O MELÔMANO, A TORCIDA E O PENTA
Raimundo Floriano
A melomania – grande paixão pela música – é um sentimento que trago na massa do sangue. Cultivo a Música Popular Brasileira com grande dedicação, mantendo um organizado arquivo do vasto repertório nacional, aí compreendidos o choro, a velha guarda, a música sertaneja de raiz e o forró. Atenção especial tenho dispensado ao Carnaval Brasileiro, cujos registros sonoros pus em ordem cronológica, gravando 800 fitas de 60 minutos, num total de 1830 composições, desde 1870, com Zé Pereira, fanfarra adaptada da peça musicada Les Pompiers de Nanterre – Os Bombeiros de Nanterre –, de autoria dos franceses Larone e Martinaux, até 1996, com a marchinha Xô, Satanás, do conjunto Asa de Águia.
Confesso que meu desejo é abrir as janelas de meu apartamento, regular o som no máximo volume e transmitir para todo o mundo essas maravilhas que coleciono. Mas as coisas não funcionam assim. Por isso, sempre que posso, reúno os componentes da Banda da Capital Federal para retretas em logradouros públicos de Brasília, no que somos recompensados pelos aplausos do público que se diverte nesses momentos. Somos aquilo que os veteranos músicos de Nova Orleans – EUA, que só tocam jazz, chamam de preservation band.
Mas nem sempre nosso trabalho é bem compreendido. Conforme disse no episódio referente à Banda, encerrei, em 1975, suas intensas atividades, devido às pressões de que fui alvo por parte das autoridades, em virtude das reclamações de alguns que viam em nossa música apenas um barulho a lhes perturbar o sossego. Passei a apresentá-la somente em ocasiões muito especiais e descaracterizada, sem estandarte nem uniforme, para não despertar a ira dos deprimidos.
Além de melômano, sou um patriota. Na Copa do Mundo, torço apaixonadamente pelo Brasil, mesmo que nenhum jogador do Vasco tenha sido convocado. E faço o povão dançar nas ruas, comemorando as vitórias da Seleção Canarinho. Assim ocorreu em 1978, quando fomos “campeões morais”, como dizia o treinador Cláudio Coutinho. Ganhamos todas, mas a Argentina levou a Taça. Visando a animar o carnaval de rua, tive que procurar refúgio para meu trombone noutro grupo de músicos, cujo chefe se responsabilizasse por tudo, sem que meu nome aparecesse. Foi quando surgiu o Pacotão. Era a devolução dos festejos de Momo às avenidas e entrequadras brasilienses. Em 1979, a marchinha Aiatolá, de Moa e Samuca, tomou conta de todos os foliões e, até hoje, é a mais cantada nos desfiles do bloco:
“Geisel, você nos atolou
O Figueiredo também vai atolar
Aiatolá, Aiatolá,
Venha nos salvar
Que esse governo já ficou gagá
Ga-ga-ga-Geisel...”
Para fazer parte daquele seleto grupo de músicos, contei com a ajuda de uma extraordinária figura humana; o trombonista e maestro Celso Martins. O grande sucesso do Pacotão se deve, quase todo, aos arranjos que ele fazia para as composições que eram lançadas anualmente e também ao entusiasmo com que ele se porta diante de seus instrumentistas. Parece um garoto. Minha amizade com ele perdurou nesses mais de 22 anos, e tenho a honra de, hoje, contar com sua colaboração na Banda da Capital Federal.
Maestro Celso Martins, a alma do Pacotão
De 1975 a 1988, alternei a participação nos carnavais, ora no Pacotão, ora em Balsas, onde me integrava à Banda FM, do cantor Félix Matias, o Roberto Carlos do Sertão, que contava com guitarrista, baixista, tecladista, sanfoneiro, vocalistas e uma cozinha – percussão – nota 10. Nessas idas, sempre contei com o suporte de outro excelente sujeito: o saxofonista mineiro Jurandir Cruz, o Dudu, sargento reformado da Polícia Militar do Distrito Federal. Dudu é desses que tocam do Sábado Gordo até a Quarta-Feira de Cinzas sem se cansar. Tremendo boca-de-sola. Tem uns cacoetes de cigano – não fixa morada em lugar algum –, de gaiato, de maluco, não sei bem definir.
Dudu, saxofonista, cigano e bruxo
Uma vez, indo para Balsas, tivemos que pernoitar em Araguaína – TO, e nos dirigimos para o TransHotel, simpático “2 estrelas” às margens da estrada Belém – Brasília. Um tanto acanhado, Dudu insistiu para que eu procurasse uma pensão baratinha:
– Floriano, eu não estou acostumado a ficar em local frequentado por bacanas, por gente grã-fina!
– Dudu – tranquilizei-o –, basta que você proceda como se estivesse em sua casa ou no quartel. Não há diferença.
No jantar, tudo se passou sem novidades. Notei que ele procurava me imitar em tudo. E tudo transcorria dentro dos conformes. No dia seguinte, à hora do café, novamente Dudu me arremedava os gestos. Peguei um prato, ele pegou outro. Peguei uma faca e um garfo, ele fez o mesmo. Servi-me de uma talhada de mamão, ele pegou uma tigela de coalhada. Fomos para a mesa. Quando comecei a comer o mamão, ouvi-o resmungar. É que, com o garfo, a coalhada não lhe chegava à boca, derramava no caminho.
Aconselhei-o:
– Dudu, por que você não usa uma colher?
– E eu posso?
Assim que nos conhecemos, chamei-o para almoçar comigo. Ao ver o vidro de molho de pimentas – malagueta e de cheiro – à mesa, perguntou:
– Floriano, você gosta disso aí?
– Dudu, comer sem pimenta, é o mesmo que dançar com irmã!
Ele, para se mostrar entendido em assuntos gastronômicos, retrucou:
– Também adoro!
Depois que me servi, dei uma vigorosa chuveirada da picantíssima conserva em meu prato. Vendo que Dudu ia me seguir, avisei:
– Dudu, tenha calma. Ponha aos pouquinhos, e vá experimentando!
– Que nada, Floriano, eu gosto é assim mesmo! – E ensopou seu prato com o ardido tempero.
Ao mastigar a primeira garfada, as lágrimas lhe banharam as faces, e seus olhos ficaram vermelhos. Imediatamente, abriu e bebeu dois litros de refrigerante, tossiu um bocado, mas comeu tudo sem reclamar.
No outro dia, ligou para mim, um tanto abatido:
– Floriano, andei perto de morrer aqui em casa!
– Foi mesmo, Dudu? De quê?
– Aquela comida apimentada de ontem quase me matou. Pra entrar, até que foi fácil, o refrigerante ajudou. Mas, pra sair, meu chapa, o negócio arruinou. Estou sofrendo feito um condenado. Agorinha mesmo, minha mulher acaba de me aplicar um supositório de picolé!
Nossa parceria durou até 1988, quando problemas odontológicos fizeram com que eu perdesse a embocadura – firmeza no lábio superior, indispensável para quem toca instrumento de bocal como o trombone. Mas nem isso me afastou das ruas. Passei a tocar bombo e continuei a animar a torcida nas Copas, principalmente os moradores das quadras 215, 216, 415 e 416 Sul, onde eu residia. Para isso, contei com o entusiasmo de uma inesquecível e fraternal família, os Pimentel Menezes, meus vizinhos no Bloco L.
Humberto Pimentel, maestria na percussão
Humberto Lúcio Pimentel Menezes, funcionário da Presidência da República, é um exímio percussionista. Fizemos, naquelas comunidades, a festa das famílias: eu com o bombo; Humberto com o repenique; Neusinha, sua esposa, com o isopor de mantimentos; Daniele, sua filha, com o surdo; Ramon, seu filho, com o reco-reco; Veroni, minha mulher, e Elba e Mara, minhas filhas, à frente, puxando o vocal e o cordão. Arrebanhávamos multidões, que cantavam e dançavam embaladas por nosso ritmo.
Humberto também é um patriota, um brasileiro de fibra. Flamenguista de qualidade, vi-o passar mal, perto de um infarto, quando o Zico perdeu aquele pênalti contra a França, na Copa de 1986, desclassificando-nos.
Igualmente reforçavam nossas armações o zabumbeiro Eurico Leal Júnior, funcionário do BRB, e seus passistas: Maria das Graças – esposa – e filhos, Mateus e Carolina.
No início das passeatas, eu sempre pensava: “Se tivéssemos, ao menos, um instrumento de sopro..., se eu ainda pudesse tocar trombone..., por onde andará o cigano Dudu?”
Na Copa do Mundo de 94, a cada vitória do Brasil, aumentava o número de participantes em nossas comemorações. Na manhã do último jogo, aquele contra a Itália, eu ainda estava deitado, quando o telefone tocou. Era o Dudu! Acabara de chegar do Rio de Janeiro e queria se colocar a minha disposição. Imediatamente, fui buscá-lo no Cruzeiro Velho, ele e seu sax!
Assistimos ao jogo em meu apartamento. Na hora da decisão por pênaltis, quando Roberto Baggio ia efetuar sua cobrança, Dudu fez um gesto de mandinga – esqueci-me de dizer que ele é dado a bruxarias –, cruzou os dedos e falou:
– Esse aí vai chutar por cima do travessão!
Não deu outra! Fomos Tetra! E nossa bateria, enriquecida pelo sax do companheiro Dudu, comemorou essa conquista em grande estilo.
Devo à doutora Divina Maria Gomes, minha dentista, a arrancada para meu retorno ao trombone. Ainda em 1964, dado o agravamento de meu problema bucal, ela me encaminhou a um cientista, verdadeiro luminar, o implantodontista nova-iorquino – nasceu em Nova Iorque, MA – Delfino Damas Soares. Eu já conhecia o doutor Delfino, desde seu tempo de estudante, mas não sabia que ele era um especialista nessa nova modalidade.
Depois de um atento exame e diante das radiografias exaustivamente analisadas, ele me informou:
– Raimundo, você voltará a tocar trombone!
Vibrei de felicidade! Não esperava tanto! Sem muita confiança nesse maravilhoso prenúncio, verdadeiro milagre, iniciamos o tratamento, que durou cerca de um ano, pois o mais importante de tudo é o tempo de espera, de carência, para assegurar a ausência de rejeição por parte do organismo. Terminada sua delicadíssima tarefa, o doutor Delfino me entregou aos cuidados de uma outra sumidade, o austro-catarinense Jorge Probst, mestre em reabilitação oral. Concluído seu artístico trabalho, o doutor Jorge me despachou:
– Agora você pode voltar às atividades musicais!
– Doutor – hesitei – será que minha arcada dentária superior aguentará o peso do bocal?
– Raimundo – respondeu ele – você pode até pendurar nela um boi, que ela sustentará!
O certo, meus camaradas, é que, no Carnaval de 1996, eu já me encontrava desfilando em cima do trio elétrico da Banda do Pacotão!
Na Copa do Mundo de 1998, a Banda da Capital Federal, então reestruturada, mas ainda sem seu tradicional uniforme – camiseta verde com desenho da clave de sol e inscrição na cor branca –, voltou a incrementar a torcida. Nesse renascimento, tomaram parte, além de outros músicos, o pioneiro trombonista Fideles, o amigo Humberto Pimentel e sua filha Daniele. De nada valeu, porém, nosso fervor. Já entramos derrotados para a final contra a França, e aquele humilhante 3 x 0 nos deixou entalados por quatro longos anos.
Para que recuperássemos a autoestima veio a Copa de 2002. Acreditei na conquista do Pentacampeonato desde maio, quando os jornais de Brasília passaram a publicar minhas cartas, nas quais punha fé em nossos jogadores e na vitória almejada.
No dia 22 de junho, a Banda completara 30 anos de existência. Para comemorar essa data e a conquista do almejado título, espalhei cartazes por toda a Capital Federal, convidando a população para a retreta carnavalesca, que se realizaria ao lado da Banca de Revistas da SQS 215, a partir das 8h – vejam bem, na hora do início do jogo. Nessa tocata, mais um pioneiro: o saxofonista Jambeiro, admitido em 1974. Importantíssima foi a colaboração do maestro Celso Martins, na regência; do dono da Banca, Ronaldo Alves, que providenciou bebidas e tira-gosto; e de meu irmão José Albuquerque, o Carioquinha das Meninas, que instalou sob as árvores seu potente serviço de som.
O placar de 2 x 0 nos redimiu, recolocando o Brasil no primeiro lugar do ranking mundial futebolístico. Nossa festa, que durou até às 15h, contou com a presença maciça dos moradores das redondezas, senhoras com crianças no colo, idosos em cadeiras de roda, felizes todos com a histórica conquista.
Um detalhe que não posso omitir: apesar de reiteradamente convidados, nenhum jornal ou estação de TV apareceu por lá!
A BANDA DA CAPITAL FEDERAL
(Fundada em 24.06.1972)
NA FESTA DE SEU TRIGÉSIMO ANIVERSÁRIO E DA CONQUISTA DO PENTA
Raimundo Floriano, trombone - Batista , trombone - Teixeira, sax - Jambeiro, sax - Gedeon, pistom
Dionísio, trombone - Maestro Celso, trombone, Fideles, trombone - Élton, tarol - Marcos, bombo - Carioquinha, voz