DO LIVRO DO JUMENTO AO PARLAMENTO
POR QUEM OS SINOS TOCAM?
Raimundo Floriano
Igreja matriz, vendo-se ao fundo, à esquerda,
a casa do doutor Didácio Santos
O campanário da igreja matriz de Santo Antônio de Balsas, no Maranhão, é apetrechado por três sinos inesquecíveis: o grave, um dos maiores do mundo, cujo estrondo é ouvido a mais de légua de distância; o médio, de som mavioso; e o repenique, meigo e delicado.
Quando a Deus é servido o comparecimento à sua presença de algum cristão dali, os sinos anunciam a todos essa partida, pedindo orações, de modo sentido e piedoso, com o competente toque de sinal: duas batidas no grave e uma no médio para homem, duas no médio e uma no grave para mulher, ficando o repicado do menor dedicado às crianças. Se os três tocam juntos, em carrilhão, é chamando para missas e rezas ou manifestação de alegria.
Naquela madrugada, em janeiro de 1950, as jubilosas badaladas comunicavam que o dia seria de grande festa, festa de arromba. Alternando-se com elas, Martinho Mendes do saxofone e seu conjunto, no coreto da praça, em frente à igreja, abrilhantavam a alvorada, enquanto o foguetório ajudava a acordar a cidade para a inédita comemoração.
Pela primeira vez, Balsas receberia a visita de um senador da República. Mas não um senador qualquer. Tratava-se, simplesmente, de Vitorino Freire, do PSD maranhense, o político mais poderoso que todo o Estado já conhecera. Natural de Laje da Raposa, Pernambuco, vitorioso na Revolução de 30 e na Contra-Revolução de 32, fez carreira no Maranhão como constituinte de 1946, deputado federal até 1947 e senador daí a 1971, exercendo uma política caracterizada pela prepotência, que se denominou vitorinismo, a qual cobriu de 1947 a 1964, quando todos os governadores eleitos foram seus correligionários e por ele indicados.
Vitorino chegou de avião antes do meio-dia, hospedando-se no lindo casarão atrás da referida matriz, residência do farmacêutico e deputado doutor Didácio Santos, antigo e futuro prefeito, chefe político da Situação, e meu padrinho de batismo por procuração.
Com fartura, havia comida e bebida para todos os munícipes, não importando a tendência partidária. A dança era também ininterrupta, num forrobodó denominado “popular”, típico do período eleitoral, onde pobres e ricos se misturavam em sadia confraternização. Para garantir a função, de Carolina vieram Clodomir e sua orquestra. E era maravilhoso quando Clodomir pegava o pistom, executava a introdução e, dando uma de cantor, ensinava os sucessos carnavalescos para aquele ano, como o samba Nega Maluca, de Fernando Lobo e Evaldo Rui:
“Tava jogando sinuca
Uma nega maluca
Me apareceu
Vinha com um filho no colo
E dizia pro povo
Que o filho era meu...”
Ou a marchinha Daqui Não Saio, de Paquito e Romeu Gentil:
“Daqui não saio
Daqui ninguém me tira
Onde é que eu vou morar
O senhor tem paciência de esperar
Ainda mais com quatro filhos
Onde é que eu vou parar...”
Igualmente era ensaiado o hino do partido:
“PSD é a voz do Brasil Unido
PSD nunca foi nem será vencido
Faça do voto a sua arma, o seu fuzil
Que o pessedista está de pé pelo Brasil...”
Na comitiva do senador, como ponto culminante do evento, havia um malaquias – o homem com a mala do dinheiro. À noite, antes do comício, a meninada entrou em fila para receber cada qual uma pelega de dez cruzeiros, nota carismática que, além da cor esverdeada e do alto poder aquisitivo, trazia estampada a figura eletrizante de Getúlio Vargas.
Os discursos, transmitidos por potente amplificadora – serviço de alto-falantes –, interromperam só um pouco o arrasta-pé e a comilança, que tiveram seqüência logo após o pronunciamento do último orador, prolongando-se o folguedo até o sol raiar.
De volta para São Luís, Vitorino deixava a aplaudi-lo um povo feliz, e seguia na certeza de que, em Balsas, seus recomendados seriam bem-sufragados no pleito de três de outubro.
Passa-se o tempo. Agosto de 1954. Vitorino retorna a Balsas para um comício de apresentação de seus candidatos às eleições vindouras. Dessa vez, porém, já com os eleitores devidamente controlados, sua visita não teria a mesma pompa de outrora, pois não haveria alvorada, rega-bofe e “popular”, e, o que era pior, ausente estaria, também, o malaquias.
Programou-se apenas a queima de fogos. O comício seria precedido de música mecânica, transmitida pela amplificadora instalada na casa de meu padrinho Didácio. À tardinha, o senador embarcaria para a capital.
Previra-se que o senador apontaria na praça da matriz às dez horas, quando a foguetada e a música estariam dominando o ambiente. Mas, desde as oito horas, os sinos dobravam pela alma de um vivente que se fora. Aquilo constrangeu os organizadores da recepção, que decidiram esperar enquanto durasse o ato religioso.
Quando Vitorino Freire ali despontou, encontrou o povo contrito, os alto-falantes aguardando, os fogueteiros a postos e os sinos a gemer, o que lhe causou forte irritação, fazendo-o tomar a resolução de se dirigir à multidão de viva voz, no que foi impedido pelo reboar do sino grave.
Às duas da tarde, inteiramente contrafeitos, o senador e seu estado-maior se despediram e tomaram o rumo do aeroporto, antecipando o regresso. No que o avião decolou, os sinos pararam com suas plangentes troadas.
Só muito tempo depois, a cidade e todo o Estado vieram a saber que, naquele dia, o operário Raimundo Morais, chefe político da Oposição, mais conhecida como Pé-Rapado, contratara com a Casa Paroquial, mediante pessoa de sua inteira confiança, por pura picardia, a inusitada desconformidade de seis horas de sinal.
Senador Vitorino Freire:
domínio político no Maranhão
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