Almanaque Raimundo Floriano
(Cultural, sem fins comerciais, lucrativos ou financeiros)


Raimundo Floriano de Albuquerque e Silva, Editor deste Almanaque, também conhecido como Velho Fulô, Palhaço Seu Mundinho e Mundico Trazendowski, nascido em Balsas , Maranhão, a 3 de julho de 1936, Católico Apostólico Romano, Contador, Oficial da Reserva do Exército Brasileiro, Funcionário Público aposentado da Câmara dos Deputados, Titular da Cadeira nº 10 da Academia Passa Disco da Música Nordestina, cuja patrona é a cantora Elba Ramalho, Mestre e Fundador da Banda da Capital Federal, Pesquisador da MPB, especializado em Velha Guarda, Música Militar, Carnaval e Forró, Cardeal Fundador da Igreja Sertaneja, Pioneiro de Brasília, Xerife nos Mares do Caribe, Cordelista e Glosador, Amigo do Rio das Balsas, Inventor da Descida de Boia, em julho de 1952, Amigo da Fanfarra do 1° RCG, autor dos livros O Acordo PDS/PTB, coletânea de charges, Sinais de Revisão e Regras de Pontuação, normativo, Do Jumento ao Parlamento, com episódios da vida real, De Balsas para o Mundo, centrado na navegação fluvial Balsas/Oceano Atlântico, Pétalas do Rosa, saga da Família Albuquerque e Silva, Memorial Balsense, dedicado à história de sua terra natal, e Caindo na Gandaia, humorístico apimentado, é casado, tem quatro filhos, uma nora, um genro e dois netos e reside em Brasília, Distrito Federal, desde dezembro de 1960.

Do Jumento ao Parlamento quinta, 09 de fevereiro de 2017

DEPENDÊNCIA QUÍMICA

DEPENDÊNCIA QUÍMICA

Raimundo Floriano 

 

                        Comecei a fumar em 1951, com quinze anos de idade. No início, sem marca definida. Experimentei o pau-ronca – brabo, de rolo –, passei pelo Astória e, finalmente, me firmei no Continental Filtro, longo. Para ser sincero, devo dizer que, enquanto desempregado, a espécie mais saboreada era mesmo a se-me-dão.

 

                        Aos dezesseis anos, ocorreu-me um insucesso que marcou minha epopeia de fumante. Estando numa fazenda, nos arredores de Balsas, Maranhão, minha cidade natal, e desprovido de cigarro, senti à noite uma enorme dificuldade em pegar no sono sem antes dar umas tragadas. Foi quando vi, a um canto, algo queimando lentamente. Perguntei ao vaqueiro do que se tratava, e ele me informou ser aquilo estrume de jumento, ressequido ao sol, muito usado para espantar mosquitos. Minha imaginação funcionou a mil. Num pedaço de palha de milho, enrolei certa porção daquele estrume, dando-lhe o formato tubular, acendi o produto e o fumei, antegozando essa ventura com uma aromática caneca de café. Tal artimanha não ficou impune. Logo mais, fui acometido de enjoo seguido de vômito, sendo obrigado a tomar eficaz mezinha da roça, que me devolveu o bem-estar. Já recuperado, fiz ali mesmo, diante da mata e da folhagem que me salvara, o solene juramento de que, quando começasse a ganhar dinheiro, jamais me faltaria cigarro no bolso. Principiei a cumpri-lo fielmente a partir de fevereiro de 1955, quando sentei praça no Exército. Desde então, reservava para isso uma boa soma do meu soldo, e mantinha um estoque sobressalente de no mínimo dez carteiras.

 

                        Essa exemplar dedicação ao fumo, para muitos elogiável, se me proporcionava momentos de grande embevecimento, provocava, também, às vezes, constrangimentos, observações maldosas da parte dos intolerantes. Na Polícia do Exército de Brasília, onde eu seguia carreira como sargento, era constantemente alfinetado pelo colega Dílson Montibeller, que vivia a proclamar:

 

                        – Todo fumante é porco!

 

                        E o sargento Montibeller explicava que, em casa, o fumante usa cinzeiros, mas estando na residência alheia ou num órgão público, joga palitos de fósforo, baganas e cinzas no chão, fuma até à mesa, durante as refeições, e comete a grossura maior de depositar as guimbas nos pires e nas xícaras. Embora eu discordasse, pois na instrução militar é ensinado que, na rua ou no campo, à falta de cinzeiros, deve-se rasgar o toco do cigarro, deixar que o fumo se espalhe pelo vento, e fazer uma bolinha com o papel, guardando-a no bolso para depois se desfazer dela no local apropriado, Montibeller rebatia, pedindo que eu olhasse em derredor. E aí, infelizmente, sua teoria se confirmava.

 

                        Outra qualidade de implicante que conheci foi a das mães de crianças em idade lactente, que não respeitavam, nem por mera conveniência, o vício dos seus semelhantes. Aconteceu-me certa vez, após pegar num miúdo dos seus seis meses, fazer-lhe festinhas e devolvê-lo à babá, aparecer de repente a mãe que, recebendo sua cria, a cheirou e perguntou com asco:

 

                        – Quem foi o nojento que envenenou meu menino?

 

                        Porém nem tudo era amolação. Ao ser empossado na Câmara dos Deputados, em 1967, já tendo consagrado a fama de prevenido, fui saudado na Diretoria do Patrimônio como o marajá dos cigarros e festejado por minha sabida prodigalidade para com os outros inveterados pitadores. Dentro em pouco, computados os fumados e os concedidos aos filantes, meu consumo diário atingia a média de três dezenas. Para mim era uma afirmação, um tipo de muleta, o ato de tomar um cafezinho, sentar-me folgadamente e ficar a chupar na rabada de um gostoso Continental.

 

                        Se insuperável era o deleite da fumaça, da tragada, os alimentos começaram a perder aquele sabor de infância, e passei a perceber que o ritual das refeições estava se tornando enfadonho, a comida servindo somente para encher o estômago, porquanto não mais oferecia agrado ao paladar nem aprazia ao olfato. Também as gripes se sucediam amiúde, deixando indissipáveis sequelas nos olhos, nariz e garganta, além de memoráveis dores de cabeça.

 

                        Por essa época, eu e o escritor Luiz Berto, ex-camarada de farda e então colega no Patrimônio e companheiro de gandaia, ambos solteiríssimos e largados do talo, estávamos numas de pesquisar a Música Popular em suas mais legítimas raízes, o que nos levava, constantemente, à Boate Bola Azul, em Alexânia, Goiás, onde um conjunto formado por trombonista, sanfoneiro, baterista, pandeirista e um cantor nascido e criado ali mesmo, que cantava até em francês, nos fornecia preciosos subsídios e transbordava de originalidade.

 

                        Exatamente lá, na noite de 10 de março de 1972, sexta-feira, entre um e outro gole de cachaça, e após a execução de um apreciado número musical pelo citado conjunto, subitamente, sem prévio amadurecimento da ideia, anunciei para todos os presentes no salão:

 

                        – Deixei de fumar!

 

                        Luiz Berto soltou uma gargalhada. O sanfoneiro, de nome Fiinho, vendo comigo um maço de cigarros ainda intocado, quis logo tirar vantagem, dizendo:

 

                        – Pois me dá essa carteira aí!

                        – Não, Fiinho. Isto aqui é para provar que serei resistente à tentação.

 

                        E parei mesmo. Na segunda-feira, Luiz Berto se antecipou na chegada à Câmara, comunicando a todos minha inacreditável resolução. A recepção, dessa vez, não foi festiva. Sebastião Rodrigues Lima, o Tiãozinho, um dos habituais fregueses, dirigiu-se a mim, deveras contrariado:

 

                        – Raimundo Floriano, não foi essa nossa combinação!

 

                        Mas eu estava decidido. E, para comprovar minha força de vontade, sempre que tomava um cafezinho, pegava o maço de cigarros, aspirava sua fragrância e o recolocava no bolso, extasiando os circunstantes e deixando os eternos reincidentes, aqueles que não logravam se libertar dos malefícios da nicotina, abarrotados de inveja. Decorrido um mês, desfiz-me dos cigarros

 

                        Honrei a palavra!

 

                        Recentemente, no entanto, em rotineiro check-up, o doutor José Luiz, diretor do Departamento Médico da Câmara, que me traz sob rígido controle, sentenciou:

 

                        – Raimundo, olhe aqui: pressão, 12 por 8; colesterol, 160; peso, porreta; glicose, 80; ácido úrico, batuta. Só tem uma coisa. Se você continuar fumando desse jeito, não sei não...

 

                        – Mas doutor – defendi-me –, está fazendo mais de vinte e um anos que não ponho um cigarro na boca!

                        – Deixe de mentira!

                        – Verdade, doutor. E tem mais: na minha família ninguém fuma, graças a Deus!

                        – E, em sua sala de trabalho, quantos fumam? – Perguntou o doutor.

                        – Uns quatro! – Respondi.

                        – Apois oxente!

 

 

Raimundo Floriano quando fumava,
na visão do artista plástico Rodrigo

 


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