OS LUSÓFNOS
Raimundo Floriano
Inegavelmente, o início da 46ª Legislatura foi, na Seção de Habitação, uma parada pra desmantelo.
A reforma das moradias funcionais seguia a toque de caixa, e muitas das empresas contratadas se viam a braços com o sério problema da ausência de mão-de-obra qualificada no mercado brasiliense, daí advindo, às vezes, a tentativa de entregar, como produto acabado, serviços que nem de longe correspondiam às especificações constantes da nota de empenho.
Rigorosos e inflexíveis, nossos arquitetos vistoriavam com olhos de lince cada dependência do imóvel reformado, anotando as imperfeições encontradas, e o laudo final era encaminhado ao fornecedor, para que cumprisse as exigências no mais curto prazo, sem o que incorreria em pena de multa.
Quem mais sofria nesse impasse era o parlamentar ocupante da unidade residencial, principalmente aquele que nela já se encontrava instalado com sua família, suportando os naturais transtornos causados por uma pintura que, por adicional azar, deveria ser refeita. Muitos se exasperavam, e tais desconfortos em seus lares abalavam até as relações com as demais pessoas integrantes de seu círculo particular ou profissional.
Numa tarde de março, estava eu enfincado nos processos, apertadíssimo-de-costura, quando o telefone tocou. Atendi prontamente:
– Seção de Habitação!
– Quero falar com o chefe!
– Pois não, é ele, o Raimundo!
– Raimundo, aqui quem fala é o Nelson Marchezan!
– Às suas ordens, deputado!
– Raimundo, tu sabes bem Português?
Exultei! Dizem que quando alguém está a exalar o último suspiro, todas as cenas vividas passam à sua frente, como se numa tela de cinema, à velocidade da luz. Em mim tudo aconteceu de modo inverso. Aquele telefonema representava um renascer. Menos de um segundo gastei para relembrar que o Deputado Nelson Marchezan acabara de assumir a Liderança do Governo na Câmara e, decerto, para compor seu gabinete, estava selecionando funcionários dentre os inúmeros gabaritados existentes na Casa. Sempre me considerei um lusófono – pessoa que fala a Língua de Camões – de boa qualidade, estudioso, atento, e via os meus esforços serem recompensados. Chegara a minha vez de brilhar! Volto à pergunta:
– Raimundo, tu sabes bem Português?
Não fui modesto:
– Dá pro gasto, deputado!
– Então, para com a porra daquela pintura no meu apartamento!
– Sim senhor, deputado! Mais alguma coisa?
– Vai pra puta que te pariu!
E desligou.
Permaneci um tempão absorto, avaliando o quanto o deputado se aturdira diante da imperícia ou negligência de alguma equipe de maus pintores a cometer toda espécie de desacerto no recinto de seu lar. Decidi-me a esquecer o assunto, guardando-o comigo em segredo.
Malgrado meu propósito, havia, suponho, plateia na outra ponta da linha, eis que nos dias seguintes passei a ser saudado por alguns colegas em tom de galhofa, com a interrogação:
– Raimundo, tu sabes bem Português?
Após o que, danavam-se a rir.
Fui aguentando, relevando e tirando de letra.
Passou-se uma semana, e novo chamado:
–Seção de Habitação!
– Raimundo, sabes o que tu és?
Reconheci a voz:
–Penso que sim, deputado!
–Tu és um irresponsável!
Ponderei:
– Por favor, deputado, o senhor vai começar novamente?
– Olha, chê, me respeita, que eu posso te destituir dessa função!
– Sim senhor, deputado! Só lhe peço que não me mande mais para a puta que pariu, porque não serei obrigado a ouvir!
– Meu chefe de gabinete vai aí cuidar deste caso. E tem mais, chê, esse palavrão que tu mencionaste, eu não me lembro de ter falado!
Interpretei a negativa do deputado como pedido de desculpas. Afinal, cada um tem o seu dia e a sua hora de perder a elegância, e o deputado, sendo jovem e humano, não constituiria exceção.
No que estava eu redondamente correto.
Ao Deputado Nelson Marchezan, quando Presidente da Câmara, devemos todos nós funcionários o pagamento da hoje GAL – Gratificação de Atividade Legislativa – de forma integral. Até então, ela era auferida apenas pelo efetivo em exercício, apurado dia a dia, e por isso ninguém gozava recesso, férias, licença-prêmio, nem ousava adoecer. As gestantes se afastavam quando já iniciados os trabalhos de parto, retornando daí a uma semana. Quem se aposentasse, estaria condenado à penúria.
E não ficou só nisso. Em 1982, redimiu-se com o vernáculo. No Natal daquele ano, brindou os parlamentares e toda a Casa com as mais belas edições do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, organizado pela Academia Brasileira de Letras, e do Novo Dicionário da Língua Portuguesa, o “Aurélio”, de Aurélio Buarque de Hollanda Ferreira, obras essenciais na mesa de qualquer amanuense que se preze, e das quais ora me valho para escrever estas maltraçadas.
Ao autografar o Vocabulário, assim se expressou o deputado:
“Entre as responsabilidades que assumimos como representantes do povo, uma delas, embora não explicitada em lei ou regra, diz respeito ao amor que devemos manter pelo traço de união que nos liga a todos os brasileiros: a língua nacional. Este vocabulário mostra a riqueza de nosso idioma e será, além de um livro de utilidade específica, uma recordação do Natal de 1982, que encerra mais uma legislatura que nos uniu como parlamentares e como homens que lutaram pelo bem do Brasil e de seu povo.
Nelson Marchezan”
Urge, portanto, que volte!
Deputado Nelson Marchezan, o benemérito