O CINESÍFORO, O ABENCERRAGEM E O DIASCEVASTA
Raimundo Floriano
No episódio anterior, falei de meu amigo, colega e conterrâneo Manoel Augusto Campelo Neto – também conhecido como Capitão Asa, porque voava baixo em seu Fusquinha –, dos problemas que enfrentou no DETRAN, onde se submetia a uma bateria de testes psicotécnicos que, segundo consta, durou por todo o ano de 1973, e das multas rotineiramente recebidas no estacionamento do Senado Federal. Trago novamente seu nome à colação, para contar caso sucedido após a concessão de sua tão esperada Carteira Nacional de Habilitação.
Trabalhávamos numa sala do 8º Andar do Anexo I, onde funcionavam o Serviço de Administração, chefiado por Jair Pereira Barbosa, e a Seção de Habitação, da qual eu era contador, chefiada por Goiano Braga Horta, subordinados ao Departamento de Administração. Não havia divisórias, de modo que os funcionários se misturavam no desempenho de suas funções.
Campelo e eu tínhamos algo em comum: gostávamos de estudar. E, também, de testar os conhecimentos um do outro. À noite, em casa, armávamos a cilada para, no dia seguinte, na primeira oportunidade, embaraçarmos o oponente.
No início de 1974, Campelo estava radiante, exibindo a todos os companheiros sua carta de chofer, quando o interrompi:
– Campelo, agora, com a aprovação no psicotécnico, você pode se considerar um bom cinesíforo!
Peguei-o no contrapé. Ele desconhecia o termo e perguntou:
– O que isso significa?
– Cinesíforo quer dizer motorista, Campelo. Vem do grego cines(i), ação de mover, movimento, mais foro, que conduz.
Campelo não se dá por achado. Consulta um dicionário e retruca:
– Essa palavra não existe, Raimundo!
–Pois passou a existir, Campelo, está inventada!
Noutro duelo literário, Campelo me encurralou:
– Raimundo, corrige a pontuação desta frase: “Quem paga contribuição de melhoria, nesse imposto se vicia.”
Percebi logo a maldade dele, misturando Direito Tributário com regras de pontuação. Mas fui incauto. Em vez de meditar um pouco, fui logo dando uma de letrado:
–Campelo, aí existem dois erros. Primeiramente, contribuição de melhoria não é imposto, é tributo; em segundo lugar, a vírgula está sobrando!
– Sobrando por quê? – Exultou ele.
– Porque é um crime separar o sujeito do predicado por vírgula!
– Correto, mas esse é um período composto!
Percebi que cometera uma grande mancada. Mas sou um abencerragem. Esse termo designa o indivíduo persistente, de extrema dedicação a uma causa, o derradeiro defensor de uma ideia, mas, também, o sujeito teimoso, cabeça-dura. E foi nessa pior acepção que essa característica se apossou de mim. Não iria dar o braço a torcer. Turrão, finquei o pé:
–Porque sim! Mas amanhã, eu vou dizer a fonte em que me baseio para sustentar isso!
No dia seguinte, no entanto, Campelo já esperava minha explicação. Como eu nada tinha a apresentar de novidade, mantive minha teimosia. E o ambiente na sala, desde então, passou a se assemelhar a uma lagoa com os sapos a cantarem:
– Tem vírgula!
– Não tem!
– Tem!
– Não tem!
Para dirimir a questão, o Goiano sugeriu a intermediação de um diascevasta – revisor, crítico que corrige obras alheias – e indicou o que melhor conhecia: Anderson Braga Horta, seu irmão.
Outro mais capaz não poderia existir. Anderson, quando em atividade, foi Redator de Anais e Diretor Legislativo, dentre outros importantes cargos que ocupou. Em 2001, foi agraciado com o Prêmio Jabuti de Literatura, na área de poesia. Quando interveio em nosso bate-boca, desempenhava as funções de Assessor Legislativo. Iniciou a solução do litígio com muita diplomacia:
– O Raimundo Floriano tem razão. Os termos essenciais da oração – sujeito e predicado – jamais poderão ser separados por vírgula.
– Pronto, um a zero para mim! – Comemorei.
Mas Anderson prossegue:
– A proposição ora em exame requer um estudo especial. É um período composto por subordinação. Há nele duas orações substantivas. A principal é nesse imposto se vicia, oração predicativa. A subordinada, quem paga contribuição de melhoria, é oração subjetiva. Quando a oração subordinada vem anteposta à principal, a vírgula é obrigatória!
Campelo inchou de orgulho. Eu, sem qualquer argumento, ao invés de aceitar a derrota, conservei-me o cabeçudo de sempre:
– Mas que tem vírgula, isso tem!
Anderson, calmo e comedido, depois da magistral lição, optou por se retirar, constatando que me era muito difícil aceitar os quícios, quer dizer as dobradiças.
Há poucos dias, encontrei-o no bar-livraria Café com Letras, onde o Goiano, acompanhado de sua irmã Glória Horta, ambos cantores, se apresentam em animadíssimos saraus. Lembrei-me desse passado e tive vontade, ali, de comentá-lo com ele e, trinta anos depois, entregar os pontos. O ambiente de música, cerveja e muito barulho não o permitiu. Por isso, faço questão de registrá-lo aqui e proclamar aos envolvidos na peleja:
– Anderson, Campelo, Goiano, dou a mão à palmatória!
Antes tarde do que nunca!
Anderson Braga Horta: momento de descontração
no Café com Letras