URUBUSSERVAÇÕES
Raimundo Floriano
É impressionante a ausência de urubus no sertão sul-maranhense, outrora santuário daquelas aves de cabeça pelada. Mas não foram eles vítimas de qualquer tipo de ação exterminadora ou de um fatídico urubucídio não. A história é bem outra.
Antigamente, Balsas, com uma lavoura essencialmente de subsistência, tinha na atividade pecuária sua fonte principal de riqueza. Por ser o centro comercial da região, recebia produtores do norte de Goiás – hoje Tocantins –, do sul do Piauí e de seus arredores, que ali adquiriam artigos industrializados e sal, numa forma de escambo em que as moedas mais fortes eram o couro de gado vacum e a pele de animais silvestres.
Para evitar que o mau cheiro de carne em decomposição, inerente aos couros recém-tirados, afetasse a saúde da população, foi escolhido um local bem afastado – hoje, está integrado à área urbana –, em que todos eles seriam armazenados, cada um com a marca de seu proprietário, onde construíram dois prédios. No primeiro, ficavam estocados os couros já em condições de serem embarcados, por via fluvial, para os grandes mercados manufatureiros. No segundo, erigia-se um enorme tanque, abastecido de água e sabão de veneno, no qual eram mergulhados os couros e peles, ação preventiva contra traças e outros predadores. Entre os dois prédios, havia um largo pátio, onde os couros, com armações semelhantes às das pipas, ficavam espichados, em pé, para secarem ao sol, quando ainda frescos ou após o banho desinfetante. A esse conjunto de armazém, tanque e pátio, situado à beira do Rio Balsas, deram o nome de Depósito.
Devido à intensa catinga que exalava, o Depósito era o ponto preferido dos urubus, que ficavam por ali a beliscarem os couros espichados ainda úmidos, retirando-lhes os pequenos resíduos de carne, alimentando-se e prestando serviços de limpeza, numa simbiose que só a natureza sabe proporcionar.
No Maranhão, todo bairro fronteiriço a uma cidade, na margem oposta de um rio, denomina-se tresidela. Na Tresidela de Balsas, em frente ao Depósito, desemboca um riachinho, em cuja foz se forma diminuta ilha, onde os urubus, depois de garimparem a carniça, iam se banhar e pegar um bronzeado, tornando aquele recanto para sempre conhecido como Praia dos Urubus. Lá, num dia de sorte, podiam eles ser contados às centenas.
Houve um deles que ficou famoso entre a meninada e o povo balsenses, chegando até a ganhar um apelido, Urugancho, pelo motivo que ora me disponho a esclarecer.
O pátio do Depósito, se vazio ou com poucos couros espichados, era usado pela molecada como campo de futebol. Um dia, estávamos ali a disputar um jogo de campeonato, quando vimos a figura esquisita de um urubu debatendo-se no chão, parecendo uma bola, rolando e ciscando, agonia das danadas. Se fosse um outro bicho, teríamos ido nele de pedradas, chutes e cacetadas. Mas todos nós conhecíamos a maldição de que quem mata urubu, tem sete anos de atraso na vida. Em vez de maltratá-la, pegamos carinhosamente a maçaroca viva e empenada, descobrindo algo desconcertante e deveras singular. Era o seguinte: o pobre urubu tinha a ponta do bico recurvada. Naquela infortunada hora, ao tentar se coçar no uropígio – extremidade triangular onde se implantam as penas da cauda, também conhecida como “sobre” –, enganchou a referida ponta no esfíncter – argola que tranca o ânus –, provocando tamanho sufoco e desassossego. O que originou o apelido.
Desprendemos-lhe o bico e o soltamos. Urugancho caminhou um pouco, olhou para nós, fez gufo-gufo em agradecimento, e bateu asas rumo ao coqueiro mais próximo, planta que, devido à altitude de sua copa, é preferida pelos de sua espécie para o descanso e a dormida.
Ficamos, entretanto, a lamentar, por não nos ter ocorrido a ideia de aparar o bico do Urugancho antes de libertá-lo. E não levou muito tempo para que Urugancho caísse noutra. De novo, ao esgravatar o fiofó, engastalhou o bico no anel de couro, e a cena se repetiu. Dessa feita, já prevenidos, pegamos o desgraçado, limamos-lhe o bico e amarramos, bem firme, em sua perna direita, com arame, um chocalhinho. Daí em diante, e por muitos anos, o distinto urubu anunciou a chegada, presença ou sobrevoo nas redondezas, mediante características badaladas.
Aí, aconteceram a implementação do Proálcool e a transformação de nossa pátria num país agrícola, com a meta de produzir, no mínimo, setenta milhões de toneladas de grãos. O sertão, em decorrência, virou uma gigantesca roça, entremeada por imensos canaviais. Ante o desequilíbrio ecológico, desapareceram, com a selva, os componentes de toda sua fauna. Inexistindo as matas, onde os corpos dos quadrúpedes mortos apodreciam e serviam de repasto para os urubus, passaram tais cadáveres a serem atirados nos rios, o depósito público de lixo mais conhecido pelos sertanejos.
Sendo da única estirpe de animal carnívoro que não mata, mas, vendo carniça, come, os urubus foram os que menos sofreram. Hedonistas e manemolentes por convicção, cedo acharam um jeito de sobreviverem. A cada bicho morto atirado ao rio, passou a corresponder uma dezena, ou mais de urubus que, montados naqueles restos, viajavam dias seguidos, aguardando o apodrecimento, para poderem se alimentar. E os mil e duzentos quilômetros de volta jamais eram retomados, em obediência à lei do menor esforço, que os sustinha pelo litoral. Numa dessas, Urugancho também se foi.
Ditas partidas sem retorno fizeram com que não mais se encontre no interior e nas cabeceiras dos rios um espécime sequer, nem mesmo para uma fotografia de lembrança. Como diz o povo, em sua sabedoria, pra baixo, todo santo ajuda, e as águas correm é para o mar.
Teoria comprovada, lei natural infalível e incontestável? Negativo! Caso contrário, não haveria urubus aos milheiros no Planalto Central Brasileiro. Aqui, tem ocorrido fenômeno inverso, com os urubus navegando contra a correnteza, na expectativa da putrefação dos despojos, tão logo cheguem às nascentes das águas, com acentuado recrudescimento desde o começo de setembro de cada ano.
Vejo-os, então, em esquadrilhas, ensombreando a Praça dos Três Poderes e antegozando o momento propício para o repasto. São nuvens deles que, aos magotes, se vão acercando e pousando sobre o Congresso Nacional. São urubus de outra laia, nenhum da irmandade do velho Urugancho.
Representam as empreiteiras e multinacionais que, nas pessoas de seus lobistas, procuram sugar o derradeiro alento que embala o povo brasileiro, por meio do saque perpetrado contra o Orçamento da União, numa vergonhosa e insaciável apropriação do butim em que transfiguraram nosso querido Brasil.
Urugancho: sufoco ao coçar o uropígio