A BANDA DA CAPITAL FEDERAL
Raimundo Floriano
Passei o Carnaval de 1972 no Rio de Janeiro e voltei de lá com a firme determinação de que foi a primeira e a última vez, pelo motivo que depois explicarei, e também fortemente impressionado por um fenômeno que ali observei: a Banda de Ipanema, com a espontaneidade de seus componentes e a confraternização entre o povão, os artistas e a intelectualidade cariocas.
Diferente era – assim me pareceu – o desfile das escolas de samba, onde as evoluções só duravam enquanto os sambistas passavam em frente aos palanques oficiais, sem qualquer participação ou vibração da assistência das extremidades e com a maioria dos figurantes querendo apenas fazer pose para a televisão.
A Banda de Ipanema, ao contrário, era a reedição dos blocos de sujo de minha infância. Para seu sucesso, bastavam a boa vontade, a alegria e a criatividade dos foliões. Com um trombone, um pistom, um saxofone, um bombo, um tarol e um repenique era possível armar na rua uma ambientação caracteristicamente carnavalesca. A massa faria o resto.
Retornando a Brasília, estava completamente absorvido pela ideia de aqui constituir um esquema análogo. Para começar, convidei o escritor Luiz Berto, meu colega na Câmara dos Deputados e presepeiro de truz, que topou no ato. Em seguida, empossados, eu como Mestre e ele como Contramestre, passamos a difundir o plano e a arregimentar outros adeptos.
Arregaçando as mangas, resolvemos que aprenderíamos a tocar instrumentos de sopro, para que nunca faltasse o mínimo necessário à apresentação da banda. Obtê-los foi tarefa relativamente fácil. Instituímos um Livro de Ouro, fazendo-o circular entre os funcionários do Legislativo e alunos da AEUDF e UnB, onde eu e Luiz Berto, respectivamente, estudávamos, angariando os donativos em espécie suficientes à compra de um pistom, um saxofone e a pancadaria: dois bombos, dois surdos e um tarol. Do meu amigo Ricardo Caparaó, seresteiro de Belo Horizonte, recebi de presente um trombone de vara. O folião aposentado Osvaldo Gadelha de Souza ofertou um velho tarol, com couro de bode, que por mais de trinta anos o acompanhara em suas incursões momescas.
Conhecida preliminarmente como Banda Urubu – o que não mata, mas come –, logo esse título foi descartado, por lembrar um certo time do futebol carioca e, portanto, desvirtuar a universalidade de nosso projeto. O nome da banda foi objeto de concurso, com premiação e tudo, ao término do qual, em 09.03.72, democraticamente desclassifiquei todos os concorrentes e, em homenagem à melhor peça musical encenada no teatro brasileiro nos últimos quinhentos anos, A Capital Federal, do maranhense Artur Azevedo, escolhi a denominação, unanimemente aprovada pelos participantes. A Comissão Julgadora era formada por Paulo Augusto Soares Bandeira, Asclepíades Vasconcelos Abreu, Volmar Renê Dornelles, Augusta Maria Vasconcelos, Mauro Paulo Correia D’Ávila, Luiz Antônio Batista Machado e Jurandir Menon, todos funcionários da Câmara.
Devidamente equipados, contratamos um professor de música, o sargento Daniel Nascimento de Souza, trombonista, que foi, posteriormente, um grande reforço em nossos desfiles. As aulas começaram, a 17 de junho, comigo no trombone de vara e Luiz Berto no pistom – que depois trocou pelo tarol. Mas tínhamos pressa. Queríamos realizar o primeiro desfile da banda no dia 24, dali a uma semana, no pátio da Festa dos Estados, atrás da Torre de Televisão. Para tanto, só dispúnhamos do estandarte – uma clave de sol e o nome da banda em caracteres brancos, sobre fundo verde –, caprichosamente confeccionado por Maria das Dores, minha irmã, e uma incalculável dose de otimismo. Se bem assim o pensáramos, melhor o fizemos, marcando o início da tocata para a data mencionada, às 19h, com concentração na Torre.
Um dia antes, eu, portando um trombone, e Luiz Berto, um banjo, em sondagem ao ambiente, chegamos a uma barraca, sem saber tirar qualquer nota decente daqueles instrumentos. O encarregado, ao nos aproximarmos, incorreu em gravíssimo erro: todo eufórico, mandou servir-nos bebida e boia à vontade, gritando que era tudo de graça, por conta do que faríamos depois, desconhecendo o ensinamento elementar de que a músico só se dá comida depois de acabada a festa. Assim, comemos e bebemos, enquanto a barraca se enchia de gente a aguardar o nosso show. Aí, o encarregado pediu que déssemos a primeira audição, para o que não nos fizemos de rogados. Peguei o trombone e comecei a esturrar, com Luiz Berto a meu lado a agredir as cordas e o couro do pobre banjo. Foi o bastante. O encarregado, esbaforido, berrou para nós:
– Podem parar! Podem parar!
E depois, mais baixo, para que só nós escutássemos:
– Vocês são dois filhos da puta!
No dia seguinte, 24.06.72, à hora aprazada, demos vida à Banda da Capital Federal. Constam da ata desse primeiro e histórico desfile, além do Mestre e Contramestre, os nomes de Rita Maria, da UnB, Madrinha da Banda; e dos percussionistas José Augusto, meu saudoso sobrinho, Hélio Sarapico, fardado de General da Banda, Juan, o Espanhol, José Mário, e Luiz Antônio Pena Granja, os três últimos da UnB.
Com Rita Maria à frente, carregando o estandarte, rebolando e saudando a multidão, dirigimo-nos para a Festa dos Estados, numa barulheira insana, pois, embora a bateria se esmerasse no ritmo, eu não conseguia tirar do trombone qualquer melodia inteligível. Mesmo assim, os circunstantes iam-se incorporando ao cordão, cantando e pulando, e muitas garotas se acercavam da Madrinha, em solidariedade àquela única componente feminina do grupo.
Inesperadamente, aproximou-se de mim um baixinho – arrepio-me toda vez que relembro este lance –, nordestino chegado a índio, cara de Cantinflas, que bateu no meu ombro, interrompendo a zoeira que eu fazia, me tomou o trombone e sapecou, de modo afinadíssimo e vigoroso a introdução da marcha A Jardineira, fazendo com que o arrebatamento dos desfilantes redobrasse e seu número se multiplicasse, em progressão geométrica. À banda se entregaram os corações de todos os populares que por ali se encontravam como à espera daquele algo que os fez renascer para a descontração e a incontida alegria. Dito baixinho, garantidor de todo o estrondoso sucesso, filiou-se à banda desde então e vem a ser o Fideles, funcionário do Ministério das Minas e Energia.
Estava, finalmente, fundada a Banda da Capital Federal.
Adotamos um lema: o Carnaval de nossa cidade não morrerá enquanto estivermos aqui na rua, fazendo música. E, para nós, rua eram as superquadras, no interior e através das quais preferíamos realizar as passeatas, desprezando as avenidas e as pistas oficiais.
Nas tardes domingueiras, saíamos 20, da SQS 403, e chegávamos à SQS 410 com mais de 1.000, séquito esse formado por cidadãos pais de família, donas-de-casa, mães com criancinhas nos braços, a juventude e a meninada brasilienses, e alguns bêbados, igualmente bem acolhidos no cortejo.
Na Copa do Mundo e nas grandes competições esportivas, fomos o único grupo a animar os torcedores, com um detalhe que era nossa maior vaidade: tocávamos sem remuneração, de graça, visando tão-somente ao bem-estar que sabíamos produzir com nossa arte.
Além dos pioneiros já citados, enriqueceram o efetivo da banda os maravilhosos sonhadores que adiante relaciono. Porta-Estandartes: Edlenúzia Paiva Portela, Graça Souza e Edna Neves. Percussionistas: Tenente Boaventura, o Fogo Eterno, falecido Miltão, João Amazonense, Ivan e Gordo da SQS 306, João Monteiro, Antônio do Guará, Levy, Teófilo, falecido Taumaturgo e os irmãos Pequeno: Ayrison, Ayrton, William, e falecido Wilson, vulgo Pará. Compositores e ritmistas: Tarcísio Marujo, Tonico da Portela, Alvinho da ARUC e o falecido Agostinho. Passistas: Vera e Vilma Neves, Marilene Schreider, Sônia, a Noiva, Rosa Maria, Graça Maranhão, Vera do Romeu e Ann Sheridan. Saxofonistas: sargento Severino, Luiz Antônio Jambeiro, cabo Cícero e Otávio, o Alemão. Pistonistas: João Aquarela, Fausto do BB, sargento Brandão e João Sobradinho. Tubista: sargento Alves. Trombonistas: Sebastião Neves – pai de Edna, Vera e Vilma – Luiz Mendonça, Romeu do Itamaraty, Odílio Alves da Xerox e Antônio Cavalcante. Vezes incontáveis, voluntários das Bandas de Música do Exército, Marinha, Aeronáutica, Polícia Militar e Corpo de Bombeiros davam uma canja em nossa brincadeira.
A Banda da Capital Federal passou a fazer parte de programações no Plano Piloto e nas Cidades Satélites, cujos administradores a convidavam para aniversários, feiras, exposições, festivais e retretas. Paradoxalmente, passei a ser constante frequentador de Delegacias de Polícia, convocado para me justificar por estarmos fazendo barulho na rua com nossa música, em decorrência de queixas apresentadas por pessoas metidas a sebo.
O recrudescimento das reclamações fez com que as autoridades constituídas passassem a exigir de mim Certidão da Ordem dos Músicos, Alvará do Departamento de Parques e Jardins, Alvará do Corpo de Bombeiros, Alvará do Detran, Autorização da Delegacia de Polícia e pagamento de Direito Autoral a cada desfile que realizávamos. Por essas e outras, encerrei as intensas atividades da banda em 1975, passando a apresentá-la somente em ocasiões muito especiais.
Desde então, todos os movimentos congêneres surgidos em Brasília diferenciam-se do nosso em duas particularidades: não desfilam pelas superquadras, e os músicos só atuam mediante paga. A primordial finalidade, portanto, de tais esquemas, é a lucrativa, a comercial. E com o apoio total da imprensa falada, escrita e televisada, o que à Banda da Capital Federal foi sistematicamente sonegado.
Sim, agora esclareço a razão pela qual tomei aquela resolução de que o meu primeiro Carnaval no Rio de Janeiro seria também o último. Muito simples. No Maior Espetáculo da Terra, enquanto lá embaixo, na passarela, a Acadêmicos do Salgueiro se arrastava cantando “Tengo-tengo”, na arquibancada, diante dos indiferentes olhares da plebe em derredor, dois pivetes me assaltavam.
Raimundo Floriano, Mestre da Banda, e Luiz Berto, Contramestre
Fideles, o primeiro músico, e Sebastião, o mais assíduo
Graça Souza, Porta-Estandarte, e Edna Neves, Porta-Estandarte
Logotipo da Banda