MEU CHAPÉU DE SERTANEJO
Raimundo Floriano
Sempre gostei de usar chapéu. Herdei esse hábito de meu pai que, durante toda sua vida, o manteve com exemplar fidelidade. Quando o médico lhe proibiu o de feltro, não se perturbou: comprou um de palha, permanecendo leal à indumentária.
O uso do chapéu requer a observância de certas normas. É tirado quando se está à mesa de refeição, ou quando se entra numa igreja ou na casa alheia. Ao se mencionar o nome de Deus, leva-se a mão à aba, fazendo a menção de retirá-lo, gesto que também vale no cumprimento a uma senhora ou a uma pessoa a quem se deve respeito. No hasteamento da Bandeira Nacional, enquanto os militares fazem a continência, civis, caso estejam de chapéu, seguram-no à altura do peito. O modo de sua colocação na cabeça – reto, de lado, mais atrás ou cobrindo os olhos–, determina a personalidade do sujeito que o traz. Tudo isso aprendi com meu pai.
Durante 30 anos, não tive problemas com esse costume. Ainda lactente, providenciaram-me um barrete, mais tarde substituído pelo boné. No ginásio, o casquete compunha o uniforme. No Exército, alternavam-se o gorro, o bibico, o bico-de-pato, o capacete e o quepe. Em 1967, ao ingressar na Câmara dos Deputados, tive que abrir mão da velha cegueira. A moda e as conveniências impunham outros procedimentos no trajar. Mas nunca esqueci as convenções, o cerimonial. Um dia, eu e meu amigo Luiz Berto íamos passando por um posto de gasolina, onde alguns frentistas hasteavam a bandeira da Shell, um deles com chapéu na cabeça. Aproximei-me e disse-lhe baixinho:
–Tire o chapéu, rapaz!
O frentista nem olhou para mim. Com energia, gritei:
–Tire o chapéu!
Ai, ele se tocou e me perguntou enfurecido:
–Quem é você?
–Sou o síndico de meu bloco! – Bradei.
O sujeito, então, mansamente, retirou o chapéu. Eu e Luiz Berto seguimos em frente na busca de novas aventuras.
Desde 1967, passei a andar descoberto, sentindo nisso um certo mal-estar. Meu regime foi quebrado no início dos anos 70, com o lançamento do filme Midnigt Cowboy – Perdidos na Noite, no qual um vaqueiro texano, interpretado por Jon Voight, chegava a Nova York com o intuito de enriquecer como prostituto de mulheres ricas. Foi uma febre, que se alastrou por todo o Brasil. Na noite brasiliense, quer no Gilberto Salomão, no Conjunto Nacional ou em qualquer boate, tinha-se a impressão de estar vivendo numa típica cidade do faroeste americano. No ano de 1973, a nova onda estava completamente arraigada no dia-a-dia candango. Presidia a Câmara dos Deputados, nessa época, o Deputado Flávio Marcílio.
Até então, três pessoas de quem gosto, das quais me lembro todos os dias, tiveram em comum duas particularidades: usavam chapéu e dificilmente sorriam. A primeira era meu pai, homem espirituoso e irônico, mas que, durante os 37 anos de nossa convivência, nunca vi emitir algo que chegasse perto de uma gargalhada. A segunda era Jackson do Pandeiro, o Rei do Ritmo. Com seu chapéu de lado, típico malandro do forró, embora suas músicas transmitissem alegria, júbilo e prazer, externava um semblante sombrio, tristonho. A terceira era eu mesmo. Posso estar na maior animação, mas não esboço nada mais que um esgar, um inútil esforço para demonstrar o que sinto no meu interior. Ainda que não usasse chapéu, eu teria que incluir nessa lista o nome do sisudo parlamentar.
O Deputado Flávio Marcílio, nascido em Picos – PI, representava o Estado do Ceará. Exerceu os mais altos cargos que uma pessoa possa almejar. Foi advogado, professor, juiz, ministro de tribunal, deputado e, interinamente, Presidente da República. Preparadíssimo para todas essas funções, de humor penetrante e invejável presença de espírito, conduziu a Câmara com propriedade e desenvoltura por três vezes. Apenas uma coisa, pelo menos publicamente, não sabia fazer: sorrir!
Foi durante sua gestão que voltei a entonar o velho amigo. Como sou patriota, não procurei imitar os caubóis do asfalto, os gringos do Texas. Meu chapéu era de mateiro mesmo, de matuto, com barbicacho e aba larguíssima rebatida do lado esquerdo, para não atrapalhar a espingarda que sempre levava em bandoleira, quando nas caçadas pelos sertões afora. Mas, admitamos, quando eu me apresentava de terno escuro, engravatado, com aquele chapelão bege, poderia ser confundido com personagens como o JR, do seriado Dallas, exibido posteriormente.
E foi assim trajado que, num dia igualzinho aos demais, cheguei para o expediente matutino na Câmara. Ao entrar no elevador, cujo ascensorista era o Josué Araújo, deparo com um solitário passageiro, que embarcara no subsolo: o Presidente Flávio Marcílio!
Subimos até o 8º Andar, onde desembarquei. À saída para o almoço, encontro-me com o Josué, que me fala:
–Raimundo Floriano, hoje pela manhã, quando tu entraste no elevador, o Presidente Flávio Marcílio ficou atentamente a te examinar. Assim que nos deixaste, ele se virou para mim e, circunspecto como sempre, me interrogou:
–Quem é o tipo exótico?
Raimundo Floriano, preito à tradição - Deputado Flávio Marcílio, fleugma nordestina