Almanaque Raimundo Floriano
(Cultural, sem fins comerciais, lucrativos ou financeiros)


Raimundo Floriano de Albuquerque e Silva, Editor deste Almanaque, também conhecido como Velho Fulô, Palhaço Seu Mundinho e Mundico Trazendowski, nascido em Balsas , Maranhão, a 3 de julho de 1936, Católico Apostólico Romano, Contador, Oficial da Reserva do Exército Brasileiro, Funcionário Público aposentado da Câmara dos Deputados, Titular da Cadeira nº 10 da Academia Passa Disco da Música Nordestina, cuja patrona é a cantora Elba Ramalho, Mestre e Fundador da Banda da Capital Federal, Pesquisador da MPB, especializado em Velha Guarda, Música Militar, Carnaval e Forró, Cardeal Fundador da Igreja Sertaneja, Pioneiro de Brasília, Xerife nos Mares do Caribe, Cordelista e Glosador, Amigo do Rio das Balsas, Inventor da Descida de Boia, em julho de 1952, Amigo da Fanfarra do 1° RCG, autor dos livros O Acordo PDS/PTB, coletânea de charges, Sinais de Revisão e Regras de Pontuação, normativo, Do Jumento ao Parlamento, com episódios da vida real, De Balsas para o Mundo, centrado na navegação fluvial Balsas/Oceano Atlântico, Pétalas do Rosa, saga da Família Albuquerque e Silva, Memorial Balsense, dedicado à história de sua terra natal, e Caindo na Gandaia, humorístico apimentado, é casado, tem quatro filhos, uma nora, um genro e dois netos e reside em Brasília, Distrito Federal, desde dezembro de 1960.

Do Jumento ao Parlamento quarta, 04 de janeiro de 2017

O TOMA-LARGURA

O TOMA-LARGURA

Raimundo Floriano

 

 

                        Treze, sexta-feira, dezembro de 1968. Ato Institucional nº 5. Congresso Nacional fechado. Recessão da braba. Pindaíba de lascar.

 

                        Os primeiros atingidos pela crise fomos nós, os funcionários do Poder Legislativo, que, logo de cara, tivemos cortada a Gratificação por Serviços Extraordinários – hoje a GAL, Gratificação de Atividade Legislativa –, ou seja, ficamos com os rendimentos mensais reduzidos a um mísero terço do normal.

 

                        Uns desesperaram e venderam todos os bens de raiz, para enfrentarem os gastos e compromissos inadiáveis. Outros descambaram para o misticismo, apelando para sonhos, adivinhações e demais meios que os fizessem acertar na loteria ou no bicho. Houve os que se entregaram ao choro e às lamentações. Alguns, porém, como eu, foram à luta.

 

                        Com a parte da manhã livre – só com a implantação do Plano de Classificação de Cargos o Serviço Público passou a exigir tempo integral e dedicação exclusiva –, credenciei-me como vendedor da CAPEMI, o que me proporcionou um bom respaldo financeiro, mas também uma imensa dose de remorso, que até hoje perdura, por ter induzido muitas pessoas a caírem naquele conto-do-vigário da aposentadoria em que eu, na qualidade de sócio, piamente depunha fé.

 

                        Explico. Em junho de 1967, subscrevi um plano no qual, contribuindo mensalmente com Cr$21,00, teria direito, após 25 anos, a uma aposentadoria mensal de Cr$540,00, o que representava 25,35 vezes a contribuição. Em agosto de 1992, requeri o tão esperado benefício, na expectativa de que, naquela proporção de 25,35 por um, receberia Cr$15.133.950,00 mensais, pois descontara Cr$697.000,00 em julho, sendo sufocado por atroz surpresa: a CAPEMI informava que eu só fazia jus a Cr$136.732,20, tudo isso em cruzeiros velhos. Ora, apenas aqueles Cr$597.000,00, que paguei em julho, se aplicados em caderneta de poupança, renderiam mais de Cr$137.000,00 mensais. E agora eu pergunto: a troco de quê, passei um quarto de século dando dinheiro para a CAPEMI?

 

                        Hoje, vejo com reserva essa previdência privada recém-criada e incentivada pelos órgãos governamentais, fazendo a pergunta que não quer calar: “Como será daqui a 25 anos? Repetir-se-á a história?”

 

                        Retomemos a narrativa. Naquele tempo, inocente quanto ao grande engodo que oferecia a meus semelhantes, estava ganhando uns bons trocados, quando essa pequena mina foi descoberta pelos outros colegas batalhadores do Congresso, e daí a pouco o que mais se via na Casa era funcionário carregando a característica pasta azul debaixo do braço. Acabara-se a bonança. Saturara-se o mercado. Fazia-se imperiosa a mudança de ramo.

 

                        Devidamente autorizado por um certificado de aperfeiçoamento em Inglês, expedido pela Casa Thomas Jefferson - USIS, enveredei na atividade de Intérprete e Guia Turístico, logo esbarrando com a velha mania dos americanos de falarem muito rápido, de propósito, para que a gente não os entenda, e com o detalhe de que diversas turistas só queriam incutir o guia a levá-las para lugares escuros e ermos. Demorei-me pouco nesse ofício.

 

                        Parti para o exercício de uma atividade à qual estava credenciado: a de toma-largura!

 

                        Cabe aqui uma ligeira explicação sobre esse termo. Os toma-larguras chegaram ao Brasil em 1808, com a corte de Dom João VI. O nome deriva-se de tomar, na acepção de medir + largura, no sentido de tamanho, dimensão, magnitude.

 

                        Em seu livro Memórias de um Sargento de Milícias, Manuel Antônio de Almeida fala de um toma-largura que desempenhava suas funções na Ucharia – Estabelecimento de Subsistência – do Palácio Real. Nesse caso, ele era o atual almoxarife ou aprovisionador. Na Marinha, essa função, quando se trata de material, se denomina fiel. No Exército, quando o mister é a elaboração de folhas de pagamento, usa-se o termo furriel. Quando, porém, a incumbência é o estudo do patrimônio de uma pessoa, física ou jurídica, tal terminologia, que já foi guarda-livros, designa o atual contador.

 

                        Alguns gozadores aceitam outra etimologia para o termo. No mencionado livro, o autor afirma que, embora o toma-largura fosse gente da Casa Real, pertencia à última classe. Isso também se observa hoje. Quando o empresário se vê em dificuldades, o primeiro que corta de sua folha de pagamento é o contabilista. Depois vêm, nesta ordem, o aluguel, o telefone, os empregados, os fornecedores, a água e a luz. Agindo assim, começa a se esconder do contador, a passar ao largo dele. Em consequência – afirmam os maledicentes –, o profissional “toma uma largura” do inadimplente.

 

                        Tendo concluído o curso de Técnico em Contabilidade no Elefante Branco, abri, no segundo semestre de 1969, um escritório na sobreloja do Edifício Casa de São Paulo. No começo, não faltaram os costumeiros trotes, de autoria mais que conhecida. Colegas da Câmara, disfarçando a voz, ficavam a telefonar, repetindo manjadíssimas piadas como esta:

 

                        – Raimundo, tu fazes conta de cabeça?

 

                        Ou esta:

                        – Tu sabes tirar o líquido do bruto?

 

                        Outros se demoravam na empulhação:

                        – Contador, quem de dois tira um, quantos ficam?

                        E eu, pacientemente:

                        – Fica um!

                        – Fica mais – retrucava o galhofeiro –, porque minha mãe e meu pai se casaram e tiraram eu. Então, ficamos três.

 

                        Aí, aconteceu algo estonteante, perturbador, sublime. O Brasil sagrou-se tricampeão mundial de futebol e entrou naquela fase de País pra Frente, do Milagre Brasileiro, do Am-you-or-day-she-you, do Ame-o ou Deixe-o.

 

                        Havendo dinheiro vazando até pelo ladrão nos cofres do Erário, inflaçãozinha vagabunda, que começou 1969 com 19% e terminou 1973 com 15% ao ano, repito, ao ano – só no mês de março de 1990 foi de 80% –, o governo, sem saber onde gastar, criou uma série de incentivos fiscais, principalmente nas áreas da SUDENE, SUDECO e SUDAM, possibilitando às empresas e pessoas físicas investirem em indústrias ali instaladas, com recursos que seriam deduzidos do Imposto de Renda devido, apurado na declaração anual. Surgiu, em decorrência, a profissão de Corretor de Investimentos.

 

                        Trajando irrepreensíveis terno e gravata, e portando a inseparável Pasta 007, que teve nesse período o seu apogeu, tais corretores eram conhecidos à distância. De perto, eram simpáticos e fluentes, a maioria com uma conversa envolvente e a tranquilidade daqueles que nadam em prosperidade. Um dos seus alvos preferidos eram os escritórios contábeis, mediante os quais os clientes escolhiam onde aplicar. Nós, os toma-larguras, alcunhávamos esses corretores, carinhosamente, de “atracas” ou “marreteiros”, no bom sentido.

 

                        Certo dia, recebi a visita de um deles. Bem-apessoado, já entrado nos cinquenta, discorreu sobre uma grande indústria que se instalava com incentivos da SUDECO e, num dado momento, quando eu fazia minhas anotações, respondeu-me, ao lhe perguntar como se chamava:

 

                        – Mauro Borges!

 

                        – Interessante – falei –, esse nome é famoso por aqui. Mauro Borges é também o filho do fundador de Goiânia, Pedro Ludovico, foi oficial do Exército, Deputado Federal e Governador de Goiás, cargo do qual o depuseram em novembro de 1964, numa operação militar que mobilizou todas as unidades sediadas na Região Centro-Oeste e que colocou em seu lugar, como interventor, o Coronel Carlos de Meira Matos.

 

                        – Sou eu o próprio! – Interrompeu-me o corretor.

                        – Moço, deixe de conversa – duvidei –, um homem que foi tanta coisa na vida, não estaria aqui neste escritoriozinho angariando migalhas!

                        – É, mas eu preciso trabalhar, para sustentar a família.

                        – Desse modo? – Perguntei.

                        – Sim! Porém houve quem chegou a dizer que eu me locupletava na função pública.

 

                        Pois bem, ali, à minha frente, aquele corretor afigurou-se-me um gigante, um lutador, um sujeito pai-d’égua, um nota dez. Que soube, depois, dar a volta por cima, elegendo-se senador em 1982 e deputado federal em 1990.

 

                        Se tive sucesso na Contabilidade? Tive, sim! Pra dizer em poucas palavras tudo, fui contador da escritora e empresária Vera Brant – quem não a conhece, nem de nome, também desconhece a história viva de Brasília –, desde o início das atividades do escritório até o segundo semestre de 1973, quando me afastei em definitivo, premido pela adoção do Plano de Classificação de Cargos da Câmara dos Deputados, que acabou com aquela boca de meio expediente.

 

                        Para não perder o compasso, continuo a contabilizar patrimônios. Todos os anos, faço a Declaração do Imposto de Renda de parentes, amigos e colegas aposentados.

 

                        É o toma-largura atualizado, por dentro que nem talo de jaca!

 

 Senador Mauro Borges, goiano de fibra


Escreva seu comentário

Busca


Leitores on-line

Carregando

Arquivos


Colunistas e assuntos


Parceiros