundando-me no estudo e na análise dos escritos magistralmente elaborados, nas ideias bem expostas, na mineirice ao se expressar, transformei-me num rato de dicionário, podendo hoje dizer – e nisso não o desmereço – que com Seu Ribas aprendi a redigir. E sua transmissão de conhecimentos aos auxiliares não se restringia apenas aos documentos oficiais. Gostava de comentar as notícias de jornais e tevês, ressaltando alguma gafe ou um vocábulo com acepção incomum. Aqui e ali, tirava um termo do bolso do colete, só para ver se pegava o interlocutor na curva. E isso me fazia mergulhar no Aurélio, à cata de sinônimos de palavras novas com que deparava na datilografia, na leitura dos escritores nacionais e estrangeiros, em que sempre fui viciado, ou na resolução de palavras cruzadas. Em nossas conversas, no intervalo do expediente, saía-se com perguntas desse tipo:
– Raimundo, o que é dintel?
– Ora, Seu Ribas, é o apoio lateral das prateleiras nas estantes!
– E o que é ambão?
– É um tipo de tablado, onde os oradores põem o texto que vão ler!
– Mas peanha você não sabe o que é!
– É um pedestal sobre o qual se assenta uma imagem!
– Você sabe o que é anônfalo?
– É a pessoa que não tem umbigo!
Ele se divertia com esses diálogos. E quanto mais ele perguntava, mais aguçava em mim a curiosidade e a vontade de aprender. De outra feita, atacava com as fagias:
– O que é andrófago?
– Pela etimologia da palavra, é quem come o homem!
– E ginecófago?
– Também, pela etimologia, é quem come a mulher!
– E sicófago?
– É quem come figo!
– Esta é até engraçada: o é coprófago?
–É quem come fezes!
Um dia, a casa caiu. Seu Ribas me apanhou de jeito. Detonou à queima-roupa:
– Raimundo, dê-me um sinônimo da palavra alectoromaquia.
– Olhe, Seu Ribas, agora o senhor me apertou sem me abraçar. Não sei!
Foi aí que Seu Ribas, meu mestre, me narrou o fato a seguir.
“Uma vez, Raimundo, na chefia da Assessoria Legislativa, eu estava assoberbadíssimo de serviço, despachando com o assessor Sonílton Campos Fernandes, quando entrou na sala o deputado paulista Minoru Massuda, que solicitou a redação da minuta de um projeto de lei permitindo a realização de brigas de galos em todo o território nacional. O deputado expôs seus motivos, afirmando que é até uma crueldade proibir esse esporte, uma vez que o galo é um animal guerreiro e só vive feliz quando se encontra em combate. Citou até o eminente chanceler Oswaldo Aranha, cujo galo Capacete de Aço era o terror das rinhas. Perguntado se apreciava essa modalidade de diversão, o deputado exibiu seu cartão de visita:
MINORU MASSUDA
Capitão PM
Deputado Federal
Galista
Ao vê-lo, o Sonílton sugeriu:
– Deputado, não seria melhor colocar um nome mais apropriado para sua especialidade? Que tal alectoromaquista, termo que define todos os aficionados desse esporte?
Melhor não poderia haver. O deputado saiu felicíssimo, com o rascunho da proposição – que viria a ser o Projeto de Lei nº 3.500, de 1977 – e com a bela palavra que, dali em diante, incorporaria a seu currículo.”
Após ouvir esse relato declarei:
– Seu Ribas, essa palavra que acabo de aprender passa a fazer parte do meu acervo intelectual e constará do meu cartão, pois fui um rinhadeiro militante nos meus tempos de criança.
Há poucos dias, rememorando com ele esses momentos de erudição, recebi mais uma aula:
– Raimundo, você podia acrescentar em seu cartão a palavra eolista!
– O que é isso, Seu Ribas?
– É a pessoa que curte o esporte de empinar papagaio ou pipa!
Verdadeira enciclopédia esse Seu Ribas!
Antônio Neuber Ribas: mineirice e sapiência
Uma alectoromaquia