DO LIVRO DO JUMENTO AO PARLAMENTO
CABANO, O MELHOR GOLEIRO DO MUNDO
Raimundo Floriano
Cabano, em defesa eletrizante: fenômeno mundial
Os festejos de junho de 1956 foram coroados por uma estrondosa ocorrência: a seleção futebolística da Liga Esportiva Balsense impusera à seleção de Carolina duas inéditas derrotas, culminando com a fratura da mão direita de João Jácome, guardião das traves carolinenses, num canhonaço do goleador Marabá. Estava lavada a honra de Balsas, freguesa de caderno daquela aprazível e hospitaleira cidade sul-maranhense. As férias de julho começaram, conseqüentemente, sob imensa euforia, e todos enchiam o peito de orgulho, saboreando o meritório feito. Nesse ambiente, teve lugar, com início no primeiro domingo, o campeonato do meio do ano.
Havia em Balsas dois times: o Bangu e o América. O Bangu era o time da elite, da alta sociedade. O América, o da classe operária, dos artífices, dos artesãos. Com um detalhe: no América, jogavam atletas da elite, e o plantel do Bangu era também composto por pessoas pinçadas do operariado. Por representar o proletariado, o América era o mais simpático, o mais querido. Em contrapartida, o Bangu era o mais vitorioso. Para quebrar a rotina dos triunfos banguenses, dar mais tempero, graça e emoção ao torneio, surgiu um terceiro time, o Flamengo, formado por balsenses alunos de colégios noutras cidades. Era o time dos estudantes. Não fugindo à regra, a equipe rubro-negra mesclava-se de jogadores do alto e do baixo clero.
Na penúltima rodada, a competição estava, rigorosamente, embolada. O América, já praticamente classificado, esperava o resultado do jogo Bangu x Flamengo. Aí, a porca torcia o rabo. Se o Bangu vencesse ou empatasse, faria a finalíssima com o América. Se perdesse, a decisão seria contra o próprio Flamengo.
Os banguenses, com o objetivo de mais uma vez pisarem nos brios do time operário, resolveram que, naquele jogo, ninguém do seu time chutaria com a intenção de fazer gol, ficando essa tarefa a cargo dos adversários, para que, vitoriosos, desclassificassem o América e fossem à disputa do título, no último domingo das férias. Não houve unanimidade nessa artimanha, pois a defesa do time optou pelo exercício de uma ferrenha marcação, não dando chance aos opositores de lhe vazar a meta.
A partida foi empolgante, as três facções ansiando por um resultado que as favorecesse. A galera americana, diante do evidente corpo-mole praticado pelo Bangu, esperava pelo menos um empate, para tentar se sagrar campeã dali a uma semana. Os flamenguistas, esbarrando na forte defesa inimiga, suavam por todos os poros, na busca de um resultado positivo. E os banguenses, com seus chutadores ineficientes na pontaria, torciam para que os rubro-negros marcassem o seu tão esperado golzinho. O primeiro tempo terminou empatado, sem abertura do marcador.
Um dos artilheiros do Bangu tinha, em decorrência de seus poderosos e certeiros petardos, o apelido de Simite – corruptela de Smith, derivada de Smith & Wesson, marca de famoso e temível revólver de fabricação ianque. Ficou ele encarregado, então, de cometer um pênalti nos minutos finais do jogo, se persistisse o empate, o que, como penalidade máxima sempre resultava em gol, classificaria os rubro-negros para o tão esperado desfecho. E assim foi feito. O apito derradeiro consignava a vitória do Flamengo pelo escore de 1 x 0. E a melancólica despedida do popular América.
O regulamento do certame determinava que, na última rodada, não haveria jogo, declarando-se campeão o time que saísse vencedor numa cobrança de pênaltis, cinco para cada lado. E mais: apenas um jogador por time faria as cobranças. E pior: não previa alternância. Um time executaria sua série de cinco tiros e, logo após, daria lugar ao adversário para que efetivasse a respectiva.
A cidade fervilhou na semana da decisão. Em todas as rodas, esquinas e calçadas, o assunto era um só. Com o América fora do páreo, a quase totalidade da população passou a depositar suas esperanças no Flamengo.
Ao Bangu restou insignificante parcela da torcida e a imensa confiança nos seus atletas, o centro-avante Simite e o goleiro Antônio Sampaio, carteiro do município, também conhecido no futebol pelo apelido de Cabano.
Pelo Flamengo, entrariam em campo o arqueiro Jônathas, goleiro da seleção, verdadeira muralha no supracitado jogo contra Carolina, e o artilheiro Luiz Henrique, o Lulu, revelação do esporte balsense. Por aqueles dias, visitava a cidade Padre Deusdedith, diretor do Colégio Arquidiocesano do Piauí, onde o Lulu estudava, que lhe serviu de conselheiro e psicólogo, tentando amenizar-lhe o peso da responsabilidade naquele jogo de adultos. E não era para menos. O garoto tinha apenas 14 anos de idade. Nos treinamentos, tanto o Lulu quanto o Simite se mostraram dignos da confiança que neles fora depositada pelos companheiros.
Chegou, finalmente, a hora da onça beber água. Feito o sorteio, coube ao Flamengo executar a primeira série de cobranças. Silêncio na assistência. Cabano posiciona-se. Lulu toma distância e chuta, colocando no ângulo direito. Cabano voa lá e segura! Em seguida, carregando a bola, vai até ao Lulu, entrega-a e o cumprimenta. Catimba das mais perfeitas. Um tanto abalado, Lulu desfere o segundo disparo, dessa vez mandando a pelota para o ângulo esquerdo. Novo vôo do Cabano, que volta a segurá-la! Repete-se a catimba. Seguem-se mais três chutes do Lulu, três defesas do Cabano, dois cumprimentos com catimba e um aperto de mão de despedida.
Desolação na torcida flamenguista. Incrédula, abatida, restava-lhe, porém, um fio de esperança, eis que seu golquíper igualava-se a um paredão quase imbatível diante das linhas antagonistas e poderia – por que não? – reeditar a proeza anterior. Jônathas assume seu posto. Dá o sinal de “pronto”. Simite lasca o tirambaço, rasteiro, no cantinho. Jônathas não vê nem a cor da bola.
E o Cabano, defendendo os cinco pênaltis, ganha o título para o Bangu e consagra-se como herói de uma façanha jamais vista, antes e depois, em todo o futebol balsense, maranhense, brasileiro e mundial, digna de constar no Guiness Book of Records.
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Trinta anos depois, em julho de 1986, logo após a desclassificação do Brasil pela França, nos pênaltis – Zico desperdiçara sua cobrança –, na Copa do Mundo do México, estava eu de férias em Balsas e, numa roda de moradores da cidade, formada por antigos balsenses e munícipes recém-chegados – a maioria gaúchos, plantadores de arroz e soja –, mencionei, a propósito, a histórica performance do Cabano. Os veteranos não se lembravam mais, e os novatos, simplesmente, não acreditaram!