O AMANUENSE
Raimundo Floriano
Frequentemente, muito mais do que se possa imaginar, sou interpelado por alguém que me questiona:
– Raimundo Floriano, você é mesmo um sujeito polêmico. Diz que é amanuense, mas, no seu cartão de visita, declara que é do Maranhão. Como pode um maranhense ter nascido em Manaus?
Aí, eu tenho de explicar:
– Meu camarada, você está misturando as estações. Quem nasce em Manaus é manauense, manauara. O termo que uso para identificar uma de minhas profissões é amanuense, que, num sentido amplo, significa funcionário de repartições públicas.
Às vezes, logro convencer o desavisado.
Fui militar de fevereiro de 1955 a março de 1967. E amanuense de março de 1967 a fevereiro de 1994, no Parlamento Brasileiro, nomeado em virtude de aprovação em concurso público de âmbito nacional. No desempenho das diversas atribuições a mim confiadas, vivi situações um tanto hilariantes, algumas das quais ora tenho a oportunidade de deixar aqui consignadas.
O dia a dia nas repartições públicas exige de um chefe muito jogo-de-cintura no trato com seus subordinados, além de razoável tirocínio na resolução de contratempos e sortilégios de todos os matizes.
Um Chefe de Secretaria em Gabinete de Liderança ou de Membro da Mesa, na Câmara dos Deputados, por exemplo, regimentalmente é o responsável pelo expediente do órgão e pelo cumprimento das determinações superiores, cabendo-lhe também a redação da correspondência.
Diversos deputados titulares dos Gabinetes delegam a seus chefes de secretaria a resposta telegráfica de missivas rotineiras, o que requer boa dose de acuidade do funcionário, pois a qualquer momento seu trabalho poderá ser objeto de incertas ou pesquisas, devendo tudo estar convenientemente dentro dos conformes. Desse modo, ocorre, com frequência, um chefe de secretaria ficar a se corresponder com outrem, trocando amabilidades, figurinhas e até mesmo insultos, sem que o maioral, às vezes, jamais tome conhecimento do teor de seus escritos. A propósito, há, no folclore do Legislativo, o caso de dois deles que, após intensa e ríspida correspondência, repleta de afrontas, supostamente em nome de seus líderes, resolveram marcar um encontro, na Estação Rodoviária, para decidirem o caso no tapa.
Em 1983, eu era Chefe de Secretaria da Liderança do PTB, cuja titular, deputada Ivette Vargas (SP), como soía acontecer, a mim conferira a incumbência de manter atualizada e em ordem a comunicação com os eleitores e as partes que a ela se dirigiam, não só de São Paulo, mas de todo o Brasil.
Na manhã de 17 de julho daquele ano, aniversário da deputada, enviei-lhe este telegrama:
“Excelentíssima Senhora
Deputada Ivette Vargas
Neste dia especial, em que, aqui em nosso lar, comemoramos um ano de casamento, apresentamos-lhe efusivas congratulações pelo transcurso de seu aniversário. Respeitosamente, Raimundo Floriano e Veroni.”
À tarde, o telegrama, depois de dar uma passada pela ECT, chegou a minhas mãos. Abri-o, li-o, encaminhei-o à mesa da deputada, e, em seguida, já redigi a mensagem que, um dia após, através dos Correios, foi entregue em meu apartamento à SQS 416:
“Raimundo Floriano e Veroni
Agradecendo os cumprimentos pela passagem de minha data natalícia, desejo-lhes a perenidade de um casamento harmonioso, sob a proteção de Deus. Deputada Ivette Vargas, Líder do PTB.”
Esse episódio lembra a manjada anedota de hospício, um louco perguntando a outro:
– O que estás a escrever?
– Uma carta.
– Para quem?
– Para mim.
– E o que dizes nela?
– Não sei, ainda não li.
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Já vi muitas desculpas esfarrapadas e outras deveras criativas, para funcionário dar uma enrolada na chefia e matar o expediente, mas esta que me arranjou o Oefe Lima, por sua originalidade, merece registro.
Estávamos em plena azáfama no turno vespertino, quando o telefone tocou. Oefe atendeu, dialogou um pouco, desligou e dirigiu-se a mim:
– Chefe, tenho que ir para casa com a máxima urgência!
– Algum problema grave? – perguntei.
– É o seguinte, chefe. Minha esposa, há mais de três meses, não fica menstruada. Mas agora mesmo, você viu, ela ligou, dizendo que as regras acabam de chegar com toda a força!
Não me contive:
– Oefe, dá-me licença! Se fosse o contrário, se há mais de três meses ela estivesse com a escorrência, e hoje o fluxo tivesse cessado, eu te diria que saísses voando, para aproveitar, para tirar o atraso. Mas, havendo ocorrido o inverso, com o incômodo aflorando vigorosamente, o que é que tu vais fazer lá?
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A estabilidade no emprego dos gepês – a nova denominação do Secretariado Parlamentar – é comparável à dos dentes de leite incisivos na boca de criança de sete anos. É zero. Por qualquer inconstância do tempo, por dá-cá-aquela-palha, eles tremem nas bases, na iminência de um bilhete azul. Vejamos este sucedido, corroborativo do que digo.
Dezembro de 1992. Início do recesso. Esperando na fila da xerox, no Anexo IV, batendo papo, um punhado de gepês, dentre eles seu Arthur, sexagenário bem-casado, folgazão e piadista, lotado no gabinete do deputado Elias Murad (PTB-MG), e uma jovem, não tanto assídua no pedaço, que, pelo porte, elegância e formosura, só podia ser a Miss Gepê. O assunto era AIDS. Sendo nosso amigo o que mais dava palpite, falei-lhe, por brincadeira:
– Cuidado, seu Arthur!
E ele, em cima da bucha:
– Eu, meu camarada, sou o único aqui que pode bater no peito e dizer que está livre disso. Acabo de fazer um teste de HIV, no meu check-up, e tudo está na mais perfeita ordem!
Todos riram e, com o atendimento rápido dos xerocadores, o grupo se dispersou.
Já estava no meu gabinete, quando a Miss Gepê bate à porta:
– Com licença?
– Pois não!
– Doutor Raimundo, poderia falar com o senhor em particular?
Como só havia nós dois ali na sala, perguntei-lhe do que se tratava.
– Doutor, desculpe-me a ousadia, este é um caso delicadíssimo. Venho procurá-lo porque me falaram que o senhor é sensível e prestativo, pronto para ajudar a todos, até a desconhecidos.
– Em que lhe posso ser útil?
– O senhor conhece bem o seu Arthur?
– Há uns cinco anos, ou mais.
– Pode fazer-lhe um pedido especial, em meu nome?
– Depende. Não sei até que ponto ele me atenderá.
– Escute, doutor Raimundo, sou uma gepê com aviso prévio verbal. O meu deputado encontra-se no exterior e, na sua volta, daqui a dois meses, me dispensará. Com a dificuldade atual de se arranjar colocação, não posso perder esse cargo.
Interrompo-a:
– Penso que nesse aspecto o seu Arthur nada poderá fazer.
– Deixe eu continuar, doutor. Estive me informando e fiquei sabendo que mulher grávida não pode ser demitida.
– É verdade. Você está esperando neném?
– Não!
– É casada?
– Também não. Se fosse, resolveria isso com meu marido.
– Colega, ainda não vislumbrei a maneira pela qual eu e seu Arthur a livraríamos da demissão.
– Doutor, tenho que providenciar uma barriga o quanto antes, mas de modo seguro, sem riscos, sem perigo, com pessoa altamente confiável, entende?
– E daí?
– Será que o senhor pediria ao seu Arthur para ele me engravidar?
Quase que a cara me cai!
Miss Gepê e seu chefe: estabilidade no emprego assegurada