O CAPITÃO ASA
Raimundo Floriano
Olhando hoje para esse grande parqueamento recém-inaugurado na Câmara dos Deputados, com capacidade para mais de mil e tantos carros, o meu Santanão ali a me esperar, revejo aquele menino que fui, no Sul do Maranhão, tendo como único meio de transporte terrestre um jumento, também possuidor de seu estacionamento, que vinha a ser o tronco de uma mangueira, na esquina de nossa casa, ao qual ficava amarrado o citado semovente.
Parece que foi sonho! Parece que foi ontem! Transcorridos 38 anos de labor, aposentadoria já conquistada, um contrato para o Secretariado Parlamentar, considero mesmo venturosa obra de encantamento essa trajetória, começando na sadia labuta com as coisas do mato e do sertão maranhense e culminando com o trabalho no Congresso Nacional, onde Deus me premiou, proporcionando-me o convívio diário com o melhor corpo funcional do serviço público brasileiro.
Com esse início, uma coisa puxa outra. Pensando no jumento de outrora, nos colegas de há pouco e no estacionamento de agora, me vem à mente a pessoa de Manoel Augusto Campelo Neto, Técnico Legislativo, advogado e maranhense, que, vez por outra, me dizia:
– Mulher encrenqueira e jumento, Raimundo, só quem procura, é o dono!
Campelo voava baixo em seu Fusquinha, e essa vocação para aviador do asfalto lhe valera a alcunha de “Capitão Asa” e problemas com o DETRAN, que o obrigou a se submeter a uma bateria de exames psicotécnicos, os quais, não se sabe o motivo, se prolongaram por quase todo o ano de 1973.
Naquele tempo antigo, era rigidíssimo o controle do ponto na Câmara, assinado seis vezes por dia, com apenas cinco minutos de tolerância, no início ou no término de cada turno. Para comparecer diariamente ao DETRAN, sempre na parte da tarde, Campelo tinha que, primeiramente, vir ao Departamento de Administração para assinar a folha de frequência até às 13h30, quando se iniciava o expediente vespertino, ficando, então, livre para sair, liberdade essa que durava até às 18h30, quando novo jamegão era exigido.
Aí é que morava o enguiço. A Câmara só possuía um estacionamento: aquele adjacente ao Anexo I. Para conseguir vaga ali, era necessário chegar bem cedo. Quem saísse durante o expediente, estava fatalmente condenado a circular, no regresso, pela Praça dos Três Poderes e Esplanada dos Ministérios, até encontrar um bendito espaço onde largar o carro.
Mas para Campelo isso não era embaraço. Ao retornar do DETRAN, estacionava no pátio do Anexo I do Senado, numa vaga sempre desocupada e reservada para uma ambulância que, segundo voz corrente, por lá nunca aparecia.
O guarda de serviço na área, funcionário daquela Casa, sempre o mesmo, zeloso no cumprimento de suas atribuições, rotineiramente emitia uma notificação de multa, pregando-a – era adesiva – no para-brisa do Fusca. Tal multa, soube-se mais tarde, morria por ali mesmo, era só para assustar. Aquilo foi irritando o Campelo, levando-o ao extremo de sua resistência e fazendo-o, um dia, dirigir-se furioso ao guarda, disposto ao que desse e viesse:
– Se você colocar de novo uma porcaria dessas no meu carro, eu vou lhe mandar para o inferno!
Ato contínuo, o guarda registrou a afronta no Livro de Ocorrências da Segurança, e a matéria tramitou, rapidamente, passando pela Diretoria-Geral, Primeira Secretaria e Presidência do Senado, Presidência, Primeira Secretaria e Diretoria-Geral da Câmara, e chegando às mãos do doutor Alteredo de Jesus Barros, titular do Departamento de Administração, a quem nosso herói se subordinava, que lhe deu um prazo de 24 horas para apresentar, por escrito, sua defesa.
E foi nesse sufoco que Campelo me procurou, buscando uma luz que o orientasse:
–Raimundo, rapaz, desta vez eu me enrolei. Já fui advogado militante, defendi acusados de homicídios, tirei muita gente da cadeia, solucionei questões fundiárias, promovi desquites e reconciliações, mas, sinceramente, não sei o que escrever a meu favor neste caso.
Eu, que já estava ciente do ocorrido, pedi para ver o processo, li-o com a devida atenção, e, finalmente, aconselhei:
– Campelo, aqui está declarado que você prometeu mandar o guarda para o inferno. Mas não está dito que mandou. Logo, não foi cumprida a ameaça. Nem será, porque você asseverará que, doravante, jamais estacionará seu veículo nas circunvizinhanças daquela Egrégia Câmara Alta.
O que foi feito.
E, assim, o Capitão Asa se safou.
Capitão Asa e seu Fusquinha voador